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Sua História – Cap. 05 – Herói

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Fantasmas se tornaram notavelmente mais incomuns desde o advento da câmera digital. Mas alguns aparentemente foram transferidos para o mundo eletrônico ao longo de algumas décadas, já que a partir de algum momento, relatórios sobre fantasmas começaram a aparecer na web. A maioria era apenas uma história fictícia ou brincadeira complexa, mas, apesar das grandes notícias, aconteceram alguns incidentes cuja verdade ainda era inexplicável.

 

Uma das histórias de fantasmas eletrônicas mais conhecidas é “As Irmãs Kayano”. Uma mulher relatou que uma amiga para a qual ligava quase diariamente durante cinco anos acabou falecendo há cerca de dois anos. Essa história teve uma conveniente distorção na resolução. Conforme indicado pelas “Irmãs” no título, a amiga da mulher tinha uma irmãzinha praticamente idêntica. A verdade era que a irmã mais nova tomou o lugar da mais velha, já falecida.

 

Ao contrário da irmã mais velha que partiu, a mais nova tinha uma personalidade retorcida e era amiga de ninguém além de sua irmã. A jovem Kayano, após perder a única pessoa com quem podia conversar, decidiu atender as ligações da amiga de sua irmã mais velha e fingir ser a mesma. E assim, continuou fingindo ser a falecida. Ela falou ao telefone como se fosse sua irmã mais velha, conversou como se fosse ela, e até mesmo usou suas redes sociais. As Irmãs Kayano não apenas tinham exatamente a mesma voz e aparência, inclusive altura, como também sabiam tudo uma sobre a outra, de modo que a mulher nunca notou, sequer suspeitou, de que as duas tinham trocado de lugar. A mentira foi finalmente exposta após dois anos, graças a uma circunstância que surgiu ao acaso, mas aparentemente as duas passaram a ser amigas após isso.

 

Se isso fosse tudo, seria uma história até que comovente. Mas existe uma continuação perturbadora. Havia um artigo sobre o que parecia ser a última postagem que a Kayano mais velha fez em sua conta antes de morrer, cujo conteúdo fazia qualquer um se arrepiar. À primeira vista, o texto parecia meio incoerente, mas poderia ser interpretado como “Alguém próximo de mim quer minha vida”. O artigo teve que desenterrar a postagem de um arquivo de terceiros, portanto, o fato de a jovem Kayano ter excluído a postagem original causou um enorme alvoroço. Surgiram rumores de que a irmã mais nova devia ter matado a mais velha para roubar sua amiga.

 

Por fim, não houve nenhuma explicação dada pela Kayano mais nova, a conta foi abandonada e agora servia como uma página fantasma da web, perfeita para ser um desafio a qualquer visitante.

 

Choveu por três dias, depois apareceu um dia nublado quase que apologético, seguido por mais três dias de chuva. Quanto mais esse mau tempo continuava, mais eu sentia que tinha esquecido a cor de um céu azul. A previsão dizia que havia um enorme tufão se aproximando e, uma vez que passasse, o clima ficaria limpo por algum tempo.

 

Realmente, era um verão estranhamente chuvoso. Era raro ter uma chuva forte, mas, no lugar disso, aquela fina como a neblina continuava a cair incessantemente. Como resultado, eu ficava andando de um lado para o outro da lavanderia ao meu apartamento. Felizmente, a lavanderia da vizinhança tinha um bom ar-condicionado; portanto, enquanto minha roupa estava na secadora, podia passar o tempo lendo revistas e jornais antigos.

 

No período daquela semana, perdi um guarda-chuva, um estragou por causa do vento e outro foi roubado. Joguei minhas sandálias velhas fora e comprei novas e passei alguns agentes desumidificantes[1] no armário. Essa era a extensão do efeito da chuva em minha vida. Desde o começo, meus dias estavam vazios, exceto pelo trabalho de meio período. Com o clima inclemente, a locadora de vídeos tinha ainda menos clientes que o normal, por isso parecia mais com uma loja de lembrancinhas no topo de uma montanha. Havia um cheiro úmido na loja, mas o gerente parecia não se importar nada com isso.

 

Não recebi nenhuma mensagem de Emori. Não tinha nenhum amigo além dele, então, inevitavelmente, passei todo meu tempo sozinho. Como sempre. Esta era a vida com a qual estava acostumado.

 

Nos dias de folga, ia à biblioteca da prefeitura para ler alguns documentos sobre Mimories. Não havia nada em particular que quisesse descobrir, mas percebi que era um pouco mais divertido ler artigos científicos em que não estava interessado do que revistas as quais não me atraíam.

 

Quando cansava de ler, tirava uma soneca leve, ia para a área de descanso e pegava um café na máquina de vendas, fumava um ou dois cigarros e voltava para a sala de leitura. Ao ouvir a música “Sunrise, Sunset[2]” anunciando as cinco da tarde, aproveitava a deixa para sair da biblioteca, comprava cerveja pelo caminho e enquanto a saboreava, passeava pela estrada da estação até meu apartamento. E, enquanto me perguntava se deveria assistir televisão ou ouvir rádio, jantava apenas um pouco de macarrão instantâneo, tomava um banho para lavar o suor do dia, bebia gim até de noite e adormecia sob o brilho do céu.

 

Bitucas de cigarros, latas e garrafas vazias. Com essas coisas, mal consegui sentir o passar dos dias. Se não fosse por isso, certamente não faria distinção entre o ontem e o hoje. Foi assim que meus dias continuaram imutáveis. Mal conseguia lembrar o que estive fazendo na mesma época, um ano atrás.

 

Tinha todas minhas evidências em ordem. O testemunho de meu pai e de Nozomo Kirimoto. As fotos no anuário. Claro, a amiga de infância chamada Touka Natsunagi não existia. Minhas lembranças não estavam erradas. Ela não era nada mais do que uma Substituta, uma pessoa fictícia criada por um engenheiro de Mimories.

 

Agora só tinha que revelar minhas evidências para aquela golpista e fazer que admitisse a derrota. Isso acabaria com tudo. Poderia tomar o Lethe que estava no fundo de meu armário e acabar com essa tola sequência de eventos.

 

Esse era o plano.

 

Aliás, desde aquele dia em que saiu do meu quarto sem dizer “Boa noite”, parei de ver qualquer sinal da mulher que se passava por Touka Natsunagi. Sabia que ela estava lá, já que via sua luz acesa à noite, mas não houve qualquer movimento que se pudesse levar em consideração.

 

Será que tinha desistido de me iludir? Ou estava planejando algo mais elaborado? Mentiria se dissesse não me importar, mas não tinha ideia de como ir conversar com ela por conta própria. Se estivesse trabalhando em um novo plano, eu me vingaria assim que voltasse a aparecer. E uma vez que alguma forma de resolução surgisse, seria o momento ideal para tomar o Lethe.

 

Como em qualquer outro dia, bebi até o amanhecer, dormi como se estivesse desmaiado e acordei com o som do vento oito horas após isso. Era uma tempestade. O som de um assobio veio pela abertura da janela. Liguei o rádio bem a tempo de escutar uma reportagem sobre o tufão.

 

Minha cabeça e garganta doíam. Fumei muito e também estava de ressaca. Coloquei um pouco de água no estômago, usando um copo ainda com cheiro de gim da noite anterior, esquentei um café pré-preparado e tomei-o lentamente, depois fiquei embaixo do ventilador e voltei a fumar. Após transformar dois cigarros em cinzas, caí na cama e ouvi o som do rádio e da chuva.

 

Gosto da chuva. Gosto de como é justo que todo mundo pareça ficar incomodado com ela. Gostar do clima limpo pode realmente depender da pessoa, mas todos podem desfrutar moderadamente da chuva forte. Tudo o que se pode fazer é saborear algo quente no próprio quarto, aceitando a sensação anormal que a tempestade traz de que estamos nos refugiando em um local seguro.

 

Quando cansei do rádio, coloquei uma almofada perto da janela e sentei, depois abri o livro que tinha pegado na biblioteca no dia anterior. Era a biografia de uma pessoa famosa sobre quem nunca ouvi falar, em um campo que não conhecia, explicando sobre suas realizações que eu desconhecia. Pessoalmente, um livro que não tem nada a ver comigo é o que busco. Isso me faz esquecer que existo. Provavelmente foi por ver Nozomi Kirimoto no outro dia que fui influenciado a, de repente, querer ler alguns livros.

 

Fazendo curtos intervalos a cada trinta minutos, li com bastante atenção. Ocasionalmente, soprava um vento mais forte e as gotas de chuva batiam contra o vidro da janela. O tempo passou surpreendentemente devagar.

 

Provavelmente já eram umas três da tarde.

 

De repente, senti uma incrível fome.

 

Era uma fome violenta, do tipo que rouba sua humanidade. Parando para pensar, não comia nada desde que acordei. Assim que reparei nisso, meu estômago doeu muito, como se alguma anestesia tivesse perdido o efeito.

 

Larguei o livro e olhei embaixo da pia, mas não havia mais nenhum cup noodles. Como esperado, a geladeira também estava vazia. Desisti e resolvi fumar, mas o cigarro que fumei anteriormente também foi o último. Pelo visto, negligenciei completamente todas as compras.

 

Meu guarda-chuva não parecia bom, então peguei uma jaqueta com capuz, calcei as sandálias e saí em direção à tempestade. Estava mais escuro do que o esperado, e o caminho estava repleto de lixo, galhos de árvores e guarda-chuvas levados pelo vento. Eu não conseguia manter os olhos abertos na chuva forte e, toda vez que uma rajada repentina chegava, meu corpo vacilava.

 

Estava invulgarmente silencioso dentro do supermercado. Comprei os cup noodles e cigarros mais baratos que tinham, amarrei a sacola de compras com bastante firmeza e saí. A chuva ficou ainda mais intensa.

 

Para me esconder dos ventos fortes, andei próximo às paredes. De repente, parei. Algo estava olhando para mim de uma janela mais adiante no caminho.

 

Não era humano. Um gato. Um malhado que me lembrava de já ter visto muitas vezes pela área. Sempre pensei nele como um vadio, mas parecia que afinal de contas tinha um dono. Ele estava me encarando com uma expressão de “Você é interessante por sair neste clima”. Cheguei perto da janela e franzi as sobrancelhas, mas o gato não se moveu, fixo no local como se fosse uma decoração e me encarando.

 

Quando voltei para o apartamento, joguei minhas roupas molhadas na máquina de lavar e tomei um banho. Quando fui derramar água na chaleira após sair do banheiro, percebi que a fome que me deixara irritado havia se acalmado, parecia nunca ter existido.

 

Deitei no tapete e saboreei os cigarros que acabei de comprar. O quarto estava fresco e a textura áspera do tapete era confortável. A chuva caiu sobre a cidade sem parar, tirando todo o significado e intenção de tudo, lavando-a por completo. Pensei no gato e depois naquele fantasma na janela.

 

No verão de quando eu tinha sete anos, vi um fantasma.

 

O que estou prestes a contar é uma bobagem verdadeiramente inconsequente. Em primeiro lugar, o fantasma que vi, na verdade não é um fantasma real. Em segundo lugar, essa história faz parte de minhas Mimories, para começo de conversa. E nesse ponto, perde qualquer significado que possa ter como uma história sobre fantasmas.

 

Ele residia em uma antiga residência local de estilo japonês e sempre observava as pessoas passarem pela janela na sacada do primeiro andar. Era o fantasma de uma garota de cabelos longos, esbelta e pálida, sempre emitindo uma atmosfera melancólica quando alguém a via. Toda vez que eu passava por perto, ela se inclinava para frente, agarrada à janela, e me seguia com o olhar.

 

Devia ser uma criança que morreu naquela casa há muito tempo. Tinha pena e meio que medo ao mesmo tempo. Pelo que sabia, podia ter inveja das crianças vivas com sua idade e estava pensando em me levar para devorar. Ela me observou sem emoções, mas talvez no fundo daqueles olhos incolores houvesse um verdadeiro ódio pelos vivos. Estava com medo de olhar no rosto da garota fantasma, então caminhei mais rápido por aquela estrada.

 

Tinha acabado de ver um especial de verão na televisão falando sobre acontecimentos paranormais. Ouvi boatos sobre uma criança que desapareceu na área há bastante tempo. Vários fatores acabaram se sobrepondo para me convencer de que a garota pálida que acabou de me observar pela janela era um fantasma. Eu não tinha uma imaginação fértil, mas também não era idiota.

 

Naquele verão eu estava tendo aulas de natação. Ou melhor, estava sendo obrigado a comparecer nelas. Minha mãe achou que era ruim o filho ficar sozinho em casa o dia todo durante as férias, então me inscreveu em aulas de natação por um curto período de tempo, querendo me tirar de casa e me manter ativo. A piscina ficava a dez minutos de casa e havia outros cinco alunos além de mim. Aqueles cinco pareciam ser amigos de longa data, então eu era o único excluído. Claro, senti esse sentimento de alienação mesmo em casa, desde que nasci, então não era um problema. Simplesmente mantive meu interesse direcionado ao fantasma.

 

A piscina foi construída em um terreno bem baixo, então tinha um único caminho que não se podia evitar para chegar até ela, e a janela na mansão do fantasma ficava nesse caminho. Meus pais não me acompanhavam na ida ou volta, então sempre tive que ir sozinho. Não era tão ruim ir à piscina, enquanto ainda claro, mas muitas vezes já estava de noite na hora de voltar, e eu tremia de terror ao pensar em fazer contato visual com aquela garota no escuro. Ao mesmo tempo, senti que, se desviasse o olhar, ela poderia ter a chance para fazer algo. Então, mesmo após passar pela janela, verificava várias vezes o caminho que ficou para trás. (Nunca considerei que ela poderia ver isso como um sinal de afeição.)

 

Dia após dia, via o fantasma com cada vez mais frequência. Não era para acabar com meu ânimo, ela simplesmente parecia ter compreendido o horário de minha passagem – mas vi isso como um mau presságio. Aposto que isso vai resultar em alguma coisa, pensei.

 

Minhas expectativas estavam corretas, de certa forma. Em pouco tempo, o fantasma começou a sorrir por trás da janela sempre que via meu rosto. Era um sorriso inocente, mas minha mente nublada pelo medo via isso como o cruel sorriso de um predador. Além disso, aquele sorriso parecia reservado apenas para mim, pois as outras crianças disseram que sua expressão não mudava quando passavam por ali. Minhas preocupações viraram convicções.

 

Era um espírito maligno. Tinha tomado a forma de uma doce garotinha, mas, na verdade, era uma fera faminta que avaliava os humanos e devorava suas almas. E eu – por um motivo desconhecido – havia me tornado um alvo.

 

O medo lentamente consumiu minha vitalidade. Tudo o que pensava era em como poderia conseguir que aquele espírito maligno me poupasse. Dormindo ou acordado, o rosto da garota aparecia em minha mente. Parecia muito que estava até mesmo apaixonado, mas na verdade estava aterrorizado. Tive pesadelos sobre ela aparecer para me pegar ou atravessando limites e não podendo retornar quando ela abria a janela.

 

Pensei em conversar com alguém sobre isso várias vezes, mas cheguei a imaginar que apenas reconhecer a existência dela iria provocar um desastre, por isso hesitei. Além disso, não tinha ninguém com quem falar, sem amigos ou pais que se importassem.

 

Foi um mês incrivelmente longo. E, no entanto, finalmente chegou ao fim.

 

No último dia de natação, despedi-me dos instrutores e deixei a piscina para trás. Meu corpo estava exausto após andar por um longo tempo, mas meus passos eram leves. Agora finalmente estava livre. Não teria mais que passar na frente daquela janela. Não precisaria olhar para aquele rosto. Meu coração saltitou com esse pensamento.

 

A mansão assombrada apareceu. Meu coração disparou. Graças ao sol poente, não conseguia enxergar através da janela à distância. E ainda assim sabia. Ela com certeza ainda estava lá. Com os cotovelos no peitoril da janela e o queixo nas mãos, olhando distraidamente para algum lugar distante, inclinando-se para frente e começando a sorrir ao me ver.

 

De fato, o fantasma estava lá.

 

Mas desta vez estava, de certa forma, diferente. Quando me viu, não se mexeu ou sorriu. Muito semelhante à primeira vez que passei por ali, seu olhar apenas me seguiu mecanicamente. Esfreguei meus olhos para ver melhor a sua expressão.

 

Quando notei que o fantasma estava chorando, a consciência que fortifiquei ao longo do mês ficou de cabeça para baixo. A reversão foi instantânea. O espírito maligno que me ameaçava não existia; era só uma garota humana, viva e respirando.

 

Chamá-la de fantasma seria absurdo. A garota chorando atrás da janela era simplesmente uma infeliz prisioneira, por algum motivo trancada em sua casa e ansiando pela liberdade, e é por isso que sempre ficava sentada lá. Seu corpo delicado parecia menor do que nunca. Senti-me patético por ter medo de uma garotinha tão tímida.

 

Ao mesmo tempo, perguntei-me por que ela estava chorando. Com a ameaça descartada, tudo o que restou foi a vergonha de ter tanto medo e a mais pura curiosidade em relação à garota.

 

O muro de concreto entre a janela e a estrada não tinha mais que um metro de altura, por isso era fácil passar por ele. Primeiro, joguei minha mochila ligeiramente perfumada pelo cloro e pulei o muro por conta própria. E então fiquei de pé na frente da janela que só tinha visto, até então, de longe.

 

Ela me viu fazer isso com um olhar espantado no rosto. Quando bati de leve no vidro de sua janela, levantou como se tivesse sido atingida por um raio, correu para destrancar a janela e a abriu. E então pela primeira vez nos vimos de perto.

 

Era uma noite de agosto repleto do canto ecoante das cigarras.

 

A garota sorriu com um rosto todo choroso e soltou um som que era algo entre “ehehe” e “ahaha”.

 

Minhas suspeitas sobre ela já haviam sido esclarecidas, mas não pude deixar de perguntar:

 

— Você não é uma fantasma, é?

 

Ela piscou algumas vezes, depois soltou um riso suave. Então colocou a mão esquerda no peito, como se estivesse procurando seu pulso, e inclinou a cabeça.

 

— Estou viva. Ao menos por enquanto.

 

Foi meu primeiro encontro com Touka Natsunagi. Durante a próxima década inteira, eu seria repetidamente provocado pela tolice dessa pergunta. E por fim não me disseram o motivo pelo qual ela chorava naquele dia.

 

Para meus ouvidos de criança de sete anos de idade, palavras como “asma” e “espasmos” pareciam pertencer a um mundo distante. Mas consegui entender um pouco da essência disso, que a menina tinha uma doença crônica que obrigava seus pais a proibir sua saída de casa.

 

— Não sei quando posso sofrer uma crise; então, sempre que possível, é melhor ficar em casa.

 

Possivelmente, por ela ter explicado muitas vezes sobre sua doença, ou por ter ouvido esses detalhes de seus pais e dos médicos repetidamente, era extraordinariamente eloquente ao falar sobre sua asma e conhecia várias palavras que não se esperaria ouvir de uma criança de sete anos.

 

— Afinal, não posso causar problemas para as outras pessoas.

 

Não importa como analisasse, essas palavras não eram dela. Seus pais deviam ter focado em cravar isso em sua memória.

 

— Se você for lá fora, vai ter uma crise de asma? — perguntei, tentando entender o termo que acabara de descobrir.

 

— Às vezes. Se fizer exercícios muito cansativos, respirar ar impuro ou ficar ansiosa, parece que as crises ficam mais frequentes. Não é como se só ficar em casa deixaria tudo bem também… — Então a garota concluiu com outra frase que não parecia pertencer a ela. — De qualquer forma, se tiver uma crise enquanto estiver fora, será problemático para outras pessoas.

 

Depois de digerir sua explicação, perguntei:

 

— Por que estava olhando pela janela?

 

Ela imediatamente abaixou o rosto e ficou em silêncio. E mordeu o lábio como se estivesse desesperadamente contendo suas lágrimas. Parecia que eu tinha tocado em um assunto que definitivamente não deveria.

 

— Ei, vamos a algum lugar juntos.

 

Ela levantou a cabeça lentamente. Inclinou para o lado, parecendo pensar: “Esse garoto ouviu o que eu disse?”

 

— Você não precisa andar. Eu te carrego.

 

Eu disse para “Apenas esperar um pouco” e voltei para casa com muita pressa. Depois de jogar minha bolsa em qualquer lugar, corri de volta para a mansão assombrada com minha bicicleta. Ela estava esperando do mesmo jeito que esteve ao me ver sair e sorriu aliviada com o meu retorno.

 

Parei a bicicleta e apontei para a garupa.

 

— Sobe atrás.

 

Ela hesitou.

 

— Mas se eu sair minha mãe vai ficar brava…

 

— A gente volta rapidinho, então não precisa se preocupar. Você não quer dar uma volta?

 

Ela balançou a cabeça.

 

— Quero.

 

Ela pegou seus sapatos e os calçou, pulou a janela e aterrissou meio instável. Cuidadosamente pulou o muro, sentou na garupa da bicicleta e agarrou meus ombros.

 

— Bem, então, por favor…

 

Balancei a cabeça. Então, de repente, percebi que não tinha perguntado seu nome.

 

— Como você se chama?

 

— Touka — respondeu. — Touka Natsunagi. E você?

 

— Chihiro Amagai.

 

— Chihiro…

 

Ela claramente repetiu o meu nome. Soou estranho, mas parecia ser a primeira vez na vida que alguém falava meu nome corretamente.

 

Até então, eu simplesmente não gostava dele. Pensei que era um nome fraco e muito feminino. Mas no momento em que Touka disse “Chihiro”, senti uma profunda gratidão por ter recebido esse nome.

 

Chihiro. Soou bem.

 

Pensando nisso agora, porém, qualquer nome que ela dissesse pareceria maravilhoso saindo de sua boca.

 

— Já estou pronta — disse Touka atrás de mim.

 

Comecei a pedalar um pouco nervoso. A bicicleta se moveu devagar com nós dois nela. Touka não levantou a voz ou gritou de medo, apenas se agarrou a mim.

 

— Você está bem? — perguntei sem olhar para trás.

 

— Umm, não sei… Estou me divertindo tanto que posso acabar passando mal.

 

Apertei o freio e ela deu aquela mesma risada entre um “ehehe” e um “ahaha”.

 

— Brincadeirinha. Estou totalmente bem. Pode correr à vontade.

 

Isso me incomodou um pouco, então tentei andar fazendo curvas propositais. Ela segurou bem firme em meus ombros, rindo cheia de alegria.

 

As Mimories são feitas para corresponder aos desejos latentes do cliente, mas apenas inserir desejos não processados nelas resulta em conflitos entre memórias e Mimories. Se receber Mimories claramente distantes da realidade, não serão funcionais como lembranças. Acabam sendo tratadas como a história de outra pessoa.

 

É por isso que as Mimories assumem uma forma um pouco mais realista da “melhor situação”, em vez de ser algo totalmente onírico. Algo que não seria estranho caso acontecesse, mas que definitivamente não aconteceu. Algo que poderia ter acontecido. Algo que as pessoas gostariam que tivesse acontecido.

 

As Mimories implantadas em mim foram, na maior parte, inteligentemente tecidas ao meu verdadeiro passado. Por exemplo, era verdade que tive aulas de natação por algum tempo quando tinha sete anos de idade. Também era verdade que alguém me encarou todos os dias, olhando daquela janela. A diferença é que não era uma garotinha da mesma idade que eu, mas um gato velho.

 

Também era verdade que fui escolhido como o Âncora da minha turma para o revezamento na corrida durante o terceiro ano do ensino médio. A garota que me encorajou e tirou a pressão de meus ombros, no entanto, não existia. Quando passei o bastão, nossa classe estava em último lugar, e não ultrapassei nenhum adversário, então ficamos na lanterna. Não houve qualquer apoio ou palavra de gratidão. De fato, os colegas de classe não tinham qualquer expectativa em relação à prova. Simplesmente fui obrigado a suportar a derrota… Poderia até continuar citando diversos exemplos.

 

Os muitos episódios foram uma detalhada simulação com base na premissa de: “E se uma amiga de infância chamada Touka Natsunagi existisse?”. O que isso retratava não era um simples absurdo. As mentiras foram reduzidas ao mínimo possível, e o verdadeiro eu não sentiu nada de errado com as palavras e ações existentes nas Mimories. Poderia naturalmente aceitar que reagiria assim se fosse colocado nas mesmas situações. Era totalmente plausível que isso houvesse acontecido – se Touka Natsunagi não estivesse aparecendo ali.

 

Para explicar de outra forma, eram minhas memórias de um mundo paralelo e abençoado. Ou talvez fosse um irmão gêmeo meu, que talvez passou por exatamente as mesmas circunstâncias, mas que teve uma vida muito melhor. É por isso que as Mimories eram realistas – e isso as tornava ainda mais cruéis. Qualquer um poderia facilmente desistir de algo que sabe, desde o início, que era uma mentira. Através de minhas Mimories, foi-me demonstrado que a diferença entre meu eu feliz e o infeliz era ínfima. Encontrar ela ou não – era a diferença entre o céu e o inferno.

 

Pensei que há muito tempo tinha desistido da felicidade comum. Mas, tendo uma “prova do que poderia ter acontecido” assim, diante de meus olhos, tão claro quanto o dia, dolorosamente soube que não havia desistido de nada. Pensei que tinha mantido as coisas bem separadas, mas realmente estava apenas cobrindo meus desejos com um lençol e tentando mantê-los longe de vista.

 

Agora sabia. Queria tomar um banho de amor incondicional, mas mais que isso, queria ser o herói de alguém.

 

Queria que minhas memórias dos seis aos quinze anos fossem apagadas para fugir desse tipo de vazio.

 

Queria estar esmagadoramente perto do vazio, para que não houvesse qualquer espaço para uma ideia de que “poderia ter sido diferente”. Ao fazer isso, esperava destruir qualquer caminho que deixei aberto.

 

Não estava com apetite, mas meu estômago vazio começou a doer de novo. Apaguei o cigarro, fui até a cozinha, coloquei a chaleira no fogão e observei o fogo dançando sem rumo enquanto esperava a água esquentar. Após a chaleira começar a soltar ar quente, apaguei a chama e, enquanto me agachava para pegar um cup noodles debaixo da pia, descobri algo no chão.

 

Era um pedacinho de papel. A princípio pensei quer era um recibo, mas o levantei e vi uma caligrafia nele. Um bilhete endereçado a mim. Não havia necessidade de perguntar quem o deixou.

 

Pergunto-me se ela estava cantarolando para si mesma enquanto escrevia isso. Pretendia me deixar uma mensagem e voltar para o próprio quarto, já que parecia que eu chegaria tarde? Mas assim que terminou de escrever, cheguei. E quando se gabou sobre a comida que fez, a empurrei com força e tomei minha chave (e provavelmente foi aí que o bilhete caiu no chão), joguei sua refeição no lixo bem diante de seus olhos e ordenei que saísse de imediato. Por isso o bilhete ficou para trás.

 

E dizia aquilo.

 

“Espero que esteja bem, Chihiro.”

 

Fiquei ali, imóvel, com o papel na mão.

 

De repente, imaginei a cena não “dela”, mas de “Touka Natsunagi” deixando o bilhete para trás.

 

Na mesma hora, senti uma profunda tristeza que quase me forçou a parar de respirar.

 

Alegria, raiva, carinho, vazio, culpa, perda, todos esses sentimentos surgiram e partiram juntos. Invadiram meu peito e o rasgaram, despedaçaram e cortaram em fatias, e depois todos os pequenos pedaços foram esmagados. E então apenas a pura tristeza permaneceu no buraco em meu peito.

 

Quando parei de beber, senti uma enorme decepção.

 

Sobre a mesa havia dois pacotes abertos e um copo. O copo estava vazio, então enchi de gim e tomei. Não encontrei nenhum aviso sugerindo não misturar álcool com doses de nanobots, então provavelmente não faria mal.

 

Não tinha nenhum arrependimento para me preocupar, nem o sentimento de conquista que imaginei que existiria. Na melhor das hipóteses, havia uma pequena sensação de alívio por estar tomando conta de algo tão problemático.

 

Após tomar o gim, caí no tapete e esperei que o Lethe chegasse ao meu cérebro. Não tinha necessariamente superado o medo de perder as memórias, mas meu desejo de esquecer essa dor o quanto antes acabou vencendo.

 

Logo depois, a sonolência me envolveu e perdi a consciência, parecia estar afundando.

 

Ouvi algo pesado batendo no chão.

 

Após acordar, tive que pensar sobre ter ouvido aquele som em sonhos ou na realidade.

 

Provavelmente foi real, decidi.

 

Então de onde tinha vindo?

 

Do apartamento vizinho.

 

Escutei com atenção. O pior do tufão já tinha passado, mas ainda havia aquele som do vento assobiando vindo pela abertura da janela. Não havia qualquer barulho do outro quarto. Coloquei meu ouvido na parede fina, fechei os olhos e prestei atenção. Com certeza, tudo que podia ouvir era o vento.

 

Aos poucos, o vento começou a soar como a respiração de alguém. O som me parecia familiar. Era a respiração de alguém sofrendo com uma grave crise de asma. O jeito que Touka respirava quando desmaiava… Parecia que ainda não tinha esquecido sobre Touka Natsunagi. Quanto tempo se passou desde que adormeci? Certamente poderia esperar que o Lethe já tivesse entrado em ação. Recusei-me a acreditar que mais uma vez havia recebido nanobots trocados. Ou talvez não fosse bom tomar eles com álcool.

 

Como teste, listei as coisas sobre Touka Natsunagi que ainda lembrava. Cabelos longos, pele pálida, sorriso amigável, corpo delicado, cinco beijos, Firefly’s Light, a sala de aula, os estudos e os discos, o fantasma na janela, o rosto azul de cianose, o peito contraindo-se estranhamente enquanto ela tentava respirar, o som de sopro e o inalador caído no chão. “O médico acha que pode ter alguma mudança na pressão atmosférica”, um pijama de puro branco, pescoço e braços magros à mostra… “Digo, aquele tufão estava chegando, né? Pelo visto isso fez a pressão cair muito rápido, então tive esse ataque.”

 

Ela não teve uma crise e entrou em colapso?

 

A pressão atmosférica baixa não fazia a asma piorar?

 

Não estava caída no chão, incapaz de se mover?

 

Estava mais uma vez misturando as Mimories com as memórias. Estava ciente disso. Sim, Touka Natsunagi sofria de graves crises de asma, mas a mulher no cômodo ao lado não era ela. Aquela Touka Natsunagi, em primeiro lugar, não existia. Não confirmei isso com Nozomi Kirimoto? O nome dela sequer estava no anuário.

 

No entanto, mesmo com os muitos argumentos lógicos que me propus, meu corpo não ficaria satisfeito. Meu coração batia cada vez mais rápido, parecia até que poderia explodir. Minha visão tremia, meus dedos começaram a ficar dormentes, meus músculos vacilaram. Por um momento esqueci sobre como se respira, então, às pressas, respirei bem fundo.

 

Esse era o meu limite. Saí para o corredor, molhado pela chuva, descalço. Com os dedos tremendo, toquei a campainha do apartamento vizinho. Sem resposta. Continuei tocando por alguns segundos. Sem resposta. Tirei meu telefone do bolso e liguei para ela. Sem resposta. Bati com força na porta. E continuei batendo.

 

Sem resposta.

 

— Touka!

 

Antes que percebesse, estava até mesmo gritando o nome dela.

 

Não houve resposta.

 

Por um tempo, segurei minha cabeça com as mãos contra a porta. A chuva que caía me deixou ensopado sem que eu percebesse. Logo, o som do vento parou, e isso também me acalmou um pouco. De repente, comecei a ficar envergonhado por minhas ações.

 

Não haver nenhuma resposta indicava que ela tinha saído. O que parecia ser sua respiração asmática era o vento entrando pela janela, e o som de alguém entrando em colapso era só o vento derrubando algo. Talvez tivesse saído e deixado a janela aberta.

 

Ri de forma irônica e peguei um isqueiro e um cigarro no bolso. Sentei-me sob a água da chuva caindo no corredor e enchi meus pulmões de fumaça, expirando cinco segundos depois. Então me encostei à parede e fechei os olhos.

 

Não me importava mais com o porquê do Lethe não ter funcionado. Só queria ver o rosto de Touka o quanto antes. Mesmo se soubesse quão tolo era, queria sentir o alívio de saber que ela estava bem.

 

Por trás de minhas pálpebras, senti a luz do sol.

 

Ela devia ter disfarçado seus passos com o som da chuva pingando na sarjeta.

 

Ouvi uma risada que era algo entre “ehehe” e “ahaha” muito de perto.

 

Não era uma alucinação ou coisa do tipo.

 

Quando abri os olhos, Touka estava se inclinando e olhando para o meu rosto.

 

Minha compreensão não conseguiu acompanhar isso.

 

— Pensou que eu tinha ido embora? — Após isso, sentou-se ao meu lado. — Ou achou que tive uma crise de asma e não conseguia me mover…?

 

Não pude reunir esforço o suficiente para responder.

 

Estava muito ocupado tentando esconder meu alívio.

 

— Há quanto tempo está aqui…?

 

— Desde que você bateu na porta, Chihiro. — Ela chegou perto de mim, ficando a uma distância bem curta. — Você voltou a me chamar de Touka.

 

— Você deve ter ouvido errado.

 

— Hmm, então só ouvi errado… — Arregalou os olhos de propósito. — Então o que você disse?

 

Quando respondi com o silêncio, Touka riu.

 

— Você trocou o Lethe por algo falso, não foi? — perguntei.

 

— Sim — confirmou sem medo. — Afinal, não queria ser esquecida e não queria que você esquecesse.

 

Fiquei atordoado demais para dizer qualquer coisa.

 

— Posso fazer uma pergunta também?

 

— Qual?

 

— Por que se apressou para apagar o cigarro?

 

Olhei para minha mão. Em algum momento, comecei a amassar a ponta do meu cigarro.

 

Foi uma ação completamente inconsciente.

 

Os olhos dela estavam alegremente apertados.

 

— Você lembrou que eu não gosto de cigarros, não é?

 

— Foi só coincidência…

 

Uma lamentável desculpa.

 

Não percebi até ela apontar, mas nunca fumei em sua frente.

 

Era só por ela ser uma garota que eu a poupava disso?

 

De forma alguma.

 

Eu poderia tentar negar tanto quanto quisesse, mas subconscientemente tinha aceitado essa mulher como Touka Natsunagi.

 

— Está tudo bem. Estou melhor agora. Também não me importo com o cheiro do cigarro — sussurrou ao meu ouvido. — Relaxa. Não vou simplesmente desaparecer.

 

Naquela noite, provei da comida que Touka fez pela primeira vez.

 

Tudo que podia dizer era que estava delicioso.

 

Ela estava com o queixo nas mãos e os cotovelos sobre a mesa, olhando para mim com olhos vidrados à espera da minha opinião, e então perguntei:

 

— Por que faz tanto por mim?

 

E respondeu com algo que não era bem uma resposta.

 

— Estou fazendo tudo isso só porque quero fazer tudo isso.

 

Suspirei.

 

— Basicamente, no que diz respeito a vítimas de golpes, não consigo imaginar que eu valha muito a pena.

 

— Hmm — resmungou Touka. — Digo, foi uma promessa.

 

— Promessa?

 

— Sim, promessa. — Ela afirmou com um sorriso satisfeito. E então falou com um tom que eu não soube se era sério ou brincadeira: — É por isso que pretendo me dedicar a você, Chihiro.

 

Examinei minhas Mimories, mas a palavra “promessa” não existia.

 

Todas as suas declarações anteriores estavam perfeitamente alinhadas às minhas Mimories, então essa inconsistência deixou meu coração um pouco instável.


Notas:

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