POV CECILIA SEVER
O cheiro de fumaça acionou alarmes na minha mente e deixei cair o feixe de lã que estava manuseando antes de correr para a cozinha. Meu quadril bateu na mesinha e me virei tarde demais para pegar a lâmpada, que tombou de lado e se quebrou no chão irregular.
Soltando um suspiro, decidi limpar os cacos da lâmpada depois de tentar salvar o jantar e continuei em direção à pequena cozinha ao ar livre, onde uma panela borbulhava violentamente, soltando fumaça preta. Cuidadosamente enrolei a mão, afinal, já sabia bem como era segurar um cabo de ferro quente com as mãos nuas, e levantei a panela pesada do elemento de aquecimento solar, colocando-a na mesa. Os pés de ferro deixaram pequenas marcas pretas na superfície de madeira.
Mordendo o lábio para não suspirar de novo, peguei uma concha de madeira e mexi a sopa, esperando que não tivesse queimado muito, mas sabendo que teríamos que comê-la de qualquer jeito.
Mexi a sopa por mais um ou dois minutos para evitar que o ferro ainda quente a queimasse ainda mais, depois desenrolei minha mão e peguei a lâmpada rachada. Olhando-a com pesar, saí pela porta, mas parei no batente para me virar e olhar para a pequena casa.
— Lar… — falei, a palavra soando estranha em meus lábios. Nenhum outro lugar jamais havia se ajustado a essa palavra antes, mas a pequena cabana, bem fora da cidade, com sua energia caprichosa e problemas intermináveis de manutenção, parecia realmente um lar.
Sorri enquanto descia os três degraus de tijolos até o chão e marchava ao redor da parede externa da cabana por um caminho de cascalho gasto que era mais terra do que pedra.
A cabana dava vista para uma curva de um dos muitos rios artificiais que circundavam a cidade, seu fluxo constante de água fresca sendo fruto de bombas e comportas em vez de gravidade. Uma fina fileira de árvores perenes alinhava a margem do rio. Um cais desativado se projetava da borda de nossa propriedade na água corrente, mas nunca conseguimos obter a licença para um barco a remo para aproveitá-lo.
Entre mim e o rio, de joelhos na terra rochosa de onde tínhamos removido grama e ervas daninhas, estava Nico. Por um momento, vi-o não como ele era, mas como tinha sido; tanto o garoto que eu lembrava quanto a face sombria que usou naquela outra vida.
O pensamento me fez balançar a cabeça, tonta, como se tivesse levantado rápido demais e visto estrelas. Era difícil manter tudo em ordem. Ainda mais fácil era tentar não lembrar. Contudo, às vezes os pensamentos voltavam para mim, e eu não conseguia evitar pensar nisso. Eu tinha tido uma vida aqui na Terra, como o Legado. Aquela versão minha tinha vivido uma existência curta e torturada antes de ser apagada por minhas próprias ações.
Meus olhos se fecharam, e tive que tomar cuidado para não respirar rápido demais. Perigando afundar nas ondas das memórias que vinham em seguida, mordi minha bochecha com força e abri os olhos novamente, depois comecei a correr colina abaixo em direção a Nico. A visão daqueles outros Nicos tinha desaparecido. Ele era ele mesmo de novo. Embora seu cabelo ainda fosse escuro, seu rosto era suave e amável e seus olhos gentis. Apenas olhar para ele fazia minha ansiedade diminuir.
Ele olhou para cima. Havia uma mancha de terra escura, ou talvez fosse fertilizante, na ponta de seu nariz e em sua bochecha. Não pude evitar sorrir ao ver aquilo.
— É exatamente o que eu temia — disse ele, abrindo um sorriso em resposta ao meu. Quando olhou de volta para o chão, porém, a expressão desapareceu, sendo substituída por uma carranca pensativa. — Este solo é horrível. O rio aqui não está funcionando há tempo suficiente para irrigar de verdade a terra ao redor, além de ser muito rochoso. — Ele passou os dedos pela terra, mordendo o lábio. — Ainda assim, acho que conseguiremos fazer funcionar.
— O jantar está pronto — falei rigidamente. Sabia que ele não diria nada sobre estar queimado, mas não conseguia parar de pensar nisso. — A menos que… bem, poderíamos ir até a cidade? Comer algo bom? A sopa vai durar alguns dias.
Nico se levantou e limpou as mãos nas calças sujas.
— Você queimou, não é? — perguntou.
Soltei um gemido de desânimo.
— Não sei o que aconteceu. A panela estava no fogo e eu simplesmente me perdi… — lamentei.
— Eu sei — disse ele consoladoramente. De repente, ele estava bem na minha frente, e seus braços fortes me puxaram em sua direção sem esforço.
Pressionei meu rosto na curva do seu ombro e comecei a tremer.
— Eu sei — repetiu, passando a mão pelo meu longo cabelo castanho-acinzentado. O detalhe ficou preso na minha cabeça. Castanho acinzentado, não cinza prateado. — Está acontecendo comigo também — murmurou Nico, me abraçando mais forte. — Penso em algo e, quando percebo, uma hora se passou e não me mexi. Acho que… — Ele engoliu em seco, e suas mãos deslizaram pelos meus braços até seus dedos se entrelaçaram com os meus. — Acho que pode ser o que quer que Grey tenha feito.
O que quer que Grey tenha feito.
Forçando um sorriso brilhante, apertei as mãos dele e o puxei para longe do jardim degradado.
— Vamos, vamos para a cidade.
Ele me olhou com desconfiança.
— É seu único fim de semana de folga no mês, Cecilia. Você sabe que, se formos para a cidade…
— Prometo que não vou te arrastar para lá, tá bom? — Pisquei os olhos para ele, suplicante.
Rindo, ele me puxou até que seu braço estivesse passando sobre meus ombros, nossos dedos ainda entrelaçados.
— Melhor eu tomar um banho e vestir minhas roupas de sair, então.
Apoiei-me nele, com um sorriso brilhante.
Depois de prontos, tinha uma caminhada de vinte minutos até a estação de trem, onde podíamos pegar uma carona até o distrito de atividades. Conversamos sobre onde comer e se poderíamos comprar ingressos para um filme antigo no cinema retrô ou talvez até dar uma passada no escritório de licenciamento para uma permissão de carro ou barco, mas era só conversa. Ambos sabíamos que as finanças simplesmente não permitiam nada além da viagem de trem e um jantar econômico para dois.
Depois de embarcarmos no trem de levitação magnética e nos acomodarmos, ficamos em silêncio. Eu pude perceber que Nico estava se perdendo em alguma memória perturbadora pelo modo como seu sorriso vacilou e seus olhos desfocados se encheram de tristeza. Queria saber o que ele estava pensando, mas não queria interromper. Não, isso não era bem verdade. A verdade era que não queria compartilhar qualquer memória sombria que surgisse. Eu tinha minha própria cota dessas memórias, e, às vezes, o cheiro de sangue e carne queimada engoliam tudo. Parecia covardia, mas eu não tinha forças para suportar parte do fardo de Nico.
Ainda assim, apertei sua mão e encostei minha cabeça em seu ombro, estando lá para ele quando voltasse.
— Há quanto tempo estamos aqui? — Ele perguntou de repente, sua bochecha encostando no topo da minha cabeça.
— O que você quer dizer?
— Aqui. — Ele gesticulou vagamente ao nosso redor. — Esta vida. Este mundo.
— Nico, nós estamos… — Interrompendo-me, afastei-me e coloquei uma perna no assento para poder me virar e encará-lo. — Nós dois nascemos neste mundo. Nos conhecemos desde que éramos crianças no orfanato. Nós… temos uma vida inteira de memórias juntos…
Ele assentiu distraído, seu foco ainda em outro lugar.
— Eu sei. Eu lembro de tudo, mas… não sinto que aconteceu comigo. Outras coisas, eu mal consigo lembrar, como minha infância em Alacrya… — estremeci com a menção ao outro mundo — …mas isso ainda parece real. Aqui, minha memória de tudo o que aconteceu antes de comprarmos a propriedade e finalmente nos mudarmos juntos, o casamento, tudo… é tudo tão claro, mas parece…
— Como uma vida vivida por outra pessoa — concluí por ele, passando meus dedos por seu cabelo escuro.
Ele lançou um breve olhar para minha expressão, depois olhou para suas mãos inquietas em seu colo.
— Eu só queria entender o que aconteceu. Eu lembro da caverna, Agrona, eu… — Ele engoliu pesado e fechou os olhos. Sua respiração saiu em um tremor tenso. — Eu morri, Cecil.
— Não — falei de forma firme, agarrando suas mãos e puxando-as para o meu colo, forçando-o a se virar e encontrar meu olhar. — E mesmo que tenha morrido, não importa. Eu também morri, lembra? Tudo o que importa é que estamos aqui, juntos. Não há Legado, nem luta para ser reis, nem o peso esmagador do destino sobre nossos ombros. Podemos simplesmente viver. Juntos. Seja o que for que Grey fez, de alguma forma nos colocou aqui.
Um pequeno sorriso triste floresceu no rosto sério de Nico.
— Não acho que foi Grey. Bem, talvez o poder dele, mas não acho que ele escolheu esta vida para nós. — Quando o encarei sem entender, ele revirou os olhos. — Foi você. Esta vida, esta imagem na qual fomos colocados com todas essas memórias perfeitas, é exatamente do jeito que você sempre quis. Isso não pode ser coincidência. Tem que ter sido você.
— Eu não sei…
Uma parte de mim sabia que eu não tinha vivido todas as memórias que tinha dessa vida. Era uma nova reencarnação, mas em vez de sermos colocados em um novo corpo, que exigiria que tomássemos o controle de alguém, Grey de alguma forma nos colocou em nossas próprias vidas, nossos próprios corpos. Eu havia pesquisado eventos anteriores e confirmado que meu duelo com Grey ainda havia ocorrido e aquela versão de mim tinha morrido lá. Isso não tinha sido desfeito. Seu tempo como rei, as guerras que ele liderou, sua morte repentina e inesperada neste mundo, tudo estava como sempre fora.
Eu não entendia, mas o poder que usou nos escreveu na existência como se sempre estivéssemos aqui. Começamos exatamente onde eu imaginei: em uma pequena cabana à beira do rio, apenas pessoas normais vivendo da melhor forma que podiam. Sem Legado, sem mana, nem mesmo ki. Nós éramos apenas… comuns.
Perfeitamente comuns.
Houve um sinal sonoro e o trem de levitação magnética começou a desacelerar visivelmente. Dei um sobressalto ao perceber que estávamos sentados em silêncio há um bom tempo.
— Desculpe, eu…
— Eu sei — respondeu Nico, apertando minha perna em compreensão.
Descemos no distrito de atividades e caminhamos por várias ruas da cidade, onde nos sentamos silentes em um dos nossos restaurantes favoritos e desfrutamos de uma refeição simples, mas deliciosa… e que não estava queimada. Quando estávamos terminando, meu comunicador tocou, informando que alguém estava tentando me contactar. Tinha sido um luxo ser equipada com um dispositivo de comunicação móvel, mas com meu trabalho, parecia necessário.
Olhando com culpa para Nico, pressionei o botão na pulseira de controle para atender a chamada.
— Diretora, sinto muito incomodar você. — Minha assistente, Evie, disse imediatamente. Ela parecia aflita. — Aparentemente houve um problema com uma das contas, e há dois funcionários aqui do escritório da cidade.
— Na hora do jantar de um sábado? — perguntei incrédula, mas não esperei por uma resposta. — Por sorte, já estou na cidade. Posso chegar aí em vinte minutos.
Nico me observava atentamente, com a expressão cuidadosamente neutra. Ele não ficaria chateado com meu fracasso em cumprir minha promessa, mas sabia que me provocaria impiedosamente sobre isso.
— Muito obrigada, diretora — disse Evie, soltando um suspiro de alívio. Ouvi ela passar a informação aos funcionários.
— Vejo você em breve. — Desconectei a chamada e lancei a Nico meu melhor olhar de desculpas. — Desculpe, é algo oficial, tenho que…
Ele levantou uma mão para interromper o restante do meu pedido de desculpas desnecessário.
— Você sabe como me sinto sobre o que você faz. Aqueles garotos… todos no orfanato, são sortudos por terem você, e, para ser honesto, você precisa deles quase tanto quanto eles precisam de você. Você é a melhor diretora que poderiam ter.
— Exceto pela diretora Wilbeck — dissemos simultaneamente. Ainda estávamos rindo levemente enquanto pedíamos a conta.
Tradução: NERO_SL
Revisão: Crytteck
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