Desde o dia em que nasceu, Claire Latria era vaidosa e cabeça-dura. Quando criança, nunca admitiu ter cometido nenhum erro e só se desculpava quando isso lhe era imposto.
Sua própria mãe, a bisavó de Rudeus, Meredy Latria, lhe dizia: “Comporte-se corretamente”.
Contudo, esse conselho foi gravemente equivocado. Claire, relutante e incapaz de enxergar seus próprios defeitos, acreditava que não tinha nenhum e que sua teimosia era justificada; contudo os erros são o que nos torna humanos.
De qualquer forma, Claire seguiu o conselho da mãe, o que a transformou em uma garota severa. Não correta, apenas severa. Consigo mesma, principalmente. Ela começou a estudar e cometeu erros, porque de certa forma, educação é isso. Em vez de aceitar, seus padrões para si mesma só aumentaram em rigidez e crueldade. Se aplicasse esses padrões torturantes apenas a si mesma, tudo bem, mas não foi isso que aconteceu. Ninguém conseguia atender às suas expectativas exigentes, e ela fazia com que sofressem por isso.
Sem moderar sua teimosia e vaidade, os conselhos de sua mãe a arruinaram. Ela tinha essas virtudes distorcidas, porém era forte, e por isso superou todas as adversidades. Ela também era vaidosa, então fazia questão de que ninguém soubesse quando estava sofrendo, e esperava isso de todos ao seu redor. Simplesmente não conseguia ouvir que estava errada.
Ninguém gostava dela.
Para os outros, parecia que ela tinha sucesso sem esforço, para depois se virar e repreender todos os que se esforçavam nas mesmas tarefas, além de nunca se desculpar por nada. Fria, mimada e sem coração.
Algumas pessoas viram a verdadeira Claire, é claro. Reconheceram o quanto trabalhava duro quando ninguém estava olhando, mas como ela não podia ser vulnerável, o reconhecimento era tudo o que podiam oferecer. Essas pessoas bem-intencionadas diziam: “Claire, posso ver quem é você de verdade, mas ninguém mais verá“. Mesmo assim, ela se recusava a mudar. Não via nada de errado nas palavras de sua mãe, nem em sua própria filosofia. Isso estava funcionando para ela. Por que mudar?
Quando atingiu a maioridade, todos estavam cansados dela e ninguém a aceitaria como noiva. O tema casamento foi abordado em várias ocasiões, afinal de contas, era a filha mais velha da Casa Latria, mas quando os nobres interessados a conheciam e viam sua dureza e teimosia em primeira mão, fugiam gritando.
“Se eu não conseguir encontrar um marido, simplesmente me tornarei uma freira”, declarou Claire quando tinha 18 anos. Ela era uma senhora da Casa Latria. Seria preferível tornar-se uma freira, do que envergonhar o nome da família tornando-se uma solteirona. Em Millis, esse era um caminho comum para as jovens naquela época.
Claire Latria era severa consigo mesma e com todos ao seu redor, e isso era, basicamente, tudo o que havia para ela.
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Havia um garoto chamado Carlisle Granz. Carlisle era uma nova adição aos Cavaleiros do Templo que servia como membro da Companhia de Espadas sob o comando direto de Ralkan Latria, o pai de Claire.
Um dia, o pai de Claire chegou em casa bêbado. O próprio Ralkan era um homem rígido e esse era o único lado que Claire ou sua mãe já tinham visto dele, portanto, não era nada normal que chegasse bêbado em casa. Nada normal no sentido de ser incongruente, mas não no sentido de ser raro. A mãe de Claire conhecia a rotina sempre que ele chegava cambaleando. Retirava a armadura dele, dava-lhe água para beber e o ajudava a se deitar para que os servos apenas o considerassem cansado. Ela nunca o repreendeu por isso, pois sabia como o trabalho de um Cavaleiro do Templo podia ser estressante.
Lamentavelmente, ele não teve sorte em uma ocasião específica. A mãe de Claire tinha ido visitar seus pais e estava fora de casa. Assim, pela primeira vez, Claire enfrentou as falhas do pai sem a presença da mãe para protegê-lo. Ela o advertiu com amargura.
Não acredito que você faria isso. Você não é o chefe da família Latria? Tudo o que me ensinou eram palavras vazias para você?
O pai dela estava bêbado, mas mesmo assim ficou envergonhado e calado por ter permitido que a filha o visse daquele jeito.
O jovem cavaleiro que o havia acompanhado até em casa falou em seu lugar. Esse era Carlisle.
— Posso explicar por que o capitão estava bebendo hoje — disse ele. — Um de nossos cavaleiros foi morto em serviço. Não foi culpa de ninguém, mas saímos para beber em sua memória. O capitão só bebeu demais porque sentiu remorso pela morte de seu subordinado. Não vou ficar aqui e vê-lo ser insultado por isso, nem mesmo por sua própria filha.
Claire não respondeu. Não sabia o que dizer. Sua raiva havia desaparecido.
Ela cuidou de seu pai em silêncio. Trouxe-lhe água, e permitiu que se apoiasse em seu ombro enquanto tentava se desculpar com ela, no entanto, não conseguia segurá-lo sozinha, por isso Carlisle acabou ajudando-a a levar o pai de volta para o quarto; despojá-lo de sua armadura e colocá-lo na cama.
Durante todo o processo, Claire não disse uma única palavra. Ela sabia que estava errada, mas não conseguia se desculpar com o pai, nem com Carlisle. Era teimosa demais para isso. Carlisle entendeu. Viu que, por trás de sua expressão sombria, ela reconheceu seu erro.
Ao sair, ele disse:
— Você é mais gentil do que pensa.
Naquela época, Claire não tinha ideia do que ele quis dizer. Tudo o que sabia era que aquele garoto, talvez um ou dois anos mais novo que ela, havia reconhecido algo dentro dela.
Depois disso, Carlisle começou a receber convites frequentes para a propriedade Latria e, em pouco tempo, ele e Claire se casaram.
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Claire e Carlisle tiveram cinco filhos juntos: um menino e quatro meninas. Claire criou as meninas com a mesma severidade com que sua própria mãe a havia criado. Seu filho mais velho se juntou aos Cavaleiros do Templo. Sua filha mais velha se casou com um marquês. Eram o cavalheiro e a dama perfeitos, exatamente como Claire havia desejado; ela os teria apresentado com orgulho em qualquer lugar de Millis.
Claire tinha as maiores esperanças em relação à sua segunda filha, que nasceu um pouco mais tarde. Essa filha foi muito mais bem-sucedida do que os dois primeiros filhos. Todos que a conheceram ficaram impressionados com sua beleza e integridade. Era o melhor trabalho de Claire, seu orgulho e alegria: Zenith Latria; entretanto, Zenith foi embora e acabou com todas as esperanças de Claire ao fugir para se tornar uma aventureira. Depois disso, o silêncio.
Claire ficou apoplética de raiva. Amaldiçoou Zenith na frente de seus outros filhos, chamando-a de uma criança idiota que havia feito a escolha mais estúpida que se poderia imaginar. Também os advertiu para que não imitassem a irmã de forma alguma. Foi a primeira vez que deixou seus sentimentos transparecerem tão abertamente. A filha na qual depositava suas maiores esperanças havia escolhido a vida mais miserável que poderia imaginar.
Em toda a sua vida, esse foi o choque que mais atingiu Claire.
O destino de sua terceira filha, Saula, também foi desviado dos desejos de Claire. Saula casou-se com um barão, mas ele se envolveu em uma luta pelo poder e perdeu, então Saula foi morta na sequência. A magia de cura de Millis era altamente avançada, portanto essas mortes eram raras. Sua morte foi um desses raros incidentes.
A família colocou a reputação da Casa Latria em risco para garantir que o assassino de Saula tivesse um fim poético.
Claire lamentou por sua filha como qualquer outra mãe faria.
Enquanto lamentava, sua quarta filha, Therese, escolheu uma vida que Claire não teria escolhido para ela, se juntou aos Cavaleiros do Templo.
Claire amaldiçoou sua quarta filha como havia feito com a segunda:
— Sua idiota! Você realmente acha que tem o que é preciso para ser um cavaleiro? Se ao menos tivesse me ouvido e aprendido a ser uma dama correta, eu teria encontrado um bom marido para você. Você poderia ter sido feliz.
Therese retrucou:
— Morrer em uma luta pelo poder fez minha irmã feliz?
Isso se transformou em uma briga terrível e Claire expulsou Therese, dizendo-lhe:
— Você nunca mais colocará os pés nesta casa!
Nem por um momento pensou que havia feito algo errado. Zenith e Therese haviam partido, mas um dia voltariam para pedir perdão. Ela acreditava piamente nisso.
Dez anos se passaram. Nenhuma notícia veio de Zenith, mas Therese se saiu bem nos Cavaleiros do Templo e foi promovida a capitã da guarda pessoal da Criança Abençoada. Claire achava que os Cavaleiros só entregaram o cargo a Therese porque a Criança Abençoada também era do sexo feminino. Ela não estava errada; Therese era uma excelente administradora e comandante, mas não mais do que uma cavaleira comum. Mesmo assim, em todas as festas que Claire acompanhava o marido, ouvia as pessoas dizerem: “Os Latrias são realmente incríveis. Para onde quer que você olhe, estão subindo no mundo!”
Claire criticava os outros, mas era igualmente dura consigo mesma. Quando percebia que havia cometido um erro, nunca pedia desculpas, mas era capaz de mudar de ideia. Agora que a filha que havia cometido um erro terrível estava sendo aclamada, ela não tinha mais escolha. Claire perdoou e se reconciliou com Therese.
As palavras que usou quando encarou a filha, no entanto, não foram um pedido de desculpas, mas um arrogante “Eu te perdoo”.
Agora, Therese estava acostumada a lidar com pessoas difíceis diariamente; como Cavaleira do Templo. Se não fosse por essa prática, e se seu irmão mais velho (que sabia como era a mãe) não tivesse se colocado fisicamente entre elas, teria ocorrido outra briga.
Nem mesmo essa experiência fez com que Claire considerasse perdoar Zenith; no entanto, pensou que se Zenith aparecesse no portão, poderia falar com ela de novo.
Alguns anos depois, Paul chegou à propriedade Latria para pedir ajuda. Uma calamidade mágica atingiu o Reino Asura: O Incidente de Deslocamento de Fittoa. Paul era o capitão de uma equipe de busca e resgate que procurava os desaparecidos e veio solicitar a ajuda da Casa Latria.
Quando Claire soube que Zenith estava entre os desaparecidos, concordou sem hesitar. Persuadiu Carlisle a contribuir com ouro e homens. Sua esperança era que encontrassem Zenith rapidamente e ela pudesse lhe dizer: “Você está vendo agora? Está vendo o que aconteceu porque não fez o que eu disse?”
Mas Zenith continuou desaparecida. Um ano se passou, depois dois, e ainda não havia sinal dela. O marido de Zenith, Paul, definhou. Ele não fez nenhum esforço para esconder seu sofrimento e, embora tivesse uma filha pequena, começou a afogar suas mágoas na bebida.
Claire foi a primeira a decidir que algo deveria ser feito por Norn. Ela decidiu tirar a neta recém-nascida do pai e criar a menina sozinha como uma moça correta. Isso, pensou Claire, era o mais importante; no entanto, Carlisle se opôs, por isso ela acabou não conseguindo afastar a garota do pai. Com o passar dos dias, Claire não podia fazer nada além de observar Norn e se sentir frustrada.
Então um dia Paul mudou. Therese relatou que seu filho mais velho, Rudeus, havia aparecido, batido nele e o obrigado a se redimir. Isso despertou em Claire um lampejo de curiosidade sobre esse Rudeus, no entanto esse lampejo foi rapidamente apagado quando o garoto não se apresentou à família Latria. Ela decidiu que ele era do mesmo tipo que o pai e o descartou com desgosto.
Então veio à tona que Paul tinha duas esposas.
Sua amante, Lilia, e sua filha Aisha foram para Millis. Claire pertencia à Igreja de Millis e, portanto, não podia tolerar a perversão de ter duas esposas, mas Paul não era um adepto de sua crença, e Claire sabia que era tolice tentar impor suas próprias convicções religiosas a outra pessoa, então permitiu que as duas meninas a visitassem algumas vezes por mês e as instruía nos costumes da família Latria: etiqueta adequada e rituais meticulosos. Claire acreditava estar fazendo o que era natural ao ensinar-lhes a maneira correta de viver.
Norn estava sempre de mau humor porque não conseguia se igualar a Aisha. Claire desprezou a atitude da garota. Ela sempre desistia e se recusava a tentar fazer coisas que, sem dúvida, poderia conseguir com esforço suficiente, mas Norn, com medo de ficar atrás de Aisha, parou de tentar. Claire viu o que estava acontecendo e disse a Norn que não havia necessidade de ser a melhor, só precisava estar à altura da reputação de uma dama da Casa Latria. Essa era a forma de motivação de Claire, mas Norn não melhorou; então Claire tentou todos os discursos que conseguiu pensar para motivar a garota, mas nada funcionou.
Enquanto isso, ficava furiosa ao ver Aisha, a filha bastarda, provocando Norn. Sua raiva a tornava irracional, então era cruel tanto com a menina, quanto com sua mãe. No final, tanto Aisha quanto Norn deixaram sua casa como decepções.
Mais alguns anos se passaram sem nenhuma notícia sobre o retorno seguro de Zenith e Claire ficou apenas com as lembranças de seu tempo com as netas. Os filhos de seu filho e filha mais velhos atingiram a maioridade um a um. Todos tiveram um resultado esplêndido. Jovens que ela podia apresentar em qualquer situação com segurança e confiança.
Não havia mais crianças na vida de Claire, e ela deixou de ver muitos de seus netos. Se perguntava como Aisha e Norn estavam se saindo. As duas logo atingiriam a maioridade. Agora que pensava nisso, eram as únicas duas netas que não tinham se saído como ela esperava. Talvez isso fosse de se esperar dos filhos de Zenith. Se perguntou como Zenith as havia criado… então se deu conta, ela não havia criado sua própria filha. O Incidente de Deslocamento ocorreu logo após o nascimento das meninas. Norn tinha um, talvez dois anos de idade. Zenith havia sido privada da chance de conhecer suas filhas como uma pessoa real. Norn foi criada por um pai solteiro. O Incidente de Deslocamento pode explicar por que Aisha nunca aprendeu a respeitar adequadamente a filha legítima de seu pai.
Zenith tinha sido desobediente, mas era inteligente. Antigamente, as pessoas a chamavam de modelo de uma jovem de Millis. Aventureira ou não, as coisas poderiam ter sido diferentes se Zenith estivesse lá para ensiná-las…
Claire sentia tanta falta de Zenith que às vezes ficava triste. Ela queria ver sua filha. Claire sabia que provavelmente só teria palavras duras para ela se a encontrasse, e que Zenith provavelmente só lhe causaria sofrimento, mas mesmo assim valeria a pena.
Foi quando aconteceu. Chegou a mensagem de Rudeus informando que Zenith foi encontrada. Sua memória havia desaparecido e ela havia enlouquecido, mas estava viva.
A carta de Rudeus foi breve e direta, relatando os fatos de onde Zenith havia sido encontrada e sua condição. Foi tão econômico que passou despercebido pela morte de Paul. Rudeus escreveu que planejava tratar Zenith, mas não mencionou a possibilidade de levá-la para casa.
Claire respondeu imediatamente. Ela queria ver Zenith mais do que tudo.
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Vários anos mais se passaram, durante os quais Claire procurou uma maneira de curar Zenith. Procurou médicos e magos curandeiros de Millis, visitou a biblioteca da Igreja de Millis diversas vezes. Chegou até a estudar textos escritos por demônios em sua pesquisa. Isso era imperdoável, mas Claire estava convencida de que deve ter havido outros casos como o de Zenith na história.
Então, finalmente, encontrou um. Não tinha ideia se o que lia era confiável. O caso descrito era suspeito, inacreditável e totalmente nauseante, mas existia um método. Havia um precedente para uma cura.
A cura que encontrou não era demoníaca. Ela leu que certa vez, havia uma elfa sofrendo de uma condição semelhante à de Zenith. Essa elfa também enlouqueceu, mas acabou voltando a si… depois de ter relações sexuais com dezenas de homens.
Claire mal podia acreditar. Não podia ser verdade; certamente nunca poderia testar, mas ao continuar sua pesquisa para tentar encontrar a base da história… descobriu que a elfa realmente existia e que ainda estava, mesmo agora, dormindo com hordas de homens.
Claire não sabia o que fazer. Poderia realmente tentar esse tratamento? Zenith não odiaria isso? Mesmo assim… Essa pode ser sua única chance de recuperação.
Enquanto estava paralisada pela indecisão, Rudeus trouxe Zenith até ela.
Apenas três deles vieram. Sua filha Zenith, Rudeus e a filha bastarda, Aisha. Três anos se passaram desde que Claire havia enviado sua carta. Claire não estava acostumada a se comunicar com lugares distantes, por isso, acreditava que Rudeus tinha vindo o mais rápido possível.
Primeiro, pensou, diria a ele o quanto estava agradecida por ter vindo até aqui e depois faria as apresentações. Após, se informaria sobre a recuperação de Zenith e perguntaria como ele pretendia proceder com o tratamento. Se houvesse tempo, perguntaria por Norn e Aisha.
Todavia, no momento em que viu Zenith, seu plano foi por água abaixo. Quando Claire entrou na sala e viu o rosto da filha, foi direto até ela, perto, mas não o suficiente. Viu os olhos desfocados de Zenith e então, sentindo como se seu coração fosse explodir, suspirou impaciente e chamou Ander, o médico da família. Ander estava cuidando de Claire, cuja saúde estava debilitada ultimamente. Ele a havia aconselhado sobre o tratamento para Zenith. Claire, depois de finalmente ver Zenith pela primeira vez em tantos anos, sabia que era falta de educação ignorar Rudeus e se virou para dar atenção a ele. Então viu quem estava sentada em um canto do sofá. Uma mulher vestida de empregada doméstica, com cabelos castanhos escuros e um rosto que Claire jamais esqueceria. Naquele momento, no entanto, sua atenção estava mais voltada para a roupa.
Uma roupa de empregada?
— Aisha, que bom vê-la novamente. O que, é… O que veio fazer aqui?
— Ah! Hmm, estou com Lady Zenith, hmm, quero dizer, estou ajudando a cuidar dela.
Claire não conseguiu evitar as palavras duras que escaparam em sua resposta. Cuidar dela? Em outras palavras, Aisha estava aqui como empregada de Zenith. Se isso fosse verdade, não havia desculpa possível para Aisha ficar sentada enquanto seu mestre e sua senhora estavam de pé. Claire apenas a repreendeu para lembrá-la da decência comum. Rudeus, no entanto, se interpôs entre elas. É claro que iria, foi a própria Claire quem abandonou a cortesia.
Agora que viu Rudeus pela primeira vez, notou a forte semelhança dele com Paul e não pôde deixar de ver o rosto de Paul no dele. Paul, o bêbado. Paul, que levou Zenith a esse estado. Todo o seu ressentimento em relação ao pai do garoto voltou à tona. Talvez por isso, na conversa que se seguiu, as qualidades menos admiráveis de Claire tenham aparecido. Sua vaidade e teimosia tomaram as rédeas. Ela deixou de lado a consciência tênue de suas próprias falhas e mergulhou de cabeça.
Rudeus, por outro lado, era um jovem franco que respondeu aos comentários maldosos dela com argumentos bem fundamentados e diretos. Sua franqueza fez com que Claire revisasse sua opinião sobre ele. Depois disso, a conversa prosseguiu de acordo com as expectativas dela. Primeiro falaram sobre o progresso do tratamento de Zenith, depois sobre a situação de Norn. Ela não perguntou sobre Aisha, ainda envergonhada por sua explosão anterior. O conhecimento de Rudeus sobre os costumes básicos de Millis era um pouco deficiente, mas parecia ciente de sua responsabilidade como chefe de família e estava levando a sério o crescimento de Norn. Claire começou a vê-lo sob uma perspectiva diferente. Era jovem, mas levava seu papel a sério. Um jovem íntegro. Pelo menos, era assim que parecia. Ela não tinha noção de quão importante era o papel de “subordinado do Deus Dragão”. Seu conhecimento de assuntos militares era escasso, mas os laços estreitos com a monarca de Asura implicavam um certo grau de status, mesmo que uma nova linhagem tivesse assumido o trono. Com um status maior, veio uma responsabilidade maior e realizações maiores. Claire percebeu que Rudeus era uma figura de muito mais importância do que havia pensado anteriormente.
Esse era o filho de Zenith. A ideia despertou nela uma mistura complicada de irritação e orgulho.
Infelizmente, ele seria um problema.
O curso do tratamento que havia planejado para Zenith certamente causaria discussão. Entregar uma mulher a uma procissão de homens para que a dominassem era um pecado imperdoável.
Ela tentou fazer perguntas para sondar a probabilidade de Rudeus aceitar seu plano, mas no final só fez com que ele explodisse de raiva contra ela. Claire viu que o amor dele por Zenith, mesmo em seu estado atual, não diminuiu, isso estava óbvio. Nada mais poderia tê-lo feito enfrentar a longa jornada de anos para trazer Zenith para Millis. A sondagem de Claire também confirmou que ele não havia tentado o tratamento que ela planejou e não sabia de sua existência.
Ela se perguntou se deveria contar a ele sobre isso. Explicar que, embora possa ser difícil de acreditar, isso poderia trazer Zenith de volta. Era até possível que, se explicasse tudo, ele pudesse dar seu consentimento, contudo, algo a fez dar um passo atrás.
Esse era um jovem com um futuro brilhante pela frente. Dizia-se que ele era amigo íntimo de um padre da facção do Papa. Ela também ouviu dizer que o neto do Papa havia retornado a Millishion recentemente. Dada a duração da viagem, não ficaria surpresa se ele e Rudeus tivessem feito a viagem juntos. A própria Claire não tinha interesse nas disputas de poder da igreja, mas e se Rudeus começasse a trabalhar em nome da facção do Papa? E se quisesse fazer seu nome em Millishion não como um Latria, mas como um Greyrat e seguidor de Orsted, um membro dos Papalistas? O tratamento que Claire estava planejando poderia arruinar suas perspectivas. Se descobrissem que ele havia feito tal coisa com sua própria mãe, seria um escândalo. Todos os cidadãos de Millis fariam fofocas pelas suas costas. Seria impossível para ele permanecer no país.
Então Claire debateu consigo mesma, seria certo contar a ele? Seria correto sobrecarregá-lo com isso?
Não. Ele não precisava saber de nada. Era melhor para ele permanecer ignorante sobre o fato de sua mãe ter sido forçada a dormir com todos aqueles homens. É melhor que não tenha nada a ver com isso.
A decisão seria toda de Claire. Rudeus não era membro da família Latria e, portanto, não tinha nada a ver com isso. Isto, pensou ela, seria o melhor. Ela nunca pensou em desistir de realizar o tratamento. Havia esperado vinte anos por isso, pela oportunidade de ver Zenith novamente, de falar com ela.
Assim, Claire colocou seu plano em ação. Ela suportaria a desgraça disso sozinha.
Deliberadamente antagonizou Rudeus e depois o deserdou da família Latria. Por fim, fez com que um servo raptasse Zenith.
Nesse ponto, no entanto, seu plano foi interrompido. Zenith foi levada de volta para a casa. Ela já era adulta e estava envelhecendo, mas ainda era bonita e desejável; contudo, acima de tudo, era filha de Claire.
Claire não conseguia forçar Zenith a dormir com um número incalculável de homens. Não estava certo. Não podia estar. Ao mesmo tempo, porém, não era certo esperar que o filho de Zenith continuasse a cuidar de sua mãe no estado atual. Claire até inventou desculpas para si mesma: se Zenith pudesse falar, pediria a Claire que a curasse. Sem dúvidas.
A maneira como ela se justificava causava nojo a si mesma.
Desejava que alguém a impedisse. Estava prestes a fazer algo terrível, mas não conseguia se conter. Ela vacilou, agonizou e lutou consigo mesma. Passava todos os dias no quarto de Zenith, com o rosto enterrado nas mãos.
Zenith ficava sentada, sem fazer nada. Embora de vez em quando apresentasse uma reação humana, deixando Claire indecisa mais uma vez.
No final, foi Carlisle quem pôs fim ao sofrimento dela. Carlisle ouviu um resumo dos eventos de Therese e, em seguida, recebeu o restante do médico da família, Ander. Ele ficou sabendo como era o tratamento e como Claire estava se angustiando para saber se deveria ou não prosseguir com ele. Quando soube do ato imperdoável que sua esposa estava considerando, foi até ela de forma gentil.
— Antes de fazer isso — disse ele —, primeiro permita que a Criança abençoada a veja. — Se conhecessem as memórias de Zenith, isso poderia esclarecer melhor a situação. Talvez seja isso que fortaleceria sua determinação, ou a coisa que finalmente permitiria que abortassem o plano.
Carlisle enviou uma solicitação para que as memórias de Zenith fossem lidas pela Criança Abençoada. Exerceu toda a influência que pôde reunir como capitão sênior dos cavaleiros do templo para conseguir uma audiência, mantendo o nome de Zenith fora da solicitação. Ele se certificou de que Rudeus não ficasse sabendo disso.
A Criança Abençoada, que oficialmente nunca examinou memórias pessoais, faria exatamente isso por eles naquele mesmo dia. Enquanto Carlisle e Claire acompanhavam Zenith em silêncio até a sede da igreja para ver a Criança Abençoada, Rudeus a sequestrou.
POV RUDEUS
— E foi assim que viemos parar aqui — concluiu Carlisle. Os olhos de Claire estavam vermelhos e o rosto de Carlisle estava cheio de tristeza.
Houve algumas reações diferentes na mesa. Algumas caretas, alguns olhares de reprovação e braços cruzados. Therese colocou as mãos sobre a boca, chocada. A Criança Abençoada sorriu como se soubesse dos detalhes o tempo todo. O rosto de Cliff estava indecifrável, o que me fez pensar se ele já teria ouvido essa história em algum lugar.
Tudo fazia muito sentido agora que tinha ouvido. O que Claire havia planejado era imperdoável. Ela não tinha ido até o fim, mas o fato de ter pensado em fazer isso com a própria filha já era suficiente. Eu não estava disposto a perdoá-la por isso, e com certeza não era uma diferença cultural ou aceitável de acordo com a doutrina da Igreja Millis. Não tinha certeza se isso realmente constituía um crime em Millis, mas pelas reações que estava vendo aqui, ela definitivamente tinha conseguido desonrar a Casa Latria.
Se eu tivesse sido cúmplice dela, não seria necessário dizer que teria dado adeus a qualquer esperança de fazer negócios nesta cidade. Por isso ela me renegou. Porque tentou fazer tudo sozinha. Lutou sozinha para tomar a decisão e planejou sofrer toda a punição sozinha.
O problema, porém, é que Claire estava enganada quanto aos fatos.
— Esse tratamento… era de duzentos anos atrás, por acaso? — perguntei.
Claire olhou para cima com surpresa.
— E-Era! — confirmou. — Diziam que há cerca de duzentos anos, havia uma mulher no mesmo estado…
— E essa mulher foi expulsa de sua aldeia pelo que fez?
— Você conhece a história… Isso significa que você experimentou?
— Claro que não — disse. O outro caso que Claire encontrou foi o de Elinalise. A história que Claire conhecia era um resumo bem generoso dos fatos, é claro. Sim, Elinalise estava no mesmo estado que Zenith, mas depois de algumas décadas, ela melhorou. Foi só mais tarde que se transformou em uma verdadeira vadia.
Para ser justo, é da natureza das histórias antigas se misturarem à medida que são passadas adiante. Faz sentido que tenha sido distorcida na recontagem.
— Eu não experimentei esse “tratamento” — continuei —, mas conheci aquela mulher e ouvi sua história diretamente.
Acho que não mencionei Elinalise em minha carta. Naquela época, havia guardado muito segredo.
— Eu… entendo — disse Claire. Seus ombros caíram como se tivesse sido esvaziada. Em seu rosto, porém, pensei ter visto algo como alívio. — Tudo o que eu fiz foi em vão, então…
— Sim — concordei.
— …Entendo.
Se ela tivesse me contado seus planos desde o primeiro dia, eu não teria ficado tão irritado.
Calma aí, vovó, eu teria dito, rindo dela. Conheço a mulher de quem você está falando e você não escutou a história toda. Como pode pensar que isso funcionaria?
Sim. Quero dizer, provavelmente.
— Você deveria ter me contado — disse.
— Se você não soubesse de nenhuma outra maneira de curá-la, teria resistido a tentar?
Eu não respondi. Não sabia como responder. Não podia simplesmente dizer “não”. Se Elinalise tivesse me dito: “Fazer sexo me curou”, eu poderia ter feito isso, mas não imediatamente. Teria tentado qualquer outra coisa primeiro, mas já se passaram alguns anos desde que conheci Elinalise. Se nada tivesse funcionado, como me sentiria agora? Depois de pensar nisso por anos, quem sabe a que decisão eu poderia ter chegado?
— E pensar que você já sabia, e mesmo assim eu… De todas as idiotices… — Claire começou a chorar novamente.
Depois de descobrir que havia tentado submeter sua filha a um abuso horrível por nada, talvez nunca mais quisesse vê-la. Talvez ainda houvesse alguma mágoa, ou algumas emoções confusas.
Contudo, eu me senti muito bem. Tudo o que Claire havia dito e feito finalmente fazia sentido. Quando ela disse: “Para o bem da minha filha e da minha família”, Claire estava dizendo a verdade.
E agora aqui estávamos nós. Essa enorme produção se deveu ao fato de que nossas desavenças foram captadas e usadas para obter vantagem em uma luta pelo poder. Claire fez o possível para que todos os outros não soubessem e, portanto, não estivessem envolvidos em seu plano, para seu crédito. Acho que ela queria proteger a família Latria da desgraça; Therese, o tio e a tia que ainda não conhecia, mas havia feito tudo errado. Simplesmente não havia outro jeito para isso. Deveria haver uma opção melhor. Todos os tipos de opções melhores.
Mesmo assim, ela fez isso por Zenith… e por mim.
Para o bem de minha filha e de minha família. Acho que foi por isso que Zenith deu um tapa em mim e em Carlisle.
Suspirei. Então me lembrei de Cliff, que havia tentado proteger Claire.
— Então, Cliff, quando você ficou sabendo de tudo isso? — perguntei.
— Esta manhã. Encontrei os três quando chegaram à igreja esta manhã — respondeu ele.
— …E você não tentou impedi-los? Você sabe tudo sobre Elinalise, não sabe?
— A única coisa que me disseram sobre o tratamento foi que era algo que nenhuma pessoa decente toleraria.
Hmm, tudo bem. Acho que é isso. Depois de todo esse tempo sem fazer confidências a ninguém, Claire não estava disposta a contar tudo a Cliff.
— Eu pretendia lhe contar hoje, mas então… — Ele se afastou. — Sinto muito.
Então tudo isso aconteceu e você não teve a chance.
É de Cliff que estamos falando. Estava preparado para apostar que ele esbravejou contra Claire e Carlisle. O que vocês estão fazendo é errado. Devolvam Zenith e peçam desculpas a Rudeus. Esse tipo de coisa. Então Carlisle, acovardado pela raiva de Cliff, confessou. Cliff provavelmente se sentiu desconfortável com “algo que nenhuma pessoa decente toleraria”. Talvez o tenham feito jurar confidencialidade.
Foi por isso que aqui, na frente de todos os outros, ele tentou discutir comigo em vez de dizer tudo isso em voz alta. Ele achava que se conseguisse parar as coisas aqui e me convencer de que Claire realmente tinha os melhores interesses da Zenith no coração, haveria uma chance de reconciliação.
Não poderia dizer exatamente que era um bom plano… Ainda assim, foi elaborado por consideração a Claire e Carlisle. Isso era totalmente a cara de Cliff.
O importante aqui era que eu finalmente tinha todas as peças. Isso é um alívio.
Quando estava me sentindo melhor, Cliff olhou para toda a sala e disse:
— Tudo bem, permita-me perguntar novamente. Soubemos que tudo isso se deveu ao fato de uma mãe tentar ajudar sua filha. Você ainda quer dizer que juntar todos contra essa mulher para usá-la como bode expiatório em seus esquemas é a vontade de Santo Millis?
O Papa exibia seu sorriso sempre simpático. O cardeal ainda parecia mal-humorado. Os Cavaleiros da Catedral e os Cavaleiros do Templo pareciam aliviados, no máximo. Todos os olhos estavam voltados para Cliff.
— Este incidente foi um grande mal-entendido — continuou. — Felizmente, nenhuma pessoa foi morta. Esse caso começou com o amor de uma mãe. Admito que houve perda de tempo e prejuízos na confusão que se seguiu, alguns de vocês sofreram desconforto ou lesões temporárias, mas isso é tão importante assim? Não podemos deixar o passado para trás? Não podemos perdoar essa mulher e mostrar um pouco de misericórdia? — Cliff olhou para mim. — Rudeus, o poder de decisão é seu. Você foi o que mais sofreu aqui e ganhou este direito.
Já libertei a Criança Abençoada há muito tempo, pensei, mas ela ainda estava sentada ao meu lado e ainda sorria como se nada do que tivesse ouvido a tivesse surpreendido. Como se fosse uma verdadeira espertinha, enxergando tudo isso.
— Isso me parece justo — disse calmamente. Ainda havia algum ressentimento entre nós, mas eu teria tempo para ter uma boa e longa conversa com Claire mais tarde. Se ela fosse a pessoa que eu pensava que era, poderíamos resolver isso se conversássemos sobre o assunto. Ela provavelmente faria algo para me irritar ao longo do caminho, mas isso é normal quando se conhece pessoas.
— No entanto, tenho três condições — apontei e depois expus minhas exigências: — Primeiro, quero que a Criança Abençoada examine as memórias de minha mãe e veja se pode curá-la. — Dirigi essa pergunta ao cardeal, mas foi a Criança Abençoada quem respondeu.
— É claro que sim. Afinal, já tínhamos agendado. — Ela ainda tinha aquela atitude espertinha. Será que já sabia que iria examinar Zenith hoje? Poderia ser que se deixou ser sequestrada porque sabia e depois manipulou essa reunião? Isso era plausível.
— No entanto — acrescentou —, não tenho o poder de restaurar memórias perdidas. Duvido que esteja dentro de minhas habilidades curá-la…
— Mesmo assim, gostaria de experimentar. Não há objeções de sua parte, Vossa Eminência?
O cardeal fez um ruído de assentimento. Ele parecia estar de bom humor. Provavelmente porque viu que seus aliados, os Latrias, estavam saindo dessa mais ou menos impunes.
— Segundo, em troca de deixar tudo isso de lado, espero sua cooperação total e irrestrita com o Deus Dragão Orsted.
— Assim será — disse o Papa.
Já era esperado, mas o cardeal também acenou com a cabeça e murmurou:
— Tudo bem.
Talvez até consiga exigir as vendas das esculturas do Ruijerd, pensei. Parte de mim queria experimentar, mas decidi que era melhor encerrar com uma nota positiva. Por enquanto, tudo estava bem. Se ficasse ganancioso, isso me prejudicaria mais tarde.
— Agora, minha terceira e última condição — disse olhando para Claire e Carlisle que ficaram parados como estátuas, olhando para mim. — Peço para ser readmitido como membro da família Latria.
Foi assim que o incidente com Millis chegou ao fim: a primeira a reagir foi Therese. Sua mão foi até o seio e soltou o fôlego. Carlisle abaixou a cabeça, parecendo envergonhado, e Claire começou a chorar com soluços fortes. Estava dizendo algo que poderia ser “obrigada” e também “sinto muito”. Era difícil dizer por entre os soluços. Enquanto Claire chorava, Zenith colocou a mão em sua cabeça.
Tradução: NERO_SL
Revisão: Akira C-137
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