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Trem da Noite – Cap. 04 – A Quarta Noite – Tenryūkyō

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— Isso aconteceu na primavera há dois anos, na Linha Iida. — Tanabe foi o quarto a falar.

Ele era o mais velho entre nós, cerca de dois anos a mais do que Nakai. No ano em que Hasegawa desapareceu, Tanabe já tinha se formado na faculdade e era membro de uma companhia de teatro fundada por um dos seus amigos.

Para todos, era destemido, mas também tinha o seu lado sensível.

Takeda e Nakai frequentemente passavam pela sua pensão para encher a cara. Eu também aparecia algumas vezes, quando me convidavam. No ano após o desaparecimento de Hasegawa, Tanabe ficou mais ocupado com o trabalho e teatro, e, no fim, parei de o ver nas rodas de conversa.

Depois que a companhia de teatro faliu vários anos mais tarde, ele trabalhou em Tóquio durante alguns anos antes de voltar para Toyohashi para trabalhar na loja de móveis da sua família.

A história que se segue é a de Tanabe.

 

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Minha tia vive com o marido em Ina.

Ela já tinha me pedido para ir fazer uma visita, por isso dei uma passada lá durante uma viagem a negócios. Pedi para meus colegas voltarem primeiro de carro, enquanto eu passava a noite na casa da minha tia. O que veio em seguida foi bastante agitado também, como almoçar com o meu primo e sua família, e, quando cheguei à Estação Inashi para voltar para Toyohashi, o crepúsculo já tomava conta.

Aparentemente, era a hora em que todos os alunos do ensino médio iam para casa, e todos os vagões do trem estavam lotados.

Pela janela, pude ver Komagatake e o resto dos Alpes Centrais, com a neve ainda cobrindo seus picos. A cada parada em uma estação, o número de passageiros diminuía, até que eu fui capaz de me sentar em um dos assentos. Os Alpes Centrais estavam do outro lado do trem, por este motivo, pela minha janela, eu via acres sem fim de terras agrícolas e os Alpes do Sul eretos contra o sol poente.

Sem demora, meu interesse foi atraído por uma conversa entre duas pessoas no assento à minha frente. Um deles era uma aluna caipira, com um cachecol vermelho ao redor do pescoço e um bonequinho de pelúcia do Snoopy pendurado em sua mochila. O outro era um monge de meia-idade, com a cabeça raspada, todo vestido de preto e carregando uma bagagem de couro. Aos seus pés estava um pacote plano, envolto por um tecido. Os dois estavam conversando desde o momento em que os vi na plataforma da Estação Inashi, e assumi que era um monge local e um dos seus seguidores.

Inesperadamente, a garota me chamou:

— Para onde tá indo?

— Para Toyohashi.

— Sério? Até o fim da linha?

Olhei para o seu lado e vi que se inclinava na minha direção, com um olhar quase suplicante no rosto. O monge sorriu ligeiramente e virou-se.

— Tem um longo caminho pela frente ainda.

Agora que eu entrei na conversa, a garota parecia um tanto aliviada. Talvez ela realmente estivesse se sentindo presa pelo monge.

Justo quando o trem fez uma curva e entrou na sombra das montanhas. O interior ficou escuro, como se passasse pelo fundo de um lago. O monge lançou um olhar afiado na minha direção, quase como se me encarasse.

 

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A luz do sol poente entrou pela janela quando saímos da sombra, brilhando sobre a garota e o monge. A garota apoiou o rosto no apoio de braço, com as bochechas estufadas como um futon sendo seco ao sol. Em contrapartida, o rosto do monge era vermelho como o de uma salamandra repousando no leito de um rio.

A garota era uma aluna do segundo ano em uma escola de ensino médio em Ina. Pela perspectiva dela, a ideia de ser chacoalhada dentro de um trem por mais algumas horas provavelmente soasse como pura tortura.

— Você é um daqueles apaixonados por trens? — perguntou ela.

Mas não precisa ser um apaixonado por trens para fazer viagens como essa.

— Quando está se movendo, pode simplesmente desligar a mente e esquecer de tudo. — expliquei.

— Então você tem, tipo assim, problemas e coisas do tipo?

— Tenho alguns, por assim dizer.

— Hmm.

— Você não tem?

A garota riu.

— Não sei. Tenho muita coisa em mãos. — O sorriso dela abriu caminho até chegar no meu coração.

Continuamos conversando através do corredor. Pelo lado de fora das janelas, socalcos levemente inclinados, as primeiras flores vermelhas de ameixeira floridas e telhados brilhando com uma cor âmbar passavam. Isso me deixou com um humor agradável, como se tomasse banho de sol na varanda de uma casa de fazenda.

O monge não disse nada o tempo todo. Ele ficou sentado ao lado da janela com espessas tabelas de horários de trem no colo, parecendo estar pensando sobre algo. Eu me perguntava para onde a garota estava indo. Já fazia uma hora que tínhamos saído de Ina.

— Um deslocamento longo esse seu.

— Né? — reclamou a garota, olhando para baixo e apertando o bonequinho Snoopy. — Não é tão caro, e eu normalmente estudo no trem, só não estou a fim hoje.

O trem parou em uma pequena estação.

Uma rajada de vento frio soprou quando as portas se abriram, e uma quietude nos envolveu, como se estivéssemos congelados no tempo.

A garota saiu do apoio de braço e virou-se na direção da janela. Ela havia tirado o cachecol vermelho, expondo o pescoço gracioso. Ao estender o braço, apontou para a janela.

— Tem uma loja lá. Consegue ver?

Quando me inclinei, o monge virou-se para olhar também.

Depois da cabine de bilhetes havia uma pequena praça e, além dela, uma fileira de prédios antigos. Entre eles era possível ver a loja que ela falou, mostrando um painel apagado que dizia “Padaria Yamazaki”. Na frente da loja havia um freezer de sorvete e uma máquina de vendas. A escuridão debaixo do seu beiral me lembrava o crepúsculo; eu quase pude sentir o cheiro de piso sujo de barro do lado de dentro. As persianas estavam fechadas no segundo andar por algum motivo, e cebolas cresciam no telhado como rosários. Essas lojas prestes a falir eram uma visão comum no país.

Olhando pela janela, a garota disse:

— Eu vejo todo dia, por isso começou a chamar a minha atenção. Tipo, por que sempre é tão escuro lá; por que não vejo ninguém; por que as persianas de cima estão sempre fechadas? Quando algo chama a minha atenção, não consigo parar de olhar. Quanto mais olho, mais estranho fica. Você sabe o que quero dizer, não é? Tipo, é só comigo?

Para mim, a vista pela janela era incomum, mas a garota a via todo dia. Entretanto, apenas por ser uma ocorrência diária não significava que era comum. Talvez ver algo todos os dias deixava as coisas ainda mais estranhas. Eu tinha que admitir que não dava para julgar um livro pela capa. Essa garota era mais sonhadora do que aparentava ser.

— Se isso a incomoda, por que não desce do trem e vai lá ver?

— Eu tive um sonho em que desci aqui, uma vez, — disse ela, ainda murmurando. — Tenho vários sonhos, nos quais visito lugares que vejo no trem. São tão realistas, tipo, às vezes começo acreditar que eu realmente fui lá. Vejo algum lugar no caminho e fico toda “eu estava lá semana passada!”, e, então, depois de um tempo, meio que acordo e fico tipo “eita, espera aí, foi um sonho”, e… foi mal, isso é meio estranho.

— Então você nunca foi lá de verdade?

A garota olhou para mim com seriedade e respondeu:

— Provavelmente não.

Olhei para além da cabine de bilhetes mais uma vez, em direção àquela loja. Agora que ela me disse isso tudo, pareceu mesmo um pouco estranho. E, quando olhei, por um segundo pensei ter visto algo se mover na escuridão atrás do balcão. No instante seguinte, o trem começou a andar, deixando apenas a impressão de eu ter visto alguém se levantar enfadonhamente lá, naquela penumbra.

A luz fraca da noite iluminava o trem.

— Onde você vai descer? — perguntei.

A garota respondeu, animada:

— Onde você acha?

Havia uma certa fascinação em seus olhos. Era como se estivesse tendo um vislumbre de um belo peixe subindo das profundezas de um rio até a superfície da água. Enquanto eu continuava lá, sentado e surpreso, a garota olhou para o nada, então dirigiu-se ao monge que estava ao lado da janela.

— Ei, senhor, se você não adivinhar de uma vez, logo chegaremos!

O monge tirou os olhos das suas tabelas de horários. Então murmurou para si mesmo enquanto olhava na minha direção.

Surpreendentemente, vi um vago olhar de desconforto em seu rosto.

— Você me pegou, mocinha. Eu desisto.

 

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Eu não tinha ideia alguma do que eles estavam falando.

— Oh, tão rápido assim?

Um sorriso surgiu nos lábios da garota, em contraste com a expressão de incerteza do monge. Eles pareciam estar em algum tipo de brincadeira.

O condutor veio do vagão de trás, caminhando pelo corredor entre nós até uma senhora acompanhando duas crianças, a qual embarcou na última estação. O trem tinha se esvaziado consideravelmente. Incluindo nós três, havia apenas seis passageiros, e não tinha tantas pessoas também no vagão de trás.

Deve levar mais uns trinta minutos até Tenryūkyō, pensei comigo mesmo.

A garota se inclinou na minha direção e sussurrou:

— Esse monge aqui é um psíquico!

Surpreso, olhei para o monge, que sorriu ironicamente e balançou a cabeça.

— Não, não, nada tão grande assim.

— Mas você pode ler a mente das pessoas, não é?

— Temo que não possa atender às suas expectativas. — respondeu o monge, olhando para ela e rindo.

Depois de uma melhor explicação, descobri que era mais jovem do que aparentava. Tinha treinado como monge em Quioto e estava atualmente servindo como monge chefe em um templo empobrecido em Takatō. Ele e a garota tinham se encontrado por acaso na plataforma em Ina. Mas a palavra que a garota tinha usado, “psíquico”, me incomodava. Havia algo de errado com ele. Clamava estar indo para uma conferência em Toyohashi, mas parecia estranho partir tão tarde assim da Linha Ina até a Iida. Entretanto, eu dificilmente estava em posição para criticá-lo.

— Eu morava em Quioto. — mencionei, tentando sondá-lo. — Onde você fez o seu treinamento?

— Hm, aqui e ali. — Ele não perdeu tempo para fugir da minha pergunta. Por dentro, era provável que estivesse incomodado que eu entraria junto para me divertir com todas as bobagens daquela colegial surpresa da província.

— Então, qual era a brincadeira?

— Eu queria que ele adivinhasse em qual estação eu desceria para ver se realmente podia ler mentes.

Isso explicava por que o monge estava silenciosamente encarando a tabela de horários. Ele podia bufar o quanto quisesse, mas, quando alguém exigia uma resposta concreta dele, já estava sem fôlego.

— Isso me parece interessante.

— Não, bem…

— Você pode mesmo ler mentes?

— À rigor, não as “leio”, eu as “vejo”. Por exemplo… — Apontou para a janela. Tínhamos passado pelos Alpes Centrais, e cenas de uma cidade provincial eram vistas pela janela: casas e fábricas, hospitais e escolas, tudo envolto pela luz que se esvaía. — Enquanto olha para a paisagem do outro lado da janela, tente colocar em palavras o que vê. Todas essas coisas que normalmente deixa passar sem um segundo olhar: use todas as palavras que conhece para descrevê-las. É de suma importância que se esforce. Jogue todas as palavras que tem na paisagem até que parem de fluir. Se o fizer, descobrirá que o seu próprio ser ficará exausto, desprovido de palavras. Suas palavras não serão capazes de acompanhar as cenas que passam diante dos seus olhos. Quando isso acontecer, as coisas pularão do cenário para dentro da sua mente, coisas que não tinha notado antes. São essas as coisas que eu “vejo”.

Eu me pergunto quando é que ele endoidou, pensei.

— Então estamos olhando pela janela, mas não estamos. É isso mesmo que entendi?

— Bem, pode dizer assim. Mas deixe-me adicionar que não há nada de errado nisso. Para que um homem viva, ele deve fechar os olhos para muitas coisas. Palavras nos cegam. Olhe pela janela e verá diversas coisas. Mas, ainda que não perceba, está procurando palavras.

A menina riu.

— Nunca me senti assim minha vida toda!

— E é assim, mocinha, que você permanece sã.

Eu estava começando a ficar irritado.

— E o que tudo isso tem a ver com leitura de mente?

— São a mesma coisa. Vemos rostos, e não vemos. Irritado, triste, desconfiado; só vemos as frases banais que colocamos sobre isso. Perder tempo para usar uma descrição. Mas, assim como o cenário se estende infinitamente, o rosto do homem também o faz. Se pode olhar para alguém sem confiar nestas palavras, será capaz de ver coisas que não podia ver antes. Todavia, não quer dizer que verá o que deseja ver. Isso faz sentido para você? — Depois de disparar essa torrente de palavras, o monge tossiu e olhou para a garota. — É por isso que não é muito adequado adivinhar as coisas.

— Meio que parece uma desculpa para mim.

— Não posso fazer nada. Isso é o que o meu “ver” significa.

Justo naquela hora o pacote plano ao lado dos pés do monge caiu com um baque.

— Minha nossa. — disse o monge, com movimentos lentos e precisos enquanto o pegava e o colocava no assento à sua frente.

A garota falou de repente:

— Ei, então, como é esse cara?

O monge fez uma carranca.

— Você disse que esteve em Quioto, não é mesmo?

— Exato. — concordei. Aposto que tentaria dar jeito nessa ao fazer algumas previsões ambíguas que poderiam ser interpretadas de qualquer forma. Por isso fui pego completamente desprevenido com quão definitiva foi sua afirmação seguinte.

— Vejo uma casa da noite. — entoou o monge, estreitando os olhos frios. — É a casa em que vive alguém que capturou o seu coração… suas visitas são sempre à noite. Uma paixão, ou talvez um amigo querido. E a memória daquela casa nublou a sua vida desde então.

Ele sorriu ligeiramente.

— O que achou?

Fiquei chocado por um momento. Não conseguia acreditar.

— Está… falando de Kishida Michio?

— Apenas lhe contei o que vi. — respondeu o monge, com uma expressão serena.

 

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Kishida Michio era um artista de mezzotints[1], cujo estúdio ficava em Quioto.

Quando nos encontramos, ainda tínhamos uns vinte anos. Fazia vários anos desde que ele voltara dos seus estudos no exterior, e, enquanto o dono da Galeria Yanagi esperava grandes coisas dele, para o público em geral, continuava desconhecido. Isso foi muito antes de a série Trem da Noite ser lançada para o mundo.

Ele construiu seu estúdio em uma casa deixada para ele pelos seus pais nas margens do Rio Kamo, mas também trabalhava meio turno em uma loja de móveis na Rua Ebisugawa, a qual era administrada por um amigo do meu pai, e por isso fui um visitante frequente enquanto morava em Quioto. Isso significava que eu frequentemente via Kishida. Não sabia que ele era um gravurista em placa de cobre. E não tinha uma aura muito aproximável.

— Na época, eu ainda estava trabalhando às escuras, sabe. Por isso estava um tanto abatido. — Kishida me disse isso um tempo depois.

No fim, ele largou o emprego, e eu não o vi mais na loja.

Quando vi o seu rosto novamente, foi em Kiyamachi, perto do final do mesmo ano que Hasegawa desapareceu no Festival do Fogo de Kurama. Naquela noite, ele entrou lentamente em um dos bares regulares. Esse cara me parece familiar, pensei comigo mesmo, então, depois de trocar algumas palavras com alguns pretextos, percebi que era realmente o mesmo Kishida que eu conhecia.

Conversamos tranquilamente enquanto bebíamos. Eu estava me sentindo desanimado depois do que aconteceu com Hasegawa, e Kishida parecia estar procurando alguém para conversar. Foi naquela noite que eu descobri que ele era um gravurista.

Mencionou que havia lido sobre o incidente de Kurama nos jornais.

— Eu também estava em Kurama naquela noite. Foi um grande choque quando li nos jornais depois. Ainda não encontraram nenhuma pista?

— Estão todos pasmos.

Eu não era tão próximo assim de Hasegawa. Tínhamos participado de turmas de Inglês diferentes, e o máximo que nossas interações iam era algumas conversas rápidas sempre que Nakai nos convidava para uma reunião. Mas eu sempre sentia que havia um charme misterioso nela.

Sempre que conversávamos, parecia como se ela pudesse ver além de mim. Entretanto, nunca dizia nada tão direto. Era mais reservada, como se estivesse escondendo um mundo da noite dentro de si, se assim posso dizer. Eu sempre gostei disso nela.

Eu contei tudo a Kishida.

— Uma pessoa deveras intrigante. — Devaneou ele. — Parece o tipo de pessoa que poderia ser abduzido.

— Está me dizendo que ela foi levada por tengu[2]?

— Bem, ela estaria no lugar certo. Além disso, sem contar que seria um festival à noite.

— Não acredito em nada disso.

— Claro. Eu só estava dizendo as hipóteses em voz alta. — Ainda assim, parecia algo nada considerativo a se dizer.

Hasegawa parecia ter mais presença agora do que antes do seu desaparecimento. O seu rosto vagava pela minha mente, seu perfil iluminado pela luz de tochas na noite em Kurama. Não pude deixar de pensar que ela ainda estava lá, ainda naquela noite, embora eu soubesse que não passava de mera fantasia.

Depois de discutir o incidente em Kurama, comecei a falar sobre minhas atividades na companhia de teatro. Eu não era uma das pessoas mais sociáveis, mas, com Kishida ouvindo, sentia como se pudesse falar de tudo. Partes dele me lembravam Hasegawa. Ela também estava sempre disposta a ouvir quando alguém precisasse, e não falava muito sobre si mesma.

— O que tem feito? — perguntei.

Ele me disse que estava trabalhando em uma nova série.

— É por isso que troquei o dia pela noite

Ele teve a ideia para a sua série, Trem da Noite, no ano após ter voltado dos seus estudos na Inglaterra. Acreditando que não era capaz da tarefa, não começou a trabalhar nela de imediato. Ao trabalhar em outros projetos para melhorar suas habilidades e guardar o dinheiro do trabalho, esperou pelo momento certo para desafiar o Trem da Noite. Então, após três anos de preparação, começou sua jornada neste inverno no Trem da Noite. Fiquei muito impressionado com sua preparação meticulosa.

Ao encontrar um irmão de copo, continuamos nossa conversa de bar até quase amanhecer.

— Você deveria dar uma passada no meu estúdio qualquer hora dessas. — disse ele, antes de voltar para casa, quase como se fugisse no alvorecer. Daquela noite em diante, comecei a fazer visitas à sua casa.

Sempre ia à noite. Sua casa ficava à beira de uma barragem ao lado do Rio Kamo, e sempre havia luz saindo pelas janelas. Ele tinha muitos outros visitantes; pessoas que passavam noites em claro, que foram atraídas pelas luzes da casa dele. Esses encontros foram chamados de Salão Kishida.

Kishida Michio gostava de ouvir as histórias de outras pessoas. Um ouvinte ávido, assim pode chamá-lo. Sempre que conversava com ele, parecia estar tirando palavras do fundo do meu ser. Deixava o seu trabalho espalhado por toda sua casa e estava disposto a conversar sobre ele, mas estava mais interessado em ouvir o que as outras pessoas tinham a dizer. E independentemente da opinião, sempre ouvia e levava a sério. Parecia para mim que as pessoas que visitavam o Salão Kishida eram atraídas pelas suas graciosas qualidades.

A escuridão da noite que ficava do lado de fora era elemento indispensável do Salão Kishida. Enquanto conversávamos dentro da casa, às vezes parecia que estávamos flutuando em um mundo da meia-noite. Todas as pessoas lá sentiam como se fossem velhos amigos que foram reunidos por acaso em alguma cidade distante. Duvido que eu teria sentido a mesma coisa se os tivesse encontrado de dia.

Aqueles foram dias infelizes para mim, com as brigas internas na companhia de teatro, minhas dívidas e o atrito entre meus pais, mas sempre que pensava no Salão Kishida, o mundo naquele momento da minha vida parecia estranhamento profundo. O aroma de café na sala de estar, as palavras trocadas na frente de gravuras, as caminhadas da meia-noite ao longo do Rio Kamo… Embora meus dias de aluno tivessem acabado havia tempo, era como se deparar com uma parte isolada de juventude. E tudo isso era graças a Kishida.

Todavia, isso foi há muito tempo. No momento em que embarcamos no trem da linha Iida, Kishida Michio já estava morto havia cinco anos.

 

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Ler mentes era realmente possível?

Quando eu era criança, li uma história sobre um satori, uma aparição da montanha. Um lenhador estava passando a noite na cabana em uma montanha, quando um satori veio. O lenhador pensou consigo mesmo: Em que bagunça me meti! E o satori respondeu: “Em que bagunça me meti” você diz! Seja qual fosse o pensamento que passava pela cabeça do lenhador depois daquilo, o satori imediatamente adivinhava e falava em voz alta.

Quando criança, aquela história me fazia tremer, porém, após pensar sobre isso por um segundo, não era tão estranha. É bastante óbvio o que está passando pela cabeça de uma pessoa assustada, e ainda mais quando se está falando com um caipira cortador de lenha que vive em uma cabana. Uma pessoa sabida poderia blefar sem muitos problemas.

Mas o que o monge disse não era blefe.

— Ele acertou mesmo? — perguntou a garota, para qual respondi com um aceno de cabeça. Quando ela viu aquele pequeno movimento de cabeça, olhou maravilhada para o monge ao lado da janela. — Uau. Eu sabia que era verdade!

— Se ele diz que estou certo, suponho então que devo estar.

— Sabe, eu meio que achei que você estivesse mentindo. Foi mal.

— Mas eu estava dizendo a verdade quando falei que não podia ver nada em seu rosto. — Um sorrisinho odioso fez-se presente no rosto do monge. — Estranho, de fato. Por que será?

— Aposto que é porque estou sempre viajando na maionese. Tipo, sério mesmo, sempre viajo. Às vezes, os meus amigos ficam pirados comigo também. Tipo, dizem que estou sonhando acordada e tal. Licença, um minutinho só.

A garota se levantou e caminhou pelo corredor em direção ao vagão de trás. Talvez estivesse indo ao banheiro.

O monge virou-se para vê-la partir. Por um breve momento, vi outro rápido traço de inquietação passar pelo seu rosto. Até mesmo eu poderia fazer aquele tipo de leitura de mente. No final, ele se virou e olhou para mim com um olhar significativo.

— Uma garota estranha, não acha?

— Ela?

— Ela me interessa, tem feito isso desde que embarcamos no trem juntos.

— Por causa que o seu pequeno truque de leitura de mente não funciona nela?

O monge bufou.

— Então não acredita.

— Nem um pouco. Só não consigo explicar, é isso.

— O mundo está repleto de pessoas misteriosas. É bom ser desconfiado. — Ele riu. — E, como eu acabei de dizer, aquela garota é uma dessas pessoas misteriosas.

— Ela parece uma colegial comum para mim.

— É isso mesmo o que acha?

Não havia como negar que, para uma colegial vinda do interior, ela tinha muita determinação. Estava enfrentando dois homens de meia-idade viajantes e potencialmente suspeitos, sem medo algum. Ela não parecia a caipira tradicional.

Pensativo, o monge disse:

— Sinto como se já tivesse encontrado aquela garota em algum lugar antes.

— Não parece tão implausível se você é um dos moradores locais.

— Não sou.

— Mas não disse que era chefe de um templo em Takatō?

— Não sou um monge de verdade.

Eu tinha minhas suspeitas, mas, mesmo assim, fiquei surpreso ao receber uma confissão tão aberta. No entanto, ele parecia não achar nada demais ao ter admitido para mim, apenas virou os olhos na direção da janela e murmurou:

— Faz quase duas horas que saímos de Ina. Para onde essa garota está indo?

— Sei lá. Pode perguntar diretamente para ela. — Sentindo-me incomodado, desviei o olhar e observei a vista pela janela da esquerda.

O trem passava pelo topo de um planalto, e abaixo eu vi cidades do país sendo engolidas pelo crepúsculo índigo. Entre as luzes que cintilavam uma após a outra, tive um vislumbre do Rio Tenryū brilhando fracamente. Faltava pouco para a Estação Tenryūkyō. Depois de passar pelas áreas de embarcações de turistas e fontes termais, entraríamos na seção mais inacessível e complicada da Linha Iina. Em menos de uma hora, iriamos ser tomados pela noite.

A garota não voltava do banheiro.

Sem demora, a vasta superfície do Rio Tenryū fez-se presente do outro lado da janela. Meu olhar vagava pela paisagem, então focou-se em uma cerejeira solitária, no lado oposto da margem do rio. Suas flores pareciam estar flutuando no crepúsculo, quase como se cada uma das suas pétalas emitisse luz. Mas meus olhos estavam grudados naquilo. Diferentemente do restante do cenário que passava pela janela, aquela cerejeira repleta de flores continuava enraizada no mesmo lugar, imóvel. Dei um suspiro.

Atrás de mim, o monge recitou em uma voz cantante:

Em meu sonho, vi o vento da primavera gentilmente balançando as flores de uma árvore…[3]

Já ouvi esse poema antes.

Quando me virei na direção do monge, ele havia tirando as sandálias e se sentado de pernas cruzadas, seu corpo escorado na janela. Parecia ter se cansado de manter a farsa de monge. Havia uma pequena garrafa de uísque na sua mão.

— Há muito tempo atrás, quando eu estava em Quioto — disse ele, enfim. —, eu tinha insônia, entretanto havia um homem que era muito gentil comigo. Um cara estranho, chamado Kishida Michio.

Um sorriso zombeteiro surgiu em seu rosto.

— Eu também estava no salão, ainda não se lembra?

 

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Todos os tipos de pessoas iam e vinham do Salão Kishida.

Não havia necessidade de fazer um agendamento, muito menos ter dias fixos de visita. Às vezes, Kishida sairia para as suas “aventuras noturnas”, mas nunca trancava a porta. Visitantes apenas beberiam café e esperariam pelo seu retorno. Soava descuidado, porém, pelo que eu saiba, nunca aconteceu nenhum tipo de problema.

Era estranho no começo sempre que eu me deparava com outros visitantes enquanto Kishida não estava, mas, sem demora, estávamos conversando como velhos companheiros. Me encontrei com alunos da faculdade de artes, uma senhora que administrava uma loja de usados em Ichijoji e até mesmo um pesquisador que tinha vindo da Europa. O dono da Galeria Yanagi em Shijō tinha quase a minha idade, por isso logo nos demos bem. Ele morava atrás de Shōkokuji, perto do meu apartamento, e, depois de conversar até amanhecer, íamos para casa juntos.

Mas havia um homem entre os visitantes do Salão Kishida que eu não conseguia gostar. O seu nome era Saeki.

— Sou um médium espírita. — proclamou, rindo de maneira desrespeitosa.

Não gostei dele desde o exato momento em que nossos olhos se encontraram. Ele usava uma camisa chamativa de colarinho aberto, e o seu cabelo e barba estavam despenteados. Toda vez que falava com o que trabalhava, contava uma história de pescador. De acordo com Yanagi, ele era o capanga de um culto que operava fora de Hida e estava envolvido em uma tentativa de assumir um templo que não tinha afiliação.

— Você deveria tomar cuidado com ele. — Yanagi me avisou.

Depois de nos encontrarmos várias vezes, Saeki me perguntou diretamente:

— Você não gosta de mim, não é mesmo?

— Não, não gosto.

Ele gargalhou.

— Gosto de pessoas honestas. Eu mesmo sou honesto, sabe.

O monge com quem eu estava compartilhando um vagão de trem era o mesmo Saeki.

Senti-me como uma criança que acabara de descobrir o segredo por trás de um truque de mágica. Ele não tinha lido a minha mente coisa alguma, pois me conhecia em Quioto. Mas não havia motivo para me envergonhar por não o ter reconhecido antes. Ele não passou pela minha mente uma vez sequer desde saí de Quioto, e qualquer um pareceria um estranho com a cabeça raspada e usando mantos de monge. Agora que eu sabia que o monge na minha frente era realmente Saeki, reconheci aquele sorriso desrespeitoso em seu rosto.

Na época, não sabia que ele sofria de insônia. Sempre foi tão animado. Todavia, era uma jovialidade debochada que lhe dava nos nervos. Sua tagarelice era sempre veloz. E, como pode se esperar de alguém que clama ser um médium espírita, parecia saber muito sobre religiões e suas histórias, ainda que fosse apenas superficialmente. Aquilo despertou o interesse de Kishida, por isso que, sempre que Saeki mostrava as caras por lá, a conversa mudava de rumo para a história do budismo e assuntos sobre compreensões.

Me lembro que ele tinha falado de algo chamado makyō.

Um universitário falou ser impossível ver a verdade do mundo com nossos olhos e que era o papel do artista remover o que obscurece a nossa visão e revelar os traços da verdade do mundo — algo do tipo, eu acho. Mas Saeki disse, zombando:

— Isso é meramente makyō.

Makyō é uma falsa compreensão que monges novatos têm.

Ele nos disse que havia uma história em Konjaku Monogatari sobre o sacerdote Sanshu e seu encontro com um tengu no Monte Ibuki.

Há muito tempo, no Monte Ibuki vivia um monge virtuoso chamado Sanshu. Ele entoava os sutras com todo o seu coração, orando pelo renascimento do Paraíso. Um dia, ouviu uma voz vinda do céu, que dizia: “A você darei o caminho até o Paraíso”. Repleto de alegria e gratidão, entoou os sutras e esperou até que no céu ocidental apareceu a deusa Kannon, brilhando esplendorosamente, que pegou a sua mão e o levou para o Paraíso. E assim ele partiu para lá. Entretanto, sete dias depois, foi encontrado amarrado no topo de uma alta árvore de cedro, entoando sutras. “Por que interferem em minha passagem para o Paraíso?!” Ele tinha sido enganado por um tengu. Seus discípulos o trouxeram de volta e cuidaram dele, mas ele continuou delirante e, três dias depois, deu o último suspiro de vida.

— Se me perguntar, eu diria que artistas não são diferentes daquele monge. — Riu Saeki.

Saeki não reconhecia o valor do trabalho de Kishida, muito menos o meu. Ele se orgulhava sobre não se deixar ser enganado por nada. Eu não entendia por que Kishida era amigável com um cara desses, e comentei sobre isso com ele em algumas ocasiões.

Mas Kishida apenas ria calmamente.

— Você se depara com todo o tipo de gente por aí — disse. —, e, caso ouça o que ele diz, vai ver que sempre faz sentido.

 

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Saeki estendeu a garrafa de uísque.

— Estranha coincidência nos encontrarmos em um trem. É quase como se Kishida estivesse nos guiando do outro lado.

— Nunca pensei que o veria novamente.

— Quer dizer que estava esperando nunca me ver novamente, não?

— A ideia de o ver nunca passou pela minha cabeça. — Tomei um gole do uísque barato.

Talvez Kishida estivesse mesmo nos guiando.

Eu não acreditava em espíritos, e Saeki provavelmente era igual. Mas não havia motivo lógico para ele ter me seguido na Linha Iida. Chame de coincidência ou orientação de um falecido, não passavam de dois nomes para a mesma coisa.

Entreguei de volta a garrafa de uísque. Minha visão caiu sobre a embalagem envolta pelo pano no assento à frente de Saeki.

Um pensamento súbito veio à mente: aquele não era um dos trabalhos de Kishida?

 

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Me lembro bem, pois aconteceu na primavera em que Kishida morreu.

Era tarde da noite quando cheguei à casa dele. Tanto o estúdio quanto a sala de estar estavam bem iluminados, e o aroma de café chegava até a entrada, mas lá dentro estava tudo silencioso. Era como estar em um navio fantasma, em que a tripulação e os passageiros desapareceram.

Kishida devia ter saído para uma das suas caminhadas noturnas.

Me sentei no sofá, bebi um café frio que havia sido requentado e observei o jardim. Dificilmente era bem cuidado, e a vegetação estava tão grande que já podia ser considerado uma selva. Eu tinha começado a cochilar quando despertei de súbito. Senti ter ouvido algo.

O som parecia ter vindo de um pequeno cômodo interno. Era um espaço pequeno, com cerca de quatro tatames e meio, no final do corredor de frente para o jardim. Kishida o chamava de quarto escuro e, como o nome implicava, as janelas foram cobertas para que nada de luz entrasse. Eu sabia que algo se fechou lá dentro enquanto eu estava imerso em pensamentos. Talvez ele estivesse aqui agora. Mas isso parecia estranho. Kishida só se trancava lá dentro depois que os seus visitantes tinham ido embora.

Fui até o quarto e me deparei com a porta um pouco aberta. A luz da sala de estar não adentrava o local, e tudo o que vi pela fresta era escuridão. Foquei minha atenção, mas não ouvi nada.

— Kishida, está aí? — chamei para ter certeza, entretanto não tive resposta.

Voltei para a sala de estar e me sentei no sofá uma vez mais. Por algum motivo, eu estava agitado. Convencido de que alguma pessoa desconhecida estava sentada dentro do quarto escuro, mantive meus ouvidos atentos. Tudo estava em silêncio. O que era aquela sensação de medo? Quando o relógio na parede bateu as duas horas, meu coração quase saiu pela boca. Não aguentando mais ficar sozinho na casa, fui para o Rio Kamo. Kishida provavelmente estava caminhando à margem.

Subi as escadas de pedra a partir da rua residencial até onde as ribanceiras se estendiam de ambos os lados da rua. Era a hora do sobrenatural, e poucos carros passavam. Casas escuras estavam alinhadas ao longo da ribanceira na margem oposta da expansão negra do Rio Kamo, e para além dela se erguia as silhuetas das Montanhas Higashiyma.

Segui para o norte ao longo da ribanceira.

Essa noite não tinha fim, pelo menos era o que eu sentia.

Ao redor do mundo, em cidades e metrópoles distantes, milhões e mais milhões de pessoas estavam sonhando, envoltas pela mesma noite na qual eu vagava naquele exato momento. Esse fato óbvio parecia muito profundo para o eu de agora. Nunca senti tanto a noite como quando estava no Salão Kishida. Essa era a vastidão do mundo da noite que Kishida me mostrou.

Uma árvore cerejeira estava na ribanceira do Rio Kamo, suas pétalas já florescidas e, debaixo dela, estavam dois homens sentados. Um era Kishida e o outro era Saeki.

Quando vi aqueles dois, o desconforto que senti na casa de Kishida e a sensação da vastidão da noite desapareceram. No lugar, meu coração pulou de ciúme. Eu queria perguntar por que ele estava passeando à noite com Saeki. O que Saeki sabe? Sou o único que realmente entende a nossa solidão! Fiquei surpreso comigo mesmo com o fervor da minha inveja. O que mais me irritava era que Saeki notou o meu ciúme. Ele deu um sorrisinho quando me aproximei deles.

Kishida olhou para mim e chamou, “Ei!”, balançando o seu braço magro.

— Eu não sabia que cerejeiras estavam florescendo à noite agora. — eu disse, sentando-me perto de Kishida. — Esperei na sua casa, mas você estava demorando demais para voltar.

— Sinto muito. Fiquei encantado pelas cerejeiras florescendo.

— Bonitas, não acha, Tanabe? — disse Saeki. — Até mesmo um canalha como eu se sente purificado.

Pétalas brancas flutuavam pelo ar, sopradas pela brisa fria da noite de primavera. Olhando para os galhos brilhantes, Kishida murmurou:

Em meu sonho, vi o vento da primavera gentilmente balançando as flores de uma árvore…

— O que foi isso? — interrompeu Saeki, mas Kishida continuou.

— … e, mesmo agora, embora eu esteja acordado, ainda há uma flutuação em meu peito.

Um tanka[4] ao lado de Saigyō, explicou Kishida, com o rosto tão pálido quanto as flores de cerejeira. Ele parecia estar ficando mais fraco, isso porque desde o último inverno ele tem se jogado no seu trabalho com zelo incomum.

— Você entende o que isso significa? — perguntou Kishida. — É Trem da Noite.

 

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A garota voltou quando entramos na Estação Tenryūkyō.

Eu estava pressionando o rosto contra a janela na minha esquerda, encarando as luzes do hotel que ficava na margem oposta do rio. Apenas uma pequena luz permanecia no céu ultramarino, e o reflexo do rosto de Saeki ficava sobreposto contra a paisagem escura.

— Logo a noite nos cobrirá.

No momento em que o pensamento passou pela minha mente, vi o rosto da garota na janela. Ela era tão pálida e bonita quanto uma flor de cerejeira na noite. Senti que já tinha a visto antes. Enquanto eu encarava admirado, ela começou a rir. Saltei e me virei para ver a garota ali.

— Advinha quem voltou! — disse ela, sentando-se no assento à minha frente. Eu encarei seu rosto, perplexo. Algo na aparência dela parecia ter mudado. Olhou para Saeki e riu. — Parece que você está se sentindo em casa, hein?

— Olá, novamente. Pensei que tinha saído sem me falar nada.

— Claro que não faria uma coisa dessas!

— Até onde vamos?

— Até onde isso me levar. — respondeu ela, rindo.

O trem saiu da Estação Tenryūkyō e entrou nas montanhas.

Na nossa esquerda, o Rio Tenryūkyō fluía obscuramente ao longo do fundo do vale, e cascalho branco revestia a praia no lado oposto. Era difícil saber onde ficava o limite entre as montanhas e o céu. Parecia como se a noite ficasse mais profunda cada vez que passávamos por um túnel. Quando paramos em uma estação vazia, fomos tomados por um silêncio tão profundo que fazia parecer que o trem jamais deixaria a estação novamente. Os únicos que restavam naquele vagão de trem eram nós três, e a empolgação que tomava conta do trem quando deixamos Ina parecia ter acontecido há muito tempo.

Observando nós dois trocando goles de uísque, a garota perguntou:

— Agora vocês são, tipo, melhores amigos?

— Passou longe. — Contei a ela sobre como nos encontramos no Salão Kishida.

Ao mencionar como sua “leitura de mentes” era apenas lorota, Saeki disse “Ei, qual é” com um sorriso travado. Mas a garota não ligou para seus métodos de enganação, pelo contrário, estava ainda mais intrigada com a coincidência de que dois conhecidos de Quioto se encontraram aqui, em um trem da região.

— É uma coincidência doida essa, não é?

— E não é uma das felizes, só para deixar avisada.

A garota pensou por um tempo, então disse:

— Esse tal de Kishida era um artista, certo?

— Isso mesmo. — concordei.

Ao ouvir isso, a garota apontou para o pacote de pano de Saeki.

— Aquela é uma das pinturas dele?

O sorriso desapareceu do rosto de Saeki como água sendo sugada pela areia. Seu olhar estava enervante[5], mas a garota não mostrou medo algum. Eu não tinha certeza se ela só estava sendo estúpida ou se tinha nervos de aço.

— É, né?

Saeki forçou um sorriso no rosto, esfregando a cabeça desprovida de cabelos.

— Parece que não sou o único leitor de mentes aqui.

— Só pensei que poderia ser.

— Você está correta, essa aqui é uma das pinturas de Kishida. Ele me deu antes de morrer. Não sei nada sobre arte, mas respeito a forma que ele viveu, por isso a carrego comigo.

— Que grande amizade!

— Não sei se pode chamar assim. Não posso dizer que é algo tão bacana. — Por que Saeki estava carregando uma das obras de arte de Kishida por aí?

Eu mesmo nunca comprei nenhum dos trabalhos dele. Verdade, eu era um pobretão, mas também sabia que, caso tentasse comprar qualquer coisa de Kishida, ele acabaria me dando de presente. Por saber dos problemas que ele enfrentou para criar seu mundo, eu não poderia chegar de mansinho e pedir para comprar um de seus mezzotints. Esse era o mínimo que eu poderia fazer para mostrar minha devoção a Kishida. Mas, ao ver Saeki — o mesmo Saeki que zombou da arte dele — carregando uma daquelas imagens fez crescer a minha indignação.

Saeki estendeu a mão e colocou o pacote no colo.

— Quer dar uma olhada?

A imagem que desembrulhou era, sem dúvida alguma, uma das gravuras em placa de cobre de Kishida.

Um rio fluía ao longo do fundo de um vale escuro. Luz cintilava de maneira sinistra sobre a superfície do rio, a qual era emitida aparentemente do nada. Duas coisas chamaram a minha atenção: uma praia de cascalho branco do outro lado do rio abaixo da montanha, indo em direção ao céu escuro, e uma cerejeira solitária florescida, coberta por flores brilhantes. No pé da árvore havia uma mulher sozinha e sem rosto, erguendo a mão direita, como se acenasse para mim.

Em meu sonho, vi o vento da primavera gentilmente balançando as flores de uma árvore—

— Essa é Tenryūkyō​, parte da série Trem da Noite.

— É tão misterioso. Parece vir de um sonho.

— Tudo o que desenhou era esse tipo de coisa. — Saeki sorriu. — Ele sempre foi meio doido.

— Então, tipo, é por isso que veio até aqui?

— É parte disso. Eu queria ver se a paisagem nessa imagem realmente existe. — Ele parecia sincero, e talvez estivesse sendo.

A garota aproximou o rosto da gravura, debruçando-se sobre ela sutilmente.

— Tem uma mulher ali. Quem é?

— A garota dos sonhos dele.

— Como assim?

— Kishida fez esses desenhos para que pudesse encontrá-la.

— Não invente coisas se não sabe da história. — interrompi. — Ele jamais faria esses desenhos por motivos tão banais.

— Você não sabe de nada, não é?

De acordo com Saeki, Kishida também falou diversas vezes sobre a mulher na imagem ganhando vida. Sua fascinação com a ideia começou de uma antiga mezzotint pertencente ao seu mestre, na Inglaterra, e a história mal-assombrada que a envolvia. Mas Kishida nunca falou sobre esse tipo de coisa comigo. Suspeitei que fosse apenas uma história meia-boca inventada por Saeki para falar mal dele.

Saeki zombou:

— A garota na imagem o assombrou e o matou. E apostarei que ele também estava feliz, pois enfim conseguiu o que tanto desejava.

Nós todos estávamos refletidos na escuridão da janela sombria. O rosto da garota chamou minha atenção. Ela estava sorrindo para mim do outro lado da janela, e seu rosto parecia mais maduro, quase como se pertencesse a outra pessoa.

 

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Era verdade que cada obra do Trem da Noite mostrava uma mulher enigmática. Mas Kishida não gostava de explicar os próprios trabalhos. Eu lhe perguntei antes sobre quem era a mulher, entretanto ele nunca me deu uma resposta.

— A encontrei no quarto escuro.

Ele deve ter dito isso certa vez.

Sempre acordava após o pôr do sol e começava a trabalhar. Depois de trabalhar até tarde da noite, dava passeios noturnos, ou conversava com os frequentadores do Salão Kishida. Entretanto, seus visitantes eram obrigados a partir antes de amanhecer. Depois que todos tinham ido embora, ele entrava no quarto escuro e começava a pensar.

Tirou todas as suas ideias para Trem da Noite no quarto escuro, o qual era equipado com uma poltrona e uma mesa de canto, assim como uma escrivaninha, um pequeno caderno de desenho e um lápis. Ele se sentava lá e esperava, na escuridão, rapidamente desenhando qualquer imagem que aparecesse no escuro. Depois de revisar seus rascunhos, os organizava e, então, produzia suas obras. Às vezes, até mesmo trancado naquele quarto, nada aparecia. Ainda assim passava uma certa quantia de tempo lá, para só então sair e ir para o seu quarto no segundo andar para dormir, sem ter um vislumbre sequer do sol. Ele observava esses hábitos peculiares de trabalho estritamente, quase que monástico.

Eu lhe avisei algumas vezes, preocupado com o seu bem-estar.

— Toda vez que o vejo, seu rosto está mais pálido!

— Sério? Nunca me senti tão bem.

— Você deveria descansar um pouco.

— Talvez tenha razão. Quando eu achar um bom momento para parar… — Esse momento foi a sua morte.

Ele conseguiu completar 48 obras em Trem da Noite antes de morrer. Deu a todos eles nomes de lugares, como Onomichi, Okuchida e Tsugaru, mas não havia realmente viajado para todos esses locais. Toda a sua inspiração para cada localidade vinha de visitantes noturnos do Salão Kishida.

Eu tinha boas lembranças das cenas noturnas do Salão Kishida. O piso de madeira da sala de estar sempre brilhava com uma luz quente, e o aroma de café tomava conta do ar. Às vezes, Kishida até oferecia aos seus visitantes um pouco da comida que preparava. Conforme conversávamos e observávamos suas gravuras, começávamos a falar das nossas próprias viagens. Saeki não foi exceção, nem eu. Nossas viagens nos levaram a Ise, Tonami, Nagasaki. Kishida ouvia ansiosamente os contos dos visitantes. Foi o entrelaçamento das histórias dos seus visitantes e suas meditações no quarto escuro que deram vida a cada um dos trabalhos de Trem da Noite.

Eu tinha entrado no quarto escuro com Kishida uma vez.

Quando fechei a porta, fui cercado por uma escuridão tão profunda que sequer conseguia ver a mão estendida à minha frente. Parecia muito estranho. Eu me lembrei de Tainai Meguri[6] em Kiyomizu-dera. Eu nem mesmo conseguia ouvir a respiração de Kishida, ainda que ele estivesse logo ao meu lado.

— Você ainda está aqui, não é, Kishida?

— Não sei dizer. Onde acha que estamos?

A voz dele parecia vir de longe, e a escuridão que me engoliu pareceu vasta e sem limites.

— Essa escuridão está conectada a tudo. — entoou ele.

 

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Sentado de pernas cruzadas, Saeki encarava a gravura inclinada contra o assento oposto e murmurou:

— Ele era bastante excêntrico.

— Não tem como discordar. — concordei.

— Ele foi preso por makyō[7]. Nada que qualquer um dissesse mudaria isso. — disse, melancólico, tomando um gole do uísque. Sua voz tinha um tom de honestidade. Talvez, à sua maneira, Saeki sentisse falta daquelas noites no Salão Kishida.

— Você já viu Alvorecer? — disse ele, inesperadamente.

Olhei para cima, surpreso.

— Se refere à série?

— Já viu?

— Não, nunca.

Ouvi Kishida a mencionar antes. Alvorecer era a contrapartida de Trem da Noite.

Se Trem da Noite representava uma noite sem fim, Alvorecer retratava uma manhã solitária, pelo menos foi o que Kishida disse. Mas até mesmo Yanagi, o dono da galeria, nunca a viu. Eu estava convencido de que era tudo produto da imaginação fértil de Kishida.

— Você viu?

— Não. — respondeu Saeki. — Aliviado?

Ri. Ele estava certo sobre isso, pelo menos.

Encarando de volta a mezzotint, Saeki murmurou:

— Kishida deveria ter criado ela, não acha? Não deveria ter se deixado ser cativado por imagens como essa.

Detectei um traço de emoção em sua voz.

A garota se levantou e sentou ao seu lado. Observando a imagem, apontou para a mulher sem rosto.

— Ele estava apaixonado por ela, não é?

— Não sei se pode chamar isso de amor, mocinha.

— Não importa se é dentro de uma imagem, amor é amor!

— Você tem uma mente bem aberta. — Saeki riu, olhando para o seu rosto. — Mas ver essa imagem me deixa com medo. E se essa imagem levou Kishida? Você sabe por que ele deu o nome da série de Trem da Noite? Se referia a Hyakki Yagyō, o trem de demônios. Todas as mulheres que pintou eram demônios. É por isso que não têm rosto. São todas demônios nascidos de makyō, e, no final, rastejaram para fora das imagens e o devoraram. Talvez fosse isso o que ele esperava.

Depois que Saeki terminou de falar, seus olhos se viraram para a janela.

Todos nós ouvíamos o estalar do acoplamento entre os vagões.

O trem percorria através da escuridão. Atravessando um bosque de árvores, passava por uma subestação de energia ao lado do rio. Sem demora, as luzes das casas começaram a acender do outro lado da janela, e o trem chegou à estação em um vilarejo situado nas montanhas.

— As pessoas podem realmente viver em qualquer lugar. — Observou Saeki.

Parecia que fazia dias desde que embarquei nesse trem em Ina. Parte disso se dava pelas lembranças dos meus dias em Quioto, as quais foram trazidas por esse encontro mais do que inesperado com Saeki, mas outra parte disso tinha a ver com a mudança de paisagem para além da janela, sendo tão diferente desde o começo da jornada. Quando o trem partiu de novo, as luzes cintilantes do vilarejo foram engolidas mais uma vez pela escuridão da noite.

Logo depois, vi uma fileira de edifícios de madeira que pareciam estaleiros ao longo dos sopés escuros. Ficavam sobre o Rio Tenryū, e luzes nos píeres brilhavam sobre os barcos ali ancorados.

A garota perguntou a Saeki:

— Como você acha que ele morreu?

— Sozinho. — respondeu ele. — O seu coração parou no meio da noite. Não era algo inesperado, se parar para pensar.

— Sentiu-se mal por ele?

— Hah. Morte é o fim. Não há mais nada além disso.

Ao seu lado, a garota encarou o rosto dele intensamente.

— O que foi? — disse ele, incomodado.

— Foi por isso que pegou a imagem?

Assim que ouviu essas palavras, o rosto de Saeki ficou pálido.

— O que quer dizer, mocinha?

— Ele parecia estar apenas dormindo, não é?

— E-Espera aí… — Saeki gaguejava.

Sem dar atenção aos seus pedidos, a garota continuou:

— Você estendeu a mão e tocou a bochecha dele. Um toque tão suave, como o toque de um amor.

Descrente, Saeki sussurrou:

— … Como sabe disso?

 

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— Eu o avisei várias vezes. — disse Saeki.

No começo do outono do ano antes de morrer, Kishida mergulhou em seu trabalho com um fervor incomum. Ele parecia estar apressado, pois sentiu sua morte iminente, mas essa urgência frenética pode ter servido apenas para acelerá-la.

Saeki se preocupava com a saúde de Kishida. Sentia que ele estava preso no quarto escuro chamado Trem da Noite. Esqueça a arte. Todas aquelas pessoas que frequentavam o Salão Kishida eram apenas um grupo de parasitas irresponsáveis, os quais ficavam por perto apenas para ver a ruína de Kishida.

— O que acha de esquecer a arte por um tempo e viajar? Vou cuidar de tudo para você. Pode ir conhecer todos os lugares que esteve desenhando no Trem da Noite. — Saeki fez o convite mais de uma vez.

E Kishida demonstrara sinais de interesse.

— Sim, talvez depois que eu completar cinquenta peças nessa série.

Mas, naquela noite de primavera, Saeki visitou a casa de Kishida e viu o artista jogado no sofá, com a cabeça caída. Ele estendeu a mão para esfregar a bochecha dele. Parecia estar dormindo, mas seu corpo já estava frio. Saeki percebeu de imediato que não havia nada que pudesse ser feito.

— Parecia que o mundo tinha acabado. — Refletiu ele, levantando-se do seu assento e pegando a gravura. — Eu imediatamente pensei em deixar Quioto naquela noite. Me senti terrível por deixá-lo daquele jeito, mas não era como se ele pudesse sentir algo, pois já estava morto. Não deixaria que ninguém colocasse a culpa em mim, e vocês todos o encontrariam em breve mesmo. Eu estava prestes a fugir quando essa imagem chamou minha atenção. Kishida a deixara na mesa. Nunca dei a mínima para a arte dele, porém, por algum motivo, senti que deveria pegar essa para mim. Talvez só quisesse algo para me lembrar dele.

— Então você simplesmente a roubou?

Saeki olhou para a gravura e franziu a testa ao me ouvir dizer aquilo. Ele parecia tentar se lembrar de algo.

— Depois daquilo… o que eu fiz?

Saeki ouviu o toque do relógio de parede na sala de estar. Com a gravura em mãos, congelou como um cervo quando iluminado por faróis, focando os ouvidos. Depois que o som do relógio parou, os arredores ficaram em um silêncio ainda mais profundo do que antes. Alguém poderia entrar a qualquer segundo agora para participar no Salão Kishida.

As coisas vão ficar feias se alguém me ver aqui. Ele estava bem ciente disso, mas seu corpo não se movia.

A partir da sala de estar era possível ver o jardim, o qual estava submergido em uma escuridão viscosa; refletido no vidro viu Kishida caído no sofá e a si mesmo segurando a mezzotint. Tanto Kishida como ele pareciam fantasmas. Por que estava tão silencioso? Parecia que a noite duraria para sempre.

Um som veio do final do corredor.

Saeki sabia que a única coisa lá era o quarto escuro, com suas janelas cobertas. É Kishida? O pensamento passou pela sua mente involuntariamente, mas o ignorou na mesma hora, sentindo-se abalado. Que tipo de idiotice foi essa? Kishida não estava morto logo à sua frente?

Então acalmou a respiração e ouviu, escutando os sons de alguém se movendo dentro do quarto escuro. Se alguém o tinha visto lá, estaria com problemas. Precisava ter certeza agora.

Começou a andar devagar pelo corredor sombrio em direção ao quarto escuro.

— E, então… — sussurrou ele, antes que sua voz sumisse.

— Então? — O apressei, mas continuou calado.

O trem chegou a uma estação deserta entre as montanhas.

Saeki pegou a bolsa e se levantou, empurrando a garota e caminhando pelo corredor. Parecia estar descendo.

Tudo pareceu repentino demais.

— Ei, espere! É aqui que você deveria descer? — Fiquei de pé e gritei para ele.

Saeki virou-se e me encarou, seu rosto era como uma máscara.

— Foi ela quem o matou-! — A voz dele era quase como um grito.

Quase caiu na estação vazia. O trem enfim começou a se mover, e o seu rosto pálido como o de um cadáver sumiu em meio a escuridão da noite.

 

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Me sentei de frente para a garota.

Ela sorria.

— E lá vai ele, eu acho.

— Era aqui que ele planejava descer, será?

— Pobrezinho.

Olhei para o rosto dela debaixo das luzes do vagão.

Quanto mais olhava, mais parecia me atrair. Eu agora sabia que ela não era apenas uma colegial comum. Era um enigma. Mas eu não a temia. Pelo contrário, uma doce nostalgia surgia dentro de mim.

A garota olhou pela janela, encarando a escuridão.

— Estive em muitos lugares, neste sonho da noite…

— Que tipos de lugares?

— Posso ir para qualquer lugar. Não existe um em que a noite não toca. — Olhei pela janela, como se ela estivesse me guiando.

Onde as árvores terminavam, vi a correnteza negra do Rio Tenryū. A extensa praia virada na direção contrária da temível floresta escura.

Lá eu vi uma cerejeira florida, com seus galhos repletos de pétalas. Cada uma daquelas pétalas emitia uma luz fria no interior da noite. Debaixo dela estava uma mulher, com a mão erguida, como se me chamasse. Era a mesma cena que Kishida ilustrou no mezzotint.

— Não existe lugar em que a noite não toca. — disse a garota, sua voz sussurrava. — Em meu sonho, vi o vento da primavera gentilmente balançando as flores de uma árvore…

Tirei os olhos da janela e olhei para a garota sentada na minha frente. Em seu cabelo negro havia uma pétala de cerejeira. Além do seu rosto pálido e transparente vi o rosto de Kishida. Estendi a mão e retirei a pétala. Foi então que entendi. Essa garota era um demônio que Kishida encontrou durante sua estadia em makyō.

Pensei no que ele me falou no quarto escuro.

Seria muito racional acreditar que o papel do artista é remover em sua arte o véu do mundo de verdade escondido. Nada poderia ser mais racional. Mas me recuso a acreditar em tamanha explicação racional e elegante. Não existe algo como mundo de verdade. Acredito que o mundo é um makyō inapreensível e infinito. Você entende isso, Tanabe, eu sei. Se minhas cenas da noite, as quais desenho, são makyō, então as flores de cerejeira que agitam o coração de Saigyō também são makyō. Estamos anexados ao imensurável makyō da noite.

O mundo inteiro está em uma noite perpétua.

 

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Naquela noite de primavera, fui visitar a casa de Kishida.

Deixei o meu apartamento ao lado do Templo Goryō e caminhei pelas ruas residenciais sob a cobertura da noite. O ar noturno era frio, a escuridão, opaca.

O caminho do meu apartamento até a casa de Kishida era sinuoso: em um momento, poderia estar passando por casas chiques, e, no outro, em meio a ruínas dilapidadas, e às vezes em uma estranha horta. À medida que eu seguia o caminho estreito, meus pés pararam de repente, e vi pétalas de cerejeira começando a cair à luz da iluminação pública.

Naquele momento, pensava em deixar Quioto.

Depois de uma série de problemas se empilhando, minha companhia de teatro tinha parado as operações no último outono. Comecei a pensar que não havia sentido em me esforçar tanto assim. Meus pais estavam me dizendo para voltar para Toyohashi. Esse podia ser o momento certo para deixar as coisas de lado e meter o pé. O único motivo para eu ainda estar em Quioto era Kishida.

A casa dele brilhava na escuridão da noite, assim como sempre o fez. Mas eu não ouvi som algum.

Entrei na sala de estar e vi Kishida. Ele não respondeu quando o chamei, nem quando balancei o seu ombro. Já estava morto. Uma xícara de café gelado estava sobre a mesa. Liguei para a ambulância, sentindo-me surpreendentemente calmo.

Sentei-me ao lado de Kishida. Ele parecia estar dormindo, e havia um traço de sorriso na face dele. Enquanto olhava para o seu rosto, minha mente voltou para os momentos que passei no Salão Kishida.

— Entendi agora, você já partiu em sua jornada. — Dentro da minha cabeça, comecei a conversar com ele.

Não tenho um talento artístico natural. Talvez não tenha o direito de amar a sua arte. Entretanto, sempre te admirei, mesmo que aquelas longas noites apenas me levassem para makyō. Estou deixando Quioto agora, e sei que independentemente do que o futuro reserve, jamais se comparará às noites que passei aqui com você.

Ouvi um barulho vindo do quarto escuro no final do corredor.

Devo ter levantado e ido até lá, mas minhas memórias estão borradas dali em diante. A ambulância deve ter vindo, mas não me lembro de ter conversado com eles. A única coisa que me lembro claramente é o momento que abri a porta do quarto escuro e entrei naquela escuridão viscosa. Coisas pequenas e macias flutuavam naquele lugar. Pareciam as pétalas das flores de cerejeira.

Ali eu senti de repente quão vasta era a escuridão que me envolvia.

— O mundo inteiro é uma noite perpétua. — Uma voz sussurrou para mim.

 

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O trem continuou percorrendo a escuridão.

Coloquei a pétala em minha mão e a observei.

Percebi que estava no quarto escuro desde àquela noite.

Desde que perdi Kishida, sentia que não estava no lugar ao qual pertencia. As coisas que vi com meus olhos não chegaram ao meu espírito. Agora finalmente entendia por quê. O tempo que passei em Tóquio e Toyohashi foram apenas sonhos refletidos nas janelas enquanto o trem andava.

Estávamos anexados no imensurável makyō da noite.

— Este é o quarto escuro, não é?

— Isso mesmo. Estivemos juntos o tempo todo. — disse a garota, com um sorriso.

Escorei-me em meu assento e dei um suspiro de alívio.

 


Notas:

1 – Mezzotints: é um processo de impressão da família intaglio, tecnicamente um método de ponto seco. Foi o primeiro método tonal a ser usado, permitindo a produção de meios-tons sem o uso de técnicas baseadas em linhas ou pontos.

2 – Tengu: são criaturas fantásticas do folclore japonês, uma espécie de goblin cujas lendas possuem traços tanto da religião budista quanto xintoísta.

3 – Adaptado de Professor William LaFleur.

4 – Tanka: poema curto japonês.

5 – Enervante: Irritado ou aborrecido.

6 – Uma câmara desprovida de luz abaixo de Zuigu-dō, que serve para representar a escuridão dentro do ventre de uma mulher.

7 – Makyō: é uma referência figurativa ao tipo de auto-ilusão resultante de apegar-se a uma experiência e criar um “ninho” conceitual para si mesmo. Geralmente envolvendo coisas relacionadas a demônios.


 

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