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O Começo Depois do Fim – Cap. 446 – Uma Gaiola Aberta

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Lojas e pousadas voltadas para os ascendentes passavam em ambos os lados enquanto me movia sem propósito pela via principal. Fui puxado de volta à minha primeira incursão nesse microcosmo da cultura alacryana, cada aspecto dela tão hiper focado, lembrando-me da tentativa mal pensada do bandido de me assaltar, do meu encontro com “Haedrig” e do meu eventual, e infeliz, encontro com os Granbehls.

É uma pena que tudo isso tenha sido construído sob o comando de Agrona, por nenhuma outra razão além de sua própria busca por poder, pensei, comparando mentalmente a cultura dos ascendentes com os aventureiros de Dicathen. Este lugar poderia ter sido realmente fantástico. No entanto, mesmo enquanto pensava nisso, percebi que a ideia por trás das ascensões estava muito distante da intenção original dos djinn para trazer uma visão real do funcionamento interno das Relictombs.

Afinal de contas, não se estuda um livro arrancando suas páginas.

Reconhecendo a melancolia de meus pensamentos sem foco, voltei intencionalmente para a próxima tarefa da minha lista.

Seris estava pronta para falar comigo. No entanto, parecia importante ver meus companheiros antes e, embora não tivesse encontrado Caera, sabia que já era hora de saber o que Seris havia planejado para seu povo.

Depois de fazer o check-in no Dread Craven, a pousada fortificada que se tornou a base de operações da própria Seris, recebi instruções de um guarda para ir a uma torre específica para a qual Seris costumava se retirar quando precisava pensar, mas não queria se desconectar das pessoas sob seus cuidados.

Fiquei surpreso quando encontrei a torre em questão, esperava que fosse o símbolo de status de algum rico alto sangue ou talvez uma torre de guarda intimidadora. Em vez disso, encontrei um silo simples escondido no canto mais distante da zona, em meio a prédios que pareceriam mais adequados para o primeiro nível entre as áreas industrializadas.

Uma escadaria de metal nu subia em espiral pelo lado de fora da estrutura de sete metros de altura, podia sentir a assinatura de mana de Seris no topo, parada.

O metal soou e rangeu enquanto eu subia e, quando cheguei ao topo do telhado plano, Seris estava me observando. Ela usava vestes escuras e esvoaçantes, ela estava com uma expressão distante. A princípio,  não disse nada, apenas acenou para que eu fosse até onde ela estava, olhando para as Relictombs.

Seguindo sua sugestão, não falei, apenas observei a vista enquanto ela o fazia.

As Relictombs pareciam diferentes daqui de cima. O céu falso não conseguia manter a ilusão quando você podia ver toda a zona espalhada ao seu redor, parecendo mais o interior de uma cúpula pintada do que o próprio céu, com as bordas não se alinhando corretamente com o solo e os edifícios.

Com exceção de alguns parques, quase toda a zona foi construída, dando a ela um ar condensado e claustrofóbico quando visto de cima. Até mesmo os complexos de alto sangue pareciam pequenos e apertados desse ângulo, o tamanho e a grandeza eram uma ilusão cuidadosamente construída.

Meus pensamentos devem ter transparecido em meu rosto, porque o olhar de Seris percorreu lentamente a cidade enquanto dizia:

— Como um recinto de feras de mana, cuidadosamente projetado para disfarçar o fato de que seus residentes estão, na verdade, presos em uma gaiola.

Sabia que ela estava falando de mais do que apenas as Relictombs, era todo o modo de vida dos alacryanos que os prendia. Uma ilusão de escolha sobreposta à outra, enjaulando-os completamente e, ao mesmo tempo, fazendo-os se sentirem livres.

— O que vai parecer se você abrir as portas da gaiola? — perguntei, encostado em uma grade que envolvia o teto do silo.

— É isso que pretendo descobrir — respondeu ela. Balançando um pouco, ela me deu um meio sorriso de desgosto e se abaixou no metal frio, segurando-se no corrimão para se apoiar. — Esperava permitir que minha força retornasse completamente, mas…

Eu me sentei ao lado dela.

— A mensagem de Agrona…

— Sim. — Ela ficou olhando para a área por vários segundos antes de continuar. — Sua oferta, e ultimato, pressionará aqueles que apoiam minha causa, especialmente aqueles que ainda não estão aqui. Dizem que quando as rachaduras são formadas, a ferida é tratada. Alacrya já viu deuses sangrarem e implorarem por misericórdia. Isso se inflamará em suas mentes e corações e, mais tarde, quando for necessário escolher entre morrer por seu Alto Soberano ou viver por si mesmo, mais pessoas escolherão a si mesmas do que o fariam de outra forma.

Observamos quando um homem com o uniforme preto e carmesim de funcionário das Relictombs saiu de um dos prédios próximos por uma porta nos fundos. Ele fechou a porta atrás de si e se encostou na parede, afundando nela enquanto seu corpo, minúsculo à distância, soluçava.

— O Legado é, ao que parece, exatamente o que Agrona disse que seria — disse Seris suavemente, enquanto observava o homem à distância, sua expressão curiosa, mas não indiferente. — Eu pensei que, talvez, Agrona ainda não a havia enviado para as Relictombs porque não queria que ela fracassasse tão publicamente mais uma vez, mas agora acho que entendo seu verdadeiro motivo.

Quando Seris não continuou imediatamente, a cutuquei gentilmente, dizendo:

— Quais você acha que são as verdadeiras intenções dele, então?

— Receio que a divisão de Alacrya tenha caído nas mãos dele — disse ela severamente. — Suspeito que desejava que esse portal entre nosso mundo e Epheotus fosse aberto. Ajudamos a fazer com que ele parecesse vulnerável, garantindo que os dragões finalmente entrassem em ação.

— Mas era isso que você queria, certo? — Eu disse, lembrando-me de seu discurso para os alto sangues sobre seu grande objetivo. — Agrona e Kezess estão trabalhando para superar um ao outro. Enquanto isso, temos que descobrir como garantir que nosso povo, tanto os Dicathianos quanto os Alacryanos, sobreviva à guerra que se aproxima.

Ela roeu as unhas enquanto eu falava, mas congelou quando pareceu perceber o que estava fazendo e, em seguida, abaixou as mãos lentamente.

— Sim, será importante que ambos continuem achando que estão em vantagem. Conheço Agrona melhor do qualquer um, mas você entende Kezess Indrath muito melhor do que eu. Você acha que ele pode ser convencido a limitar o escopo de sua guerra contra Agrona?

— Ele quer algo que, por enquanto, só eu posso lhe dar: uma compreensão mais profunda do éter. — Fiz uma pausa, observando enquanto o homem chorando ao longe levantava, se limpava e voltava pela porta por onde havia aparecido. — Contanto que ele possa me manter como amigo com o mínimo de esforço ou sacrifício de sua parte, ele o fará. Entretanto, não tenho dúvidas de que, assim que a equação mudar, ele trairá qualquer promessa que tenha feito com a mesma rapidez. Não, só se pode confiar nele para fazer o que o deixará mais perto do que ele quer.

— Agrona e Kezess são muito parecidos nesse aspecto, então. Apesar de qualquer fragmento de sabedoria que esses asuras possam ter adquirido em suas longas vidas, seu egoísmo e autoconfiança inerentes são uma fraqueza que teremos que explorar. Por exemplo, agora estou firmemente convencido de que Agrona está intencionalmente colocando você e Cecilia um contra o outro. Pareceria insensato para nós que ele arriscasse seu maior trunfo em uma briga sem sentido com você, seu adversário mais forte além dos próprios asuras, mas Agrona é um cientista em sua essência e opera em um cronograma de séculos, não de dias. O que são alguns meses de guerra civil ou dezenas de milhares de vidas perdidas para esse ser? Se ele puder aprender algo novo sobre mana, ou éter…

— Ela disse algo sobre ele querer meu núcleo — lembrei. — Acho que finalmente consegui chamar sua atenção, afinal.

Seris tamborilou os dedos na grade de metal.

— Kezess quer drenar o conhecimento de sua mente, enquanto Agrona quer dissecá-lo e ver como você funciona. Não é uma posição invejável, mas confio que você é forte o suficiente, ou se tornará forte o suficiente, para lidar com essa pressão. E isso nos dá uma oportunidade. Se Agrona vai continuar enviando o Legado atrás de você, isso significa que terá outra chance de derrotá-la.

Minha mente foi forçada a voltar mais uma vez para minha batalha com Cecilia. Apesar dos pequenos insights que obtive, sabia que passos maiores eram necessários. Não, não só passos, mas saltos. Agora era necessário encontrar a terceira pedra-chave o mais rápido possível e obter informações sobre as runas divinas contidas na terceira e na quarta relíquia. Não podia mais esperar, e nada mais tinha prioridade.

Exceto que…

Havia muito mais a fazer, tantas pessoas que estavam confiando em mim para protegê-las. Como todas as pessoas que estão presas nesta zona.

Embora as forças leais de Agrona sob o comando de Dragoth não tenham conseguido penetrar nos portais blindados que separam este nível do primeiro, não podia ter certeza de que Cecilia não fosse capaz de fazê-lo. Tudo o que sabia era que, se alguém podia, era ela. O que significava, como disse Seris, que Agrona havia optado por não mandá-la para cá, permitindo que a situação continuasse, apesar de potencialmente ter meios para impedi-la.

Assim como em Dicathen.

Perdemos a guerra para um exército composto principalmente de escravos e soldados comuns. Foi necessário apenas o envolvimento de algumas Foices para garantir nossa derrota. As Assombrações de Agrona, até mesmo um único esquadrão, poderiam ter demolido nosso continente em uma semana, e nem mesmo as Lanças teriam sido capazes de lutar contra eles. Ele tinha os meios, mas, em vez disso, criou uma sensação de conflito, permitindo que nos imaginássemos em uma batalha que poderíamos vencer, quando a realidade não era nada disso.

Não éramos cordeiros para o abate. Tínhamos sido peixes numa rede.

— Uma questão de perspectiva — murmurei.

Seris assentiu enquanto fechava os olhos e esfregava a ponta do nariz, apoiando-se em um braço.

— Sim, eu também acho. Uma peça de teatro cuidadosamente coreografada, embora que não para nosso benefício. No entanto, não lhe darei mais crédito do que ele merece. Não imagino que sua aparição e suas ações no Victoriad tenham sido parte do grande plano dele. Nunca o vi tão irritado como quando você sumiu debaixo do nariz dele.

Eu sorri, e Seris deu uma pequena risada. Ela se balançou um pouco ao fazer isso, e a risada desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. Quando ela virou para o lado, tentando ficar mais confortável, eu me virei também, colocando minhas costas contra as dela.

Ela ficou rígida, claramente pega de surpresa, mas depois relaxou lentamente e se acomodou em mim, de modo que o peso de nossos corpos se apoiasse um no outro.

— Não vou culpá-lo por nossa situação atual, mas eu poderia, você sabe — disse ela, com um humor irônico em suas palavras.

Olhei para o céu azul, observando o éter atmosférico se mover de acordo com seus próprios caprichos estranhos ao nosso redor.

— Foi isso que a retentora Lyra pensou. Que você havia iniciado a rebelião para forçar o olhar de Agrona para casa e me dar tempo para retomar Dicathen. Você se arrepende disso sabendo que provavelmente era exatamente isso que ele queria?

— Não — disse ela sem hesitar. — Como eu disse, ferimos sua imagem. Uma questão de perspectiva, como você disse. Até mesmo um pequeno ferimento pode mudar o curso de batalhas futuras inteiras. E também não posso permitir que você receba esse crédito, Arthur Leywin. Apenas adaptei as coisas para frente, não inventei todo esse movimento apenas para seu benefício.

Dei uma risada e meus ombros se moveram contra os de Seris. Eu podia sentir cada uma de suas respirações passando por mim, mas nós dois estávamos confortáveis, relaxados. Isso era estranho. Havia poucas pessoas com quem eu poderia ter tido essa conversa e me sentido tão à vontade. Era difícil imaginar que eu já a tinha visto arrancar os chifres da cabeça de um Retentor, um que havia derrotado Sylvie e eu juntos, tão facilmente quanto arrancar as asas de uma mosca.

O cenário da dinâmica do poder mundial havia mudado significativamente desde então, ou pelo menos a minha posição nele havia mudado.

Não mudou? Pensei subitamente, inseguro. Meu crescimento e sucesso foram apenas mais uma dança ao som de Kezess e Agrona, ou havia algo mais nisso?

É o Destinooooo… — Regis se intrometeu de repente, com a palavra arrastada como se tivesse sido dita por uma aparição fantasmagórica.

Não, pensei com firmeza. Sou eu, minhas próprias ações, minha própria força. Meu controle sobre o éter e meu status de mago quadra-elementar antes disso, não era uma maquinação dos deuses, do destino ou de qualquer outra coisa. Trabalhei para alcançar, desenvolvi minha força de uma forma que talvez ninguém mais neste mundo pudesse ter, eu…

Depois disso, considerei meus próprios pensamentos. Só consegui utilizar os quatro elementos porque reencarnei com minhas memórias de vidas anteriores intactas. E, embora tenha sido minha própria força de vontade que forjou o núcleo de éter, ainda não sabia realmente como tinha ido parar nas Relictombs. Olhando dessa forma, era difícil negar qualquer influência de algum poder além do meu controle, até mesmo o destino…

Regis me deu o equivalente mental de um aceno de cabeça agradecido.

Com certeza. No entanto, você teve uma estrutura de apoio muito boa, o que permitiu que aproveitasse ao máximo suas habilidades naturais e as oportunidades que lhe foram apresentadas. Por exemplo…

Eu sei — pensei, reprimindo um pequeno sorriso. — Nunca me faltou propósito, e muito disso veio das pessoas ao meu redor, como minha família.

Ah, que droga — pensou Regis, lendo a intenção por trás de minhas palavras tão facilmente quanto ouvindo as palavras em si.

Seris se encolheu contra minhas costas, ficando ligeiramente tensa.

— Mas agora, Arthur, sou eu que preciso de sua ajuda. Porque já decidi o que meu povo fará em seguida. — Esperei, dando-lhe o tempo necessário para formular as palavras. — Todos os meus projetos para as Relictombs falharam. E mesmo se não tivessem, não posso mais ter certeza de que manterei o Legado afastado quando Agrona finalmente decidir soltá-lo sobre nós. — Ela demorou um pouco, respirando profundamente, considerando suas palavras antes de falar. — Não estou pronta para destruir os portais. Isso é tanto um golpe contra as próprias pessoas que trabalho para ajudar, como contra Agrona. As gerações futuras podem depender deste lugar de maneiras que ainda não podemos compreender. Por isso, vou me retirar das Relictombs.

Eu já esperava isso. A ajuda de Regis para segurar os escudos foi uma solução temporária, na melhor das hipóteses. Além disso, sem suprimentos constantes do primeiro nível e do mundo exterior, nenhuma população poderia viver no segundo nível por um longo período de tempo.

— E é aí que eu entro?

— Embora não force ninguém a me seguir para fora daqui, levarei quem quiser ir para Elenoir, para os desertos onde você baniu os soldados alacryanos em Dicathen.

Demorei um pouco para digerir isso, tomando cuidado para não fazer meu julgamento imediato. Por dentro, não queria convidar ainda mais alacryanos para as costas de Dicathen, mesmo esses, mas minha disposição não era nem mesmo o maior problema.

— E você quer ajuda para resolver isso com os dragões.

— Exatamente — disse ela com um suspiro. — Preciso que você fale em meu nome. Convença os dragões, o próprio Kezess, se for preciso, a permitir, mas não só isso. Pode ser que Agrona decida que isso é definitivo e se mova contra nosso povo em Elenoir. A proteção dos dragões também é necessária.

Eu me virei um pouco, olhando para a parte de trás da cabeça de Seris, que estava inclinada para a frente. Tive a impressão de que seus olhos estavam fechados.

— Essa ação também o coloca em posição de construir uma aliança, talvez até mesmo de boa fé. Isso o aproximaria um pouco mais do ouvido de Kezess, o que é necessário se você pretende continuar alimentando o conflito entre os dois.

O peso de Seris desapareceu de minhas costas quando ela se levantou. A cautela se dissipou quando ela me olhou imperiosamente e vi novamente a mulher que me salvou de Uto há tanto tempo.

— Pretendo ajudá-lo a fazer isso, Arthur.

Depois de me levantar também, fui eu quem olhou para ela.

— O que precisamos fazer então?

 

Separador Tsun

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— Aqui. — Eu disse, entregando a Cylrit meu tempus warp.

Ele examinou a carcaça externa reparada antes de colocá-la no chão ao lado do que Seris havia trazido, as duas únicas permitidas nas Relictombs, pois representavam a maior ameaça de intrusão do lado de fora.

— Você conseguiu consertá-lo?

A rachadura estava selada e, fisicamente, estava em ótimo estado; havia usado Réquiem de Aroa nela como preparação para a viagem. O que não consegui, no entanto, foi substituir a magia que havia sido gasta dentro dele. Depois disso, o artefato em forma de bigorna seria pouco mais do que um pedaço de metal.

Expliquei e ele assentiu como se já esperasse isso.

— Não é de se admirar. Os dispositivos em si não são fabricados, mas recuperados de peças de relíquias antigas djinn, como os portais de teletransporte. Eles são finitos, como os artefatos dimensionais.

Pisquei surpreso, pois não sabia disso. Mentalmente, fiz uma anotação para conseguir um tempus warp para Gideon e Wren para que pudessem confirmar o que Cylrit havia dito.

Depois de fazer o que Seris pediu, dei um adeus temporário a Cylrit e me retirei para uma seção menos movimentada do pátio.

As pessoas se aglomeravam em torno dos portais de chegada, que ainda estavam sendo interrompidos pelos artefatos de Seris, alimentados por Regis. Embora Seris tenha me informado exatamente quantas pessoas estavam presentes no segundo nível, ainda era surpreendente vê-las todas em um só lugar. Eles saíram do pátio e foram para os becos e ruas laterais, até a Sovereign Boulevard.

A maioria parecia estar com vários graus de medo. As pessoas menos abastadas, em geral funcionários ou proprietários de empresas que ficaram presos aqui quando Seris bloqueou a zona do primeiro nível das Relictombs, estavam em grande parte agrupadas em torno do conjunto de interruptores. Foram mantidos afastados pelos muitos grupos de magos de batalha que estavam protegendo vários alto sangues que também estavam na fila em torno dos portais.

Os boatos começaram a surgir quase imediatamente quando Seris anunciou que as pessoas deveriam recolher seus pertences, empacotando tudo o que pudessem levar, sem planos de voltar. Juntamente com os rumores que circulavam sobre a transmissão de Agrona, muitas pessoas acreditavam instintivamente que Seris estava desistindo.

A própria Seris visitou os lordes e as matronas dos atuais alto sangues para explicar seu plano e certificar-se de que entendiam o que estava sendo oferecido.

— Uma nova vida, fora da rígida hierarquia de pureza de sangue do clã Vritra, uma cultura que possamos construir para nós mesmos e que não seja baseada no sangue dos mais fortes ou mais fracos — explicou ela a Corbett Denoir no dia anterior. — Deixe-me esclarecer o que quero dizer com isso. Quando chegarmos em Dicathen, a noção de alto sangue, sangue nomeado e sem sangue deixa de ter qualquer significado. Todos nós teremos que trabalhar juntos para construir uma sociedade em que valha a pena viver. A sorte de seu nascimento e a posição de seu sangue em Alacrya não terão nenhum peso, nenhum poder, no lugar para onde estamos indo.

O rosto de Lenora ficou pálido, mas ela deu o primeiro passo à frente, estendendo a mão para o marido. Ele a pegou enquanto se juntava a ela, mastigando o lábio antes de dizer:

— Chegamos até aqui, Foice Seris. — Ele deu uma olhada para Caera e depois para mim. — Não tenho interesse em rastejar de barriga para baixo na frente do clã Vritra, esperando a clemência do Alto Soberano. O Alto Sangue Denoir está com você.

Caera balançou a cabeça, com a mandíbula frouxa, olhando para os pais adotivos como se não os conhecesse. Agora, ela estava ao lado deles, orgulhosa, no lado oposto do pátio, entre os outros de seu sangue que estavam nas Relictombs.

Não tinha escutado todas as conversas de Seris, mas sabia que nem todas tinham sido tão boas. O Alto Lorde Frost ficou furioso com a retirada para Dicathen, considerando-a como uma admissão de fracasso e abandono do que haviam se proposto a fazer. A Matrona Tremblay, por outro lado, não demonstrou muita emoção ao expressar sua intenção de aceitar o perdão de Agrona e retornar ao seu recém-formado Alto Sangue em vez de deixar para trás seu lar.

— Não posso culpá-la — disse Kayden, desviando meu olhar de onde a Matrona Tremblay e todo o seu pessoal estava reunido perto dos portais. — Para a maioria desses alto sangue, essa “rebelião” foi uma forma de se elevar por meio da remoção dos Vritra. Para outros, esperavam reivindicar o continente para nós, os menores. A ideia de deixar Alacrya para eles é como deixar para trás uma parte essencial de sua identidade.

— Mas para você não? — perguntei, observando a multidão com atenção. Parte de minha função em tudo isso era garantir que as coisas não explodissem entre os dois grupos, os que seguiam Seris e os que ficariam para trás.

Ele deu de ombros, um movimento perfeitamente executado e realizado que expressava tanto a falta de paixão por sua terra natal quanto o desdém por uma estrutura política da qual ele havia se afastado ativamente quando se tornou professor na Academia Central.

— No contexto de nosso mundo, alacryano é pouco mais do que um termo para um humano com a mancha do sangue Vritra. Para ser franco, não tenho certeza do que eles acham que é motivo de orgulho.

Independente de ficarem ou saírem, ambos os lados estavam desesperados, e suas decisões foram tomadas mais com esperança ou medo do que com lógica. Somente aqueles que deixariam Alacrya com Seris tinham medo de voltar para suas vidas anteriores e esperavam por vidas melhores no futuro, enquanto aqueles que estavam preparados para acreditar na palavra de Agrona e desistir da rebelião temiam a ira de Agrona e esperavam que sua oferta fosse verdadeira.

O ideal seria que tivéssemos semanas para nos preparar. Mensagens deveriam ter sido enviadas a Lyra Dreide e Vajrakor, ou até mesmo a Kezess, e abrigos e provisões deveriam ter sido preparados para o novo fluxo de refugiados para os escombros de Elenoir. Contudo, não tínhamos tido semanas. Não, Seris havia permitido que seu povo tivesse apenas um dia e meio para se preparar.

Carroças e caixotes, bestas de mana e trenós que se puxam sozinhos, qualquer coisa que pudesse ser usada para transportar mercadorias e provisões tinha sido arrastada ou levada para os arredores do pátio enquanto servos, soldados e ascendentes trabalhavam sem parar. Eles não eram os únicos. Eu já estava vendo a visão de Seris ser colocada em prática, já que os lordes e as damas se acotovelavam com os membros mais baixos de suas casas para estarem prontos a tempo.

Seris flutuou no ar perto do local onde havia montado o tempus warp.

Um homem com roupas finas perto dos portais de saída, um sangue nomeado proprietário de uma loja, ao que parece, gritou algo desagradável, e uma briga começou quando um mago mais velho, com bolsas escuras sob os olhos, se opôs. Vários transeuntes foram rápidos em intervir e impedir que a briga aumentasse, mas quando minha atenção se desviou da briga, ela parou em outra cena, praticamente oculta pela massa de pessoas que se aglomerava.

Mayla e Seth se agacharam juntos sob a varanda de um dos grandes edifícios que faziam fronteira com o pátio. Mayla estava com os braços em volta de Seth, o topo de sua cabeça empurrando os óculos dele para cima e para o lado. Ela tremia com soluços reprimidos, mesmo quando estendeu a mão para dar um beijo no canto dos lábios de Seth.

Desviei o olhar, não querendo me intrometer em seu momento particular. Embora não tivesse falado com eles desde a conversa com Ellie, podia adivinhar o que estava acontecendo. Mayla tinha uma família em Etril, uma irmã, um motivo para não deixar o continente, em outras palavras. A família de Seth, no entanto, havia desaparecido, vítima da guerra e da destruição de Elenoir.

— Ouçam, alacryanos e amigos — disse Seris, sua voz projetada magicamente para que todos pudessem ouvir suas palavras, até mesmo os mais distantes conseguindo distinguir facilmente sua enunciação nítida. — Não vou sobrecarregá-los com um longo discurso. Não vou insultá-los com apelos ou ameaças. Sua vontade é uma escolha própria de cada um de vocês. Se alguma vez houve um propósito em nosso ato de rebelião, era esse.

As Relictombs ficaram quietas em resposta, a multidão se agarrou às palavras de Seris como uma tábua de salvação, mesmo aqueles que não a estavam seguindo.

— Para aqueles que estão voltando para casa, aceitando e esperando a graça do Alto Soberano, desejo apenas saúde e esperança. Cuidem de suas famílias. Defendam-se da maneira que acharem melhor. — Seus olhos escuros varreram a multidão, o poder emanando dela e fazendo com que os mais próximos recuassem. — Não vou julgá-los por isso. Muitos de vocês não se juntaram a esse longo cerco por vontade própria e, a esses, ofereço minhas desculpas e meus agradecimentos por terem sofrido esses últimos dois meses com graça.

“Agradeço também a todos aqueles que me seguem, saindo da opressão do Alto Soberano e ousando imaginar como seria, para nós, um mundo além dos conflitos dos asura. — Ela deixou um pequeno sorriso suavizar sua expressão severa. — Não será uma estrada segura ou fácil, mas o caminho será de nossa própria escolha.”

Nenhum grito de alegria foi ouvido quando Seris parou de falar, nenhum grito ansioso ou canto. A atitude da multidão estava dividida entre uma ansiedade melancólica e uma prontidão cautelosa.

Em algum sinal invisível de Seris, dois tempus warps foram ativados, criando portais gêmeos que se abriram um ao lado do outro em Dicathen. Seris desceu em frente aos portais e foi a primeira a atravessá-los. Diversos funcionários e agentes que trabalhavam para ela começaram a orientar a multidão em uma espécie de caos controlado. Cylrit monitorava os portais enquanto uma dúzia de grupos de batalha permanecia no pátio para manter a paz.

Movendo-se sangue por sangue, os alacryanos marcharam.

No lado oposto do pátio, todos aqueles que não iriam para Dicathen permaneceram. Não poderíamos desativar a matriz de interrupção do escudo até que todos os outros tivessem ido embora, depois disso essas pessoas estariam por conta própria. Só podia esperar que Agrona fosse fiel à sua palavra e que eles pudessem voltar às suas vidas. De outra forma, não haveria nada que impedisse Dragoth e suas forças de acabar com eles.

Notei que o Alto Sangue Denoir permaneceu imóvel, sem a pressa de ser o primeiro a passar pelos portais do tempus warp, então vi Caera abrindo caminho contra a corrente da multidão. A matrona Tremblay a encontrou no meio do caminho e trocaram algumas palavras. Embora não pudesse ouvir, sabia que Caera estava fazendo mais um apelo para que Maylis viesse com eles, mas a matrona apenas balançou a cabeça.

Inclinando-se para a frente, a imponente matrona bateu seus chifres contra os de Caera, sorriu e se afastou.

Chul e Sylvie ficaram ao meu redor, atentos e em silêncio. Ellie, ansiosa para se envolver e ainda envergonhada por sua explosão, estava correndo para se tornar útil sempre que podia, seja acalmando uma criança assustada ou conduzindo uma besta de mana em direção ao portal para ajudar um dos sangues menos populosos.

Minha mente estava estranhamente quieta enquanto o êxodo prosseguia. Isso levou horas, durante as quais muitos dos que ficaram deixaram o pátio, fazendo sua espera em um ambiente mais confortável. Como não fui necessário em nada, apenas observei, mantendo-me à distância. Afinal, essa era a jornada deles. Eu era uma pessoa de fora.

Depois que a maioria das pessoas passou, os soldados de Seris e um grupo de ascendentes transportaram as provisões armazenadas e os que ficaram começaram a voltar. Ellie passou com um contingente de magos carregando itens mágicos, lançando-me um olhar que dizia claramente: “Sinto muito” e “Estou bem” enquanto desaparecia.

Depois que o último membro do povo de Seris passou para Dicathen, Cylrit desativou meu tempus warp, estalando a mão para trás ao tocá-lo. Estava brilhando intensamente e havia uma névoa de calor distinta acima dele.

Ele me examinou e acenou com a cabeça do outro lado do pátio; o próximo passo cabia a mim. Ou melhor, ao Regis.

Ok, está na hora — pensei para ele em seu pequeno frasco de vidro enquanto me dirigia para o tempus warp. — Seja rápido, pois não podemos ter certeza da rapidez com que eles responderão.

A pequena bola de luz com chifres saiu do frasco de vidro e se solidificou na forma de um lobo das sombras. Regis sacudiu sua crina, fazendo-a brilhar com luz violeta e os alacryanos mais próximos gritaram e tropeçaram para longe dele, empurrando as pessoas atrás deles e criando uma espécie de debandada em menor escala.

O efeito sobre os artefatos que projetavam o campo de perturbação foi imediato.

O éter, sem a intenção de Regis de mantê-lo fluindo, simplesmente parou. Começou a vazar da fiação e dos cristais e, sem éter suficiente, o campo começou a oscilar.

Regis atravessou apressadamente o pátio. Alguns alacryanos devem ter hesitado, pois abandonaram as fileiras de seus pares e o seguiram.

Sem dizer nada, Cyrlit os conduziu pelo portal.

— Vão! — disse tanto para Cylrit quanto para Chul e Sylvie. — Estarei logo atrás de vocês.

Depois que eles se foram, peguei o tempus warp e o segurei debaixo de um braço. O campo de interrupção falhou e as pessoas correram para o banco de portais de saída enquanto os soldados alacryanos começavam a sair dos portais de entrada; Dragoth devia estar pronto e esperando.

Os gritos surgiram de ambos os lados. Uma mulher se jogou em um dos soldados, agarrando a parte da frente de suas vestes de batalha enquanto implorava por sua ajuda. A ponta de sua lança subiu e a atingiu nas costelas. A gritaria se intensificou à medida que os Alto Sangue restantes exigiam ordem e tentavam assumir o controle da situação, enquanto os sangues inferiores lutavam para sair pelos portais de saída e os soldados se esforçavam para analisar a situação. Alguns me notaram em frente ao portal do tempus warp que estava desaparecendo, mas estavam ocupados com a multidão.

Em seguida, o próprio Dragoth apareceu, com seu volume e chifres de boi fazendo-o parecer um gigante contra o enxame de alacryanos. Seus olhos encontraram os meus imediatamente, e ele deu alguns passos agressivos para a frente, depois parou. Mesmo do outro lado da zona, eu podia sentir seu medo.

Ótimo, pensei, esperando que esse medo fosse suficiente para garantir que essas pessoas ficassem bem.

Sentindo o portal se rompendo agora que sua conexão com o tempus warp havia sido cortada, dei um passo para trás através dele.

Tudo mudou. A transição foi suave, não instantânea, mas quase perfeita. A falsa luz do céu azul das Relictombs foi substituída pela verdadeira luz do sol. Em vez da atmosfera sufocante do pátio, inspirei um pouco de ar fresco, e uma brisa fresca beijou minha pele.

Ao me virar, tentei me orientar. Tínhamos aparecido no amplo pedaço de terra gramada entre a Clareira das Bestas e um dos assentamentos alacryanos nos arredores dos escombros de Elenoir. Procurei por minha irmã, Caera ou Seris entre as centenas de pessoas que se aglomeravam, mas não vi nenhuma delas imediatamente.

Ao meu lado, porém, estavam Chul e Sylvie.

Encontrei o olhar de meu vínculo.

— Você viu a El…

O rosto de Sylvie estava pálido, o suor brilhava em sua testa. Seus olhos estavam vidrados, olhando para o vazio.

Franzindo a testa, eu a alcancei, segurando seu braço enquanto minha mente a sondava.

A força me abandonou e senti minhas pernas fraquejarem. Nem tive tempo de imaginar o que havia acontecido antes que minha mente fosse puxada para longe do meu corpo, arrastada pelo rastro de qualquer pensamento que tivesse acometido Sylvie.

A luz e a cor passavam por todos os lados, com imagens indistintas aparecendo e desaparecendo com rapidez demais para fazer sentido. Embora não pudesse vê-la, podia sentir Sylvie bem à minha frente. O mundo havia desaparecido e estávamos sozinhos, apenas nós dois, acelerando como uma flecha por esse túnel de luzes.

Tentei falar, mas não tinha voz. Tentei me conectar com sua mente, mas não consegui.

O que está acontecendo? Eu queria gritar. Para onde estamos indo?

Assim que fiz a pergunta, eu soube. Entramos em uma piscina de cores vibrantes, patinando ao longo de uma fina corrente de luz prateada e em um borrão de cor e movimento.

O mundo voltou a ter uma forma reconhecível ao nosso redor.

Eu cambaleei, demorando um pouco para me orientar, mas a cena era familiar.

Uma sala de conferências. O local onde eu havia visto e falado com os Glayders pela última vez, mas a aparência era bem diferente agora.

A longa mesa havia sido removida para dar lugar a um trono opulento, no qual estava sentado um dragão na forma de um homem com longos cabelos prateados e olhos cor de ameixa. Não reconheci esse dragão, mas o nome Charon me veio de uma memória distante: o líder das forças de Kezess em Dicathen.

Dois outros dragões, ambos também em forma humanoide, estavam lado a lado com Charon, que estava olhando para uma dúzia de humanos, todos sentados de joelhos no chão como crianças. Kathyln e Curtis também estavam lá, bem como muitos de seus conselheiros. Palavras estavam sendo trocadas, mas a visão parecia estar debaixo d’água e a uma distância muito grande, de modo que não conseguia entender nada.

De repente, algo mudou, como se uma nuvem escura tivesse pairado sobre a cena. Cinco figuras saíram das sombras, com lâminas e feitiços em suas mãos. Não houve conversa, nem hesitação. Mesmo quando se aproximaram de Charon, outros cinco apareceram ao redor dos dois guardas dragões, cortando-os.

A visão ficou embaçada, oscilando perigosamente, e os detalhes eram difíceis de acompanhar.

Quando se estabilizou, a parede traseira da câmara havia sido destruída. Duas Assombrações estavam mortas, assim como um dragão, e o estrondo cacofônico da batalha borbulhava da poeira e dos escombros que bloqueavam minha visão além da sala.

O próprio Charon ainda estava cercado pelas outras cinco Assombrações, que trabalhavam juntas em uma sinfonia fluida de violência. Charon se enfureceu em quase silêncio, e seu corpo se transformou na forma de um horrível dragão prateado com cicatrizes de guerra, suas garras e cauda maciça golpeando e esmagando.

Não pude fazer nada enquanto via Kathyln desaparecer sob uma mão com garras. Ao lado dela, Curtis foi jogado para o lado. A luz dourada inundou seu corpo, mas cintilou e desapareceu quando uma lâmina negra o atravessou sem esforço, com o sangue jorrando de um corte que o cortou do quadril ao ombro.

Horrorizado, assisti congelado fora do espaço e do tempo, sem saber o que estava vendo ou como estava vendo, incapaz de reagir, sem corpo ou magia própria.

A transformação de Charon derrubou o teto, enterrando a maioria dos humanos sob uma montanha de escombros. Desconsiderando qualquer sobrevivente em potencial, o dragão saltou, desesperadamente se soltando do palácio para voar. Girando, ele soprou a morte de volta para todos lá embaixo, matando mais Dicathianos do que Assombrações em sua tentativa de defender sua própria vida.

A cena se estilhaçou como um vaso pintado, os pedaços se espalharam em espiral em todas as direções antes de se fundirem novamente no túnel de cor e luz.

Meus olhos se abriram e olhei para o rosto de Chul, que estava inclinado sobre mim e parecia preocupado. Regis estava ao lado dele e Ellie ao lado de Regis.

Um movimento sob minha mão me fez olhar para a direita. Eu estava deitado no chão, com Sylvie ao meu lado, minha mão ainda presa em seu braço.

— Arthur! — Ellie ofegou, caindo de joelhos e se inclinando para mim para envolver seus braços em meu pescoço. — Você está bem? O que aconteceu?

Por entre seus cabelos, eu ainda estava observando Sylvie, que lentamente se virou para me olhar.

Uma visão? — perguntei, meus pensamentos estavam lentos.

Seus olhos se fecharam.

Do… futuro… — Ela respondeu ameaçadoramente.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: Crytteck

 

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