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O Paladino Viajante – Vol. 01 – Cap. 01.1

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Havia um anjo diante dos meus olhos.

Ele era um garoto, seu cabelo castanho-amarelado estava um pouco bagunçado, seus olhos azuis eram esverdeados, e seu rosto possuía uma cor saudável.

— Então… este sou eu.

Encontrei um velho espelho de mão numa prateleira de ferramentas em um canto do templo. Ansioso pela chance de ver minha própria aparência, me estiquei e agarrei com as duas mãos. Achei que eu era mais bonito do que esperava.

Pensando melhor, provavelmente não deveria ser surpreendente que eu fosse mais bonito do que a maioria das pessoas, já que era uma criança. Todos são 100% mais fofos durante a infância. Mesmo homens barbudos que parecem durões eram pequenas coisas adoráveis ​​quando você olha seus álbuns de fotos da infância.

— Sim… — Gentilmente coloquei o espelho de volta. Apertei minha mão, em seguida abri. Apertei de novo e depois abri.

Uma mão pequena, macia e gordinha. Minha mão.

Um ano e alguns meses se passaram.

Para minha surpresa, depois do dia em que aceitei meu nome e corpo atual como meu, a sensação de que meu corpo não estava funcionando como deveria desapareceu completamente. Memórias de como controlar meu corpo antes de minha morte desapareceram. Agora, eram esses pequenos membros que reconhecia como meus. Minha mente e meu corpo estavam operando em uníssono.

Não demorei muito para aprender a cambalear, e consegui falar, ainda meio desajeitado, mas dá para o gasto. Eu havia dedicado o último ano à constante caminhada e aprender palavras e pronúncias falando com Maria e os outros.

Vira e mexe ainda caía de cara no chão. Provavelmente por causa do tamanho da minha cabeça em proporção ao meu corpo minúsculo. Também pode ter algo a ver com meu campo de visão, senso de equilíbrio e músculos não desenvolvidos. Como queixa adicional, eu ainda possuía um baixo limiar de dor. Como se pode imaginar, eu chorava toda vez que caía.

Mas estava progredindo pouco a pouco. O progresso esperado de uma criança, talvez, mas progresso é progresso. Eu havia pelo menos evoluído da fase de rastejar e chorar para alguém que poderia frequentar o jardim de infância ou creche. Então, achei que era hora de tentar o próximo desafio.

Eu decidi viver neste mundo. Queria um corpo do qual pudesse me orgulhar, e queria estudar e aprender uma coisa de cada vez. E assim, primeiro na lista era…

 

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— Hmm, você disse que quer aprender a ler?

Estávamos em uma das muitas salas menores que ficavam no fundo do templo. Ela tinha paredes de pedra, uma pequena cadeira de madeira e escrivaninha, e até mesmo uma cama aparentemente confortável colocada em uma alcova da parede.

Um velho excêntrico, com olhos penetrantes e nariz adunco, estava diante de mim de braços cruzados e acariciando sua mandíbula. Seu corpo ectoplasmático, coberto por um manto frouxo, era meio transparente. Suponho que se chamaria de espectro? Um espírito, como dizem. Sabe, um fantasma.

— Sim. Por favor, Gus. — Seu nome era Augusto, tecnicamente, mas Maria e todos os outros o encurtaram.

No momento, eu estava pedindo a ele que me ensinasse a ler. Para falar a verdade, existia muitas coisas mais importantes que queria perguntar a ele. Este mundo, por exemplo, ou minhas estranhas lembranças.

Mas, qualquer pergunta que uma criança como eu pudesse fazer, seria inevitavelmente recebida com uma resposta igualmente primitiva, usando um vocabulário grosseiro. Alguém daria uma explicação sobre astronomia, sobre física e teoria da fusão nuclear depois que uma criança perguntasse “por que o sol brilha?”? Geralmente não. Sua resposta seria algo como: “O senhor Sol está fazendo o melhor para nos dar luz e nos manter aquecidos.”

Eu realmente tentei fazer algumas perguntas rápidas sobre o mundo, mas todas foram ignoradas. Ainda era cedo demais para essas perguntas. Essa conversa teria que vir depois que eu acumulasse uma certa quantidade de conhecimento acadêmico, e depois que fazer com que os outros me vissem como alguém que pudesse manter uma conversa aceitável.

— Hmm, leitura. Leitura. Eu serei franco. Se isso não me der dinheiro, não estou nem um pouco interessado. Você é jovem demais para isso mesmo, garoto.

— Mas eu quero aprender.

— Muito jovem. Xô, xô. — Ele acenou preguiçosamente para mim com a mão.

Ao contrário de Maria, a múmia, que cuidava de mim em todas as oportunidades, e Sanguinário, o esqueleto, que passava muito tempo comigo, o fantasma chamado Gus me tratava com indiferença. Ele não pensava em me esnobar, e se eu perguntasse qualquer coisa sobre ele, costumava a me rejeitar irritantemente.

Ele era obstinado e às vezes arrogante, e geralmente difícil de se aproximar. Mas apesar de todas as suas falhas, não havia dúvida em minha mente de que ele era o mais inteligente dos três. Da sua dicção às suas frases, senti que ele era bastante educado.

— Mas eu quero aprender.

— Eu ouvi você da primeira vez.

— Vamos! Eu quero aprender! Por favooooooor! — Eu comecei a fazer birra, como a criança que era. Quando foi a última vez que eu implorei a uma figura parental como essa? Pelos velhos tempos, comecei a me divertir um pouco com isso. — Por favor! Por favor, por favor, por favor! Vamos, Gus! Por favorzinho?! — Eu me senti como uma criança. A idade do meu corpo provavelmente estava atrasando meu estado mental. Isso fazia sentido, parando para pensar. Meu cérebro também era o de uma criança. Mas então, por que minha consciência e percepção pareciam tão adultas?

Percebendo que pensar muito profundamente sobre isso me deixaria perdido no labirinto formado por meu cérebro, mente e alma, decidi não entrar nisso e apenas me lamentar.

— Pelos deuses! Tudo bem, tudo bem! — Depois de murmurar alguma coisa sobre crianças, Gus suspirou e olhou para mim.

— Você realmente dá trabalho. Então você quer aprender a ler?

— Sim. — Eu realmente não entendia a escrita deste mundo.

— Hmmm… Bem, então, uma coisa de cada vez… — Gus estendeu a mão em direção à estante de livros e um livro flutuou em sua direção.

Psicocinese? Bem, os fantasmas eram uma coisa, claro, porque não. O paranormal havia deixado completamente de me surpreender recentemente.

— É melhor você aprender as letras. — Ele abriu o livro em uma lista de letras que se assemelhava a um alfabeto. Mas…

— Não, este está bom.

— Está bom? O que tem de bom?

— Eu posso ler esse. — Eu entendi essa parte. Eu já morava neste templo há mais de um ano, rodeado de relevos, olhando as fotos e o texto gravados neles enquanto ouvia todo mundo conversar.

Comparar a frequência dos diferentes sons da fala com a frequência das letras nos textos me deu uma compreensão básica. A pronúncia de “E” era a mais frequente, seguida de “A” e “T”, então comecei com essas e o resto foi fácil.

Então, eu já podia ler isso.

— Como? — Gus olhou para mim.

— Eu já posso lê-los.

— O que diz aqui?

— Diz: “As pétalas vibrantes de uma flor perfumada, carregadas pelo vento. O mundo, como a minha vida, está sempre mudando.” Certo?

Melzinho na chupeta.

— Sanguinário ou Maria te ensinaram isso?

— Não. Eu escutei todos conversando, olhei para as letras, e descobri por mim mesmo. — A vida no templo não era muito animada, e havia um limite para o quanto podia me mover por causa do meu corpo juvenil. Tive um tempo infinito para pensar, então gastei nisso, usando-o como um quebra-cabeça para afastar o tédio.

— Will… — Por um tempo, Gus pareceu ficar imerso em pensamentos, e então ele dirigiu uma pergunta para mim com um tom sério. — O que é que você está tentando aprender, então?

— As gravuras legais e complicadas nos deuses e outras coisas.

Pelo que decifrei das inscrições em várias partes do templo, as letras deste mundo eram um alfabeto de fonogramas. No entanto, nos relevos dos deuses e em outros lugares semelhantes, personagens pictográficos complexos apareciam de repente. Aqueles eram os que eu não entendia. Quais eram eles e como eu deveria lê-los? Ou eles estavam simplesmente lá para decoração?

— Ah, as Palavras da Criação. Elas são usadas ​​nas magias antigas.

— Criação… Magia… — Agora estamos falando de criação e magia, hein.

— Hmm… Por onde começo?

— O começo, — respondi.

Demais era melhor que muito pouco. Fui abençoado com uma boa memória. E, de qualquer forma, se eu não conseguisse lembrar de tudo, poderia perguntar de novo quantas vezes fosse necessário.

— Fique à vontade, então. Isso vai demorar um pouco. Nós começamos há muito, muito tempo, mais tempo do que você pode imaginar, quando o mundo estava apenas começando. Naquela época, o mundo ainda era um pote de caos espesso e fervente, onde a Grande Mana rodopiava com o calor e era incapaz de manter uma forma.

Eu não esperava que ele começasse com a Criação.

— Estamos… estamos começando por isso?

— Estamos começando por isso. — Ele estava falando sério.

— No caos, o Primeiro Deus apareceu de um lugar desconhecido, e disse: ‘Que haja terra’ e mana solidificou aos seus pés, e se tornou a terra, e mana se diluiu acima de sua cabeça, e se tornou os céus. E assim os céus e a terra se separaram. Nós chamamos esse Deus simplesmente de ‘o Criador’ ou ‘o Progenitor’, porque um nome verdadeiro nunca foi dito.

Senti que o que eu ouvi possuía uma certa semelhança com as narrativas da criação no cristianismo e na mitologia grega.

— Depois disso, o Criador pronunciou as Palavras e gravou os Sinais, fez o sol e a lua, separou o dia da noite e juntou água para separar os oceanos e a terra. O fogo nasceu, o vento nasceu, as árvores nasceram. Os deuses nasceram, e pessoas e animais nasceram. E quando o Criador fez o mundo e ficou satisfeito com sua beleza, ele disse a si mesmo, sem pensar, que era ‘bom’. Mas, fazer algo ‘bom’ é também fazer algo ‘mal’, assim como solidificar o solo também é criar os céus. E foi assim que a malícia e os deuses do mal nasceram. O Criador tentou recuperar sua palavra, mas nem mesmo os deuses puderam devolver uma palavra à boca que a proferiu. Os deuses malignos que nasceram no mundo mataram o Criador, e assim a vida e a morte nasceram. E depois disso começou a era de muitos deuses e muitas lendas. — Gus fez uma breve pausa.

— As palavras e sinais usados ​​nesta história da criação são as Palavras da Criação, — finalizou.

Ah, então foi assim que tudo nasceu.

— Então são as palavras que fizeram o mundo?

— Isso mesmo. Estas Palavras e Sinais… Bem, vamos chamá-los de letras. Palavras e letras têm poder.

Poder, hein?

— O que é que elas podem fazer?

— Hmm, deixe-me ver… — O dedo de Gus dançou no ar. Uma misteriosa fosforescência residia na ponta de seu dedo e deixava para trás uma trilha enquanto se movia, desenhando dois pictogramas complexos e fluidos no ar. Seu dedo desacelerou, cuidadosamente e deliberadamente, adicionando o último ponto do segundo símbolo.

— Uou! — Eu dei um passo para trás. As letras desenhadas no ar tinham se transformado subitamente em uma chama que queimava com um vermelho brilhante. A chama ficou pairando no ar e pude sentir seu calor. Era fogo de verdade.

— O bastante para uma demonstração, não é? — Gus murmurou baixinho um ou dois versos rítmicos melódicos. A chama ardente desapareceu completamente, como se tudo fosse só uma ilusão.

Fiquei encarando, encantado.

Era magia. Não um truque! Magia real. Este mundo tinha magia.

Surpreendente. Muito surpreendente. Eu estava genuinamente animado com o que acabou de ser mostrado.

Você pode perguntar qual é o grande problema depois de fantasmas, múmias e esqueletos reanimados, mas eu diria que um sistema de magia apropriado é uma coisa totalmente diferente do horror e elementos sobrenaturais.

— Isso foi o suficiente para você? Desenhar os pictogramas para Ignis define fogo para existir naquele lugar, e o ar instantaneamente entraria em combustão. Se você falar a Palavra de Erasure para extinguir o fogo, as chamas desaparecerão. É isso que quero dizer com as Palavras da Criação e o que é mais comumente chamado de magia.

O que me veio à mente, então, não era “magia”, como eu vi em jogos de computador, mas em seus romances de fantasia mais antiquados. Não simplesmente outra habilidade para ser casualmente lançada se você tivesse pontos suficientes para gastar, mas um dos segredos mais antigos do mundo, para nunca ser manuseado sem cuidado premeditado.

Essa era a atmosfera que esse velho fantasma transmitia naquela sala de pedra mal iluminada enquanto falava com orgulho de poderes misteriosos.

— É importante entender que as Palavras da Criação são coisas inconvenientes. Seu poder é um obstáculo para a escrita e a fala. Foi o próprio uso das Palavras pelo Criador que criaram os deuses do mal que também tomaram a Sua vida.

Sim, sem brincadeira. Mesmo tomar notas seria um esforço arriscado se o papel pudesse se queimar em um instante apenas escrevendo “fogo”. Isso seria inconveniente ao extremo, e seria uma obstrução ao avanço da civilização. Atrapalharia até mesmo o cotidiano das pessoas comuns.

— Em consideração a isso, o deus do conhecimento de um olho, Enlight, selecionou vinte consoantes e cinco vogais. Para que as Palavras da Criação não exercessem seu poder, ele simplificou os caracteres e suas pronúncias, e criou a linguagem corrompida que chamamos de Língua Comum.

Entendi. Para fazer uma analogia com o japonês, as Palavras da Criação seriam os caracteres complexos do kanji. Escrevendo o kanji descuidadamente era perigoso, e poderia fazer com que o fogo entrasse em erupção e as coisas explodissem. Para evitar isso, um deus sábio simplificou os caracteres e fez o outro conjunto de caracteres japoneses: o kana, que representa os sons.

Havia diferença em que a Língua Comum utilizava caracteres fonêticos, não silábicos. Era mais como um alfabeto do que o kana, na verdade.

De qualquer forma, eu agora entendia que esses caracteres não eram de uma família linguística completamente diferente, e não foram simplesmente lançados para propósitos simbólicos. Eles pertenciam à mesma língua, semelhante ao modo como o japonês era uma mistura de kanji e kana.

— O que você estava lendo era a Língua Comum, e o que você não podia ler eram as Palavras da Criação, escritas nos Sinais dos deuses, e usadas para as grandes magias dos tempos antigos. As inscrições ao redor do templo foram escritas para não serem ativadas. Algumas foram mexidas, outras intencionalmente colocadas em lugares e outras ainda incorporadas a projetos elaborados.

Entendo. Se corromper os símbolos impedia que eles ativassem, então fazia sentido que você pudesse inscrevê-los de uma forma errada o suficiente para ainda poder identificar o original.

Eu me perguntava por que eles precisavam ir tão longe para registrar as Palavras da Criação, mas quanto mais eu ouvia, mais eu sentia que entendia.

— As Palavras da Criação levam o homem para mais perto de Deus do que a Língua Comum, veja você. É lógico que as Palavras devem ser gravadas em um templo para reverenciar a Deus e orar. Você entende isso?

— Sim, eu entendo. — Assenti com a cabeça repetidamente. Isso fazia todo sentido.

— Hmm. Tudo bem, Will, que tal isso? Para começar, sabe por que as Palavras carregam esse poder? — Gus fez a pergunta com um sorriso no rosto.

Então, o que Gus estava tentando me fazer pensar aqui era…

— Assim… como achamos que um banquinho é um banquinho, certo? — Eu perguntei. — Hmm… — Eu tive a sensação de que li sobre isso em algum lugar. Era algo que eu tinha ouvido mesmo no meu mundo anterior, em um lugar onde eles falavam sobre percepções, representações e conceitos.

Basicamente, quando olhamos para um banquinho de madeira de quatro pernas, não importa de que cor é ou de que tipo de madeira é feito, pensamos: “Isto é um banquinho.” Pensamos isso mesmo que os banquinhos não sejam, em tudo, idênticos. Dentro de nossas cabeças, categorizamos colocando um rótulo de “banquinho” nele.

Nós normalmente não percebemos isso como “quatro pernas e uma tábua”, nem pensamos “mesa”, mesmo que uma mesa tenha quatro pernas e uma tábua. Além disso, se vemos uma pessoa sentada em um banquinho, não pensamos “uma combinação de madeira e um humano”. Pensamos nisso como “um banquinho e um humano”.

É claro que é possível ver os banquinhos como “quatro pernas e uma tábua” em vez disso, se tentarmos olhar de forma diferente, ou até mesmo como “uma massa de fibras de madeira”. Também somos capazes de distinguir “este banquinho” e “aquele banquinho”, distinguindo coisas diferentes na mesma categoria.

Em todo caso, o que se resume a isso é que nós colocamos esses rótulos que chamamos de “palavras” para as coisas. Isso nos permite categorizar esse mundo caótico, conceitualizá-lo e dividi-lo em partes para facilitar a percepção. Não seria possível sobrevivermos sem essa habilidade.

A linguagem é o poder que separa o mundo do caos indistinto, assim como no mito da criação que acabei de ouvir.

Era hora de eu resumir meus pensamentos desconexos.

— É porque as palavras são o que separam partes do mundo e definem a forma que é, — eu disse.

Gus pareceu muito surpreso com a minha resposta. Seus olhos se arregalaram e sua boca se abriu e fechou.

Eu olhei para baixo com culpa.

O espanto de Gus me fez sentir mais vergonha do que orgulho.

Por eu ter memórias da vida que uma vez vivi, eu possuía conhecimento, ainda que superficial, que deveria ser impossível para uma criança como eu alcançar. Isso me fez sentir como se estivesse trapaceando um pouco.

Se “talento” fosse um presente que você teve desde o nascimento, então talvez essas minhas memórias contassem como um talento. Mas ainda parecia errado.

Gus voou para fora da sala, passando pela parede. Ele localizou Maria e Sanguinário no salão principal, e antes mesmo de alcançá-los, ele desatou uma chuva de gaguejos:

— O-o-o-o… o garoto pode ser quase tão talentoso quanto eu!

Comecei a me sentir cada vez mais desconfortável.

— Bom. Aconteceu alguma coisa, Velho Gus?

— Oh, Maria, esse menino! Por que, eu…

Eu observei à distância enquanto Gus contava animadamente o que acabou de acontecer. Com seus braços espectrais azuis pálidos gesticulando loucamente, ele explicou como minha capacidade de formar um argumento era extraordinária para minha idade, como eu era perspicaz, como a capacidade de entender a verdadeira natureza de alguma coisa equivalia ao talento mágico…

Maria, a múmia, ouviu atentamente.

— Realmente.

Quanto a Sanguinário, o esqueleto, ele estava encostado em uma parede, olhando em outra direção. Ele não parecia estar interessado.

— Se nós o treinarmos cedo em algumas coisas, ele pode realmente ser bom em alguma coisa! Pessoalmente, eu prefiro não pegar lixo do chão, mas talvez esse garoto seja diferente. Ele poderia…

Eu travei.

— Velho! — A voz soou como um chicote, antes que eu tivesse tempo de formar um pensamento.

Era Sanguinário, ainda na parede. Chamas azuis pálidas rugiam em suas órbitas oculares vazias.

— Pare de baboseira. O garoto tem apenas alguns anos. O que você acabou de dizer é demais.

Eu sabia que Sanguinário estava olhando para ele.

— Ele foi encontrado no chão! Estou errado? Eu não queria me envolver com ele.

— Não é essa a questão.

— Agora que eu sei que ele tem algum talento, não estou dizendo que não vou lhe ensinar uma coisa ou…

— Ainda não é essa a questão. — Sanguinário deu um passo em direção a ele.

Para mim, parecia que uma aura invisível envolvia todo o seu corpo. Eu realmente não estava ciente disso até este momento, mas Sanguinário era muito grande. O mesmo que as pessoas queriam dizer quando falavam “que ossos grandes”.

— Ei…

Mesmo apenas observando de longe, eu podia sentir minha pele formigar pela força do avanço de Sanguinário.

— Ouça, Velho Gus. Eu sei que é da sua natureza falar assim. Não vou me incomodar tentando mudar você depois de todo esse tempo. É isso que faz de você quem você é. Mas você não deve chamar o garoto de ‘lixo’ quando ele puder ouvir. Até você deve ser capaz de imaginar como ouvir isso deve fazê-lo se sentir. — Sanguinário olhou para mim, então olhou de volta para Gus.

Eu não podia acreditar no que estava vendo.

— Mgh…

O arrogante e fanático Gus estava sendo dominado. Isso apesar do fato de que normalmente era Sanguinário quem era repreendido pelos outros dois por sua atitude irresponsável de “vou fazer”.

— Se você quiser participar da criação de Will, será bem-vindo. Você pode ser excêntrico onde nenhum de nós possa ouvir você. Mas se você vai ensiná-lo, faça um favor ao garoto e pare com essas coisas. Isso soa justo para você?

Gus ficou em silêncio por um tempo. Então, assentindo lentamente e suspirando, ele aceitou a culpa e recuou.

— Você está certo. Foi uma observação impensada. Eu serei um pouco mais atencioso no futuro. Desculpe, Will.

— Hum, tudo bem…

Eu nunca tinha visto esses dois assim antes. Seguindo o fluxo, decidi dizer algo para mudar a situação. Tive que fazer um show para que todos pudéssemos seguir em frente.

— Hum, está tudo bem, Gus. Não se preocupe com isso. — Eu não conseguia pensar em nada melhor para dizer.

Ouvindo isso, Sanguinário também se acalmou e inclinou a cabeça ligeiramente em direção a Gus em pedido de desculpas.

— Passei dos limites também. Não deveria ter ficado agressivo com você de repente assim. Desculpe. Podemos deixar isso de lado?

—Hm. — Gus assentiu. — Sua falta de etiqueta não é novidade. Esqueça isso.

— Ei, Maria, vou pegar Will emprestado por um segundo.

Maria estava olhando para os dois com sua habitual expressão pacífica.

— Sim, tudo bem. Gus, você se importaria de me contar um pouco mais?

— Will, venha para fora um momento.

— Tu… tudo bem — Eu realmente não conseguia entender o significado do que tinha acabado de acontecer. Tudo aconteceu muito rápido. Mas eu tinha certeza de uma coisa.

Sanguinário ficou furioso e ele ficou assim por mim.

 

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As ruínas da cidade estavam tão bonitas como sempre.

O sol da manhã brilhava no lago.

— Uh, então… Will.

E sentado no morro, olhando para esta visão gloriosa: um esqueleto.

A incompatibilidade era fenomenal.

— Você provavelmente não sabe nada sobre isso, porque você está aqui desde que consegue se lembrar, mas… — Sanguinário arranhou seu crânio, como se hesitasse em explicar. As chamas azuis pálidas em suas órbitas balançaram. — Você pode ver, certo? Que é diferente de mim, de Maria e do velho Gus.

— Uh… Sim. Eu sei. Eu sou o único que é quente e respira.

— Sim, isso. É complicado. Muito complicado…

Eu estava obviamente ciente de que havia algumas circunstâncias incomuns por trás de onde eu vim. Uma cidade em ruínas, os mortos-vivos e, no meio disso tudo, uma única criança humana viva. Não era nada natural.

Gus disse que eu fui “pego”, então talvez eu fosse uma criança abandonada ou algo assim. Maria era o tipo maternal, então talvez ela me aceitasse, e Gus era contra isso ou algo assim. Eu poderia fazer todos os tipos de palpites, mas no final das contas, não saberia a verdade até que isso fosse explicado para mim. E…

— Agora… não é a hora.

— Sim.

Não era uma surpresa para mim. Nenhum adulto respeitável diria a uma criança da minha idade que ele foi adotado, ou tentaria explicar toda a história complicada para ele, não importa quão inteligente ele parecesse ser para sua idade. Você manteria em segredo.

Sanguinário encolheu os ombros suavemente. De repente, percebi que a razão pela qual Sanguinário ficou bravo com Gus pode não ter sido apenas por ser tão imprudente em relação a uma criança, mas também porque ele falou sobre o meu passado.

— Ah, e sobre Velho Gus. Não fique muito bravo com ele, tudo bem? Quando ele fica animado, ele é, sabe, ele não pensa antes de falar. Mesmo quando não está empolgado, ele não ‘considera a escolha das suas palavras’ em primeiro lugar.

— Sim. Está tudo bem. Eu não sou louco. Apenas me surpreendeu um pouco. — E a razão pela qual sua raiva era tão feroz também poderia ter sido para me distrair.

Antes de entender completamente o que Gus quis dizer com “lixo do chão” e começar a pensar mal dele, Sanguinário causou uma cena e me deu outra coisa para pensar.

― Hmm. Você tem um grande coração, Will. É bom ser grande. Que tal isso. Quando seu corpo ficar tão grande quanto seu coração, e você tiver idade suficiente para absorver tudo, eu juro que vou lhe contar todas as coisas que não posso contar agora.

— Sim, claro.

Era tudo por mim.

Agora que pude entendê-lo, descobri que Sanguinário estava sendo surpreendentemente compassivo comigo.

Sanguinário é incrível, pensei. Eu já havia tratado outras pessoas assim antes de morrer? Eu tinha conseguido ser assim? Minhas lembranças eram vagas, mas achei que a resposta provavelmente era não. Quase nunca? Não, nunca e ponto final. Esse pensamento fez meu peito apertar.

— Sanguinário?

— Sim?

— Hum, obrigado. Por tudo. — Eu não podia agradecer muito bem. Ele merecia mais.

— Hahah! Não se preocupe com isso. — As chamas em seus olhos brilharam. Eu não conseguia ler as expressões de um crânio, mas senti como se ele estivesse sorrindo calorosamente para mim.

Ele bagunçou meu cabelo e se levantou.

— Tudo bem. Vá falar com Gus e aprender sobre escrita e magia, e tudo mais. No final do dia, aquele velho é um maldito de um ótimo feiticeiro. Apesar de tudo isso, ele é um zeni. — Chacoalhando sua mandíbula em gargalhadas, Sanguinário acrescentou:

— Ah, eu acho que você não sabe o que é zeni. Certo… — E gargalhou mais algumas vezes.

— Ah, e se o velho te ensinar, então também farei a minha parte! Eu tenho uma tonelada de coisas para te ensinar! Estou ansioso para isso!

— Sim! O que você vai me ensinar, Sanguinário? — Agora eu estava curioso. Sanguinário não parecia realmente o tipo acadêmico.

— Hm… Violência.

Como é?

— Violência. Como realmente ficar furioso. E como treinar seus músculos, eu acho?

— Huh?

— É útil.

O quê?

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— Quando Sanguinário era vivo… — Maria começou, sentada ao meu lado em um banco no salão principal do templo.

— Uh, quando ele estava vivo? Então, espere, isso significa…

— Sim. Nós não éramos assim, sabe. Aconteceram… muitas coisas. Sim, muita coisa aconteceu para as coisas terminarem assim. — Maria sorriu um pouco tristemente.

Eu não conseguia perguntar o que havia acontecido. Claro, mesmo se eu conseguisse, ela provavelmente teria evitado a pergunta.

Ainda assim, parecia algo importante para se ter em mente. Os três nem sempre foram esqueleto, múmia e fantasma.

De acordo com as lembranças de minha vida anterior, o padrão para essas coisas era que os mortos foram arrastados por seus arrependimentos e apegos. Nesse mundo seguiu essa fórmula, ou houve algum outro motivo?

Devido à minha idade, eu ainda tinha muito pouco acesso à informação e não podia dizer nada com certeza. Decidi não me envolver em conjecturas e evitar quaisquer pré-conceitos estranhos.

— Quando ele era vivo, ele era um guerreiro.

— Um guerreiro?

— Um guerreiro. Significa uma pessoa que luta em batalhas com uma arma. Garotinhos adoram esse tipo de coisa.

Então este lugar tinha um sistema social arcaico o suficiente para uma profissão como essa existir. Depois de ver as ruínas daquela cidade, eu tinha esse mundo atrelado àquele estágio de desenvolvimento, mas isso confirmou que o conflito entre os seres humanos estava presente aqui também.

Se eu estava planejando viver neste mundo, e estava, parecia que provavelmente seria do meu interesse aprender a lutar.

— Sanguinário realmente era forte, sabe? Ele era muito experiente e altamente qualificado. Ele começou lutando com outros humanos e depois mudou para criaturas selvagens, bestas, goblins, mortos-vivos, gigantes, semidragões, demônios, “quem quiser um pedaço de mim”, mais ou menos isso.

— Huh, — Eu respondi preguiçosamente, e então travei. — Hum, Maria?

— Pois não?

— O que você disse?

— Ele começou lutando com outros humanos e depois mudou para criaturas selvagens, bestas, goblins, mortos-vivos, gigantes, semidragões, demônios…

Espera, espera, espera. Eu não estava prestes a tirar conclusões precipitadas. Afinal de contas, não era necessariamente o caso que estes eram os mesmos tipos de monstros dos quais me lembrava, certo?

— Outros humanos, eu entendi… O que são os outros?

— Oh! — Ela riu. — Sinto muito, que idiotice minha. Eu nunca expliquei para você, não é? Como você poderia saber? — Ela pensou por um momento. — Deixe-me ver… acho que havia um livro ilustrado que continha todos eles na sala do Gus.

Ela segurou minha mão e caminhou comigo até a pequena sala de pedra de Gus. Gus não estava lá, mas Maria parecia perfeitamente à vontade entrando na sala e pegando emprestado o livro sem perguntar.

— Aqui está. Estas são criaturas selvagens. Lobos famintos, leões, cobras gigantes… — As ilustrações mostravam uma variedade de animais familiares. Familiar, é claro, apenas como parte do conhecimento que eu tinha desde a minha morte, e apenas dos documentários que tinha visto na TV. Eu mal podia conter minha “alegria” em assisti-los novamente.

— As bestas são criaturas extremamente agressivas e violentas.

— Entendi.

— Quanto aos outros… Você aprendeu como as lendas começaram de Gus, certo? O Criador, primeiro de todos nós, benevolentemente fez todos os tipos de seres, mas também criou a propensão para o mal. No final, foram os deuses maus que o Criador fez que provocaram a própria morte do Criador. Então, os deuses maus criaram diferentes tipos de servos de acordo com suas naturezas. — Maria lentamente virou a página.

— Os servos do deus da tirania, Illtreat, são chamados de goblins.

A página mostrava algo como… Eu não sei, talvez um oni? Havia uns pequenos inconfundivelmente astutos e de aspecto cruel, e grandes e musculosos que pareciam mais ogros.

— Então também tem os servos de Dyrhygma, deus das dimensões. Eles são os demônios, que vêm do inferno…

Demônios e criaturas de pesadelos preenchiam a próxima página. Humanos com cabeças de pássaros, aranhas que tinham crescido numerosos braços no lugar de pernas, seres perturbadores que eram uma mistura confusa de partes humanas e animais.

— E os mortos-vivos, que são os servos do deus da morte, Stagnate…

Zumbis, esqueletos, fantasmas e múmias.

Mas eu não consegui ter nenhuma impressão de inteligência dos mortos-vivos nas páginas do livro ilustrado.

— Nós fizemos um contrato com o deus da morte,— ela murmurou. — A força de nossas vontades no momento da morte levou a nossos contratos com Stagnate e aos corpos que temos agora. Somos traidores das forças do bem. — Suas palavras pareciam terrivelmente sombrias e tão tristes.

— O que aconteceu? — Eu não pude evitar, mesmo sabendo que não havia nada a ganhar com a pergunta.

— Heheh… muita coisa. Me desculpe, isso não é algo que uma criança como você deveria se preocupar. — Maria sorriu. Forçadamente.

Ela se recompôs e continuou.

— Os deuses bons também têm servos, é claro. Existem elfos, anões, halflings… Todos os tipos de raças.

Maria

— Também existem raças neutras poderosas, como os gigantes e os dragões. Alguns são seguidores dos deuses bons e alguns são seguidores dos deuses maus. É um mundo grande e amplo, e há muitas raças por aí. Os listados neste livro são apenas os mais conhecidos.

Ela havia deliberadamente mudado de assunto, e eu percebi que não tinha intenção de voltar.

Então eu joguei junto com ela. Não tinha como obter informações dela, já que não queria compartilhar. Não haveria nenhum ponto em começar um escarcéu por causa disso.

— Então este mundo é… muito perigoso?

— Sim. As coisas eram relativamente pacíficas quando eu estava viva, mas não sei agora. Acho que, muito provavelmente, as coisas ficaram muito piores.

A falta de delicadeza me chocou. Eu não sabia o que a fez pensar isso, mas eu já estava preocupado.

— Eu preciso ficar forte?

— Eu descansaria melhor se você ficasse. — Suas palavras eram gentis, mas elas pesaram muito sobre mim.

Decidi não poupar esforços para me tornar mais forte. Pelo jeito, só os durões poderiam sobreviver neste mundo.

Ao mesmo tempo, senti que era meu dever não esquecer o que os três mortos-vivos haviam me sugerido sobre suas próprias circunstâncias. Mesmo agora, eles estavam se esforçando para me transformar de alguém completamente impotente para alguém com a força para sobreviver. Meus pais uma vez fizeram o mesmo por mim, e o que eu lhes dei em troca? Como eu me lembrava, nada além de preocupações e problemas.

Eu esperava que desta vez, quando tivesse idade suficiente, pudesse retribuir o favor.

 


Tradução: Erudhir

Revisão: Kakasplatt e Merciless

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