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Tive Aquele Mesmo Sonho de Novo – Cap. 03

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Minami gritou ao mesmo tempo que eu, enquanto a Senhorita Bobtail saltou alegremente para o telhado.

Minami largou o estilete no chão de pedra. Depois de superar meu choque, olhei entre Minami, a lâmina e o pulso dela, então fiquei chocada novamente. Sangue vermelho pingava de sua mão.

— O que você está fazendo?! Precisamos dar um jeito nisso!

— Q-Quem é você?

— Eu tenho um band-aid! Aqui, coloque isso e vamos levá-la ao hospital!

— Espere, hmm… eu estou bem. Pare de se preocupar, pode ser?

Eu estava em pânico, mas Minami já tinha se acalmado. Eu só descobri sua idade mais tarde; ela era uma aluna mais velha do ensino médio.

Ouvindo seu pedido, pensei em como a Professora Hitomi me ensinou a me acalmar e comecei a respirar profundamente. Respirar assim abriu uma lacuna na tensão em meu coração e meus nervos relaxaram, como aconteceu daquela vez em que me vi envolta em um pijama um pouco grande demais.

Respire fundo… e expire.

Por fim, repeti essa respiração muitas vezes e comecei a relaxar. Entreguei a Minami um lenço e um curativo.

— Eu tenho um. — Minami disse relutantemente, pressionando seu próprio lenço no pulso. Meu band-aid foi deixado no telhado, sem uso.

Eu olhei para o pulso da Minami e os cantos curvados de sua boca.

— Há algo errado com a sua cabeça? — perguntei.

— Provavelmente. — ela disse monotonamente através daqueles lábios torcidos.

— Entendo… Então, quando você está com a cabeça esquisita, começa a cortar seu próprio braço. Logo, isso nunca poderia acontecer comigo. Eu odeio dor.

— Eu também.

— E ainda está cortando o braço. Você realmente é esquisita.

— Cale a boca. Vá embora.

Sem dar atenção às suas palavras, subi no telhado. Sentei-me ao lado da Minami e da Senhorita Bobtail, observando silenciosamente o pulso dela. Eu pude sentir Minami fazendo uma cara azeda, mas não conseguia deixar uma pessoa ferida sozinha. Mas, olhando para o corte dolorido, fiquei com medo de imaginá-lo em mim e me virei para observar o rosto dela.

— O que está olhando? — ela perguntou.

— Seu braço… parece muito doloroso.

— Você é uma criança. Vá para casa já.

— O que está fazendo aqui, Minami?

— Não é da sua conta. E de onde você tirou “Minami”?

— Bem, seu nome está escrito ali, não está? Até mesmo um aluno do ensino fundamental pode ler aquilo.

Apontei para as letras bordadas em sua saia azul marinho. Eu só podia sonhar em usar algo tão fino e meticuloso. No entanto, Minami apenas olhou para sua saia e soltou um suspiro.

— Qual é o problema?

— Não vou fazer nada.

— Está sozinha?

— É… bom ficar sozinha, não é? Nada diz que você tem que estar com alguém.

— Isso é verdade. Eu tive o mesmo pensamento.

— Você parece muito convencida para uma criança.

— Eu não sou convencida. Bem, talvez um pouco mais do que as outras crianças. Eu sei como os livros podem ser maravilhosos.

— As pessoas te odeiam, não é?

— Provavelmente. — eu disse, imitando-a.

Ela fez uma careta e se virou para observar  a Senhorita Bobtail, que estava olhando para trás, com a cabeça inclinada. Ela certamente achou tudo isso tão estranho quanto eu. Como não conseguia falar, tive que ser sua representante.

— Então, Minami.

— Sim?

— Por que você estava cortando o braço?

— Por que eu tenho que explicar algo assim para você quando acabei de conhecê-la?

— Não vejo porque não. Não vou espalhar boatos sobre você.

Ela virou o rosto, ainda carrancuda, e eu simplesmente presumi que não receberia uma resposta. No entanto, por fim, ela finalmente respondeu.

— Por nada. Me ajuda a me acalmar.

— Se você precisa se acalmar, deve inspirar, abrir o coração e sentir o cheiro do sol em uma velha casa de madeira.

— Isso me acalma da mesma forma.

— Bem, parece estranho.

— Quer… experimentar?!

Ela abriu o estilete, coberto de sangue seco, e o estendeu para mim. Eu balancei minha cabeça rapidamente. Ao fechar a lâmina, parecia que ela estava sorrindo, só um pouco. Era impossível saber de fato, com os olhos quase totalmente cobertos pelos cabelos.

— O que faria se eu fosse algum tipo de pessoa má? Seria fácil cortar uma criança como você.

— Tudo bem. Não senti cheiro ruim de você.

— E como isso é estar bem?

— Você não cheira como um mau adulto.

— Isso é porque eu não sou um adulto.

Eu realmente estava ficando preocupada com seu pulso agora, e reuni coragem para estender a mão para tocá-lo, mas ela puxou a mão e colocou os braços em volta dos joelhos, deixando minha mão balançando no ar vazio.

— Ainda há muito que não sei sobre o mundo. — falei. — Tipo pessoas que podem se acalmar cortando os braços.

— Você é muito arrogante para uma criança.

— Sabe, eu não tinha ideia que esse lugar existia.

— Entendo.

— Você sempre vem aqui, Minami?

Minha amiguinha começou a vagar pelo telhado, balançando a cauda, então me levantei para segui-la. Assim que comecei a andar, percebi como o telhado era mais largo do que eu imaginava. Voltei, perto o suficiente para ver o sangue no pulso da Minami.

— Por que você está perambulando por aqui? — perguntou ela. E então continuou — Só encontrei este lugar recentemente.

— O que você está fazendo aqui?

Peguei minha amiguinha em meus braços e me virei. A Senhorita Bobtail gritou e eu a soltei. Ela cambaleou como se o chão tivesse sumido e caiu aos pés da Minami. Eu ri.

— Não fique a provocando.

— Não estou a provocando. Estávamos brincando.

Minami acariciou as costas da Senhorita Bobtail, como se estivesse satisfeita com as listras pretas de seu pelo. Ouvindo o miado fofo e contente que ela soltou, me ocorreu novamente que garota perversa ela era para recorrer a tal bajulação.

— O que está fazendo aqui, Minami? Se eu estivesse em um grande lugar aberto como este, acho que dançaria. E quanto a você?

— Eu não danço, apenas sento e olho para o céu.

— E então corta seus braços. Agora que estou olhando, posso ver que os cortou várias vezes… você realmente vai morrer.

Minami olhou para seus braços e suspirou. Eu não tinha ideia do que isso queria dizer. Devo continuar esta conversa? Sua expressão dizia que queria falar e não queria ao mesmo tempo. Eu tinha certeza de que nunca tinha feito uma expressão tão complicada. Quando eu queria falar, falava, e quando não queria, não falava.

Lembrei-me de perguntar à Senhorita Messalina sobre a cara que a Minami estava fazendo. Se você quiser saber sobre adultos, deve perguntar a outro adulto. Em vez disso, havia outra coisa que eu gostaria de discutir, então voltei minhas atenções para isso.

— Ei, Minami.

— O quê? Cala a boca de uma vez!

— Eu queria saber se você gosta de desenhar.

— Por que isso tão de repente?

Eu tinha visto o caderno e a caneta escondidos em sua sombra. Talvez ela tenha entendido o que eu queria dizer, porque rapidamente enfiou o caderno debaixo da bunda e fez uma careta, como se dissesse “Você está vendo coisas, não tem caderno aí”. Mas fui perspicaz o suficiente para perceber suas mentiras. Eu apontei para a parte atrás dela.

— Por que as pessoas que desenham sempre o escondem? Tem um garoto assim na minha turma também. Ele faz desenhos tão maravilhosos, mas odeia que as pessoas saibam disso. Por que você odeia se exibir?

Por algum tempo, Minami ficou em silêncio, olhando para o céu. Mas, quando minha amiguinha de pelo preto correu para perseguir uma pequena borboleta branca, Minami suspirou novamente.

— Não era um desenho. — Houve uma pausa, como se ela estivesse reunindo coragem, antes de falar novamente. — Eu estava escrevendo.

— Escrevendo? Você estava escrevendo em seu diário?

— Não… eu estava… escrevendo uma história.

— Uau! Isso é incrível!

Minami desviou os olhos, como se estivesse preocupada que ela seria despedaçada. Mas quando as palavras saltaram do fundo do meu coração, ela pareceu surpresa. Talvez eu deixei minha voz ficar um pouco alta de novo. No entanto,  vi rapidamente que não foi meu grito de guerra que a chocou. Algo muito peculiar a surpreendeu.

— Você não vai… rir?

Eu não tinha certeza do que ela queria dizer.

— Rir? Eu? Do quê? Por que eu riria, se ainda nem li nenhuma piada engraçada? Se está dizendo que eu riria das pessoas que escrevem histórias, então meu estômago provavelmente se reviraria e me mataria enquanto eu estivesse ocupada lendo. Por que seria engraçado ao ponto de me fazer rir ver alguém escrever uma história?

Ela balançou a cabeça. Pela primeira vez, vi seus olhos através de sua franja balançando. Eles eram lindos, assim como os da Senhorita Messalina. E da Vovó.

— Não é isso! —disse ela, tão alto quanto eu.

Não fiquei surpresa. Se eu ficasse surpresa com coisas assim, me chocaria tanto que realmente morreria. Decidi implorar a ela.

— Por favor, deixe-me ler.

— Hein? — disse ela, surpresa de novo.

Obviamente, se havia uma história, eu queria lê-la. Mas eu sabia que isso não era normal para uma criança da minha idade, então pude entender seu choque.

— Eu já disse antes, mas sou inteligente. Sei como as histórias podem ser maravilhosas.

— O que isso deveria… não!

— Por que não? Oh, você tem algum outro compromisso?

— Quer dizer, eu não.

— Então, por favor, deixe-me ler. Eu sei como as histórias são maravilhosas e, honestamente, sempre achei que gostaria de escrever uma algum dia.

O rosto da Minami não mostrou o menor sinal de movimento, mas o segredo que eu tinha revelado parecia conceder seu poder. Ela levou a mão à boca e resmungou, totalmente resignada:

— Por que eu tenho que mostrar isso para uma pirralha estúpida que acabei de conhecer?

Então me entregou o caderno.

Tenho certeza que Minami sabia que os segredos de uma garota não eram baratos. Eu não tinha contado a ninguém que queria escrever uma história antes. Embora tivesse grandes planos de um dia comover a todos com algo que eu tinha escrito, esta foi a primeira vez que contei a alguém. Em troca, tive a chance de ler uma história totalmente nova. Creio que seja isso que as pessoas chamam de negociação.

— Ah, espera.

— O que foi?

— Esqueci completamente. Estou lendo sobre Sem-teto Huck agora.

— Huh, eu li quando era criança também.

— Nunca leio outra história quando já estou no meio de uma. Essa é minha regra. Eu quero ser capaz de mergulhar completamente em um mundo.

— Então devolva. — Minami franziu os lábios e pegou o caderno de volta. — Eu entendo o que você quer dizer. — murmurou ela, colocando o caderno de volta em seu traseiro.

Era como um baú de tesouro que ela estava escondendo para que ninguém pudesse encontrá-lo. Isso me fez querer ler sua história ainda mais.

— Vou terminar de ler Huck em breve! Deixe-me ler sua história quando terminar!

— Eu prefiro que você simplesmente esqueça isso.

— Não, eu não vou. A vida é como o conteúdo de uma geladeira!

— Que diabos isso significa?

— Mesmo se esquecer as pimentas nojentas que estão lá, nunca vai esquecer o bolo delicioso!

Minami riu, como se simplesmente expelisse ar de seus lábios.

— Você é realmente incrível, pirralha.

Não tive nenhum mau pressentimento, como se estivesse sendo maltratada. Embora ela ficava me chamando de “pirralha”, o que eu sabia ser algo que as pessoas diziam quando estavam sendo cruéis, eu sentia o mesmo cheiro maravilhoso de seu “pirralha” que eu sentia da “mocinha” da Senhorita Messalina e do “Nacchan” da Vovó.

Suponho que Minami me reconheceu como uma amiga. Provavelmente porque ela gostava de histórias tanto quanto eu.

Se ao menos todas as pessoas amassem os livros, pensei, o mundo poderia ser um lugar mais pacífico.

Ninguém jamais poderia pensar em machucar outras pessoas se soubesse de algo tão emocionante como histórias. E, mesmo assim, dado que ela sabia disso, eu ainda não conseguia entender porque Minami cortaria o próprio braço. Ela ainda não falou muito sobre isso, mas eu poderia fazer com que falasse sobre outras coisas, como livros.

Ela conhecia muito mais histórias do que eu. No entanto, até ela não entendia direito O Pequeno Príncipe, e eu percebi o quão impressionante era a Vovó, que podia resolver questões que nem mesmo uma estudante do ensino médio poderia entender. Minami disse que gostou da parte sobre a raposa no deserto.

— Bem, eu voltarei aqui novamente.

— Nem precisa. Mas, quero dizer, você pode fazer o que quiser. Não sou dona deste lugar nem nada.

— Mal posso esperar para ler sua história!

— Tanto faz.

— Não corte mais seu braço.

Minami não disse nada, mas acenou com a mão direita para me enxotar e à minha amiga de cauda curta. Enquanto descíamos as escadas com cuidado, Minami ainda estava lá em cima, observando o céu avermelhado.

Hoje, ganhei outro destino para minhas caminhadas diárias.

— A felicidade não vai viiiiiir na minha direção, é por issooooo que partiiiiiii para encontrá-la hojeeeeee!

— Miau miau!

Quando descemos a montanha, não havia mais crianças no parquinho. Em vez disso, havia um adulto solitário, sentado em um balanço instável com um olhar terrivelmente triste no rosto. De repente, fiquei muito preocupada com ele. Senti como se já o tivesse visto em algum lugar antes, mas não conseguia lembrar quem era. Mas, ao me aproximar dele, percebi que minha amiga de cauda curta seguia em frente. Acabei indo para casa.

Quando cheguei em casa, fiquei surpresa ao ver que, pela primeira vez, minha mãe estava lá antes de mim. Ela olhava entre a folha que eu deixei na mesa e sua agenda e me deu notícias maravilhosas sobre o dia de observação. Eu encontrei uma nova resolução — tinha que pensar ainda mais seriamente sobre a felicidade. Eu mergulhei na minha cama macia naquela noite com a promessa da minha mãe trancada em segurança dentro do meu coração.

No dia seguinte, fui confrontada com uma escolha muito difícil.

— A vida é como uma tigela de raspadinha. Há tantos sabores bons para comer, mas não pode comer todos. Você ficaria com dor de barriga.

Eu tive que decidir entre a Senhorita Messalina, Vovó e Minami. Se eu fosse ver todas elas, passaria do toque de recolher que minha mãe tinha estabelecido. Só podia visitar dois lugares, no máximo. Era tão difícil quanto escolher entre sorvete sabor morango, limão e refrigerante.

— Então, por que você veio? —perguntou Minami, bebendo uma garrafa de chá de cevada com uma expressão carrancuda no rosto.

— Oh? Bem, ontem você disse que eu deveria fazer o que eu quisesse, — respondi.

— Vá brincar com seus amigos da escola.

— Eu não tenho amigos na escola.

— Isso é sério? Você realmente é uma solitária, hein?

— Isso não é verdade. Eu tenho amigos. Eu tenho esta pequenina e você.

— Você não pode simplesmente decidir que sou sua amiga.

Ela olhou para o céu e bufou. Eu a imitei, observando um pássaro voando acima. Pensei em como seria difícil dormir em uma cama se eu tivesse asas.

— Vim aqui porque não sei nada sobre você, — eu disse. — Quero descobrir mais.

— Você não precisa saber nada sobre mim.

— Isso também não é verdade. A vida é como um café da manhã no estilo japonês.

— Que diabos isso significa?

— Não há nada que você não precise saber.

— Do que está falando? — ela disse. — Você realmente é incrível.

— Eu não sou incrível. — eu disse. — E nem quero ser “incrível”, eu quero ser mais inteligente.

— Estranho para alguém tão extraordinária dizer que não quer ser.

— Pessoas incríveis não conseguem tempo para sair com suas famílias às segundas-feiras, né? Não faz sentido ser tão impressionante.

É só o que eu tinha a dizer, mas…

— Você está falando sobre seus pais?

Fiquei surpresa ao ouvi-la dizer isso. Ela realmente tinha a inteligência de uma colegial. No entanto, eu fiquei relutante em concordar com a cabeça, então fiquei em silêncio. Minami se encolheu novamente, envolvendo os braços em volta das pernas.

— Pode não ser uma coisa tão boa ser tão inteligente, afinal.

— Isso não é verdade. Eu quero ser super inteligente! Não há como escrever uma história sem ser esperta, certo? Eu nunca soube que havia uma árvore chamada “baobá” antes de ler O Pequeno Príncipe. Eu também não sabia que havia rosas falantes.

— Não existem rosas assim.

— O quê? Você está dizendo que os baobás também não são reais?

Comecei a ficar inquieta. Nenhuma vez em toda a minha vida eu tinha visto um baobá. Mas Minami era uma estudante do ensino médio.

— Baobás existem. São grandes árvores que levam mais de cem anos para crescer. As pessoas dizem que são as maiores da Terra e que foram algumas das primeiras árvores. Também ouvi dizer que uma vez Deus ficou irado com o ciúme do baobá e o virou de cabeça para baixo, por isso seus galhos parecem raízes.

— De quem o baobá tinha ciúmes?

— Da palmeira, que era mais delgada; e da figueira, com seus frutos.

Foi algo que me comoveu profundamente.

— É uma história única e maravilhosa. Como você, Minami.

— São apenas mitos. Não é como se eu tivesse inventado essas histórias.

— Ainda assim, você é muito mais inteligente do que eu, se conhece todas essas histórias interessantes. Espero poder ficar ainda mais inteligente para poder conhecê-las também.

— Hmph. — disse Minami, como se ela não tivesse interesse em mim ou no baobá.

No entanto, eu pude ver que ela não estava infeliz. Quando implorei para que me contasse histórias mais interessantes, ela contou várias. O mais interessante é que a expressão “under the rose” significava “segredo” em inglês. Eu ainda não falava inglês, mas tinha certeza que quando fosse adulta e conseguisse, precisaria encontrar um motivo para usá-la.

Eu me perdi completamente conversando com Minami naquele dia. Quando percebi, já era hora de voltar para casa. Eu tinha esquecido completamente de visitar a Senhorita Messalina ou a Vovó. No dia seguinte, eu quis nada mais do que conversar com Minami novamente, mas não importa o quão chato fosse, eu ainda tinha que ir para a escola.

As crianças idiotas ainda eram idiotas, e meu vizinho Kiriyuu estava rabiscando secretamente em seu caderno, então a escola estava chata como sempre. Ainda assim, pelo menos havia uma coisa boa. Durante o intervalo, enquanto eu estava sozinha na biblioteca, Ogiwara apareceu. Decidi iniciar uma conversa logo de cara. Eu estava morrendo de vontade de contar a alguém sobre todas as coisas que Minami tinha dito, mas não tinha mais ninguém a quem contar.

Assim que Ogiwara começou a sair, sem nem mesmo me notar na outra extremidade da biblioteca, eu corri atrás dele, fazendo uma careta como se eu também estivesse indo embora.

— Ogiwara!

— Oh, Koyanagi. Eu não sabia que você estava aqui.

— Pois é! O que você pegou emprestado? — Perguntei, apontando para o livro em sua mão.

Ele me mostrou a capa com um sorriso. Eu sabia exatamente o que aquela expressão significava. Eu também conhecia a alegria de segurar um livro novo.

Memórias de um Elefante Branco, hein? Eu li esse também.

— Sim, eu queria ler quando descobri que veio da França, assim como O Pequeno Príncipe.

Claro, esse era o nosso Ogiwara. Ele escolhe livros da mesma forma que lançava as bases para nossas conversas. Aproveitando esse alicerce recém-lançado, contei-lhe sobre o baobá e a rosa como se soubesse desde sempre. Ogiwara mostrou surpresa adequada para cada um. Certamente, ele e eu éramos os únicos em nossa turma que achariam essas coisas interessantes. Pois éramos ambos inteligentes.

Conversamos sem parar, mas eu ainda não estava satisfeita. No entanto, nossa conversa terminou abruptamente quando um garoto da nossa turma chamou o nome de Ogiwara do outro lado do corredor. Ogiwara se virou e saiu como se tivesse esquecido que estávamos conversando. Claro que isso aconteceria. Ogiwara não era apenas inteligente, mas também tinha muitos amigos.

Eu teria que encontrar outra saída depois da escola para todas as coisas que tentavam explodir dentro de mim. Sentada sob o céu azul em um telhado de concreto, contei a Minami tudo sobre o que tinha acontecido hoje.

— Ele está fazendo seu coração acelerar, hein?

— Mas, tipo, a gente estava parado.

— Não é o que eu quis dizer.

Os cantos de seus lábios estavam virados para baixo novamente hoje, mas isso não significava que estava com raiva. Aos poucos, fui aprendendo sobre ela.

— Ah, certo, — eu disse. — Vou terminar com As Aventuras de Huckleberry Finn em breve.

— Ah, é? E o que tem?

— Assim posso ler a história que você escreveu. Estou muito animada para isso.

— Não tenho ideia do que você quer dizer, — disse ela, mal-humorada.

Ela estava sentada em seu caderno como sempre. Provavelmente estava escrevendo antes de eu chegar.

— Vejo você na próxima vez, então.

    — Faça o que quiser.

O “faça o que quiser” da Minami tinha o mesmo significado que o “até mais tarde, mocinha” da Senhorita Messalina. Acenei para as costas da Minami. Depois disso, passei pela casa da Vovó e contei  as mesmas coisas que tinha dito a Minami. Foi um dia maravilhoso.

Ultimamente, tive aulas de artes linguísticas com alguns sentimentos bastante complicados. Embora eu estivesse ansiosa por isso, parecia que eu estava parada no final de uma longa escada. Era a mesma sensação que o herói de um conto de fantasia teria ao enfrentar um enorme dragão. Eu era do tipo que ficava orgulhosamente diante de colinas íngremes e dragões, mas havia crianças que se encolheriam em suas próprias conchas. Meu vizinho era uma criança dessas.

— Ei, o que você está desenhando aí? — perguntei a Kiriyuu.

— Eu, uh, nada… — respondeu ele, relutante como sempre.

Embora fosse bom como parceiro em projetos em grupo, eu me preocupava como se sairia como um aliado em uma aventura. Por ser meu vizinho, também almoçamos juntos. Depois disso, fui sozinha para a biblioteca e, depois da escola, decidi voltar ao prédio da Minami. Houve uma razão particular para isso.

— É melhor ter muitos aliados em sua aventura.

— Miau.

A Senhorita Bobtail parecia gostar da companhia da Minami também. Embora tivéssemos uma aparência completamente oposta, nossos gostos em relação às pessoas geralmente se alinhavam.

— Você está aqui de novo? — Minami disse bruscamente quando fomos para o telhado.

Suas palavras tinham o mesmo significado que o “bom te ver” da Vovó.

Sentei-me no chão ao lado da Minami, copiando sua pose encolhida.

— Saudações, — eu disse. — Acredito que você está tendo um dia maravilhoso, não?

— Mas qual é a sua, hein? — Ela retribuiu minha saudação refinada cuspindo suas palavras no chão, mas eu já a tinha compreendido. Ela se esforçou muito para soar assim. — Não é maravilhoso. Parece que vai chover.

— Não parecia que ia chover pelo boletim meteorológico. Eles disseram que era apenas dez por cento de chance, o que significa que nove pessoas disseram que não ia chover, e apenas uma disse que ia.

Quando comecei a pensar em uma pessoa contra nove, tive vontade de torcer, mas não consegui. Se chovesse, não poderia encontrar a Minami aqui.

— Não é isso que a porcentagem significa.

— Hein? Sério?

— É baseado em quantos dias choveu no passado em dias como este. Uma chance de dez por cento significa que se você tirou dez dias assim do passado, só teria chovido em um deles. Isso não significa que uma pessoa estava separada de seus colegas.

Mais uma vez, fiquei emocionada. Essa era a nossa Minami. Fiquei maravilhada ao ver que tinha encontrado o aliado perfeito para minha aventura.

— Eu acho que se eu sou o herói, então ela é a fada, e você é o sábio que vive na floresta.

— Do que você está falando?

— Há uma coisa que gostaria de perguntar a você,— eu disse.

Comecei logo de imediato. Sempre fui do tipo que come a coisa mais gostosa primeiro.

— Sobre a minha história? — ela perguntou.

— Quero dizer, tem isso, mas é outra coisa. Estou lidando com uma questão muito difícil na aula.

— É uma coisa matemática? Você precisa lidar com essas coisas sozinha, pirralha.

— Não é isso. Posso resolver meus próprios problemas de matemática. Este problema é muito difícil. É parte da aula de artes linguísticas. A pergunta era: “O que é felicidade?”

— Felicidade?

— Sim. Eu queria perguntar o que felicidade significa para você. Isso pode me dar alguma ideia.

Ela não me respondeu de imediato. Olhou para o céu nublado, acariciando minha amiguinha de pelo preto na cabeça. Quando finalmente abriu a boca, sua voz estava turva:

— Nunca encontrei a felicidade.

— Nem mesmo quando você está escrevendo? Você não está feliz, então?

— Escrever é divertido, mas não sei se me deixa feliz. Acho que felicidade significa estar mais realizado do que isso. Como se seu coração estivesse cheio de bons sentimentos.

Ela me deu uma ideia que era facilmente compreensível. Apenas uma aluna do ensino médio poderia dar uma resposta tão prontamente. Eu gostaria de poder crescer mais rápido.

— Entendo… é por isso que fico feliz quando estou comendo um biscoito com sorvete de baunilha por cima.

Isso também significava que eu estava enchendo os corações da Senhorita Messalina e da Vovó com bons sentimentos apenas por aparecer. Fiquei tão feliz que parecia que o céu iria clarear ali mesmo.

— Minami, quando  seu coração se sente cheio?

Eu olhei para seu braço. Não havia sangue hoje, mas ela rapidamente escondeu as cicatrizes com a mão.

— Nunca.

— Isso significa que você não tem nenhuma felicidade?

— Provavelmente. — ela disse, imitando-me, imitando-a.

— E quando você está lendo livros? Ou comendo doces?

— É divertido e são saborosos, mas não acho que isso seja felicidade, — ela disse, fingindo aspereza.

— E quando você está jantando com sua mãe?

— Minha mãe e meu pai se foram.

— Se foram? Eles moram em outro lugar? — Que típico de uma estudante do ensino médio, pensei.

— Estão mortos.

Meu pequeno queixo caiu em choque. Minami forçou meus lábios a fecharem com seus dedos e soltou outro suspiro. Ela não me olhou nos olhos.

— Eles morreram. Há muito tempo, em um acidente. — Seus dedos estavam agarrando sua saia. — Já faz muito tempo, então não choro mais por isso. Mesmo assim, acho que até uma pirralha como você pode entender porque não estou feliz.

Ela ainda não encontrou meus olhos e por isso não percebeu. Mas a pequenina sentada em seu colo estava olhando diretamente para mim. Eu rapidamente coloquei a mão sobre seus olhos minúsculos.

— Desculpe, — ela disse. — Mas eu não posso te ajudar com o seu dev-

Minami finalmente viu meus olhos, e eles a silenciaram. Ela viu meu rosto e, com um movimento rápido, enfiou a mão no bolso e tirou um lenço. Não estava manchado de sangue hoje, então me entregou.

Eu o usei na mesma hora.

— Pode ficar com ele.

No final, não consegui dizer mais nada naquele dia. Vendo-o depois, o lenço que ela me deu tinha o mesmo padrão de um que meu pai comprou para mim uma vez. Comecei a me perguntar se o pai da Minami tinha dado a ela.

Eu a deixei para trás e fui para a casa da Vovó, e descobri que ela novamente tinha feito doces para mim. No entanto, antes de me oferecer um, ela perguntou:

— O que há de errado, Nacchan?

Enquanto bebia o suco de laranja que ela serviu, contei sobre a Minami. No entanto, evitei as partes que trariam à tona o caderno da Minami e sua preciosa história. Eu estava preocupada que a Vovó pudesse ficar zangada comigo. Eu era uma criança horrível nesse aspecto. E ainda assim, a Vovó me ofereceu o bolo financier que ela fez.

— Eu acho que aquela garota, Minami, está feliz, — ela disse misteriosamente.

Eu balancei minha cabeça com tanta força que fiquei surpresa que não saiu.

— Eu não acho que esteja.

— Não, ela certamente está. Afinal, conheceu você, a primeira pessoa a chorar por ela. É por isso que lhe deu seu precioso lenço.

Baixei os olhos para o lenço úmido e sujo.

— Então, não há razão para se preocupar tanto com isso. E não há necessidade de se desculpar com ela. Mesmo assim, quero que você me prometa uma coisa, Nacchan.

Eu a olhei diretamente nos olhos e balancei a cabeça.

— Na próxima vez que você vir a Minami, cumprimente-a com um sorriso. Se você gosta dela, claro.

— Eu gosto dela!

— Então você tem que encher o coração dela com memórias do seu sorriso, ao invés de todas aquelas coisas dolorosas.

— Será que sou capaz?

Eu me senti estranhamente fraca, mas a Vovó colocou suas mãos macias em meus ombros magros.

— As pessoas não conseguem se livrar de suas memórias tristes. Mas se elas podem ter muitas lembranças boas, então conseguem viver felizes. Seu sorriso tem o maravilhoso poder de fazer exatamente isso. Para Minami e para mim.

— Será…

Pensei no rosto da Minami quando ela me entregou o lenço. Fechei os olhos bem forte e pensei com todas as minhas forças — com meu cérebro mais aguçado do que o das outras crianças, mas ainda não no nível impressionante de um adulto. E, então, tomei uma decisão.

Eu encontrei o olhar da minha amiguinha com seus próprios olhos brilhantes, então me levantei, tirando-a do meu colo.

— Vovó, estou indo para casa agora. Preciso me apressar e terminar de ler As Aventuras de Huckleberry Finn!

— Aha, bem, se foi isso que decidiu, então é melhor ir e fazer logo! E o seu lanche?

— Vou levar comigo!

O doce e macio financier tinha o gosto que eu imaginava que o sol teria, se o transformasse em uma sobremesa. E percebi que o sol tinha ressurgido no céu outrora nublado.

No caminho para casa, vi aquele adulto de antes no parque no sopé da colina. No entanto, ainda não conseguia me lembrar quem ele era.

 


 

Tradução: SoldSoul

Revisão: Guilherme

 

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