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Sua História – Cap. 06 – Heroína

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Pesadelos são gentis. Geralmente tenho um deles. Sempre seguem mais ou menos a mesma linha.

 

Por exemplo, costuma aparecer uma pessoa preciosa em meus sonhos. Uma garota da minha idade. E o sonho começa comigo perdendo-a de vista.

 

Fico procurando por ela. Estava por perto há apenas um segundo. Segurava minha mão, tinha certeza disso. Sorrindo ao meu lado. No segundo em que desviei o olhar, no segundo que a soltei, desapareceu como névoa.

 

Para onde foi?

 

Continuei procurando por ela. “Você conhece a…? (Sequer conseguia ouvir seu nome). É alguém importante para mim”. E a pessoa respondia: “Não conheço nenhuma… De quem está falando? Parece alguém importante para você.” Como pôde desaparecer ou algo assim, se sequer existia?

 

Isso não podia estar certo, ela definitivamente estava por aqui, argumento. Mas imediatamente depois, lembro que não consigo sequer recordar o nome da garota. Nem qualquer outra coisa. Não me lembro de seu rosto, voz, toque, nada.

 

Fiquei com nada, salvo a sensação de que perdi algo muito precioso. Logo, mesmo esse sentimento fica nublado e desliza por meus dedos, e depois de um instante em branco, tudo some, deixando apenas a sensação de perda.

 

Há também um bem diferente. Pode ser na casa dos meus pais ou na sala de aula. As pessoas ficam me olhando desconfiadas. “Quem é esse cara, por que está aqui?”, perguntam todos. Apressadamente tento dizer meu nome.

 

Mas as palavras acabam não saindo. Não lembro meu próprio nome. Quando espero algum tempo e finalmente forço algo, soa como o nome de um completo desconhecido, até mesmo para mim. E todos dizem que também não conhecem essa pessoa.

 

Então, alguém sussurra ao meu ouvido: “…, você é alguém que não existe. Assim como as três filhas que sua mãe concebeu usando Angel, você é só um Substituto nascido da alteração de memórias na cabeça de alguém.”

 

Todo tipo de base começa a desaparecer. Perco o que me apoia de pé e caio sem parar.

 

Embora tenha agido como se isso não me incomodasse, a verdade de minha mãe ter me abandonado, as lembranças e tudo mais, devem ter continuado lançando uma sombra em minha mente.

 

Quando acordo de um pesadelo, a realidade parece um lugar muito melhor. Comparado a esses mundos, este ainda poderia ter alguma esperança. Pesadelos certamente me atormentariam e fariam meus olhos enxergarem a virtude da realidade (embora apenas por questão de minutos). Assim sendo, pesadelos são algo bom.

 

O que realmente deve ser temido são sonhos felizes. Aqueles que te afastam por completo do valor da realidade. Quando os sonhos são maravilhosos e coloridos, é preciso apagar muito a cor da realidade. Quando acorda, lembra do cinza de sua vida. Sente a ausência de felicidade mais presente do que nunca. Como a felicidade em um sonho nem sequer é válida como ilusão, é apenas uma completamente desconectada do meu verdadeiro eu.

 

Muito raramente, em um sonho feliz, sou capaz de notar que estou sonhando. Quando isso acontece, fecho os olhos, tampo os ouvidos e rezo para voltar à realidade o quanto antes. Se quisesse, provavelmente poderia me tornar um rei na terra dos sonhos e fazer o que bem entendesse, mas evito isso. Porque sei muito bem que quanto melhor me sentir naquele mundo, mais me sentirei infeliz neste.

 

No pesadelo, a garota que perdi de vista de repente aparece ao meu lado. Ela olha para mim e diz: “Por que você faria isso?”, e inclina a cabeça para o lado. “Se apenas pedisse, poderia te dar o que quisesse.” Mesmo comigo fechando os olhos e tampando os ouvidos, ainda posso sentir sua presença e voz com clareza. Em um pesadelo, é possível ver muito bem, mesmo com olhos fechados, e ouvir as coisas mesmo com os ouvidos tampados.

 

— É por eu ser um residente do mundo real — respondo sem abrir a boca. — Se quiser continuar vivendo assim, preciso manter comigo o máximo de cores possíveis. Então não posso desperdiçar isso com você.

 

Ela sorri com tristeza. Apenas a simples reprodução de seu sorriso consome uma imensa quantidade de recursos. E quando acordo, o mundo está mais desbotado do que antes de ir dormir. A voz da garota do sonho fica presa aos meus tímpanos. “Se apenas pedisse, poderia te dar o que quisesse.”

 

Por isso tenho medo de sonhos felizes. Temia um sonho feliz chamado Touka Natsunagi que viesse flutuando durante o verão dos meus vinte anos. Escondi-me em uma carapaça, desconfiado, apenas pensando em minha proteção individual. Não pude pensar nas circunstâncias dela.

 

Graças a isso, sempre me arrependo de como passei o verão. Por que não podia acreditar no que ela disse? Por que não pude ser sincero com meus sentimentos? Por que não fui mais gentil?

 

Ela chorava sozinha todas as noites.

 

A mão que me estendeu não foi apenas para oferecer a salvação, como também para buscar a salvação.

 

As pessoas dizem que não vale a pena chorar pelo leite derramado. Não faz sentido lamentar pelo que perdeu; “Apenas esqueça”, dizem. Mas passei a ver essa atitude como falta de respeito pelo que foi trocado ou perdido. Cheguei a pensar que seria como afastar a premonição da felicidade que uma vez gentilmente sorriu para você.

 

— Você com certeza está fazendo um bom trabalho.

 

Quando Touka veio ao meu quarto na manhã seguinte e começou a assistir televisão como se fosse algo normal, falei com ela.

 

E ela esticou seu pescoço enquanto mantinha um olhar sonolento.

 

— O que quer dizer?

 

Depois que viu o meu constrangimento por desesperadamente chamar o nome de Touka na noite passada, parecia não haver sentido em tentar manter as aparências. Então fui honesto.

 

— Digo, você é realmente uma boa atriz. Está respondendo os meus desejos latentes de forma soberba. Mesmo sabendo apenas o conteúdo de minhas Mimories e registros pessoais, é preciso um verdadeiro talento para atuar com tanta perfeição. Estou quase alucinando com a existência de uma garota chamada Touka Natsunagi.

 

— Não é, não é? — Ela balançou a cabeça cheia de alegria, de novo e de novo. Então, muito casualmente… — Digo, eu pratiquei um bocado — disse algo ultrajante.

 

Não parecia que ela estava com sono ou que deixara isso escapar.

 

— Você admite que está mentindo para mim? — perguntei.

 

— Bem, não… Já disse várias vezes, Chihiro, sou sua amiga de infância. Mas… — Ela colocou a mão na boca e pensou, depois levantou o dedo indicador. — Certo, conhece a história do vento do norte e do sol[1], certo?

 

É claro, até eu já tinha ouvido falar disso.

 

— O que tem essa história?

 

— Se eu apenas admitisse que estou mentindo, pensei que poderia facilitar as coisas para você também, Chihiro. Basicamente, sou uma mentirosa e você não tem escolha a não ser me acompanhar para descobrir um pouco sobre minhas mentiras. E, sabendo que estou revelando minhas mentiras, continuo obviamente atuando para executar meu plano. Se nosso relacionamento for esclarecido assim, você pode relaxar e me fazer companhia, né?

 

— Do que diabos está falando?

 

— Como você é complicado, Chihiro, estou te dando uma desculpa para me bajular.

 

Bufei.

 

— Você é estúpida?

 

Ela não era estúpida. Pulando direto para a conclusão, sua mudança de direção foi um enorme sucesso. Ao me dar a desculpa de que “Não está me enganando, só viu que suas mentiras foram notadas e iria acompanhar o ato de exposição”, acabei achando isso profundamente hilário.

 

O que eu precisava era de uma indulgência. Ao abandonar a atuação de ser uma amiga de infância pura e inocente e deliberadamente agir como uma golpista, Touka Natsunagi destruiu todos meus bloqueios mentais. Como se fosse um pastor, mentindo e perdendo toda a confiança de todos, ao usar um paradoxo autorreferencial para convencer os aldeões de que havia um lobo atacando.

 

Pensando nisso, foi a mesma abordagem que usei para derrubar as defesas de Nozomi Kirimoto. Para deixar alguém que suspeita de que você esteja mentindo mais à vontade, é melhor admitir algumas coisas inofensivas do que insistir que é honesto. Da mesma forma que se escreveria sobre defeitos insignificantes em mercadorias baratas para convencer os compradores.

 

— Olha, essa roupa combina muito com uma amiga de infância, não acha?

 

Ela colocou uma peça branca cheia de brilho e que mostrava seus ombros. Na minha mente, sua aparência tinha uma grande semelhança com um girassol de tirar o fôlego.

 

— Para alguém como você, com uma mente imatura e toda defensiva, acho que roupas tão simples e algumas palavras meio afáveis acabariam com sua cautela.

 

— Cara, isso dói.

 

— Mas você gosta, não é, Chihiro?

 

— Sim. Gosto.

 

Casualmente admiti. Blefar na frente de alguém que entendeu meu modo de funcionar tão intimamente seria inútil.

 

— Isso é fofo?

 

— É fofo — repeti sem cuidado.

 

— Seu coração dispara?

 

— Meu coração está disparado — falei de forma quase que mecânica.

 

— Mas você não será honesto?

 

— Exatamente.

 

— Não precisa se segurar — disse ela, e sorriu com espontaneidade.

 

Ela entendeu mal. Não estava me segurando. A Touka Natsunagi na minha frente certamente era encantadora, mas estava vendo a de sete, nove e quinze anos sobrepostas a ela. Essas visões não estavam perfeitamente sincronizadas com a Touka Natsunagi de vinte anos, e ocasionalmente havia algum tipo de diferença, fazendo seus rostos vacilarem momentaneamente sobre o seu. Quando via isso, parecia algo totalmente inapropriado, ou até mal direcionado, era como vê-la tornando-se alvo de meus desejos.

 

Não era algo de todo ruim para mim. Como as mentiras de Touka Natsunagi foram ignoradas, nossa comunicação ficou muito mais confortável e pudemos entrar no âmago das coisas sem qualquer formalidade tediosa.

 

— Esqueci uma parte do meu passado, mas parece que ainda não estou pronto, então você não pode me contar a verdade. — Estava apenas parafraseando as palavras que ela disse cerca de meio mês antes. — Você continua com isso?

 

— Continuo com isso. — Touka assentiu repetidamente.

 

— Como posso saber quando estarei pronto?

 

— Vamos ver… — Ela mostrou estar insegura, mas provavelmente já tinha a resposta pronta há muito tempo. Até mesmo na primeira vez que me viu. — Você terá que me deixar à vontade.

 

Ela colocou a mão esquerda no peito. Era como se estivesse checando seus pulmões – uma lembrança me veio à mente, sem dúvida por causa de minhas Mimories.

 

— Se você puder provar que não vai se desesperar e que poderá continuar vivendo, não importa o que houver, poderei te contar tudo que quiser saber.

 

Ela prontamente seguiu adiante com um meio de fornecer uma prova.

 

— Então, a partir de hoje, você viverá de acordo com algumas regras que eu estabelecerei.

 

— Regras?

 

— Sim. Regras de vivência. — Reformulou. — Chihiro, quanto tempo dura o verão?

 

— Até vinte de setembro, acho.

 

— Se puder evitar violar as regras até esse dia, vou te dar uma nota de aprovação.

 

Ela pegou um bloco de notas de algum lugar e escreveu várias coisas com sua caneta para feltro[2]. A primeira linha dizia: “Como Passar as Férias de Verão.”

 

Lembrei-me: na escola primária distribuíam algumas impressões parecidas antes das férias de verão. De fato, a maioria das regras que ela escreveu pareciam retiradas direto dessas coisas, como “Viva uma vida bem regulada”, “Tenha uma dieta equilibrada”, “Saia para se exercitar regularmente”, “Tome cuidado para não se machucar ou ficar doente” e “Ajude em casa”. Entre essas regras idílicas[3], havia duas com um tom meio diferente: “Não beba álcool” e “Não fume”.

 

— Não posso tomar nem uma gota?

 

— Não. Nenhuma.

 

— Não posso fumar nenhum cigarro?

 

— Não. Nenhum.

 

— Isso é complicado.

 

— Vou te vigiar. Para garantir que não faça nada escondido.

 

Com isso, Touka bocejou. Eram dez da noite, mas ela já estava de pijama e parecia sonolenta. Provavelmente estava vivendo saudavelmente, assim como uma estudante do ensino fundamental.

 

Depois de bocejar mais uma vez, disse:

 

— Acho que já vou dormir. — E levantou-se. — Amanhã eu te acordo. Boa noite.

 

Dando um aceno com a mão na altura dos ombros, voltou para seu quarto.

 

Boa noite, hein.

 

Parando para pensar nisso, meus pais nunca foram do tipo que dava “bom dia” ou “boa noite”, “estou saindo” ou “estou em casa”, “tenha um bom dia”, “bem-vindo de volta”… Todas essas frases eram algo fictício para mim. Meu eu da infância achava difícil engolir a realidade de uma família normal que trocava esses cumprimentos todos os dias.

 

Tentei murmurar um “boa noite” só para fazer um teste.

 

O som é suave, pensei.

 

E foi assim que começou minha vivência com ela e minhas férias de verão.

 

Algum tempo depois, os dias passaram mais ou menos da seguinte forma:

 

Seis da manhã.

 

Todas as manhãs Touka aparecia para me acordar. Não sacudia meus ombros ou me dava um tapa, mas se agachava ao meu lado e sussurrava: “Se não acordar vou te pregar uma peça”, replicava perfeitamente uma cena de minhas Mimories.

 

No quinto dia, tentei fingir que estava com tanto sono que não escutei. Pelo visto ela não tinha uma ideia muito concreta de qual seria sua “peça”, então hesitou por alguns minutos. Depois que finalmente se decidiu, timidamente se escondeu debaixo de minhas cobertas. Quando continuei fingindo dormir, saiu da cama como se não pudesse suportar a tensão e suspirou. Ela era mais inocente do que imaginei ou era apenas atuação? Quando me sentei e me comportei como se tivesse acabado de acordar, a garota sorriu e disse um “bom dia” com um sorriso bobo.

 

Sete da manhã.

 

Tomamos juntos o café de manhã que ela preparou. Embora fosse uma cozinheira habilidosa, muitos de seus pratos para o café da manhã eram simples. Mesmo assim, realmente despertavam meu apetite. Talvez o exercício diário influenciasse nisso. Diria que estavam mais para refeições ao estilo japonês do que qualquer outra coisa, e notei certa fixação estranha em sopa de missô[4]. Ela colocou um chega no meu hábito de viver de macarrão instantâneo, dizendo para “deixar isso de lado por um tempo”. Não era como se eu comesse aquilo por gostar, então obedeci.

 

Oito da manhã.

 

Enquanto lavava o rosto e escovava os dentes, Touka cuidava das louças. Eu não tinha muito que fazer, então queria voltar a dormir, mas ela sempre estava lá me observando, e se parecesse meio sonolento levaria um puxão de orelha. Relutantemente, estudava ou lia algum livro que pegava na biblioteca. O fluxo de tempo parecia tão lento pelas manhãs, e não era incomum pensar algo como: “Já deve ser meio-dia, não?”. Mas ao olhar para cima descobria que sequer eram as dez. Talvez o calor da luz do sol fizesse com que o tempo se arrastasse. Toda vez que olhava para o relógio, era golpeado pela duração de um único dia.

 

Dez e meia da manhã.

 

Hora da limpeza e da lavanderia. Quando o quarto estava bem limpo e não havia qualquer roupa empilhada, ouvíamos música no tocador que Touka trouxe. Claro, era do mesmo tipo que aparecia em minhas Mimories, e os discos também eram os mesmos. Ouvir músicas do passado me deixava sonolento, era como estar sentado em um campo silencioso. Se caísse no sono, nesse caso em particular, não tentaria me acordar. De fato, às vezes até ela cochilava. E se apoiava em meu ombro sem qualquer pitada de prudência. Através do ritmo de sua respiração, eu realmente senti a presença de outro ser vivo.

 

Meio-dia.

 

Almoçamos juntos a comida que ela preparou. Sempre eram refeições grandiosas. Quando perguntei o motivo para tanta coisa, disse: “Quero te engordar para depois te devorar, Chihiro” e riu consigo mesma. Enquanto isso, só comia metade do que eu comia. Depois do almoço, tomamos chá verde e nos afastamos por algum tempo. Pela janela aberta, podia facilmente ouvir as vozes de crianças brincando no parque mais próximo.

 

Uma da tarde.

 

Quando tinha que trabalhar, saía do apartamento nesse horário. Touka também voltava para o seu próprio quarto. Eu não tinha a menor ideia do que ela fazia desde então até meu retorno. Poderia estar aperfeiçoando sua estratégia para o golpe, ou até mesmo regando Glórias-da-Manhã[5] em sua varanda, ou tirando a casca de “Touka Natsunagi” e se refrescando enquanto saía de seu papel. Poderia estar fazendo qualquer uma dessas coisas, isso não me surpreenderia.

 

Quando não tinha que trabalhar, exercitava-me. Para ser mais específico, pedalava pelas ruas com Touka sentada na garupa, indo até a cidade vizinha. (Ela colocou uma almofada na garupa. Estava bem preparada como sempre). Mais uma vez, parecia estar tentando recriar parte de minhas Mimories.

 

Suas regras de “Como Passar as Férias de Verão” mencionavam “exercício regular”, mas não havia qualquer dúvida sobre isso, esse exercício chegava a ser excessivo. Como escolhíamos rotas sem muitas pessoas, ninguém nos via andando juntos; havia um monte de estradas alternativas. Tinha que desacelerar nas descidas, já que Touka estava na garupa. E precisava ser ainda mais cuidadoso para não perder meu centro de equilíbrio, e isso exigia ainda mais do meu vigor. Além disso, toda vez que perdíamos o equilíbrio, Touka se agarrava a mim, e eu ficava até meio perdido de tanta preocupação. A sensação dela se agarrando ao meu corpo ensopado de suor sempre mexia com meu coração. Por saber ou não sobre meu cansaço, sempre ria ao me agarrar.

 

Quando chegamos ao parque, que é onde fazíamos o retorno para casa, minhas pernas estavam completamente dormentes. Assim que descia da bicicleta, não conseguia sequer andar direito por algum tempo. Tomava um chá de cevada em uma cantina próxima e descansava por uns vinte minutos em um banco na beira do rio. E até havia um hospital antigo perto da margem, e às vezes eu via algumas pessoas passando pelas janelas. Possivelmente interessada no que acontecia por lá, Touka ficava se inclinando sobre a cerca para dar uma olhada no hospital sempre que possível.

 

Depois de descansar, voltávamos à bicicleta e eu limpava minha mente e apenas pedalava. O sol já estaria se pondo quando chegássemos ao apartamento. O cenário ao longo do caminho era bem monótono, com apenas postes e redes de energia fazendo sombra devido ao sol ao oeste; parecia até que tinham diminuído a resolução do mundo em vários níveis. Os ventos da tarde, que às vezes sopravam, também costumavam ser confortáveis.

 

Seis e meia da tarde.

 

Depois de lavar o suor no chuveiro, fomos ao supermercado mais próximo para comprar comida. Ser unilateralmente grato a ela me incomodou, então decidi pagar por isso. Touka ficou um pouco relutante, mas logo cedeu. “Se é isso que quer fazer, Chihiro, então faça.” Enquanto colocava mantimentos no carrinho que eu empurrava, continuou: “Isso faz parecer que somos recém-casados”, e riu com sua ingenuidade fingida.

 

Quando saímos do mercado, eu não conseguia pensar em nada além da janta, graças ao meu estômago vazio. Isso era algo que jamais poderia imaginar. No caminho ao longo do rio, onde as luzes de segurança tremulavam, ouvi os gritos ecoantes de muitos insetos próprios do verão. Touka caprichosamente carregava uma sacola de compras e envolvia meu braço livre com o seu. Seu braço era incrivelmente esbelto, suave e frio.

 

Certa vez, encontrei Emori enquanto em uma dessas situações. Ao ver Touka segurando meu braço, ele ficou sem palavras, olhou para mim surpreso e voltou sua atenção para ela. Então piscou como se tivesse percebido algo, aproximou-se e imprudentemente examinou o rosto da garota.

 

Touka vacilou e perguntou: “Er, o que é isso?”, mas Emori não respondeu. Ele quase abriu um buraco no rosto dela com o seu olhar e começou a dizer: “Ei, você, juro que já…”, mas depois pensou melhor e fechou a boca.

 

Então voltou à sua habitual indiferença, deu um tapa no meu ombro e disse: “Bem, espero que consiga” e depois saiu. Ele quis dizer sobre conseguir expor a identidade da golpista ou em se dar bem com ela? Fiquei meio confuso. Então Touka também bateu de leve no meu ombro. “Você o ouviu. Você consegue…”, sussurrou ao meu ouvido.

 

Sete e meia da noite.

 

Jantamos juntos o que ela preparou. Muitos de seus jantares eram bem elaborados. Muitas refeições pareciam combinar com cerveja, então às vezes pensava que “deveria tentar”, e falava que queria beber. Quando fazia isso, ela me deixava tomar amazake[6] frio. Era muito bom.

 

Nove da noite.

 

Era quando costumava estar na minha melhor condição, mas agora estava insuportavelmente sonolento. No final de cada dia, Touka fazia uma avaliação. Ela pendurou um calendário na parede, com áreas para escrever o dia da semana, o clima e eventos do dia – tudo disposto exatamente como nos calendários que recebíamos nas férias de verão da escola primária – e colocava um selo em cada dia. Isso significava que eu tinha seguido a programação estabelecida. Mais ou menos como um carimbo diário.

 

Depois, escrevia os eventos do dia na seção de “O que aconteceu”. Eram coisas totalmente triviais, algo como: “Chihiro pegou um bronze”, ou “Chihiro pediu mais comida”. Acho que as coisas que crianças da escola escrevem seriam melhores para se ler.

 

Então ela dizia “boa noite” e saía do quarto. Eu tomava um banho rápido, caía na cama e em menos de dez minutos adormecia. Um estilo de vida saudável, assim como o de uma criança de dez anos. Quando isso era feito por crianças de vinte anos, iguais a nós, parecia até insalubre.

 

Mas eu mentiria se dissesse que não era divertido.

 

O “calendário de férias” continuou por vinte dias.

 

Vinte e três de agosto, Nublado. Chihiro estava inquieto.

 

Vinte e quatro de agosto, Nublado. Chihiro fingiu que não estava inquieto.

 

Vinte e cinco de agosto, Ensolarado. Chihiro quase bebeu, então briguei com ele.

 

Vinte e seis de agosto, Ensolarado. Chihiro pediu mais comida.

 

Vinte e sete de agosto, Chuvoso. Chihiro não acordou, então preguei uma peça nele.

 

Vinte e oito de agosto, Nublado. Algumas crianças nos provocaram por andarmos juntos.

 

Vinte e nove de agosto, Ensolarado. Ele ficou bem cansado.

 

Trinta de agosto, Nublado. Hoje foi um dia maravilhosamente repleto de nada.

 

Trinta e um de agosto, Ensolarado. Chihiro, você é um bobo.

 

Um de setembro, Ensolarado. Chihiro pegou um bronze.

 

Dois de setembro, Nublado. Pelo visto, até o Chihiro tem amigos.

 

Três de setembro, Ensolarado. Chihiro ficou envergonhado. Touka me pegou em uma armadilha.

 

Quatro de setembro, Ensolarado. O dia foi meio longo.

 

Cinco de Setembro, Ensolarado. Surpreendentemente, Chihiro preparou a comida.

 

Seis de setembro, Ensolarado. Os fogos de artifício estavam bonitos.

 

Sete de setembro, Ensolarado. Chihiro estava sendo desagradável.

 

Oito de setembro, Nublado. Chihiro me pediu desculpas.

 

Nove de setembro, Nublado. Chihiro foi gentil.

 

Dez de setembro, Chuvoso. Fiquei feliz.

 

Onze de Setembro, Limpo. Touka soltou um “Ei, quer beijar?”

 

Dez de setembro. A previsão tinha falado sobre chuvas durante a noite, mas o festival aconteceu conforme planejado. Um pequeno festival, ali no santuário local.

 

Naquele dia, cancelamos nossa habitual viagem de bicicleta e ficamos no quarto o dia todo. E quando o sol começou a querer ir embora, saímos do apartamento e fomos ao santuário. Felizmente, parecia que ainda não iria chover por algum tempo.

 

Touka estava vestindo uma yukata azul-escuro. Desnecessário dizer que tinha exatamente a mesma estampa de fogos de artifício de quando tinha quinze anos, de acordo com minhas Mimories. Ela naturalmente também estava usando os crisântemos vermelhos em seus cabelos. A única diferença daquele dia foi que ela me fez usar uma yukata shijiraori[7] que tinha preparado. Foi a primeira vez na minha vida que saí usando uma yukata, então fiquei inquieto pelo caminho.

 

Touka visitou um estúdio fotográfico na zona comercial e comprou uma câmera com filme descartável, depois tirou fotos minhas de todas as distâncias e ângulos, suas sandálias de geta não paravam de fazer barulho enquanto se movia. Perguntei o motivo para não estar usando a câmera digital do telefone, mas me deu uma resposta bem inexplicável de que “As fotos são provas”. Provavelmente não havia qualquer significado profundo além de apenas querer fazer isso, eu supunha.

 

Meus olhos já estavam acostumados com o escuro da noite, então aquela luz de flashs acabou ofuscando minha visão.

 

Após chegar à praça, fizemos um tour pelas barracas. Então, cada um de nós comprou o que queria e procurou um lugar para relaxar. Ao contrário do esperado de um festival pequeno, havia muitas pessoas lá, então fomos até a parte de trás do edifício principal do santuário e nos sentamos juntos no meio das escadas que ligavam o santuário à escolinha. A única iluminação era a de um poste ali por perto, e sua luz mal chegava até nós.

 

O rosto de Touka na penumbra era, como se por engano, belo. Provavelmente era algum tipo de erro. Sua aparência estava acima da média, claro, mas era uma beleza totalmente diferente do tipo elegante que fazia os transeuntes virarem as cabeças. Talvez fosse melhor descrever como um tipo de beleza sem utilidade real, como uma gaita que está guardada em uma dispensa. A única razão pela qual acertou meu coração com tanta força foi por causa dos muitos filtros de Mimories que eu possuía.

 

E então, goste ou não, lembrei. Não havia dúvida de que Touka havia escolhido tal lugar intencionalmente. Eu sabia perfeitamente qual palavra sairia de seus lábios na próxima vez que eles se abrissem.

 

Depois de esperar pelo momento certo, Touka disse:

 

— Ei, quer beijar?

 

Touka, quinze anos, e Touka, vinte anos, sobrepuseram-se.

 

— Vamos lá, vamos testar se eu só sou uma golpista ou não — disse no mesmo tom irreverente. — Talvez você se surpreenda ao sentir lembranças esquecidas revivendo.

 

— Se isso fosse o suficiente para revivê-las, então teriam revivido eras atrás — falei no mesmo tom.

 

— Vamos! Vamos lá. Se você não quiser ser enganado, então as coisas não vão seguir adiante.

 

Touka me encarou e fechou os olhos.

 

Isso é apenas atuação. Um preço necessário para revelar a verdade. E, digo, um beijo não é lá grande coisa. Depois de erguer tantas defesas, humildemente toquei seus lábios com os meus.

 

Depois que nossos lábios se separaram, encaramo-nos novamente, mas não tentamos agir como se não fosse nada.

 

— E aí? — perguntou. — Sentiu alguma coisa?

 

— Claro que sim — respondi, e deixei por isso mesmo.

 

— Ohh. — Touka juntou as mãos e seus olhos brilharam. — Então agora você é honesto, Chihiro.

 

— Achei que não faria sentido mentir.

 

— Realmente, também senti meu coração disparando. Afinal, foi meu primeiro beijo em cinco anos.

 

— Vai continuar com isso?

 

— Isso aí. Moro sozinha desde que nos separamos há cinco anos, sabe?

 

— Um modelo exemplar de amiga de infância.

 

— Não sou?

 

Depois houve uma longa pausa. Comemos em silêncio o que compramos nas barracas.

 

Quando levantei para jogar meu lixo fora, ela de repente quebrou o silêncio.

 

— Ei, Chihiro.

 

— O que foi?

 

— Relaxa. Quando este verão acabar, irei sumir de sua vista.

 

Foi uma proclamação inesperada. Pensei que era uma daquelas piadas de praxe ao estilo Touka, mas sua expressão e tom disseram que isso era sério.

 

— Agora tudo o que nos resta é este verão. Então, ficaria feliz se você continuasse com essa mentira até acabar.

 

Então, com um raro nível de modéstia, apoiou-se no meu ombro.

 

— Afinal, qual era o seu objetivo?

 

Imaginei que ela tentaria se esquivar da pergunta, mas sua resposta foi extraordinariamente sincera.

 

— Eventualmente você vai saber. É um objetivo bastante complexo, mas acho que você poderá entender o essencial.

 

Choveu duas horas mais tarde que o previsto. Quando começou, foi uma tempestade definitivamente enorme. Não querendo voltar para casa em nossas yukatas ensopadas, decidimos nos abrigar em um ponto de ônibus próximo. Era o tipo de situação que parecia de alguma forma planejada, mas nem ela seria capaz de manipular o clima. Havia um guarda-chuva descartado no ponto de ônibus, mas eram apenas os restos de um que foi arruinado pelo último tufão que passou.

 

Diferente das chuvas de agosto, as de setembro traziam consigo uma clara malícia. Completamente encharcados antes de encontrar um teto, a água da chuva lentamente consumia todo o calor de nossos corpos.

 

Touka segurava seu corpo magro, tentando suportar o frio. Um “Chihiro Amagai” dentro de mim queria abraçá-la com força e aquecê-la.

 

Mas eu sufoquei esse desejo. Se seguisse essa voz, senti que o verdadeiro eu e o eu de minhas Mimories trocariam de lugar e nunca mais voltariam ao normal.

 

Em vez disso, perguntei:

 

— Está com frio?

 

Ela olhou para mim por alguns segundos, depois voltou a olhar para baixo. “Sim. E sinto que você quer me aquecer, Chihiro”, sua voz foi doce e convidativa.

 

Se a chuva não tivesse esfriado minha cabeça, provavelmente não seria capaz de resistir.

 

— Desculpa, mas não posso ir tão longe com isso…

 

Depois ela riu cinicamente.

 

Sua risada era a única coisa seca no ponto de ônibus encharcado pela chuva.

 

Ela falou provocativamente:

 

— Por quê? Tem medo de levar isso a sério?

 

— É. Tenho.

 

E o silêncio perdurou.

 

Contei dez gotas de chuva pingando do teto.

 

Ela respirou fundo, e então revelou o menor dos vestígios sob sua máscara:

 

— Se você apenas desistisse e se deixasse enganar. — E então continuou: — Se apenas pedisse, eu poderia dar o que quisesse.

 

Sua voz até tremia.

 

— Sei tudo o que você quer — continuou.

 

Você está certa, pensei.

 

Eu queria ser enganado por suas mentiras, se possível. Queria mergulhar na gentil história contada por ela e pelas Mimories. Fosse um sonho, uma Mimorie ou uma ilusão, queria amá-la cegamente e que ela fizesse o mesmo por mim.

 

Ela poderia me dar qualquer coisa que eu desejasse.

 

E ainda…

 

É por isso que, bem ali.

 

Engoli as palavras que ameaçavam transbordar e resumi em apenas duas:

 

— Odeio mentiras.

 

Disse isso, olhando diretamente para ela. Sua expressão não foi nada abalada. Seus olhos pareciam me encarar, mas continuavam sendo nada. Ela começou a inocentemente sorrir, como sempre, e então algo pareceu ter quebrado dentro de si.

 

A linha descendo por sua bochecha provavelmente não era uma gota de chuva.

 

— Amo mentiras.

 

E então me virou as costas, buscando esconder as lágrimas.

 

A chuva continuou por quase uma hora. Durante esse tempo, sentamo-nos de costas, compartilhando apenas um pouco de calor.

 

Esse era o meu limite, o do Chihiro da realidade.

 

Quando a chuva parou, voltamos ao apartamento sem dizer qualquer palavra. E esperamos em nossos respectivos quartos pela manhã vindoura.

 

No dia seguinte, ela desapareceu. A chave reserva estava ao lado de minha cama.

 

No “calendário de férias”, deixara sua própria mensagem de despedida para o dia dez de setembro.

 

Dez de setembro, Chuvoso. Fiquei feliz.

 

No dia seguinte, escrevi isto:

 

Onze de setembro, Claro. Touka foi embora.

 

E foi assim que sinalizamos o fim dela e também de minhas curtas férias de verão.

 

“Mesmo agora, Chihiro, você é meu herói.”

 

Touka disse isso para mim um dia antes de partir.

 

A sala de estudos estava agora vazia, mas ainda estávamos amuados em um canto.

 

— Chihiro, você me tirou de um lugar sombrio — disse. — Não tinha amigos, mas você sempre esteve comigo e me salvou várias vezes quando tive minhas crises. Se não estivesse lá, eu poderia ter me desesperado e morrido há muito tempo.

 

Que dramático, fez-me rir.

 

Dizendo que era verdade, riu também.

 

— É por isso que, se algo acontecer com você algum dia, serei seu herói, Chihiro.

 

— Uma garota não deveria ser uma “heroína”?

 

— Ah, é mesmo. — Ela pensou um pouco e depois sorriu suavemente. — Certo, então eu vou ser sua heroína, Chihiro.

 

Quando falou assim, o significado pareceu um pouco diferente.

 


Notas:

1 – Uma das fábulas de Esopo. Você pode ler clicando aqui.

2 – Feltro é um papel feito com o pelo de animais, normalmente com lã.

3 – Idílico é algo de admirável pureza.

4 – É um prato bem tradicional no japão, é uma sopa preparada, basicamente, com soja e tofu.

5 – É o nome de centenas de espécies de plantas floridas da família Convolvulaceae.

6 – É um vinho de arroz japonês doce, de baixo teor alcoólico.

7 – Yukata masculina, normalmente com poucos detalhes.

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