Chiho tinha dominado a conversa por completo.
— A Yusa tentou me parar no começo; disse que não queria que eu me arrependesse, que não me apaixonasse por você. Mas, para começar, tudo isso foi culpa minha, sabe? Comecei a gostar de você, e, caso eu queira parar, vou fazer isso do meu jeito.
Uma vareta de aço foi cravada direto nos sentimentos macios como algodão doce que os cercavam, contra a qual até mesmo Maou estava indefeso.
Cada tracinho da determinação dela agora estava revelado, cravado no seu sorriso. Maou não tinha como responder.
— Chi…
— Então, sabe, mesmo que me veja como apenas uma garota nova no trabalho, está tudo bem. Isso e o fato de eu gostar de você… são duas coisas diferentes.
Os raios de sol acima diziam a Maou que não havia um único traço de malícia no sorriso de Chiho.
O Rei Demônio, sem palavras e congelado graças às simples palavras de uma garota humana, que sequer tinha duas décadas de vida, certamente não seria um exemplo a ser seguido pelos seus vassalos na sua terra natal.
— … É exatamente por isso que humanos podem ser tão assustadores às vezes.
— Isso mesmo. E você deveria ser bastante cuidado perto de mulheres, em particular. Homens têm a ideia errada sobre isso na maioria das vezes, mas, se mexer conosco, pagará o preço. Sem dúvidas!
— Vou lembrar disso.
Maou riu para si mesmo enquanto assentia. Aparentemente, isso foi o bastante para Chiho.
— Bem, hoje é o seu primeiro dia como supervisor de turno, certo? Boa sorte.
Com essa tentativa um pouco forçada de mudar de assunto e aliviar o clima, Chiho andou à frente, confiante.
— Sim, pois é. Vou fazer o meu melhor para não ter todo o meu salário retido.
Ele foi rápido para aceitar o gesto.
— Você é um artesão soberbo, Sadao. Ao tomar tamanha responsabilidade… e abençoado com tal grupo leal e respeitoso, estou admirada.
— Isso mesmo! Terei que tentar ao máximo para não os decepcionar! … É…
— Hmm?
— Hm.
— Hã?
Maou falhou completamente em notar que outra pessoa se aproximava dele.
— Você é verdadeiramente amado, Sadao.
— S-S-Su…
— Suzuno?!
Maou e Chiho saltaram ao mesmo tempo.
— S-S-S-Suzuno! Des-Desde quando você está aí?!
Chiho a confrontou, e as suas bochechas, antes rosadas como cerejeiras, agora tinham a cor de uma maçã madura.
Suzuno deveria ter saído com Emi, mas, naquele momento, do nada, estava bem ao lado de Maou e Chiho.
Ela tinha um leve ar elegante sobre si, vestida em seu quimono e sandálias revestidas em laca, carregando uma grande bolsa de cordão kinchaku tradicional. Mas como ela e as batidas rítmicas das suas sandálias de madeira escaparam da atenção deles?
— Qu-Quando que você apareceu; quanto ouviu; por que não disse nada; por que está aqui; não tinha saído antes de nós?!
Chiho, com o nariz brilhante como o de uma rena de natal, gritava furiosamente para Suzuno.
— Eu os alcancei há menos de um minuto. Meus ouvidos pegaram a conversa começando com “mesmo que me veja apenas como uma garota nova no trabalho”. Hesitei em falar, pois, ainda que estivesse longe, podia ver que era uma conversa íntima. Saímos, realmente, mais cedo, mas notei que deixei meus pertences em casa, por isso Emi continuou enquanto eu voltava para buscá-los.
Calma e obedientemente, Suzuno respondeu a cada uma das perguntas emocionalmente feitas por Chiho.
— Nnnnhh!!!!
O corpo inteiro de Chiho brilhava vermelho-escuro. Vapor começara a sair pelas suas narinas.
Em outras palavras, alguém havia acabado de ouvi-la confessando os seus sentimentos mais profundos a Maou.
— Não se preocupe. Testemunhar a forma com a qual tratara Maou nesta manhã já deixou fácil de imaginar seus sentimentos, Chiho.
— S-S-S-S-Suzuno?! Você está dizendo isso de propósito! Na frente dele!
— Como de propósito? Por que seu rosto está brilhando carmesim?
— É isso o que acontece quando você diz coisas assim, eu estou bastante envergonhada; o que você está pensando?!
— Pode ser, mas seria uma coisa ainda mais estranha se eu falhasse em perceber. Além disso, seus sentimentos já estão bastante claros. Não me incomoda nem um pouco os ouvir em voz alta uma vez mais…
— Não estou falando disso! Talvez você esteja certa, mas ainda assim é vergonhoso para mim! Ugh! Quero dizer… Ugh!
— Chi, Chi, acalme-se um pouco…
— Na realidade, Chiho, acho deveras virtuoso e atraente como você foi clara e alegremente honesta com seu próprio coração… não importa para quem se dirigira.
— Hm, não foi uma indireta para mim, foi?
Suzuno permanecia franca e honesta à medida em que falava. Chiho, enquanto isso, estava quase entrando em ebulição.
— ….!!!!
Ela deu um grito sem voz, o seu rosto parecia o terceiro nível de um semáforo.
— Agh! Ei! Espere! Chi!
Sem dizer mais nada, Chiho tirou a Dullahan das mãos de Maou, pisou nos pedais com uma força incrível e partiu a toda velocidade.
Maou, deixado para trás, estendeu uma mão impotente na direção de Chiho enquanto ela executava uma derrapada na esquina e sumia de vista. Então, olhou para Suzuno.
— Mm. Bastante amado, na realidade.
— Eesh. Você não precisava ter mexido assim com ela. Ela está passando por bastante coisa nessa idade.
Maou abaixou a cabeça, decepcionado, coçando a testa.
— Ughh… Espero que a Chi não se meta em algum acidente pelo jeito que saiu correndo.
Os olhos de Suzuno se arregalaram em resposta.
— Isso… é uma surpresa.
— O quê? O fato de que eu estou preocupado com outra pessoa?
— Se me permitir ser rude para dizer, sim.
— Sim, bem, não acho que você é a primeira a dizer isso. Cara, o pessoal que eu conheço tem mesmo esse pouco de confiança em mim?
O Rei Demônio agora estava em modo ranzinza ativado com a pergunta repentina feita por Suzuno.
— O que você acha que significa ser amado por alguém?
Maou limpou o suor da testa com a manga — se era por causa do calor ou alguma outra coisa, ele não sabia — antes de franzir o cenho.
— Qual é, está fazendo uma pesquisa ou algo do tipo?
— Não… não quero dizer nada particularmente profundo com isso.
— E você espera que eu acredite nisso depois do que viu? Bem… é difícil dizer, ainda mais ao ser perguntado assim. Não quero apenas ignorar ou coisa do tipo, mas a Chi acredita tanto assim em mim… e, indo mais ao ponto, se os pais dela também… então acho que terei que ser sincero da mesma forma com eles. Não é como se eu soubesse o que dizer para qualquer um ainda. Por que você está olhando assim para mim?
Ele deu uma resposta honesta para a pergunta boba, mas mesmo assim Suzuno estava agora de volta para ele como se visse um animal exótico em que nunca tinha colocado os olhos antes.
— Eu… disse algo estranho, ou…?
— Huh? Ah, ah… ah, não, n-não mesmo. Foi apenas um tanto surpreendente para mim.
— O quê?! E, sabe, você não deveria se reencontrar com a Emi agora?
— Ah… sim. Está certo.
Suzuno balançou a cabeça como se sacudisse as teias de areia do cérebro. Maou usou a outra manga para limpar a testa.
— Tenho certeza de que ela está na estação de Sasazuka. Vou te mostrar um atalho.
— A…?
Suzuno mais uma vez foi pega desprevenida. Maou ignorou isso.
— Está vendo aquela viela? Ande mais um pouco por ali e vai chegar na área comercial da Rua Bosatsu. Pegue à esquerda lá e siga a fileira de lojas, então vai acabar na frente da estação.
— Er… sim. Certamente. Obrigada.
— Além disso, se quer encontrar um trabalho, é provável que vá precisar de um celular para que as pessoas te contatem. Sei que não tem muito dinheiro para se virar agora, mas é melhor comprar um o quanto antes. Há uma loja ou duas perto da estação, mas se não ver nada que goste, tenho certeza de que a Emi sabe onde você pode ir no centro. De qualquer forma, tenha um bom dia.
— … Sim. Obrigada.
Olhando mais uma vez para o caminho que Chiho usou, Maou deu um suspiro desajeitado antes de virar as costas para Suzuno e voltar para o seu apartamento.
Suzuno não pôde deixar de o observar partir. À medida em que o fazia, Maou virou-se repentinamente depois de alguns passos.
— Boa sorte para encontrar um emprego decente! Tente não deixar toda a multidão te assustar no centro.
E então continuou andando, sem esperar a resposta de Suzuno.
Ela ficou lá por um tempo, incapaz de se mover.
— Você encontrou a sua bolsa? — Emi, esperando na frente da catraca da estação de Sasazuka, foi até Suzuno ao vê-la. Suzuno assentiu, ainda um tanto atordoada.
— Sim… sim, tudo certo. Peço desculpas por lhe fazer esperar.
— Que nada. Algum problema? Você parece um pouco perdida.
— Não… Mas… Nós vamos entrar em… Hmm, um trem? Agora?
Emi não sabia por que ela adicionou o ponto de interrogação depois da palavra trem, mas não deu atenção enquanto assentia.
— Sim. É apenas uma estação de Sasazuka até Shinjuku, mas ainda é meio longe para ir a pé. Oh, e cuidado para não pegar o trem até Motoyawata também. São duas paradas a mais, e ele te deixa na saída de Shinjuku. Você tem um cartão de tarifa ou algo do tipo? Terá que comprar uma passagem comum caso não tenha, mas fazer um cartão de tarifa agora vai deixar tudo mais fácil no futuro.
— Hmm… sim. Sobre isso — Suzuno olhou para os arredores, claramente um pouco confusa. — Se posso ser honesta com você, é a primeira vez que entro em um trem na minha vida.
Ela tinha uma aptidão para fazer essas revelações de cair o queixo com o tom de voz mais tranquilo e diário possível.
— … Como é?
Emi não tinha ideia de qual era a idade de Suzuno, mas a olhou com suspeitas mesmo assim. Em que tipo de reino distante proibido ela vivia se já era velha o suficiente para viver sozinha, mas ainda não tinha entrado em um trem?
— E o que é esse cartão de feirinha que ouço falar? É usado para ter acesso à feira?
— O quê?
— Hmm?
Havia algo de estranho em como Suzuno pronunciara aquilo.
— Eu… peço perdão se disse algo de estranho.
— Uh, estranho não é, o… Hm, bem. De qualquer forma, vamos comprar uma passagem, pode ser? Vou explicar o que é um cartão de tarifa depois. As passagens ficam…
Ela parou quando percebeu Suzuno parada como uma estátua na frente da máquina de vendas de passagens.
— … É, posso fazer uma pergunta sincera? Como foi que você conseguiu chegar em Sasazuka?
Isso já estava começando a ficar bobo. Ela nem mesmo sabia como comprar uma passagem? Tivesse nascido no Japão ou em Marte, ainda conseguiu chegar em Tóquio. Não teria sido impossível ter evitado completamente o trânsito público o caminho todo, mas ainda seria inconveniente.
Suzuno, enquanto isso, era incapaz de esconder o humor perplexo diante de Emi cheia de dúvidas.
— Bem, peço perdão se me falta conhecimento local. Usei um Portal para chegar em Sasazuka.
— Oh, sim, faz muito…
A forma de pura obviedade que usara fez Emi quase falhar em perceber no começo.
— O… que você disse?
O rosto dela ficou tenso. Algo que acabara de ouvir foi uma confissão importante demais.
— Disse que vim direto até Sasazuka pelo uso de um Portal e estive ocupada arrumando minha nova identidade na cidade, por isso não me familiarizei com a vida na cidade ainda, temo que eu…
— E-Espere! Espere aí!
O pulso de Emi subiu de repente. Ela levou a mão ao peito, como se tentasse suprimir aquilo; também olhou para os arredores com atenção antes de levar o rosto sombrio para mais perto do de Suzuno.
— V-Você é de Ente Isla?!
Isso ficou claro quase que de imediato depois que Emi concluiu que Suzuno era inofensiva. Um pouco fora de ordem, mas inofensiva. A mente de Emi já estava ligada pela metade no modo pânico.
Até mesmo Suzuno reagiu com surpresa diante da pergunta, seus olhos se arregalaram, e ela apontou para Emi.
— Você não havia notado?!
Como esperava que pudesse? Pensou Emi, enquanto a pressionava:
— Você nunca disse uma palavra sobre isso para mim!
— Mas foi você mesma quem disse! Disse que estava atrás do Rei Demônio!
— O quê?!
— Eu fiquei um pouco surpresa, pois nunca imaginei que você usaria aquele nome diante do homem em pessoa. Mas então me avisou para não agir de maneira apressada. Que eu deveria “manter a minha distância” dele, ou acabaria infeliz!
— Como ééééé?!
— Eu passei por um grande número de desafios e tribulações em minha vida, mas se é a Heroína que está me aconselhando a ficar longe, então longe eu ficarei. Entretanto, mesmo que eu mostrasse as cartas na manga naquele exato momento, não teria mais para onde ir. Por isso pedi sua assistência, a qual você prometeu dar, e também junto com a sua informação de contato, não?
— Como ééééééé?!
Emi foi afundada em um mar de confusão, mas a verdade por trás da explicação de Suzuno estava começando a lhe fazer sentido.
Então, a verdade completa veio à tona. Aquela conversa, que aconteceu do lado de fora da casa do Rei Demônio, foi o resultado de um imenso mau entendido entre Emi e Suzuno.
— Então você não disse aquilo por que sabia da verdade sobre mim?!
— Como diabos aquilo me mostraria quem você realmente é?!
Emi sentia que tinha o direito de ficar irritada.
— Você não achou nada estranho nisso?! Uma jovem garota delicada, recém-chegada no novo apartamento, bruscamente se metendo na vida de três homens que moravam ao lado? Achou que era uma ocorrência que acontecia todo dia?!
— Sim! Achei! E o fato de você agir como se eu não achasse está me tirando do sério!
Essa era a sua recompensa por se preocupar em manter a jovem garota estranha longe de se envolver com seu destino. Ninguém estava “se envolvendo” em nada. Ela já estava envolvida desde o começo.
— E o que você possivelmente quis dizer quando me perguntou se eu estava “visando” o Rei Demônio?!
— Hã? Isso… quero dizer…
Não tinha como Emi saber da verdade. Ela havia pensado erroneamente que Suzuno tinha ficado atraída por ele. Imaginar que a vergonha tomaria conta dela por um momento foi de fato culpa da Suzuno por ter cometido o erro em primeiro lugar.
— B-Bem, por que você me perguntou se eu estava em “uma relação próxima” com ele?!
A resposta veio clara como o dia.
— Porque eu fiquei sabendo que você lutou junto com o Rei Demônio!
Os olhos de Emi se arregalaram.
Além dos residentes do Castelo Demoníaco, as únicas pessoas que sabiam que a Heroína Emília se juntara com Satan, o Rei Demônio, em batalha, eram Chiho, Emeralda, Albert e Olba.
Não havia como Emeralda nem Albert espalharem histórias que colocariam o nome da Heroína em dúvidas. A única alternativa era que Olba, ainda em custódia pelas autoridades japonesas, descobriu uma forma de transmitir as notícias para Ente Isla.
E, a partir disso, era fácil supor que tipo de Ente Islanos receberam esse tipo de notícia.
Emi decidiu por começar a declarar a sua inocência:
— Você só pode estar brincando comigo! Nós tínhamos um inimigo em comum! Não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso a não ser o derrotar enquanto o Rei Demônio também estava lá! E qualquer um que chama isso de “lutar junto” com ele está cometendo um erro gravíssimo!
Essa era a exata definição de lidar com detalhes do tamanho de um fio de cabelo, mas, para Emi, esse cabelo era tão longo, espesso e visível quanto uma parede de tijolos.
Em termos de intenções, pelo menos o Rei Demônio permaneceu como inimigo de Emi durante aquela batalha, mesmo que ela tenha lutado contra Lúcifer e Olba.
Agora, como as outras pessoas interpretaram isso… até mesmo ela tinha que admitir: era uma história diferente.
Ficava claro como um observador externo poderia ter acreditado que estava observando a Heroína e o Rei Demônio se unindo contra o arcebispo da Igreja. E então foi atacada no mesmo dia em que entregou o seu endereço e número para contato.
— Tá, mas e daí, você pensou que eu me juntei com o Rei Demônio para que pudesse me vingar contra Igreja?! É por isso que se vestiu toda engraçada e me atacou na loja de conveniência ontem?!
Alguém que fosse um aliado próximo de Olba, sem dúvidas, apareceu para realizar os desejos mais ferventes dele. Isso era fácil o bastante para supor.
E havia a simples chance de que alguém apenas iria querer vingança contra o nêmesis do arcebispo, sem saber nada sobre os crimes dele.
Mas Suzuno, parecendo muito mais suspeita do que há alguns minutos, encarava duvidosamente para Emi enquanto cruzava os braços, pensando, agindo como se toda a acusação de Emi não fizesse sentido algum.
— Uma “loja de conveniência”? Como se vende conveniência, exatamente? Eu não tenho certeza do que você está falando.
— Oh, se você não sabe, o que acha de eu te levar até lá agora mesmo, hein?! Está atuando de propósito ou realmente é estúpida assim?!
Emi usou uma mão para apertar o rosto dela.
— Eu fui atacada, entendeu? Na loja! No dia em que te dei o meu contato! Por alguém de Ente Isla! E, não querendo defender o Rei Demônio, não foi um demônio, pois, seja quem for, tinha o poder de cancelar a minha espada sagrada! O que significa que só pode ser você…!
Emi parou de repente. Agora tudo estava sobre a mesa, pronto para ser servido em um confronto.
— E-Espere um momento, por favor. Eu, atacar você? Não fiz tal coisa! Sei muito bem que você é a Emília, a Heroína! Sei da força que possui como guerreira da Igreja! E, ainda que não seja totalmente inútil em batalha, não seria idiota o suficiente para começar um duelo no qual sei que tenho poucas chances de vitória!
Emi observava a Suzuno surpresa com cuidado enquanto ela se defendia.
O maníaco portador da foice havia levado um tiro de paintball no rosto.
Suas características bem definidas e pele lisa tornou difícil perceber logo de cara, mas, após olhar com maior atenção, ficou claro que Suzuno não estava usando maquiagem.
Aquelas balas de tinta contra bandidos eram feitas de um composto que não poderia ser limpo com produtos caseiros. Mas se Suzuno fosse a agressora, ela iria se parecer com um panda laranja-fluorescente agora.
E, quando se sentaram uma ao lado da outra nessa manhã, Emi não sentiu cheiro algum de tinta, nem de perfumes incomuns que pudessem escondê-lo.
Resistindo ao desejo de gritar mais com a Suzuno, Emi mostrou a expressão mais severa que conseguiu enquanto falava com raiva:
— Bem…, veja só, sinto muito se fui um tanto lenta para entender. Pode me deixar à parte do assunto? Quem é você e o que está tentando fazer ao simplesmente invadir o Castelo Demoníaco dessa forma?!
A voz dela tinha ficado mais desesperada. Por ser alta, não era o tipo de conversa que qualquer pedestre tinha coragem de se meter. Ainda assim, Emi certificou-se de olhar para os lados para ver se Maou ou Ashiya não estavam as espionando.
— O meu nome verdadeiro é Crestia Bell, chefe inquisidora do Júri de Reconciliação.
Emi olhou para ela mais uma vez, intensa. O termo Júri de Reconciliação não era um que ela estava esperando.
— Peço perdão se estávamos passando por um problema nas comunicações antes. Portanto, mais uma vez, peço: posso pedir a sua ajuda e cooperação, Emília Justina, como Heroína de Ente Isla? Prometo que não vim para lhe fazer mal.
Suzuno curvou a cabeça. Foi um gesto sincero, pensou Emi. Ela suspirou ao perceber o prendedor de cabelo vermelho-claro com uma flor de quatro pétalas em espiral. Tinha sido modelado a partir da família Cruciferae — as flores em “forma de cruz”. Então olhou para o relógio da estação.
— Vamos deixar essa conversa para depois que chegarmos em Shinjuku. Não quero me atrasar para o trabalho.
Com isso, ela partiu para a catraca.
— Ah… hmm, como?
Suzuno encarava as costas de Emi com olhos arregalados, talvez surpresa porque a Heroína colocou a seu dever de funcionário japonês na frente da sua verdadeira identidade.
— Ouça, esse é o tipo de país que o Japão é, entendeu? Vamos logo.
Emi, sentindo-se um tanto vitoriosa, colocou o cartão de tarifa no sensor e passou pela catraca.
— E-Espere um—ngh!
Ela virou-se para o som do gemido estranho da Suzuno.
— M-Me solte! Eu-Eu não posso me dar ao luxo de ser impedida aqui…
— …
Olhou para Suzuno, que tinha a ponta do cinto do quimono preso no portão fechado enquanto tentava seguir Emi pela catraca.
A ideia sobre a diferença cultural que elas teriam que superar e todo o problema associado que precisariam passar pelo caminho até Shinjuku fez Emi sentir uma profunda tristeza.
O que aconteceu com a Heroína Emília e Satan, o Rei Demônio, foi descoberto nos documentos que Olba deixou.
A partir deles, ela usou o sonar da Igreja para rastrear os traços de onda emitidos pela Prata Sagrada da Evolução, a ferramenta divina colocada dentro da Emília, a qual formava o núcleo da sua espada sagrada. Ela descobriu que estava procurando por outro mundo.
Também encontrou um pedaço do chifre que Emília havia cortado da cabeça do Rei Demônio na batalha final deles. Usando-o para tecer um pulso sonar especial que pudesse captar o padrão da magia demoníaca dele, ela mandou sinais para os confins do universo.
Os resultados mostraram uma presença concentrada de força demoníaca focada em uma certa área. Mas mesmo antes de descobrir com aqueles resultados, já tinha uma evidência mais incontestável em mãos.
Essa evidência, no entanto, não era algo que reportara ao santuário, pois, se o fizesse, seria fácil imaginar todo o júri de arcebispos morrendo de choque.
Aquilo chegou às suas mãos por uma coincidência completamente inesperada.
Enquanto analisava os documentos no escritório de Olba, uma transmissão chegou no Cristal de Vínculo que usava para formar vínculos mentais entre os mundos, o qual vinha do próprio Olba.
O vínculo foi carregado com ruído, mas ela ainda podia ver que ele estava vivo, confinado em um planeta estranho e sem habilidade para abrir um Portal, buscando por ajuda.
E enquanto soava bom demais para ser verdade, ela também prestou bastante atenção no que ele disse em seguida:
— A Heroína Emília juntou forças com o Rei Demônio e lutou ao seu lado.
— Servi a Igreja em sua tropa missionária… e agora me dói pensar que me considerei uma especialista em analisar os costumes das terras estrangeiras. Essa nação, o Japão, está muito além da minha fraca compreensão… Não há nada semelhante em Ente Isla… — Suzuno estava desconsertada.
O tumulto em sua mente começou no momento em que foi parada pela catraca na estação de Sasazuka. Ela comprou com êxito um bilhete, mas — ainda incapaz de saber a diferença entre um bilhete de papel e um cartão de tarifa com chip — foi cruelmente bloqueada mais uma vez depois de tentar balançar o bilhete sobre o sensor de toque.
— Você ainda se atreve a mexer comigo?!
Depois de gritar para a máquina, tropeçou no topo das escadas rolantes, e uma das sandálias de madeira voou. Isso foi seguido por ela respondendo de maneira educada ao anúncio do intercomunicador da estação, surpreendendo-se pela plataforma e perdendo o equilíbrio dentro do trem durante um labirinto de junções de trilho que precedia a última parada em Shinjuku.
Quando chegou ao destino, ficou maravilhada pelas multidões, confundiu a cruz vermelha em frente a um centro de doação de sangue com um posto avançado da Igreja e, quando chegou à superfície com segurança, ficou pasma de puro espanto com os inúmeros prédios, carros e seres humanos que a cercavam.
Quando finalmente chegaram no Sully, um café perto do local de trabalho da Emi, o rosto dela já estava sem vigor algum. A sobrecarga sensorial tinha se provado demais para ela mais do que depressa.
Sully, a propósito, era o nome do homem que fundou essa franquia, em um reino distante chamado “Washington”. Emi evitou mencionar isso, imaginando ser mais sábio limitar a extensão do choque cultural da Suzuno a uma nação por enquanto.
— Então… sobre o que estávamos conversando?
— Eu sei que você nunca viu uma TV antes, mas não acho que você deveria ter gritado “Ohhh, tem um homem dentro dessa placa na…”
— Por favor, pare de falar disso!
Suzuno bateu as mãos na mesa para declarar, e suas bochechas já estavam ficando coradas.
Para falar a verdade, ela havia feito uma pesquisa sobre as armadilhas japonesas, tais como: computadores, celulares e televisores. Entretanto, o choque ao ver tudo isso em pessoa foi algo que não conseguiu controlar, a julgar pela onda de exclamações cômicas que não fazia para alguém em particular.
— Os documentos que eu tinha em mãos indicavam algo maior e na forma de caixa! Se fosse assim, não teria me surpreendido tanto! É fácil o suficiente esconder uma pessoa dentro de uma caixa!
— O formato não importa tanto… e só para deixar tudo bem claro, não tem uma pessoa dentro.
Depois de pegar o copo de café gelado entregue na mesa delas, Emi tomou um gole para aliviar sua sede.
Suzuno pediu uma xícara de chá, mas não tinha ideia alguma de como usar a pequena xícara de creme sem lactose que veio junto, derramando todo o conteúdo no piso adjacente.
— Que tipo de “documentos” você tinha?
A pergunta estava presa na mente da Emi a manhã inteira. Dada as suas declarações sobre ter estudado a cultura local de antemão, o comportamento dela não se adequava ao Japão moderno.
— Aprendi que quimonos são a vestimenta japonesa tradicional, por isso estudei as fontes nas quais eles mais aparecem. Acho que pode chamá-las de “novelas de samurais”? Também vi diversos documentários de longa duração que descreviam a vida japonesa moderna. Pensei que pudesse confiar neles! Alguns vinham da era que, pelo que entendi, as pessoas chamavam de “anos cinquenta”!
Suzuno olhou para cima na tentativa de lembrar sobre as fontes principais que tinha.
— Bem, isso explica todo o arcaísmo pateta, eu acho. — Emi sorriu de maneira irônica para si mesma. — Ei, mas que novela de samurai você gosta mais?
Havia um traço de curiosidade na maneira que Emi usou para fazer a pergunta.
Ela era uma fã do gênero, afinal, mas ninguém que conhecia expressava o mínimo de interesse mútuo. Agora tinha esperanças de que enfim teria uma companheira para compartilhar dos mesmos gostos.
— Bem… gosto dos que estrelam o ronin nômade, tipo Oarashi Montaro, ou Leão Solitário e o Filhote, ou Três na Mira do Corte! Coisas como Vice-Shogun Mito ou Shogun Maníaco não fazem muito o meu gosto.
— Oh…
Em quase todas as formas, elas pareciam não ter nada em comum. Emi suspirou enquanto voltava ao assunto principal.
— Então… se me permitir voltarmos a Sasazuka por um momento… O que a chefe inquisidora do Júri de Reconciliação quer de mim? O que poderia ter feito você passar a ser vizinha do Rei Demônio?
Apesar da sua posição no Júri de Reconciliação, precisava ser dito que Suzuno não demonstrava sinais de ser uma assassina da Igreja em busca da vida da Emi… pelo menos até agora.
Mas que outro motivo teria para viajar pelo Portal, então? Emi observava Suzuno com atenção, deixando o ouvido bem aberto para qualquer coisa que ela dissesse.
— Bem, se eu fosse resumir para você… — Suzuno inclinou-se para frente, e o seu rosto não demonstrava sua tensão. — O meu primeiro objetivo era ter certeza se você estava viva ou não. Como segui a trilha de Olba Meiyer, as únicas pistas que descobri estavam relacionados ao Rei Demônio e suas atividades neste mundo. Portanto, pensei que, caso mantivesse os olhos no próprio Rei Demônio…
— A Heroína aparecia sem demora. Eu realmente caí nessa ratoeira.
Emi deu de ombros. Não havia outra forma de dizer isso. Foi anzol, linha e boia.
— Não existe maneira alguma para expressar minha tristeza pelos crimes deploráveis que Olba Meiyer cometera. A julgar pelo modo com que agiu perto dele antes de saber que eu também era uma Ente Islana, posso apenas concluir que a história dele sobre você forjar um pacto com o Rei Demônio foi completa invenção. As ações dele não refletem a posição coletiva da Igreja. Eu, pelo menos, espero servir como sua humilde aliada. — Suzuno inclinou-se vários centímetros para mais perto. — Agora, permita-me não enrolar mais neste assunto: quero que você derrote Satan, o Rei Demônio, e volte para Ente Isla comigo. Desejo provar que você está viva, expor os crimes do Olba e guiar a Igreja no caminho que ela deve seguir.
— Não.
— Isso… foi rápido demais!
Suzuno quase derramou o chá quando os seus cotovelos perderam a tração sobre a mesa.
— Você poderia ter pelo menos pensado um pouquinho só!
— Não. Não estou mais trabalhando com ninguém da Igreja.
Emi colocou um sachê de açúcar em seu café gelado, calmamente misturando-o com o canudo.
— Mas você prometeu trabalhar ao meu lado!
— Isso não conta. Prometi antes mesmo de saber quem você era.
— Você se importa tão pouco com a sua posição, com a reputação honorável que tem dentro de Ente Isla? Por que não voltar a ser como deveria ser?!
— Oh, como se eu me importasse com o que a Igreja e todos os outros reinos pensam.
Emi olhava pela janela do café enquanto ignorava com calma a Suzuno, que seguiu seu olhar.
— O que…?
Suzuno fez uma careta quando começou a perguntar. Emi a parou, apontando para a entrada do metrô de frente para a janela com os olhos.
— Você poderia fazer o favor de entender que não estou lhe dando as boas-vindas de braços abertos, se considerarmos que você trabalha para um grupo cujo os chefes forçaram um colapso em um túnel subterrâneo, com pessoas inocentes, apenas para matar a mim e o Rei Demônio? Você sabe que o Olba está aqui, certo?
— …
Sem palavras, Suzuno olhou para Emi, então para fora. Ela assentiu, mesmo que o seu rosto tivesse um não acredito nisso escrito nele.
— Não tinha ideia de que ele havia ido tão longe…
— Olba juntou forças com Lúcifer para destruir essa nação apenas para me matar. Emeralda e Albert também sabem disso, pois estavam aqui. Na verdade, você poderia perguntar ao próprio Lúcifer mais tarde. Sabe que é o Urushihara, certo? — Emi largou o copo e virou-se para Suzuno. — Também foi por isso que pensei que você fosse a agressora de ontem à noite. Mas, mesmo que não seja, não tenho intenção alguma de trabalhar ao lado de alguém do Júri de Reconciliação.
— Por quê…?
Emi foi rápida para responder.
— Porque a Heroína tem o dever de matar o Rei Demônio.
Isso soava como a mais óbvia verdade vinda da boca da Emi, o que parecia ter fortificado a vontade de Suzuno.
— Então, deixe eu me juntar a você! Viajei até aqui com a intenção de matá-lo, se assim fosse necessário.
— Esse é o meu trabalho, e apenas meu. Não se meta.
— Como pode dizer tais coisas…?
— Preciso mesmo soletrar para você? Você é umas das chefes no Júri — bem, sério, o Conselho de Inquisidores, certo?
Emi fez questão de corrigir-se no meio da frase, e Suzuno ficou em silêncio, sentindo a sua pressão sanguínea aumentando.
— Ouça, não sei o que você tem feito até agora, por isso peço perdão caso tenha machucado os seus sentimentos.
Ao perceber que Suzuno mostrava uma estranha confusão, Emi tentou aliviar um pouco o humor. Entretanto:
— Não quero que ninguém me ajude a derrotar o Rei Demônio e use isso para ganho próprio. Isso, pelo menos, espero que entenda.
Com isso, Emi olhou para o relógio na parede. Estava se aproximando da hora do seu turno no trabalho.
— Além disso, não sei por que você está os alimentando, mas quero deixar avisado: se continuar tentando mexer com eles com suas maneiras fofinhas assim, vão descobrir. Ele ainda é o Rei Demônio, entendeu?
— Aprecio o aviso…
— Vou matar o Rei Demônio por meus próprios motivos. Então, fique longe dele, pode ser? Volte para Ente Isla e fique tranquila, pois jamais deixarei qualquer um deles colocar os pés na nossa terra natal novamente.
Depois de pegar a conta, Emi levantou-se, pegou uma revista enrolada da sua bolsa de ombro e entregou-a para Suzuno.
— Claro, tenho certeza que você ainda está trabalhando no seu próprio itinerário, então pegue isso. É uma revista de vagas de emprego grátis. Peguei uma cópia na estação agora há pouco, mas tem várias outras como essa, por isso tente procurar um pouco por aí.
Suzuno, pasma, olhou para Emi, então para o logotipo fofo de porco no canto da capa da revista.
— Você vai querer ler isso se planeja ficar aqui por um tempo. Aprenda um pouco sobre o que as pessoas fazem para viver neste mundo. A sua maneira de falar e roupas não combinam nem um pouco, sabia? Tente se informar um pouco sobre moda. Veja as pessoas ao seu redor. Preciso ir trabalhar agora. Consegue voltar para casa sozinha, né?
Deixando a Suzuno de boca aberta para trás, Emi pagou a conta do café e saiu da loja.
Então, levou uma mão à testa e soltou um longo suspiro.
— Espero que ela tenha captado a mensagem.
Ela já tinha sobrevivido no Japão durante uma semana, no mínimo. Emi duvidava que essa dura rejeição seria o suficiente para levá-la ao desespero.
Diferente de Olba, já havia expressado um desejo de levar a Emi para casa. Isso foi o suficiente para convencê-la de que não faria nada para complicar a própria situação.
Foi uma manhã agitada. Emi se perguntava se o seu espírito poderia aguentar durante um turno inteiro. Talvez uma bebida energética fosse necessária. Não uma Energia Sagrada-5 β, mas sim uma de verdade.
— Oh! Ei, Emi!
Emi virou-se na direção da voz.
— Oh, bom dia, Rika…
Rika Suzuki, sua colega de trabalho, tinha acabado de chegar ao trabalho. Por enquanto, ela era a única pessoa no Japão com quem Emi tinha uma relação mais franca.
— Um cafezinho da manhã? Que raro.
— Pois é, bastante. Precisei me encontrar com alguém que conheço.
— Ooh! Um homem, talvez? Você quase nunca conversa sobre a sua vida pessoal, então…
— Ah, qual é, era apenas uma garota.
As duas amigas foram em direção ao trabalho, trocando outra conversa fiada digna dos dias de semana.
— Eu… eu sinto muito mesmo por isso! — Ao chegar ao trabalho, Maou foi cumprimentado pela Dullahan, sã e salva, e Chiho, que curvava a cabeça para ele como um louva deus.
Maou apenas riu, mas mesmo assim ela estava com o rosto vermelho e hesitando em olhar direto nos olhos dele.
Ao estacionar a Dullahan, ele juntou-se a Chiho no lado de dentro, buscando uma forma de acalmar o ego ferido dela.
— Hein…?
Ele fez uma careta enquanto olhava para a área de refeições. Até mesmo Chiho, ainda queimando com um carmesim de vergonha e constrangimento, percebeu que algo estava errado.
Maou normalmente chegava ao mei0-dia no trabalho. Graças à localização desse Mag — logo ao lado da estação de Hatagaya, entre uma área residencial e uma rua de escritórios — o rush do almoço já deveria ter começado. Hoje, no entanto, não havia um traço sequer de movimento.
Kisaki estava atrás do caixa, sorrindo. Atrás dela, um dos alunos de faculdade, que estava no turno da manhã, permanecia a uma distância respeitável, e o seu rosto estava mais branco que o de um fantasma. Isso foi o suficiente para contar a história toda a Maou.
A sua gerente sempre guardava aquele sorriso estampado para os dias em que as vendas estavam baixas.
— Hm, bom…
— Está tudo morto.
— … dia… Como é?
Se Maou já estava hesitante em falar antes, agora estava ainda mais preparado para continuar ao ouvir a voz endurecida da Kisaki.
— Faz seis horas que abrimos, mas estamos comendo a poeira do movimento da Sentucky.
— Hã?
— O nosso número de clientes está oitenta por cento menor do que ontem. Estou começando a pensar que aqueles malditos do SFC estão conspirando contra nós.
Mesmo se considerasse as circunstâncias, uma franquia rival ter aberto praticamente ao lado era uma acusação bastante selvagem. Essa queda de oitenta por cento não era algo comum — um dia de “folga” ou o clima errado lá fora poderia ter feito toda a diferença —, mas Kisaki estava absolutamente convencida de que o Sentucky estava por trás disso.
— Por quê…? Por que eu tenho que voltar ao escritório por causa do treinamento logo hoje?!
Kisaki gritou para o salão vazio diante dela, e manteve o seu sorriso contínuo. Os funcionários da manhã tremeram de medo.
— Me dá pesadelos apenas imaginar isso, mas, caso os nossos clientes continuem nesse ritmo o dia inteiro…
O olhar mortal da Kisaki passou por Maou, Chiho e, então, pelo resto da equipe. Nunca antes o sorriso de uma mulher bonita emitiu ondas tão gélidas de medo pela espinha deles.
— Você quer ser mandado para a Groenlândia? Hein? Está ouvindo, Supervisor de Turno, Sadao Maou?
— Não, senhora.
O Rei Demônio nunca imaginou como um sapo se sentia sendo observado por uma víbora, mas agora sim.
Agarrando os ombros de Maou do outro lado do caixa, os olhos da Kisaki brilhavam como os de um predador em busca de sangue.
— Então você tem a minha permissão total para fazer o que for preciso. Destrua o SCF.
— Sim, senhora!
Chiho e o resto da equipe se juntaram a Maou em uma saudação militar rígida.
“O que for preciso”, é claro, significava que qualquer maneira, dentro do senso comum, estava permitida para aumentar as vendas do MgRonald, e não um varrimento físico do SFC do mapa.
Mesmo no pico do almoço, o movimento falhou em chegar àquilo que qualquer um chamaria verdadeiramente de “rush”. O novo Sentucky Fried Chicken, enquanto isso, estava bombando nos negócios. Ficava bem óbvio, mesmo quando visto do outro lado da rua.
Até mesmo o sorriso alegre emanado pela estátua do Major Fyres, o velhinho amigável que decorava a entrada de cada uma das franquias do Sentucky em forma de estátua, parecia um sorriso zombeteiro, retorcido e fantasmagórico para ele.
Quando Kisaki saiu do restaurante, o olhar furioso em seus olhos fez valer o seu apelido não oficial: “O Demônio das Vendas”. Maou tentou revidar com qualquer meio que tivesse à disposição.
Um serviço mais íntimo, sem ser muito agressivo com os clientes. Uma cabina de shake do lado de fora, energizada por um freezer extra. No fim, um funcionário na frente falando sobre a atual oferta de café à vontade do MgRonald. Maou pediu tudo isso e ainda mais de Chiho e do resto da equipe. Até mesmo se aventurou do lado de fora algumas vezes, gritando até ficar rouco enquanto tentava atrair clientes para dentro.
Mas os esforços foram em vão. O recibo de caixa das duas da tarde revelava o número de clientes setenta por cento menor em comparação ao dia anterior.
— Bem, ótimo. Se conseguimos isso no primeiro dia…
Maou falou em voz alta o que Chiho e a equipe já tinham em mente.
O espaço de refeições não ficou completamente sem clientes, mas não havia como esses números apaziguarem o rancor fervescente da Kisaki contra o Sentucky Fried Chicken.
O frio provido pelo ar-condicionado ligeiramente hiperativo foi o suficiente para lembrar a toda equipe sobre a Groenlândia. Isso não ajudou a aquecer o coração deles.
— Bem-vindo!!
Maou foi o primeiro a falar quando a porta automática se abriu, revelando um novo cliente. Ele pegou o caminho mais curto até o caixa.
— Olá. Peço perdão por interrompê-lo, mas eu poderia falar com a gerente?
Era um homem baixo e magro que usava óculos escuros um pouco grande demais, com linhas bem definidas emoldurando o seu rosto. A maleta em sua mão indicava que era um homem de negócios, mas entre a sua estatura compacta e os óculos comparativamente grandes, ele se parecia mais com uma criança vestida como um chefe qualquer de um filme da yakuza dos anos 70.
Maou já tinha memorizado os nomes e rostos de todos as gestões que funcionavam na localização de Hatagaya. Esse deveria ser algum negócio externo.
Com a gerente fora, cabia ao gerente assistente e supervisor de turno, Maou, lidar com isso. Ele caminhou até o homem diante do caixa enquanto o funcionário perto dele lançava olhares furtivos para aquele cliente inesperado e o seu pedido.
— Peço perdão, senhor, mas a nossa gerente não está aqui hoje. Meu nome é Maou e sou o atual supervisor de turno. Se me permitir, ficarei feliz em ouvir o que teria a dizer.
O homem ergueu as sobrancelhas.
— Ah, Sadao Maou? Soberbo. Ouvi os rumores sobre você.
Ele podia estar abaixo da linha de visão de Maou fisicamente, mas havia algo no seu comportamento que fez Maou se sentir como se tivesse ficado muito abaixo daquilo de repente.
— Apesar do nome, dizem que é um trabalhador diligente, um talento superior, um líder pensativo e, acima de tudo, uma fonte de gentileza humana.
— Er, sim… aprecio isso, senhor.
O que ele queria dizer com “apesar do nome”? As pessoas diziam de vez em quando a Maou que o nome dele parecia um tanto fora de moda para um jovem no século vinte e um, mas ouvir esse homem, que nunca tinha encontrado antes, fazer uma observação tão franca o deixou um tanto confuso.
O que também o deixou confuso era o estranho cheiro forte de menta que percebeu ao redor do homem que ali estava. Devia ser algum tipo de desodorante ou colônia, mas um cheiro artificial tão intenso era o suficiente para impedir o trabalho na cozinha por ali.
— Peço perdão, mas já nos encontramos antes?
E, antes disso, de onde que ele ouviu sobre o Maou, só mais um funcionário de meio período de lanchonete?
— Não, não nos encontramos. — O homem baixinho mostrou um sorriso largo. — No entanto, já estou ciente da sua existência há muito tempo.
Esse era um daqueles clientes, não é? Maou teve problema para enxotar o pensamento mal-educado da sua mente.
Então, o homem se animou, lembrando-se de algo repentinamente.
— Ah, mas que falha a minha. Aqui, deixe-me me apresentar.
Ele pegou uma carteira de metal do bolso interno, removeu um cartão e entregou-o. Maou assentiu para ele e pegou com ambas as mãos e, então, congelou ao ver o cargo que estava marcado nele.
— O… gerente do Sentucky Fried Chicken?
Uma onda de murmúrios nervosos surgiu entre os membros da equipe do MgRonald.
— O meu nome é Mitsuki Sarue. Pensei que deveria me apresentar aos novos vizinhos.
O homem que se chamava Sarue ria levemente enquanto coçava a cabeça.
— Peço perdão por falhar em visitá-los antes. Estamos tão ocupados com tudo ultimamente, sabe.
Maou conseguiu sentir uma faísca na fiação emaranhada em sua mente.
— Hatagaya é uma vizinhança tão maravilhosa, não acha? Situada entre uma zona residencial e uma de negócios. Ótimas multidões de clientes em potencial. Mulheres encantadoras para todo lado. Devo elogiar a visão do MgRonald ao se estabelecer aqui primeiro!
— Hã…?
Chiho, atrás de Maou, estava com dificuldades para acreditar no que via.
— Mesmo assim, finalmente consegui uma folga agora, durante o nosso próspero dia de abertura, para fazer uma visita. E é uma coisa boa também, já que parece que não estou atrapalhando nem um pouco no momento!
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