Zanoba
Houve um tempo em que eu não sabia discernir humanos de bonecos. A única diferença era que um falava e o outro não. Conforme fui crescendo, comecei a discerni-los um pouco melhor, mas ainda eram praticamente iguais pra mim. Se você os chacoalha um pouco, o braço ou a cabeça já sai do lugar, que nem uma marionete.
Eu amava bonecos. Todos eles. Sim, alguns eram mais bem feitos do que outros, mas eu adorava até os de qualidade inferior. Pra falar a verdade, o único tipo de boneco que eu não gostava era o humano. Por mais que fossem exatamente como bonecos, tudo o que eles faziam era reclamar e tentar tirar minha liberdade. Eu os odiava.
A minha visão só mudou quando conheci meu mestre e, ainda assim, foi algo que aconteceu gradualmente. Depois que ele foi embora, me dirigi à Cidade Mágica de Sharia, onde voltamos a nos encontrar. Em algum momento dos anos seguintes, deixei de odiar os humanos.
Suspeito que Julie foi responsável por isso. Ela era uma escrava que nós — falo do Mestre, Lady Sylphie e eu — escolhemos para ensinar a fazer estatuetas. Inicialmente, não conseguia nem falar ou cuidar de si mesma, o que fazia dela um fardo para nós.
Entretanto, o Mestre confiou a mim a responsabilidade de cuidar dela. Ainda que fosse uma tarefa chata, não era muito diferente de fazer estatuetas; pra criar uma, era preciso talhar um pedaço de madeira comum até que tomasse forma. Naturalmente, decidi ser diligente ao tomar conta da Julie e, um passo de cada vez, ensinei tudo a ela.
Em certo ponto durante esse processo, Julie deixou de ser um fardo. Fazia sentido: ela fazia o que era mandado e rapidamente absorveu as habilidades que o Mestre ensinou a ela. Observei pouco a pouco ela se transformar no tipo de humano que eu realmente gosto, então, obviamente, não conseguia odiá-la.
Só me dei conta disso, porém, quando Ginger apareceu. Aos meus olhos, Ginger era alguém que sempre encontrava defeitos em todas as coisas e nunca parava de falar disso, além de chamar as coisas mais banais e irrelevantes de “importantes”. Por exemplo, se estivéssemos falando sobre uma árvore, a preocupação dela era com o estado das folhas ou dos galhos, e mesmo que eu argumentasse que raízes fortes — ou um solo estável — eram o que fazia uma árvore ser saudável, ela nunca entendia o que eu queria dizer. Sinceramente, ela era uma dor de cabeça.
Foi apenas quando nos encontramos novamente em Sharia que deixei de vê-la assim. Ela ainda reclamava sem parar, mas, por algum motivo, isso não me incomodava. Por quê? Por que meus sentimentos mudaram tanto?
Sabia que isso tinha de ser por influência do meu mestre. Ele nunca me abandonou, por motivo algum. Não importava que eu fosse desajeitado, que tudo o que eu tinha ao meu favor era minha força física ou que eu destruía as estatuetas quando estava perto de terminá-las.
Não importava pra ele que eu não tinha tanta mana ou que eu não poderia cumprir suas expectativas. Também não parecia se ressentir por todo o esforço que desperdiçou tentando me ensinar suas técnicas secretas de criação de estatuetas.
Eu já tinha quase desistido do meu sonho. Estava convencido de que nunca criaria estatuetas por conta própria, de que era uma técnica reservada apenas aos deuses, mas o Mestre não jogou a toalha. Ele tentou todos os tipos de métodos para me ensinar, tentou encontrar algum jeito de me incluir no processo. Eu estava grato. Até aquele momento, nunca em minha vida tinham verdadeiramente me visto como uma pessoa.
Se não fosse pelo Mestre, provavelmente nunca teria percebido que Ginger também olhava para mim e me via.
Tolo como eu era, foi só então que entendi a diferença entre humanos e bonecos. Sabia que era importante fazer essa distinção, mas, novamente, sendo tão tolo,não entendia por quê. Apenas sabia que era. O Mestre não me deu toda a informação mastigada. Em vez disso, ele liderou pelo exemplo e me ajudou a entender isso por conta própria.
Estava em dívida com o Mestre por me guiar e também o respeitava por isso. Na verdade, me orgulhava de mim mesmo por ter reconhecido ele como meu mestre através da clarividência.
Sempre sendo um idiota, não conseguia entender algumas das ações do meu mestre. Lady Nanahoshi — a garota conhecida como Setestrelas Silente, Shizuka Nanahoshi — era um exemplo disso. Ela parecia estar estudando magia de invocação como um método de retornar para sua casa. Nunca explicaram direito onde exatamente ficava essa casa, mas nunca me interessei em saber. Pessoalmente, só tinha lembranças ruins da minha casa, então não conseguia simpatizar de forma alguma com seu intenso desejo de retornar para o lugar de onde veio. Pelo que sei, as lembranças do próprio Mestre de sua casa no Reino de Asura eram, em grande parte, amargas. Apesar disso, ele se dedicou a ajudar Lady Nanahoshi. Quando ela teve um colapso, ele a levou até sua própria casa e cuidou dela. Quando ela ficou mortalmente doente, ele viajou até o Continente Demônio para procurar um meio de curá-la.
Eu também ajudei, mas só porque não me importava de ajudar. Se o Mestre estivesse fazendo algo e tivesse de ajudá-lo, não pensaria duas vezes. Porém, isso não mudava o fato de que eu não entendia por que ele estava ajudando ela.
Foi em meio a tudo isso que algo dentro de mim mudou. Em dado momento, eu comecei a desenvolver um certo apego pelo meu local de nascimento. Havia dias em que me sentia bastante nostálgico pensando no palácio de Shirone, ainda que tivesse sido um período tão terrível. Nanahoshi sempre falava de sua casa, então só podia presumir que ela acabou passando isso pra mim. Foi provavelmente essa a razão de me sentir compelido a responder ao chamado do Pax quando recebi a carta dele pedindo ajuda. Eu genuinamente amava meu país e queria protegê-lo se surgisse a oportunidade, então, quando surgiu, eu senti que tinha de ir.
Eu estava errado.
Quando o Mestre tentou me persuadir a voltar para casa com ele em Forte Karon, meu coração vacilou. Eu cheguei a considerar. Meus dias eram tão satisfatórios e agradáveis em Sharia, fazendo estatuetas com o Mestre, que foi o suficiente para eu considerar abandonar minha terra natal, mas eu não consegui. Era como se houvesse uma barreira me impedindo de voltar atrás.
— Pax é meu irmão, então eu quero salvá-lo.
Isso não passava de uma desculpa que deixei escapar no momento. Foi um movimento calculado, já que sabia que era a única coisa que com certeza o convenceria. Ainda assim, essa resposta também mexeu comigo. Eu não sabia por quê. Tinha escutado antes que se você conta uma mentira, às vezes acaba acreditando nela. Inicialmente, pensei que fosse isso, mas não, não era.
Só quando presenciei Pax pulando da sacada e vi seu corpo sem vida que percebi a verdade. Isso trouxe de volta à minha mente uma memória de um passado distante.
Meu irmão mais velho, o segundo príncipe, organizou uma festa e eu fui convidado. Não me lembro agora qual a razão da festa, mas era do tipo em que a presença era obrigatória. Não me recordava se eu realmente tinha ido ou não.
A única coisa que eu realmente lembrava era que, por pura coincidência, o jovem Pax tinha se sentado ao meu lado. Isso foi antes de Lady Roxy começar a servir no palácio. Pax não devia ter mais de dez anos naquela época.
Nós não conversamos; apenas sentamos lado a lado. Senti que ele queria falar comigo, mas eu não quis puxar assunto. Sequer olhei na sua direção, e ele não teve coragem de dizer nada a mim. Mesmo que não tivesse me dito nada, de certa forma, eu tinha ignorado ele.
Enquanto eu segurava seu corpo morto em meus braços, pensei: “Por que eu não disse nada para ele naquele dia? Nem que fosse uma palavra ou duas.”
Isso dissipou qualquer dúvida que eu tinha. Eu finalmente entendi. Minhas ações confusas eram um reflexo das do meu mestre. Agora fazia sentido pra mim ele ajudar Lady Nanahoshi — ele provavelmente a via como uma irmã mais nova.
Por que não percebi isso antes? O Mestre tinha duas irmãs biológicas, e o modo como ele interagia com Lady Nanahoshi era quase idêntico a como ele tratava a mais velha de suas irmãs. Ficava de olho nela e, se houvesse qualquer problema, corria pra ajudar. Ele cuidava dela com tanto carinho quanto cuidava de suas irmãs de sangue.
Eu tenho feito muitas perguntas sobre mim mesmo. Por que ajudei o Mestre no Continente Demônio? Por que me vi lembrando de minha terra natal depois disso? Por quê, quando a carta do Pax chegou, ignorei todos ao meu redor que se opuseram e decidi voltar para casa? Após a batalha em Forte Karon, por que me senti compelido a resgatar o Pax? Por que disse aquela mentira sobre querer salvá-lo por sermos família? E, por fim, por que essa mentira mexeu tanto comigo?
Eu finalmente tinha as respostas. Tudo fazia sentido. As peças do quebra-cabeça se encaixaram.
Entretanto, era tarde demais. Esse foi o meu erro — entender tudo tarde demais. Pax estava morto. Não pudemos salvá-lo como fizemos com Nanahoshi.
Mesmo assim, ainda tinha algo que eu poderia fazer.
Rudeus
NÓS VOLTAMOS à Sharia. As pessoas costumam dizer coisas como “ir é fácil, difícil mesmo é voltar”, mas isso não se aplicava a nós; tivemos uma viagem de volta bem tranquila. Usei minha Armadura Mágica para puxar a nossa carruagem pra floresta, onde tínhamos preparado um círculo de teletransporte para nos levar de volta. Zanoba e eu trabalhamos juntos para desmontar minha armadura e carregá-la de volta à fortaleza flutuante. Roxy foi na frente, enquanto Zanoba e eu ficamos para trás para saudar Perugius.
Ele disse um breve “Entendo” quando nos viu e nós lhe contamos tudo o que havia acontecido. Depois disso, ele nos levou ao quarto onde havíamos conversado da última vez e nos ofereceu palavras de sabedoria:
— É tolice deixar qualquer país amarrar você.
Zanoba concordou, acenando com a cabeça de maneira sincera, e disse a Perugius que estava abandonando seu status de realeza, o que pareceu deixar o Dragão Blindado satisfeito. Ele nos encorajou, dizendo:
— Você fez a coisa certa.
Sinceramente, fiquei aliviado por não perder um amigo com quem gostava de tomar chá.
Nós também fomos visitar Nanahoshi, que reagiu ao nosso retorno com um longo suspiro. Eu entendia sua irritação; Zanoba retornar dessa forma arruinou toda aquela despedida sentimental e cheia de lágrimas que ela tinha feito.
De qualquer forma, Eris deveria dar à luz no mês seguinte. O mínimo que eu poderia fazer era estar com ela no parto. O problema era que, mesmo que eu quisesse ir direto pra casa, eu precisava fazer algo antes. Isto é, reportar a Orsted.
O Deus-Homem tinha mesmo puxado meu tapete dessa vez. O lado positivo era que eu havia tido sucesso em meu objetivo de trazer Zanoba de volta pra casa em segurança e eu não tinha morrido nem sido mutilado. O lado negativo era que tínhamos falhado em manter Pax vivo. Orsted já havia me dito que alguém fundamental para seus planos nasceria na República de Shirone, o que significava que ele tinha perdido uma peça importante no tabuleiro por conta disso. Foi uma derrota completa.
Pode ser que o nosso retorno tenha sido um pouco precipitado. Talvez tivesse sido melhor ficar por lá mais um pouco e influenciar as coisas para garantir que Shirone se tornasse uma república.
Não, se fosse tão fácil transformar uma nação numa república, Orsted não teria ordenado que eu mantivesse Pax vivo.
Independentemente disso, provavelmente era melhor ser totalmente honesto sobre como tudo terminou. Se eu pudesse fazer algo pra compensar esse revés, eu faria.
— Certo, Roxy, vou dar uma passadinha no escritório. Quero arrumar a Armadura Mágica. — eu disse.
— Beleza. Vou pra casa dizer a todos que estamos bem.
Nós nos separamos na entrada da cidade e eu fui direto para o escritório. Por algum motivo, Zanoba tinha decidido me acompanhar.
— Algum problema? — perguntei.
— Não, é que essa armadura me manteve vivo, então pensei em agradecer Orsted por me emprestar e me desculpar com ele por tê-la destruído durante nossa jornada.
— Ah, tá.
Era estranho Zanoba querer agradecê-lo diretamente. Eu pensei que a maldição de Orsted seria poderosa o suficiente para extinguir qualquer emoção positiva que Zanoba tivesse. Talvez essa súbita mudança fosse uma cortesia da minuciosa pesquisa do Cliff. Era possível que Zanoba fosse pra cima do Orsted assim que ficasse cara a cara com ele, mas desde que eu o segurasse, ficaria tudo bem, sem dúvida.
Nos sentindo confiantes, nós dois andamos juntos pelo resto do caminho até o escritório. Eu arrumei minha Armadura Mágica, tranquei a porta do armazém e me dirigi ao prédio principal. Passamos pelo saguão deserto e fomos direto ao escritório do chefe.
Respirei fundo antes de entrar. Afinal, eu estava prestes a relatar que eu havia falhado. Não que eu não tivesse falhado muitas outras vezes antes (eu tinha), mas essa tinha sido consideravelmente maior que as outras. Ele poderia me repreender por isso.
Talvez eu esteja com sorte hoje e ele deixe passar?
Não. Seria melhor acabar logo com isso.
Certo. Bom, primeiro de tudo… tenho que bater na porta.
Na verdade, uma batida suave na porta poderia melhorar o humor dele. Eu tinha que tomar cuidado para que minha batida fosse calma e educada. Levantei meu punho e bati levemente na porta.
— Rudeus, em? — ecoou uma voz do outro lado.
Queria muito que ele não estivesse lá dentro.
Apesar da minha ansiedade, eu já tinha preparado na minha cabeça uma explicação. Tudo que eu precisava fazer era dizer a verdade e ser honesto com ele.
— Desculpe-me pela intromissão! Eu, Rudeus Greyrat, finalmente retornei do Reino de Shirone! — Eu disse, abrindo a porta, entrando e fazendo uma grande reverência. Quando levantei a cabeça, deixei escapar um grito engasgado.
— Gah?!
Orsted estava usando um elmo preto cobrindo todo seu rosto. Eu só podia supor que esse novo rosto — ou… apetrecho mágico, eu acho — tinha acabado de ser produzido pelo Cliff.
— Parece que você regressou são e salvo — comentou Orsted.
— Ah, s-sim.
Seu visual acabou diminuindo minha confiança, mas eu segui em frente. Eu tinha decidido dar a ele o mais sincero e preciso relatório sobre o fracasso da minha missão. Sim, com certeza. Eu só tinha que dizer: “Sir Orsted, eu não alcancei absolutamente nada!”
Espera aí, isso não parece certo…
— Permita-me relatar o que aconteceu — comecei, e dei a ele uma visão geral dos eventos que se passaram. Eu pontuei todas as coisas. Falei de todas as minhas desconfianças, além de todos os sinais que eu não tinha notado. Enquanto eu falava, tomei cuidado para manter a cabeça no lugar e contar detalhe por detalhe, assim não teria problema se ele quisesse ser minucioso. Meu relatório tinha um ritmo próprio: primeiro, eu descrevia um evento e depois o que senti e pensei sobre ele, quem consultei pra tratar dele, quais conclusões eu tinha tirado e quais ações eu havia tomado. Depois, dizia a ele quais tinham sido os resultados. Também incluí minhas suspeitas sobre as motivações do Deus-Homem e como eu pensei em proceder em relação àquilo. Não deixei nada de fora.
— Minhas mais sinceras desculpas. Eu falhei em cumprir meu dever, permitindo, desta forma, a morte do Príncipe Pax.
Uma melancolia sufocante preencheu o ar. Não conseguia ler as expressões dele sob aquele elmo, e isso me deixou ainda mais amedrontado que de costume. Francamente, eu preferia ele sem o capacete.
Na verdade, falando nisso, por que ele tá usando aquela coisa mesmo? Ele não poderia simplesmente, sei lá, tirá-lo pra falar comigo?
— O Rei do Reino do Rei Dragão, Leonardo Kingdragon, é um dos discípulos do Deus-Homem. É bem provável que General Jade do Reino de Shirone também seja um. Ele os manipulou para encurralar Pax, forçando-o a cometer suicídio — disse Orsted.
Então havia dois discípulos envolvidos dessa vez. O Deus-Homem usou o monarca do Reino do Rei Dragão para apoiar Pax, que colocou na cabeça do príncipe que ele tinha que corresponder às expectativas do rei para que não fosse visto mais uma vez como um fracassado. O rei lhe deu de presente uma rainha e o Deus-Morte, o que deixou ele com todas as vantagens. No final, porém, o Deus-Homem usou Jade para orquestrar a queda de Pax.
Pelo menos, essa era a leitura que eu havia feito da situação. Se o Deus-Homem pudesse realmente ver o futuro, então ele sabia exatamente quais peças do tabuleiro teria que mover para levar Pax a tirar a própria vida. Não dava pra saber se minha interpretação estava correta, mas parecia ser a conclusão mais apropriada a se tirar.
— Quem era o último discípulo, então? — perguntei.
— Talvez o rei do Reino de Bista, embora exista a possibilidade de não haver um terceiro.
— Ah, parando pra pensar, o Deus-Morte mencionou que o Rei Demônio Badigadi pode ter sido um de seus discípulos um tempo atrás.
Orsted fez uma breve pausa, e então respondeu:
— Se ele fosse um discípulo desta vez, não faria sentido ele não aparecer.
Verdade. Badigadi era do tipo que gostava de estar sob os holofotes.
No que dizia respeito ao Deus-Homem, eu era uma irregularidade, então era possível que ele ativamente escolhesse pessoas que eu não tivesse conhecido. Infelizmente, eu tinha falhado em perceber isso dessa vez. Me senti patético.
— Poderíamos acabar com Jade, se quiser — sugeri.
— É tarde demais — a voz de Orsted não transmitia nenhuma emoção.
— Hum… eu sinto muito por isso.
— A minha previsão estava incorreta desde o princípio. Depois que me livrei do Leonardo, eu deveria ter ido ao Reino de Shirone pessoalmente ao invés de deixar tudo por sua conta. Esse foi o meu erro. Ainda assim… — seu tom de voz ficou mais baixo. Não parecia que ele iria me confortar e dizer para que eu não me preocupasse. Aparentemente, dessa vez, meu fracasso tinha sido mais abrangente.
— Não tem ninguém que poderia substituir o Pax? — perguntei.
— Não.
— Não existe mesmo nenhuma outra opção?
Ele não respondeu.
A República de Shirone era realmente tão importante para os planos dele? Eu tentei fazê-lo considerar outro caminho, mas ele dispensou meus conselhos duas vezes. E agora? Como eu iria resolver isso?
— Sir Orsted, se importa se eu falar?
Uma voz quebrou o silêncio. Olhei para trás e lá estava Zanoba. Há quanto tempo ele estava lá? Desde o princípio, eu acho, né? Ele não tinha falado nada esse tempo todo, então pensei que estivesse esperando lá fora.
— Zanoba Shirone, em? — murmurou Orsted, como se também não tivesse notado Zanoba ali até aquele momento.
Não, sem essa de “como se” — acho que ele realmente não o tinha notado. Ele provavelmente não conseguia ver nada na frente dele com aquele elmo. Pra falar a verdade, só então percebi que ele finalmente podia falar usando aquela coisa. Isso tinha que significar que ele conseguia efetivamente respirar lá dentro, o que não era possível antes.
— Primeiramente, permita-me demonstrar a minha mais sincera gratidão por ter me emprestado a sua armadura para usar durante nossa incursão à minha terra natal. Lamentavelmente, ela foi destruída no processo, mas ela me manteve vivo — Zanoba deu um passo adiante e curvou-se.
Eu ainda não conseguia ver a expressão de Orsted sob o elmo, mas pode ser que ele tivesse emitido uma aura ameaçadora se não o estivesse usando. Certo. Deve ser por isso que ele tá usando aquilo. Ele provavelmente sentiu a aproximação do Zanoba e exatamente por isso colocou o elmo.
— Se quiser agradecer alguém, agradeça ao Rudeus. Isso é tudo o que tinha para dizer?
— Não, não é.
Estranho. Há pouco, eu tinha a impressão de que sua única intenção era falar com Orsted, mas agora ele tinha ido além, como se tentasse emitir sua própria aura intimidadora.
— A julgar pela sua conversa de agora com o Mestre, entendo que Pax acabou ficando no meio de sua batalha com esse inimigo. Minha interpretação está correta?
Oh-oh. Será que ele pensou que era apenas isso que Orsted estava fazendo? Se sim, não seria melhor pará-lo agora?
— Pareceu, para mim, que você estava tentando salvar meu irmão mais novo. É isso mesmo? — Continuou Zanoba.
— Não, eu não estava tentando salvar ele especificamente. O meu interesse estava na pessoa que nasceria no país que seu irmão iria construir.
Confuso, Zanoba repetiu:
— O país que meu irmão iria construir? E o seu interesse estava na pessoa que nasceria lá?
Orsted estava sendo mais enigmático que o habitual. Honestamente, eu também gostaria de saber mais sobre tudo isso. Sem toda a informação, seria impossível para nós resolver a situação.
— Sir Orsted — interrompi — se possível, acho que gostaríamos receber uma explicação mais detalhada, por favor
Orsted não respondeu imediatamente. O silêncio dominou a sala, e foi quebrado apenas quando o ouvi respirar fundo dentro de seu capacete. Em outras circunstâncias, isso poderia ter aliviado um pouco a tensão na sala, mas eu senti raiva no modo como ele inalou o ar. Minha ansiedade aumentou mais ainda.
— Depois de se tornar rei, Pax Shirone criaria uma república — ele explicou. Ele havia falado aquilo antes. O que eu queria saber era o que aconteceria depois disso. — Depois que Shirone se tornasse uma república, um homem que antes havia sido comerciante de escravos ganharia destaque. Um homem chamado Bolt Macedonius. Pax nomearia este homem para uma posição importante.
Hum. Então a pessoa-chave que precisaríamos era Bolt Macedonius.
— Bolt Macedonius viria a ser uma autoridade na República e criaria raízes lá.
— Então, qual é o papel dele?
— Bolt em si não desempenha papel algum nos meus planos, mas um de seus descendentes daria à luz o Deus-Demônio Laplace.
Laplace? Então é daí que ele veio, em?
— Agora que Pax está morto — explicou Orsted —, eu não faço ideia de onde Laplace vai nascer.
Em outras palavras, Shirone se tornar uma república seria o primeiro passo para o renascimento de Laplace.
— Nesse caso, ainda podemos transformar Shirone numa república, ou ao menos garantir que Bolt Macedonius conheça a parceira que se esperava, para que se case e tenha filhos — propus.
— Não adianta. Você acha mesmo que eu não tentei isso antes?
Sem dúvida, Orsted havia tentado de tudo nos longos loops em que esteve preso. Aparentemente, o renascimento de Laplace era algo realmente imprevisível, e foi por isso que Orsted esperava identificá-lo, o que deixaria mais fácil de localizá-lo. Ele provavelmente vinha orquestrando tudo por centenas de anos para garantir que Laplace renasceria ali. Talvez algumas de minhas outras missões tenham contribuído com isso. Com um movimento errado, porém, o castelo de cartas inteiro veio abaixo.
— Para chegar ao Deus-Homem, preciso primeiro matar o Laplace — explicou Orsted. — Depois que ele reencarnar, vai ficar um tempo escondido antes de reunir seus companheiros e começar uma guerra. A partir de então, será necessário muito esforço e mana para nos livrarmos dele e de seus seguidores e, logo em seguida, enfrentarmos o Deus-Homem.
— Certo, então não existe a opção de derrotar Laplace, aguardar até que você recupere sua mana e só então enfrentá-lo? — Perguntei.
— A reencarnação de Laplace é certa. Sempre acontece perto do fim de um loop. Eu tenho tentado adiantar seu renascimento, mas sem sucesso — Orsted soltou um longo suspiro. — Passar por uma guerra como essa significa que não vou poder chegar ao Deus-Homem. Este loop é um fracasso.
Um fracasso. A palavra ficou ecoando na minha cabeça. O miserável dentro de mim gritou de volta:
Bom, então por que diabos você não veio pra Shirone se era algo tão importante?
Porém, fiquei em silêncio. Ele confiou essa missão a mim e eu havia falhado. Tinha sido um teste pra ver o quão útil eu era.
Acho que isso significa que acabou pra mim, em? Ele já deve estar cheio de mim, né? Presumo que isso signifique que ele vai desistir desse loop, mas se ele fizer isso, o que vai ser de mim? E quanto à minha família?
— Ainda é precipitado dizer que foi um fracasso — interrompeu Zanoba alegremente.
Zanoba, você entendeu tudo o que ele acabou de dizer? Eu imaginei que talvez ele estivesse confuso depois de toda aquela conversa sobre futuro e o que estava por vir. Ele disse:
— Se uma guerra está por vir e devemos acabar com Laplace e seus seguidores, então isso significa que deveríamos começar a preparar nossas próprias forças para combatê-los.
— Hum? — Disse Orsted.
— Não precisamos montar um exército inteiro, mas certamente poderíamos começar a reunir companheiros poderosos o bastante para encarar Laplace.
Ooh, Zanoba disse algo bem pertinente. O plano dele também fazia sentido. Se o principal problema era que a luta deixaria Orsted sem mana, então bastava que ele não precisasse lutar
— Eu entendo que sua maldição torna difícil para você reunir companheiros assim, mas você tem o meu mestre para ajudá-lo, e eu também vou auxiliar você —. Zanoba deu mais alguns passos adiante e se agachou sobre um joelho, curvando sua cabeça. — Ainda que minha proposta seja baseada apenas no que entendi de nossa breve conversa, não nego que possa ser algo equivocado.
Parecia ser uma boa ideia, mesmo que não soubéssemos se daria certo ou não. Se, como Orsted afirmou, o renascimento de Laplace tivesse sido tão consistente em todos os loops, então tínhamos cerca de oitenta anos. Durante esse intervalo, poderíamos formar um grupo de aliados poderosos — pessoas como o Deus-Morte ou Perugius — que poderiam bater de frente com Laplace quando ele retornasse. Com isso, Orsted chegaria ileso na batalha que se seguiria àquela.
— Não conheço todos os detalhes da situação — continuou Zanoba —, mas eu soube que vocês dois uniram forças para lutar contra esse “Deus-Homem”, como o chamam. Esse Deus-Homem… — Zanoba fez uma pausa e levantou seu queixo, encarando Orsted diretamente. Então bateu suas mão abertas no chão — foi ele que matou meu irmão mais novo! — Ele pressionou a testa contra o chão, prostrando-se. Ao menos ele não foi tão violento quanto costumava ser quando fazia aquilo, até manteve uma certa graciosidade. — Eu imploro, permita que eu também seja um de seus subordinados, Sir Orsted.
Silêncio.
— Eu quero vingar meu irmão!
Orsted virou levemente o pescoço, como se estivesse olhando na minha direção. Eu tinha certeza de que ele não conseguia enxergar nada usando aquele elmo, mas talvez ele quisesse ouvir minha opinião a respeito.
— Com Zanoba do nosso lado, poderíamos fazer um progresso maior com a Armadura Mágica. Acredito, também, que a sugestão que ele fez há pouco foi inteligente. Esse fracasso certamente aumentou nosso volume de trabalho futuro, então até um par de mão a mais ajudando seria—
— Muito bem — interrompeu Orsted, sem se importar em me deixar terminar. Ele assentiu e se levantou, olhando (ou pelo menos parecia que estava olhando) para Zanoba. — Sendo assim, quero que você trabalhe com Rudeus e receba ordens dele. Se você propõe que façamos mais aliados, então é isso que faremos.
— Sim, senhor!
Orsted fez sua declaração sem se importar em tirar o elmo. Zanoba manteve sua testa colada ao chão o tempo todo. Então, simples assim, eu tinha um novo colega de trabalho e Orsted um novo subordinado.
Pax estava morto e Shirone não se tornaria uma república. Esses dois fatos estavam totalmente fora dos planos de Orsted. Tínhamos perdido uma grande parte do progresso que havíamos feito. Tudo porque eu não tinha tomado as decisões corretas.
Por outro lado, Zanoba se tornou nosso aliado. Não tinha ideia do quanto aquilo significava no panorama geral, mas pelo menos a minha Armadura Mágica receberia melhorias constantes com Zanoba do nosso lado.
Eu me perguntava se estava provando ser útil ao Orsted ou não. Pelo que ele me disse, todos os meus esforços até aquele momento tinham dado a ele um considerável espaço para respirar, mas eu sentia que meu fracasso daquela vez tinha anulado todo o resto. Talvez estivesse me tornando mais um obstáculo do que um auxílio. Será que meus esforços no futuro seriam suficientes para compensar isso?
Não, eles têm de ser. Eu preciso me certificar de que serão. Caso contrário, não haveria sentido em Orsted me resgatar das garras do Deus-Homem.
Além disso, enquanto Orsted é capaz de casualmente abandonar um loop e pular para o próximo, eu tinha uma única vida. Já era um milagre que eu tivesse conseguido fazer tudo de novo, então era improvável que eu fosse sortudo a ponto de receber outra chance.
E mesmo que isso acontecesse e eu pudesse reviver como Rudeus Greyrat novamente, eu queria viver ao máximo a vida que eu tinha naquele momento. Eu já tinha sobrecarregado Orsted com esse vacilo. Se eu o atrapalhasse mais que isso, ele poderia começar a me ver como um intruso perigoso ao invés de simplesmente um idiota inútil — não que isso fosse muito melhor — e me cortar fora.
Se eu não juntasse os cacos e fizesse um bom trabalho agora, não haveria uma próxima vez. Se Orsted decidir que eu fiz mais mal do que bem, pode ser que no próximo loop eu seja usado pelo Deus-Homem novamente pra tentar encontrar um modo de voltar ao passado, apenas para que meu eu mais jovem enfrente Orsted e seja morto. Isso presumindo que ele não decidisse me matar logo de cara. Ele poderia me exterminar quando eu ainda fosse uma criança na Vila de Buena, ou depois que eu começasse a trabalhar como tutor da Eris, ou até mesmo quando nos aventuramos no Reino de Asura de novo depois de sermos teletransportados para o Continente Demônio. O que ele decidiria fazer comigo na próxima vez dependeria do que acontecesse dessa vez.
Orsted estava sendo gentil comigo agora. Eu tinha certeza de que havia diversas razões pra isso, mas provavelmente tinha sido um movimento calculado da parte dele. Eu não poderia esquecer que ele estava sempre pensando em seu próximo loop e que era perfeitamente possível que ele estivesse me observando pra ver o que me agradava e o que desagradava.
Durante esta missão, eu estava sendo muito dependente dele, como de costume. Algo dentro de mim me dizia que, desde que eu obedecesse aos seus comandos, viria em meu socorro se eu estivesse encurralado e precisasse de ajuda. As coisas magicamente dariam certo. Uma parte de mim realmente acreditava nisso.
Eu não podia continuar usando Orsted como uma muleta. Jurei para mim mesmo que eu não faria mais isso.
Tradução: Marlon5
Revisão: B.Lotus
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