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Tive Aquele Mesmo Sonho de Novo – Cap. 09

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Era um dia claro e ensolarado quando saí de casa como sempre, mas, ao contrário do habitual, não fui para a escola. Eu era uma boa menina e não sabia mentir. Então, naquela manhã, quando disse à minha mãe que estava indo embora, não falei a ela para onde ia. Isso é o que eu chamo de inteligência.

Não fui à escola porque tinha algo muito mais importante para fazer. Embora, na verdade, provavelmente não haja razão para eu voltar para a escola novamente, pensei. Quanto aos meus estudos, eu poderia simplesmente ter a Senhorita Messalina como minha tutora. Mesmo se eu não almoçasse, teria os doces da Vovó para me ajudar. Gostaria de escrever cartas para a Professora Hitomi de vez em quando. As pessoas podem dizer que eu tinha que ir para a escola, que o ensino fundamental era obrigatório, mas o que faziam quando não era necessário?

Agora que paro para pensar nisso, aprendi sobre pular séries em um filme. Eu era inteligente o suficiente para provavelmente fazer isso. Bem, não… Como a Senhorita Messalina tinha me dito, ficar mais esperto não era tudo. Visto que eu só frequentava a escola para esse propósito, provavelmente não havia razão para eu voltar.

Enquanto pensava em todas essas coisas, cheguei ao meu destino antes mesmo de notar.

Não tive a menor dúvida sobre vir aqui hoje. Minha chegada foi diferente da anterior. Por um lado, eu não tinha minha amiguinha comigo. Além disso, ainda era de manhã. A mudança mais importante, entretanto, foi que eu não tinha mais nenhum interesse em atacá-lo.

Como da última vez, toquei a campainha várias vezes. Como antes, foi a voz de uma mulher cansada que ouvi pelo alto-falante. Da última vez, respondi a essa voz com uma saudação alegre. Hoje, entretanto, havia algo que eu precisava fazer.

Coloquei todo o meu coração em palavras, para ter certeza de transmitir como eu realmente me sentia.

— É Koyanagi Nanoka, colega de turma do Kiriyuu. Sinto muito pelo que aconteceu da última vez.

Embora a mulher não pudesse me ver, baixei a cabeça. Você tem que ter certeza de colocar todo o seu coração quando estiver se desculpando ou agradecendo. É a mesma coisa, seja você inteligente ou não.

Meus sentimentos devem ter passado por ela, pois, assim como da última vez, ela disse gentilmente:

— Só um momento.

Baixei a cabeça mais uma vez quando ela enfim abriu a porta.

— Bom dia. Sinto muito pela última vez. — eu repeti. Esses eram meus verdadeiros sentimentos, tão verdadeiros como quando chamei Kiriyuu de covarde.

— Bom dia. E não tem nada pelo que se desculpar. — ela disse, balançando a cabeça. Mas não era verdade. Havia muito pelo que me desculpar.

— Me desculpe por ter saído sem me despedir adequadamente da última vez e por ter dito coisas tão terríveis para o Kiriyuu.

— Está tudo bem. Hikari é quem deveria se desculpar. Você veio até aqui para vê-lo, mas ele nem mesmo saiu do quarto. As anotações que você trouxe foram escritas com perfeição. Eu fiz questão de entregar a ele. E você veio aqui antes de ir para a escola hoje.

Aparentemente, ela realmente me perdoou por todas as coisas rudes que fiz da última vez. Mesmo assim, achei que o que estava dizendo era um pouco errado, então disse a ela o motivo de eu ter vindo hoje.

— Vim falar com Kiriyuu sobre algo. Não se trata de ser seu aliado, ou brigar, ou ir para a escola. É algo mais importante.

— Algo importante?

A mãe do Kiriyuu era uma pessoa muito gentil. Seu rosto parecia o de um guarda de castelo em uma história. Naturalmente, era contra mim que ela estava se protegendo.

Não apenas fui rude, mas fiz mal ao filho dela da última vez que vim.

No entanto, se eu deixasse tudo isso me deter, não teria vindo aqui hoje. Eu absolutamente precisava falar com Kiriyuu.

Se eu desejasse ser perdoada, só havia uma coisa a fazer. Tive de abrir o coração com sinceridade, sem uma única mentira: porque vim aqui, o que queria dizer, porque me sentia assim e quem esperava me tornar. Enquanto as pessoas passeavam com seus cachorros e outras crianças passavam pela casa a caminho da minha escola, contei tudo à mãe do Kiriyuu.

Eu acredito que você deve compartilhar o que sente do fundo do seu coração com a pessoa com quem está falando. Provavelmente foi por isso que acabei dizendo a Kiriyuu o quão covarde eu achava que ele era.

Eu tinha minhas dúvidas, mas ainda queria tentar explicar essas coisas direito para sua mãe. Como antes, ela me deixou entrar na casa.

Não entendi o motivo, mas ao contrário da última vez, seus olhos pareciam brilhar ligeiramente. Por mais perspicaz que fosse, nunca consegui entender o motivo das lágrimas de um adulto, por mais que pensasse muito a respeito. Mesmo quando eu perguntava a eles, geralmente não me contavam. Nem a mãe do Kiriyuu, nem a Senhorita Messalina, nem a Minami.

Uma vez lá dentro, ela me trouxe suco de laranja, assim como a outra vez. Tomei apenas um único gole antes de ir para o segundo andar. Desta vez, a mãe do Kiriyuu não me acompanhou. Simplesmente senti que não havia necessidade. Até ela concordou que talvez seria melhor assim.

Eu estava fria como um pepino enquanto subia as escadas, apesar do nervosismo que senti da última vez. Hoje me senti exatamente da mesma forma quando subo as escadas para o apartamento da Senhorita Messalina. Passo a passo, como se estivesse caminhando em direção a alguma coisa, embora não saiba se era felicidade ou outra coisa.

A Senhorita Messalina disse que felicidade significa ser capaz de pensar seriamente em alguém. Eu não era perspicaz quando se tratava de pessoas. Isso eu sabia. Desse modo, não poderia começar a gostar dos outros, ou pensar muito sobre eles. E então decidi pensar apenas em mim. E tive a certeza de que estava feliz ao vir aqui hoje, tendo tomado esta decisão.

Comecei a cantar:

— A felicidade não vai viiiiiir na minha direção, é por issoooo que partiiiiiii para encontrá-la hojeeeeee!

Não havia ninguém para cantar comigo. A Senhorita Bobtail não estava presente, nem a Senhorita Messalina, Minami ou a Vovó. Eu me divertia cantando sozinha, mas cantar é sempre muito mais divertido quando você tem alguém para te acompanhar.

Eu teria que encontrar alguém para cantar comigo.

Parei diante de uma das portas e bati com força. Tenho certeza de que Kiriyuu deve saber que não foi sua mãe quem bateu na porta.

— Saudações, Kiriyuu. — eu disse. — Em primeiro lugar, tenho algo a dizer. Sinto muito pela última vez.

Eu me curvei diante da porta. Obviamente, ele não podia me ver, nem respondeu. Mas eu acreditei que pudesse me ouvir. Respirei fundo.

— Eu realmente queria me desculpar com você, de verdade mesmo, mas não é por isso que vim aqui hoje. Há algo muuuuito mais importante que preciso conversar com você.

Larguei minha mochila no chão e me sentei de costas para a parede. Então, tirei um dos meus cadernos da minha mochila. Eu tinha um caderno diferente para cada matéria: matemática ia no caderno de matemática, ciências no caderno de ciências e assim por diante. Hoje eu trouxe meu caderno de artes linguísticas.

— Agora, Kiriyuu, vamos começar a discussão.

Abri o caderno na página das discussões em turma.

— O tópico é: o que é felicidade?

Foi com esse propósito, para essa conversa, que vim à casa de Kiriyuu hoje. Eu não queria falar sobre aliados e inimigos, ou ir à escola, ou se ele tinha ou não coragem. Só isso. Se você tivesse me perguntado o porquê, tenho certeza de que teria respondido que era porque ter amigos e aliados significava encontrar a felicidade juntos.

Eu tinha pensado muito sobre isso na noite anterior, sobre o que significava ser um aliado. Eu estava feliz por estar com a Senhorita Messalina, que ficou feliz só de pensar em mim. Eu tinha encontrado felicidade ao ler as histórias da Minami, que me prometeu que tentaria ser feliz. Eu ficava feliz quando comia doces e conversava sobre livros com a Vovó, que dizia que estar comigo a deixava feliz. E então, eu queria encontrar a felicidade com o Kiriyuu também. Era isso que significava ser um aliado. Eu tinha certeza.

Kiriyuu foi meu parceiro nas discussões de turma. E uma discussão como essa necessitava mais de um caderno do que do conteúdo de uma geladeira.

— Vamos começar com uma revisão. Vou ler tudo o que pensamos até agora. Na primeira discussão, discutimos quando nos sentimos felizes: comer biscoitos com sorvete por cima, comer ohagi da Vovó, comer doces que sua mãe fez, ler livros, cantar músicas com amigos, comer bife de hambúrguer no jantar, quando sua mãe e seu pai chegam cedo em casa, viajar com sua família, tomar seu sorvete favorito.

Evitei propositalmente ler apenas um dos itens.

— Na conversa seguinte, falamos sobre momentos em que não nos sentíamos felizes: ver baratas, quando tem natto na merenda da escola… Você acrescentou quando tem salada de algas no almoço, mas eu não concordei com isso. Acho que algas marinhas são deliciosas.

Ainda não havia som do quarto do Kiriyuu.

— Depois de listarmos muitas coisas que não davam felicidade, conversamos sobre algo um pouco diferente: se não ser feliz era o oposto de felicidade e se somos felizes quando acontece o oposto de algo de que não gostamos. Mas chegamos à conclusão de que não era verdade. Não ficaríamos felizes só porque não tínhamos natto em nossos almoços. Você acrescentou que não ficaria feliz só porque não havia salada de algas. Pelo menos, não se não houvesse kara-age em seu lugar.

Kiriyuu ainda não disse nada.

— Tivemos várias discussões depois disso, e então foi o dia de observação da aula. Quando nos apresentamos, disse que ter minha mãe e meu pai ali me deixava feliz. O que disse não era mentira, mas não consegui explicar que a felicidade não é tudo. O que você apresentou não era o que você realmente estava pensando, não é?

Sem resposta.

— Depois, quando tivemos nossa sessão de revisão, perguntei porque você achava isso sobre felicidade, mas não conseguiu responder. Porém, eu não vim aqui para falar sobre o fato de que você mentiu, então vamos continuar.

Nada ainda.

— Começando aqui estão as discussões que tivemos enquanto você não estava na escola. As discussões continuaram com a Professora Hitomi tomando seu lugar. Não foi muito diferente de como fazíamos quando você estava lá, mas desta vez eu pensei sobre porque me sinto feliz quando eu o faço.

— Por quê?

Kiriyuu finalmente me interrompeu, sem qualquer preâmbulo. Foi tão suave que provavelmente nem teria ouvido se minha audição não fosse tão boa.

Não fiquei surpresa ao ouvi-lo. Kiriyuu era gentil, e eu sabia que ele nunca poderia fazer algo tão horrível quanto ignorar um colega de turma.

— Por que o quê? Por que eu era parceira da Professora Hitomi? Isso porque nossa turma é um número par. Ainda bem que ninguém mais além de você tinha faltado.

— Não…

Houve silêncio desta vez antes que ele falasse novamente. Provavelmente porque ele respirou fundo várias vezes. Afinal, respirar fundo era necessário para abrir o coração.

Eu esperei muito tempo. Eu esperaria o quanto fosse necessário. Eu senti como se pudesse ouvir sua respiração suave do outro lado da porta. Vou dizer mais uma vez: Kiriyuu era gentil. Então, se eu esperasse, ele responderia. Eu tinha certeza disso.

— Não estou… falando sobre… a Professora Hitomi… estou falando sobre… você.

Viu só?

— Eu?

Mesmo com a porta entre nós, Kiriyuu provavelmente podia ver como eu inclinei minha cabeça. Mesmo que outras pessoas não pudessem ver, tenho certeza de que ele podia. Essa é a impressão que tive, de qualquer maneira.

— Por quê…? — ele perguntou de novo.

— Hm?

— Por que… você voltou?

Aha. Eu bati meu punho na palma da mão em realização.

— Você quer dizer — perguntei — por que voltei depois que você me disse para não vir mais?

— Sim…

— Se não quer que eu esteja aqui, vou embora agora mesmo.

Não houve resposta. Ao invés disso, ele me fez a mesma pergunta.

— Por quê?

— Okay?

— Como assim?

— Hmm?

— Por que se preocupa tanto comigo?

Sua voz soou diferente desta vez. Anteriormente, ele queria um motivo. Agora parecia de fato não entender.

Tenho certeza de que os dois “porquês” carregam significados incrivelmente diferentes para Kiriyuu. Entretanto, isso não tinha nada a ver comigo. Eu já tinha respostas para ambas as perguntas.

— Bem, essa é moleza. Porque decidi vir e porque decidi me importar.

— Não, isso, hã…

— E porque gosto dos seus desenhos.

Senti sua respiração parar do outro lado da porta. Eu não tinha ilusões de que ele tinha morrido de repente ou algo assim, então continuei.

— Pessoas que podem fazer coisas que eu não consigo são incríveis. Os doces que a Vovó faz, as histórias que a Minami escreve, as ilustrações que você desenha. Não consigo fazer nada disso, por isso acho incrível. É por isso que estou sempre dizendo o quão incrível você é.

Eu não tentaria mais forçá-lo a exibi-los. Forçá-lo a fazer isso quando não queria, não o faria feliz.

— Minami é uma amiga minha, embora eu não a veja há algum tempo.

— Você… tem um amigo?

Fiquei um pouco irritada com isso. Eu não estava com raiva, mas as pessoas pelo menos precisavam ser avisadas quando diziam algo rude.

— É sério isso? Até eu tenho amigos. Tenho amigos maravilhosos.

— Oh, entendo.

Sim, isso mesmo, indiquei com um aceno de cabeça.

— Ah!

Nesse momento, um grito veio do quarto de Kiriyuu. Ele tinha visto um inseto ou algo assim? Bem feito por ter tirado sarro de mim, pensei com um sorrisinho presunçoso, quando de repente ele me chamou de dentro, parecendo muito mais atormentado do que o normal. Me preparei para ficar irritada quando me pedisse para entrar e lidar com o inseto para ele, mas em vez disso, ele disse:

— K-Koyanagi, você não deveria ir para a escola?

— Ah… já está na hora, não é?

Eu não tinha relógio de pulso nem telefone celular, então não tinha como saber quanto tempo passou.

— Você não vai… se atrasar?

— Não importa. Eu não preciso ir para a escola.

Ele pareceu surpreso com isso. Com razão, ouvir alguém tão diligente e inteligente como eu dizer uma coisa dessas.

— A-Acho que você deveria ir…

— Mas você não vai, né? Tudo bem. Tenho algo mais importante para cuidar, de qualquer maneira. As crianças da nossa turma têm tempo de folga para o casamento de seus parentes e outras coisas de qualquer maneira.

— Algo… mais importante…?

— Encontrar a felicidade com você.

Para mim, isso era muito mais importante do que ir à escola. Eu queria ser sua aliada. A princípio pensei que era apenas porque a Professora Hitomi tinha me dito para fazer isso, mas quando parei para pensar, percebi uma coisa. Sempre me senti assim, lá no fundo. Nada tinha mudado. Eu queria ser aliada do gentil e carinhoso Kiriyuu, que era o único a falar comigo quando eu estava me sentindo mal. Que foi a única pessoa que falou comigo quando ninguém veio ao meu dia de observação. Isso é tudo. O doce Kiriyuu que nunca me ignorou, mesmo quando disse que me odiava. Sim, só isso.

Tudo o que mudou foi como eu esperava fazer isso. Antes eu deixava esse sentimento à mostra lutando em seu nome, agora gostaria de descobrir como ser feliz ao lado dele. Isso parecia muito mais divertido, então decidi continuar nossa discussão sobre felicidade, mesmo deixando de lado tudo o que tínhamos conversado na escola.

— Então, vou perguntar de novo: o que a felicidade significa para você, Kiriyuu?

— K-Koyanagi…

Ele parecia perturbado, provavelmente porque eu não estava mais me referindo a ele como “covarde”, da mesma forma que ficaria chocada se Kiriyuu de repente começasse a brigar. Ou tão chocada quanto eu quando Ogiwara me ignorou.

— Eu quero ouvir como você se sente sobre isso agora.

— Koyanagi… você realmente deveria ir para a escola.

— Eu disse a você, está tudo bem. Então, qual é a sua felicidade?

— Você não pode faltar à escola…

— Estranho pensar que isso é ruim para mim, mas tudo bem para você. Então, não deve ter problema. Aqui, direi eu mesma: a ideia não foi minha, mas de acordo com uma amiga muito especial, felicidade é isso.

— Você precisa ir para a escola.

— Já sou inteligente! Eu te disse, não vou! — eu disse, gritando sem pensar. Embora estivesse um pouco envergonhada, não podia voltar atrás no que tinha dito. Eu rapidamente ofereci um silencioso “sinto muito”.

Foi quando percebi algo e tomei uma decisão. Se você quisesse ser amigo de alguém, não poderia esconder nenhum segredo chocante deles. Então, decidi revelar como estava me sentindo.

— Sinto muito. Eu não queria dizer isso, mas nossos colegas de turma têm me ignorado.

— Hã…?

— Tenho certeza de que você sabe que eu não tinha amigos em nossa turma para começar, mas pelo menos havia algumas pessoas com quem eu poderia conversar e, se eu os cumprimentasse, todos respondiam. Mas agora todo mundo está me ignorando.

Falar sobre coisas dolorosas dói tanto quanto experimentá-las, mas também tem o poder misterioso de abrir seu coração, da mesma forma que respirar fundo.

— Não quero ir para um lugar cheio de crianças assim. — falei. — Mais importante, acho que é muito mais divertido resolver questões difíceis com você.

Enquanto falava, percebi algo extremamente importante.

— Sabe de uma coisa? — perguntei. — Eu vou vir aqui de agora em diante. Então, você deve me ensinar a desenhar. Eu nunca vou aprender a desenhar tão bem quanto você, não importa quanto tempo eu vá para a escola.

Enfim percebi.

— Hm, me pergunto o que eu deveria te ensinar em troca. A vida é como o assento ao seu lado, sabe?

Não era ele quem precisava de aliados. Era eu.

— Se alguém esqueceu o livro, você deve compartilhá-lo. E, bem, se você tem que ver o rosto de alguém todos os dias, é melhor que seja alguém que você não odeia.

— Eu…

— Sim? O quê?

Quando ele finalmente falou, sua voz estava de alguma forma ainda mais baixa do que o normal.

— Eu quero que você me ensine… como… ser como você.

Sua voz era suave como o sussurro de uma flor, mas eu ouvi. E então fiquei desapontada, me perguntando porque ele se importaria com tal coisa.

— Você não quer ser como eu. Se você fosse como eu, não seria capaz de desenhar essas ilustrações maravilhosas. Minha mãe viu um leão que eu desenhei e pensou que fosse a Torre do Sol. Eu odiei isso.

Ele ficou em silêncio novamente.

— Então, se um mago se oferece para transformá-lo em outra pessoa, a pessoa em que você deve se transformar é você mesmo. Entendeu?

Ele não disse uma única palavra. Em vez disso, após uma pausa longa e vazia, disse:

— Você realmente deveria ir para a escola.

Fiquei chocada. Eu não esperava que ele dissesse isso de novo. Eu tinha deixado minha convicção clara, repetidas vezes. Tinha me decidido, mas ele não sabia disso, é claro. Obviamente, isso me incomodou.

— Por quê? Normalmente você nunca se opõe às coisas que eu digo na aula, mas não tem sido outra coisa a não ser rude hoje. Acho que você me odeia tanto que prefere me ver indo para algum lugar onde todos me ignoram?

Eu disse isso como uma piada, imaginando-o balançando a cabeça com tanta força que eu seria capaz de perceber até do outro lado da porta. Mas como não veio uma resposta dele, comecei a me sentir desconfortável.

As palavras que ele disse da última vez saíram do meu coração pouco a pouco, como se quisessem respirar. Se eu as deixasse sair de uma vez, aquela coisa sombria e terrível se enraizaria novamente em meu coração, e toda a minha coragem ficaria presa como uma borboleta presa em uma teia de aranha.

Antes que eu pudesse deixar isso acontecer, tinha que ter certeza de que Kiriyuu não me odiava de verdade. Se ele odiasse, nunca falaria muito comigo. Na verdade, essas palavras provavelmente apenas saltaram de sua boca no calor do momento. E por isso farei a ele a mesma pergunta mais uma vez e esperarei sua resposta, pensei, antes que ele acabe com isso.

A vida é igual a uma sobremesa lindamente pintada. Às vezes você simplesmente não consegue entender como ficou daquele jeito. Kiriyuu ainda não disse nada. Mas seus sentimentos e ações me silenciaram, e eu senti aquele monstro dentro de mim afundando de volta para o fundo do mar.

Ouvi a porta destrancar. Então vi a maçaneta girando, devagar.

Talvez pelo fato da janela do quarto estar aberta, um vento forte soprou em meu rosto, fazendo minha franja dançar e me obrigando a fechar os olhos. Quando os abri novamente, vi Kiriyuu parado diante de mim, incontáveis folhas de papel dançavam atrás dele, carregadas pelo vento. O cabelo dele cresceu um pouco mais? Enquanto me perguntava isso, olhando para o rosto dele, um dos papéis veio voando em minha direção, batendo em mim.

Incapaz de respirar, eu rapidamente o puxei. Quando olhei para ele, o sorriso que se espalhou pelas minhas bochechas deve ter rivalizado até com o da Senhorita Messalina.

Kiriyuu era o oposto completo, agachado na porta, com um olhar trágico em seu rosto. Era capaz de até ter uma certa umidade em seus olhos.

— Qual é o problema? — perguntei.

— Eu… sinto muito. — ele disse.

Muitas pessoas pareciam estar se desculpando comigo ultimamente. E, no entanto, não recebi um único pedido de desculpas da pessoa de quem realmente queria ouvir.

— Por que está pedindo desculpas?

Ele não disse que me odiava? Se fosse verdade, eu não poderia dizer que isso não me incomodava, mas fui eu que o chamei de covarde. Nada mais justo.

Kiriyuu me olhou diretamente nos olhos.

— V-Você…

— Eu o quê?

— Você está sendo ignorada… por minha causa.

— Isso não é verdade. — Balancei a cabeça. — A culpa não é sua. É porque todos aqueles idiotas em nossa turma são muito estúpidos para sequer distinguir o certo do errado.

— Mas é verdade.

Mesmo quando ele olhou diretamente para mim, as lágrimas fluíram dos olhos de Kiriyuu. Isso também vinha acontecendo muito ultimamente.

— O quê? — perguntei.

— Que meu pai… roubou algo…

Eu estava em silêncio. Na verdade, já sabia que isso era verdade. Mesmo assim, balancei a cabeça. Tentei imaginar o quão trágico isso deve ser para o Kiriyuu. Não sei se minhas imaginações realmente alcançaram a profundidade disso, embora eu as tenha esticado o mais longe que pude. Do contrário, eu não tinha ideia de quanto mais teria de esticar para chegar lá. Mesmo assim, balancei a cabeça com orgulho.

— Mesmo que tenha, e daí? — Eu olhei em seus olhos para guiá-lo. Ele estava errado, afinal. — Mesmo que seu pai tenha roubado, isso não muda o fato de que sempre me cumprimentou gentilmente. Mais do que as crianças da nossa turma, que vejo todos os dias. Além disso, isso não é motivo para as pessoas me ignorarem ou para eu não ir à escola. E não há razão para falarem mal de você. Mas essa conversa não é sobre seu pai, de qualquer maneira.

De fato, de todas as coisas ruins que aconteceram, nem uma vez Kiriyuu fez algo de errado.

— Os que estão errados são as pessoas que não sabem disso. O fato de eu não ir à escola é culpa dessas pessoas também.

Então, não havia motivo para Kiriyuu ficar triste ou chorar. Foi isso que eu quis dizer, mas a vida é como quando você sai de um passeio de xícara maluca e às vezes acaba andando na direção oposta à que pretendia.

Kiriyuu não apenas não parou de chorar, mas as lágrimas começaram a escorrer de seu rosto. Embora eu não tivesse certeza de quais das minhas palavras o deixaram tão triste. Como não sabia, não tinha certeza do que fazer para fazê-lo se sentir melhor. Então, eu me aproximei e coloquei minha mão em cima da dele no chão. Quando a Senhorita Messalina fez isso por mim, pude sentir meu coração se acalmar.

Ele pareceu surpreso, mas assim como eu tinha feito naquele dia na casa da Senhorita Messalina, ele apertou minha mão de volta.

Eu pretendia ficar sentada ali, segurando sua mão em silêncio até que as lágrimas parassem, mas não consegui. Kiriyuu ainda estava chorando, mas ele disse algo que eu nunca imaginei que diria.

— Você… quer… ir para a escola… juntos?

— Hein? — eu disse, pasma com esta proposta repentina.

Nos momentos que levei para me recompor, percebi como ele recuou com isso, então percebi algo.

— Você acabou de dizer “juntos”?

— Sim…

Minha mão doía de quão forte ele a segurava, mas, para minha surpresa, esqueci completamente essa dor.

— P-Por quê?

Seus lábios tremeram com a minha pergunta sincera. Ele provavelmente estava procurando as palavras perfeitas. Eu entendia esse sentimento, então fiquei feliz em esperar o tempo que ele precisasse.

— Eu… menti. — disse, enfim. — Eu… menti. Ainda estou com medo… de ser ridicularizado novamente. E eu menti… para a Professora Hitomi. Então… quero me desculpar com ela e dizer a verdade.

As lágrimas ainda não tinham parado. E, no entanto, nunca tinha visto tanta força em seus olhos. Eu não tinha ideia de que ele poderia mostrar tanta coragem. Eu estava morrendo de vontade para saber o motivo.

— O que você quer dizer com “a verdade”?

— Sobre… o que é felicidade.

Só então uma cena passou diante dos meus olhos. Claramente, em voz e visão. Não era de Kiriyuu falando, mas de mim, dizendo algo baixo o suficiente para que apenas Kiriyuu pudesse ouvir. Uma única palavra que falei no dia de observação: covarde.

Então ele estava mentindo. Mesmo sabendo disso, não senti tristeza ou irritação.

— Não me importo com as outras pessoas, mas quero contar a verdade a Professora Hitomi e para você.

Eu fiquei emocionada.

— Eu… na verdade acho que há algo pelo qual preciso me desculpar com a Professora Hitomi também. — falei.

— Hein?

— Ela ficou muito triste por nunca ter te visto quando vinha aqui. Eu esqueci de te dizer, mas ela me disse para dizer que estaria esperando por você, não importando quanto tempo precisasse.

Saí com tanta pressa da última vez que esqueci. Quando eu disse isso a ele, as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto mais uma vez. Ainda assim, mesmo suas lágrimas não eram páreas para o brilho em seus olhos.

— Quero vê-la.

E eu sentia a mesma coisa.

— Mas tem certeza? — perguntei. — Se você for para a escola, aqueles idiotas que zombavam de você estarão lá.

E quem estava me ignorando.

Até agora, eu achava que Kiriyuu deveria lutar contra aqueles meninos, mas graças à Senhorita Messalina, eu sabia que essa não era sua forma de lutar. Agora eu tinha visto isso com meus próprios olhos.

Seus ombros tremeram com minhas palavras, só um pouco. Mas ele me olhou bem nos olhos e, com sua própria força, se livrou do demônio agarrado em suas costas.

— Eu realmente… não quero…, mas… acho que vou… ficar bem.

 Desta vez, eu não sabia o que dizer.

 — Mesmo que zombem de mim. — ele disse. — Mesmo que me xinguem, acho que vou ficar bem, contanto que você seja minha aliada.

Eu não sabia dizer o porquê, mas lágrimas de alívio brotaram dos meus olhos, apesar do fato de que as pessoas só choram quando estão tristes. Mesmo assim, chorei de alívio, sabendo que quando Kiriyuu disse que me odiava, era uma mentira.

Mas as lágrimas não caíram. Afinal, era estranho chorar se você não estivesse triste. Em vez disso, olhei em seus olhos e assenti com firmeza.

— É claro. Nunca fui sua inimiga.

Mais lágrimas escorreram dele. Foi curioso. Parecia estranho que ele estivesse chorando.

Ele apertou minha mão novamente.

— Eu acho mesmo que você também deveria ir para a escola. — ele disse.

— E por quê?

Enfim, consegui ouvir o motivo.

— Você não é como eu. É boa nos estudos, inteligente e forte, e eu sei que será alguém importante algum dia… é por isso que não pode faltar à escola.

Fiquei feliz com esse elogio, mas ele disse outra coisa que me deixou ainda mais feliz.

—Então, vamos para a escola juntos… Eu também sou seu aliado.

Não importa quanto tempo passasse, eu nunca seria capaz de encontrar as palavras certas para descrever como me senti naquele momento. Mesmo na idade da Minami, ou da idade da Senhorita Messalina, ou mesmo da Vovó, nunca seria capaz de descrever o cheiro ou o sabor do que se espalhava pelo meu coração.

Fui pintada com cores tão maravilhosas que nem uma gota de preto poderia ser encontrada, mas também não poderia ser chamado de branco. Era uma cor que nem tenho certeza se existia no mundo. Talvez uma cor totalmente nova tivesse nascido naquele exato momento.

Não consegui explicar o que era, então só posso oferecer minha frase usual: a vida é como… meu aliado.

— Enquanto eu tiver você, Hikari, isso é o suficiente.

— Hã…?

— Você fez um bom argumento, Kiriyuu, então é melhor eu ir para a escola. Você estará lá como meu aliado, não é?

Ele chorou de novo, só um pouco. Sorriu também, as lágrimas ainda persistentes em seus olhos. Foi a primeira vez em anos que vi seu sorriso. Ver o sorriso de um aliado é sempre uma alegria. E então sorri também, com minha própria alegria.

— Bem, se essa for sua decisão, então se apresse e se prepare! Já estamos super atrasados!

— P-Pode deixar!

Ele se levantou depressa, esfregando as lágrimas com força usando a manga e fechando a porta. Ainda estava de pijama, então provavelmente estava se trocando.

Eu fiquei do lado de fora e me preparei para sair assim que ele estivesse pronto. A princípio, pensei que apenas esperaria em silêncio, mas depois achei melhor dizer à mãe dele que estávamos indo. Ela podia ligar para a escola para que não ficássemos atrasados.

Eu disse a Kiriyuu meus planos através da porta e caminhei pelo corredor, em direção às escadas. Assim que virei no corredor, deixei escapar um grito nada atraente.

— Aah!

Atordoada, caí de costas. Na minha frente estava a mãe do Kiriyuu. Ela estava agachada em frente à escada como se tentasse se esconder, com lágrimas nos olhos.

Todo mundo parece estar chorando ultimamente. É alguma nova tendência? Ou é contagioso, como um bocejo? pensei. Enquanto eu ainda estava sentada no chão, a mãe do Kiriyuu segurou minha mão, a mesma que Kiriyuu tinha segurado minutos atrás.

— Obrigada. — ela disse.

Provavelmente é a primeira vez em anos que ela o vê sair do quarto, pensei.

— Claro. — respondi sinceramente.

Mas então ela disse algo estranho:

— Eu deveria ter dito isso a ele também.

O que poderia significar? Enquanto refletia, ouvi a porta do Kiriyuu abrir. Olhei para trás e lá estava ele com as roupas que costumava usar, uma mochila nas costas. Tudo pronto para partir, pensei. No momento em que me levantei, a mãe de Kiriyuu já estava descendo as escadas.

Eu não fui tão apressada quanto ela, então esperei por Kiriyuu. Percebi que ainda estava segurando meu caderno e fui colocá-lo na mochila.

E então…

— Isso…

Havia algo em minha mão que não era meu caderno. Kiriyuu, vindo atrás de mim, percebeu também. Eu o deixei saber o que eu realmente estava sentindo.

— Posso… ficar com isso? — perguntei.

Pode acabar sendo recusado, pensei. Não, ele definitivamente recusaria, se fosse o mesmo de sempre. Mas não recusou. Acenou com a cabeça, um leve olhar de constrangimento em seu rosto.

Fiquei feliz, mas não entendi o porquê. Mesmo assim, decidi pendurá-lo no meu quarto em casa.

— Podemos ir? — perguntei.

— Sim. — ele respondeu.

A luz em seus olhos brilhou intensamente.

Quando chegamos à escola, os dedos de Kiriyuu agarraram minha jaqueta. Eu tinha certeza de que ele não tinha intenção de tocar no traseiro de uma garota, então não disse nada. Além disso, eu sabia exatamente como ele estava se sentindo. Por entender, estufei o peito. Não tinha o mesmo volume que o da Senhorita Messalina ou da Professora Hitomi, mas mesmo assim o estufei com todas minhas forças. Se você se encolher de medo, seus inimigos pensarão que venceram. Então, em momentos como este, era melhor estufar o peito e fingir que era forte, mesmo que fosse mentira. Meu pai me ensinou isso uma vez, enquanto caminhávamos ao longo de uma estrada à noite.

Eu levei Kiriyuu pela porta dos fundos da sala de aula e foi como se o tempo tivesse parado. Todos nos encaravam, sem mover um músculo. Mas o tempo logo se reiniciou e todos desviaram os olhos, resmungando. Depois disso, apenas uma pessoa estava olhando para nós. Essa pessoa era, naturalmente…

— Tudo bem, aquietem-se agora… Ainda estamos na hora da aula. Vocês dois chegaram na hora certa. Estão um pouco atrasados, mas a aula está apenas começando, então não se preocupem.

Peguei minha saia e dobrei meus joelhos em saudação à Professora Hitomi, fazendo uma reverência como uma princesa. Tive certeza de ter ouvido sua resposta “Merci”, mesmo que não tenha falado em voz alta.

Kiriyuu nervosamente curvou sua cabeça para a Professora Hitomi, então se sentou. Ah, certo, pensei.

— Professora, esqueci todos os meus livros didáticos, então vou fazer dupla com o Kiriyuu. — anunciei.

Um murmúrio surgiu na sala de aula novamente, mas a Professora Hitomi apenas disse:

— Certifique-se de trazê-los amanhã — E me permitiu mover minha mesa para mais perto da de Kiriyuu. Na verdade, não trouxe os livros certos, já que nunca tive a intenção de vir para a escola hoje. Nós dois colocamos nossas mochilas na prateleira atrás e logo estávamos prontos para começar.

Estávamos cerca de quinze minutos no primeiro período, artes linguísticas. Perfeito, né? Eu pensei, enviando uma piscadela para Kiriyuu, mas ele não percebeu e ela se dissipou no ar.

Como de costume, a lição de hoje foi sobre felicidade. Dividimo-nos em pares para discutir um conto que tínhamos lido na aula anterior, em preparação para a nossa apresentação final.

Não achei que Kiriyuu tivesse lido a história, então primeiro eu teria que explicar a ele. Ou era o que eu pensava. Na verdade, ele já tinha lido. Ele tinha lido diligentemente todo o material que a Professora Hitomi lhe entregou enquanto estava trancado em seu quarto.

Discutimos a história, e Kiriyuu estava ainda mais reservado do que o normal. Conversamos sobre se, de repente, ter o suficiente de algo que antes faltava era felicidade ou se ficar satisfeito por não ter o suficiente era felicidade e assim por diante. Já que Kiriyuu ainda estava de cabeça baixa, eu falei mais. Enquanto conversávamos, eu estava totalmente ciente dos olhares que nossos colegas davam em nossa direção aqui e ali. Todos deviam ser esquisitos da cabeça para estar tão interessados quando estavam nos ignorando.

Em algum momento, a Professora Hitomi veio até nós. Ela sempre circulava durante as discussões. Quando se aproximou, demos as saudações matinais que não havíamos conseguido antes.

— Bom dia, Professora Hitomi. — falei.

— Bom dia. E bom dia para você também, Kiriyuu.

— Bom dia. — Kiriyuu respondeu com uma vozinha minúscula, sua cabeça ainda baixa.

Mas ele não estava com medo – ele queria ver a Professora Hitomi, afinal. Havia uma palavra diferente para esse tipo de sensação: inquietação.

Até eu tive momentos em que fiquei inquieta. Quando tive aquela briga com minha mãe antes do dia de observação de aula foi um desses momentos. Então, eu sabia que, quando se está em uma situação difícil, você mesmo tem que fazer algo a respeito, mais cedo ou mais tarde.

Segurei a mão de Kiriyuu, fora da vista da Professora Hitomi, na esperança de compartilhar minha coragem com ele. No entanto, não houve necessidade. Ele devolveu o aperto uma vez, então a soltou. Antes que a Professora Hitomi pudesse perguntar qualquer coisa, ele ergueu a cabeça.

— P-Professora, eu encontrei uma resposta d-diferente sobre… o que é felicidade. Diferente do que eu disse no dia de observação.

Embora suas palavras estivessem vacilantes e sua voz suave, ele estava apresentando. Torci por ele em silêncio. Meus pensamentos estavam apenas nele. Essa foi a felicidade que a Senhorita Messalina encontrou.

Então, qual era a felicidade de Kiriyuu? Ele e eu sabíamos a resposta o tempo todo. Eu estava orgulhosa dele, emocionada com a perspectiva de ouvir de sua própria boca pela primeira vez. Eu certamente ainda era sua única fã na turma, então fazia sentido, não é?

— Oh? E o que seria?

Talvez a Professora Hitomi tenha ficado surpresa com essa apresentação repentina, mas seu rosto não mostrou. Ela questionou de maneira educada, sua expressão calorosa. Era o tipo de rosto que sugeria que ela ouviria tudo o que ele tinha a dizer.

Kiriyuu a olhou diretamente nos olhos, seus lábios pendendo frouxamente. De repente, percebi que todos os outros na turma estavam olhando em nossa direção. Achei isso surpreendente, dado o quão pouco se importavam com ele antes disso, mas também parecia certo. A chance para todos ouvirem como Kiriyuu realmente se sentia.

Agora ele só tinha que dizer.

— M-Minha felicidade é… desenh-…

Ele parou no meio da frase. A Professora Hitomi esperou pacientemente, seu rosto era gentil, mas eu encarei Kyriuu de olhos arregalados. Como ele pode ter chegado tão longe, apenas para ficar com medo de novo? Pensei, e talvez eu tenha dado a ele um olhar crítico. Talvez o tenha julgado mal. Era verdade que eu era sua aliada, mas honestamente, comecei a achar que ainda era um pouco fraco. Por isso, devo me desculpar. Lembrei-me das palavras da Vovó: esse menino pode ser menos covarde do que você pensa.

Kiriyuu inspirou e expirou várias vezes e mordeu o lábio, então estufou o peito e disse:

— Minha felicidade é…

— Sim?

— Quando minha amiga diz que gosta dos meus desenhos e quando está sentada ao meu lado.

Honestamente, a vida realmente é como um jogo de Othello. Porque mesmo quando há coisas sombrias e desagradáveis, há um lado brilhante e adorável também? Não, não é isso.

É porque uma única peça brilhante pode mudar os sentimentos sombrios de alguém.

Não deveria ser surpresa que eu quisesse contar à minha amiga especial sobre este dia maravilhoso. Então, depois que as aulas acabaram, eu disse um adeus apressado a Kiriyuu, corri para casa, peguei a Senhorita Bobtail e voltei direto para aquele prédio cor de creme.

— A felicidade não vai viiiiiir! Na minha direçããããoo!

— Miau? — Minha amiga de pelo preto fez uma careta estranha com a minha chegada animada anormal.

— O quê?

— Miau.

— Olha, é bom cantar assim às vezes. Quer dizer, honestamente, você poderia até fazer isso o tempo todo, mas às vezes tem um dia super bom. Aposto que até você tem dias como este de vez em quando, né?

— Miau. — respondeu ela, desinteressada. Talvez este não fosse um dia tão bom para ela. Tentei compartilhar meu bom humor.

— É por issoooo que partiiiiiii para encontrá-la hojeeeeee!

— Miau miau miau

Embora ela parecesse exasperada, eventualmente começou a cantar junto. Qual foi daquela atitude de antes? pensei. Ela estava tentando ser tão adulta. Mas talvez os meninos gostassem dessas partes insinceras dela. Se há algo que posso aprender com ela, é o caminho para o coração de um menino, pensei enquanto caminhávamos ao longo do barranco.

O céu estava azul, a grama era verde e a sujeira, marrom. A terra fofa do caminho era avermelhada, preparada para um passeio fácil. O vento estava limpo e cada pessoa tinha sua própria cor. Tudo foi pintado em tons variados e eu adorava cada um deles. Mas foi quando avistei o edifício de cor creme que meu coração deu um salto mais alto.

Preparei todas as coisas que gostaria de falar com a Senhorita Messalina.

Primeiro, eu tinha obrigação de agradecer a ela. Foi só por causa de seus conselhos que pude encontrar tanta alegria em meu coração. Então eu contaria sobre cada coisa que aconteceu hoje. Falaria sobre as partes sem importância mais depressa e com mais detalhes sobre as coisas mais importantes. Claro, eu teria que enfatizar as partes sem importância que estavam conectadas às partes importantes, a fim de embelezar a mensagem. Ela provavelmente ficaria surpresa em me ouvir dizer que Kiriyuu não era o tipo de garoto que fazia as coisas que fez hoje.

Ainda assim, achei que deveria ser enfática sobre o fato de que Kiriyuu realmente pode ter um pouco de coragem, e que a Vovó era a única capaz de ver isso.

Eu estava borbulhando de animação. Mais empolgação do que senti ao ver o cacau em pó se dissolver em leite quente e o cheiro de chocolate flutuando no ar.

O edifício cor de creme, em forma de bolo, era perfeitamente adequado para o cacau. Minha animação atingiu um nível febril quando cheguei à escada, mas quando coloquei os pés no primeiro degrau lamacento, percebi algo incomum: a Senhorita Bobtail não subiu as escadas comigo.

— Qual é o problema? — perguntei, mas ela não respondeu. — Você não quer leite?

Ela não disse nada. Eu me movi para pegá-la, pensando que poderia estar ferida de alguma forma, mas escorregou dos meus braços.

— Você é estranha. Beleza. Espere aí, então.

— Miau. — ela enfim respondeu, sua voz muito suave.

Bem, até os gatos provavelmente tinham dias que não eram tão divertidos, então era certo que havia dias em que eles também não tinham interesse em subir escadas.

Embora meus pensamentos estivessem no comportamento da minha amiga, meu coração ainda estava focado nas coisas que eu falaria com a Senhorita Messalina. Fui até a porta dela e, depois de planejar a maior parte da conversa, toquei a campainha.

Ding-dong, ouvi de dentro. Hm? Eu me perguntei, olhando para cima. A placa de identificação com a caligrafia horrível ao lado de sua porta tinha desaparecido. Ela enfim a reescreveu? Eu já tinha dito que minha escrita era muito boa. Eu poderia ter reescrito para ela, se quisesse.

Eu esperei, mas ela não apareceu, então toquei a campainha mais uma vez.

Então ouvi um barulho de dentro. Talvez estivesse apenas acordando. Que dorminhoca! Esperei um pouco, rindo sozinha, mas ainda não apareceu.

Ela deve estar lá dentro, pensei, batendo desta vez. Ao fazer isso, cumprimentei a porta com um entusiasmado “Booooooa tardeeeeeee!”

Pouco tempo depois, ouvi a porta destrancar e a maçaneta girar. Sempre transbordava de ansiedade quando era hora de ver minha amiga. E, no entanto, quando a porta se abriu, essa ansiedade se transformou em fumaça.

Aconteceu algo que eu nunca imaginei.

Não foi a Senhorita Messalina quem abriu a porta. Foi um homem, mais ou menos da mesma idade que ela. Tenho certeza de que o homem e eu compartilhamos a mesma expressão ao nos olharmos: surpresa. O cavalheiro de aparência amável abriu bem os olhos, arregalando-os para mim. Tenho certeza de que fui a primeira a perceber quem o outro devia ser.

— Você é o namorado da Senhorita Messalina? — perguntei.

Ela era uma mulher incrivelmente adorável, então não era nenhuma surpresa que pudesse ter alguém especial em sua vida. Se for esse o caso, então eu simplesmente tinha que me apresentar.

— Prazer em conhecê-lo. Sou Koyanagi Nanoka. Eu sou uma amiga da Senhorita Messalina. — falei educadamente.

Mas o jovem franziu as sobrancelhas, fazendo uma cara de total confusão.

— Ela saiu? — perguntei.

Apesar da minha pergunta muito simples, o homem inclinou a cabeça.

— Hm… Nanoka, não é? — ele perguntou.

— Sim, isso mesmo.

— Acho que você está com o endereço errado. Aqui é a minha casa. Não há ninguém chamado… Messalina?

Mais um pouco e sua cabeça podia girar completamente, pensei.

— Isso não é verdade. Nunca o vi antes, mas já estive aqui várias vezes. A Senhorita Messalina está tentando pregar uma peça em mim?

Talvez ela esteja planejando algum tipo de surpresa, pensei, mas não parecia certo. O homem deu uma risada sem graça.

— Você realmente não deveria usar palavras como essas. “Messalina”, quero dizer.

— Mas é o nome da Senhorita Messalina.

— Hm… bem, de qualquer forma, não há ninguém aqui com esse nome, então tenho certeza que você está enganada. Talvez tenha vindo ao prédio errado? É melhor verificar de novo.

— Eu sei que é aqui! Eu vim ontem!

O volume repentino da minha voz veio tão certo quanto a memória de estar aqui. Este jovem, que nada sabia sobre a sombria inquietação que crescia em meu coração, parecia ainda mais perturbado.

— Eu também estive aqui ontem e você não apareceu.

— Você está mentindo! Você não estava aqui. Eu estava com a Senhorita Messalina!

— Mm, o que eu faço agora… — ele disse, frustrado.

Eu sabia que, quando um adulto expressava sua frustração diretamente a uma criança, significava que estava pensando em como calar a boca da criança.

— Eu entendi. — ele disse. — Talvez você estivesse sonhando e, nesse sonho, chegou a um prédio parecido com este? Quando eu era criança, passava muito tempo procurando os lugares que via nos meus sonhos, mas nunca os encontrei.

— Sonhando…?

Não, isso não poderia ser possível. Eu sabia que a Senhorita Messalina tinha estado aqui, que tínhamos jogado Othello juntas. Comendo pudim, segurando sua mão… nada disso tinha sido um sonho. Eu tinha certeza, do fundo do meu coração, mas havia uma única memória que passou pela minha mente então. O nome dessa memória era Minami.

Mesmo com minha própria inteligência, não consegui explicar todos esses mistérios… os mistérios da Senhorita Messalina e Minami. Se eu pudesse explicar através das minhas próprias suposições, haveria apenas três explicações possíveis: mentiras, magia ou sonhos.

Achei que devia ser uma mentira da parte desse jovem, mas sua angústia parecia genuína. Eu não senti um cheiro mentiroso dele, pelo menos.

Enquanto eu permanecia ali em silêncio, o jovem disse:

— Espere.

Então voltou para dentro. Quando voltou, ele tinha um Papico marrom na mão.

— Aqui, pega isso. Está quente hoje e não quero que você tenha insolação.

O Papico estava frio e agradável, mas eu soube quando o vi: este lugar realmente não pertencia mais à Senhorita Messalina. Seu freezer nunca teve um Papico.

— Como ela poderia ter se mudado durante a noite…?

— Quero dizer, ninguém poderia. Mas de qualquer maneira, eu moro aqui há quatro anos.

Quatro anos. Para uma criança tão jovem quanto eu, era um período de tempo interminável. Eu sabia. Não entendia, mas sabia que outro mistério tinha ocorrido.

Agradeci pela guloseima e saí. Ele se despediu com um caloroso “Até logo”.

Caminhei ao longo da parede cor de creme e desci as escadas para encontrar minha amiga esperando por mim. Foi quando percebi algo.

— Você sabia que ela não estava aqui, não é?

Minha amiga não respondeu. Em vez disso, ela apenas começou a andar na minha frente. Era a mesma maneira que tínhamos caminhado muitas vezes antes. Eu a segui, compartilhando seus sentimentos. Minami e agora a Senhorita Messalina. Mistério após mistério estava se abatendo sobre minhas amigas. Para onde elas foram? Quando eu não entendia algo, era melhor perguntar a alguém que viveu muito mais tempo do que eu. Afinal, provavelmente teve as mesmas experiências antes.

Enquanto caminhávamos, abri a garrafa de Papico com os dentes para provar o que havia dentro. Tomei um gole, depois outro, considerando isso.

— Isso é realmente meio amargo.

Eu não era fã do sabor do café. Esperei até que o conteúdo da garrafa derretesse totalmente e ofereci a algumas formigas que passavam.

 


 

Tradução: SoldSoul

Revisão: Guilherme

 

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