O inverno havia chegado e a cidade de Sharia, no Reino de Ranoa, estava coberta de neve. Graças aos famosos implementos mágicos da cidade, as estradas e os principais caminhos foram mantidos livres, mas enormes pilhas de neve logo se acumularam nas laterais e atrás do prédio principal da escola.
Pouco depois do início desta estação, uma carta chegou até mim. Era de um certo Soldat Heckler, aventureiro de rank S e chefe do grupo Líder Escalonado, e me informava que Soldat tinha acabado de chegar na cidade. Aparentemente, havia algum tipo de conferência de clã acontecendo. Raio, o clã ao qual o Líder Escalonado pertencia, foi oficialmente convocado para esta cidade para lutar contra o Rei Demônio Badigadi. Mas quando esse pedido foi cancelado antes da sua chegada, acabaram vagando pela cidade por algum tempo, e eventualmente decidiram realizar seu encontro anual do clã nesse lugar. Todo inverno, levavam dois ou três meses para conversar sobre as coisas e fazer planos para o futuro.
Soldat era um aventureiro de rank S e membro da liderança do clã. Decidir não comparecer à conferência não era uma opção, então foi forçado a vir até o Reino de Ranoa. O homem não se dava muito bem com o líder de seu clã e, honestamente, tinha receios por causa disso. Ele estava convencido de que tinha alguns longos e tristes meses pela frente. Mas então, em seu caminho, se lembrou que seu velho amigo Atoleiro estava hospedado nesta cidade. Já que o destino nos une de novo, podemos muito bem aproveitar a chance para nos reconectar. Assim sendo, me enviou uma carta com um convite para algum dia comermos juntos.
A ideia também me atraiu. Soldat era um cara legal e eu devia muito a ele. Ele tinha um passado com Elinalise, então achei que seria um pouco estranho apresentá-lo ao novo e dedicado namorado dela… mas ele era feito de um material mais resistente do que eu. Provavelmente superaria isso com bastante facilidade.
Com isso decidido, avisei Nanahoshi que faria uma pausa em nossos experimentos no próximo dia de folga. Convidei Fitz para se juntar a mim, mas ele franziu a testa e balançou a cabeça.
— Desculpe, tenho outra coisa para fazer nesta tarde. Estarei protegendo a Princesa Ariel.
A vida de um guarda-costas não era fácil. Todo mundo podia ter o dia de folga, mas ele ficaria de plantão do amanhecer ao anoitecer. Que pobre coitado.
Não, não. Eu estava sendo rude com o Mestre Fitz. Ele só era dedicado ao trabalho. Em qualquer caso, eu não poderia pedir que ele abrisse mão de suas responsabilidades. Era uma pena que o Mestre Fitz não pudesse ir, mas talvez fosse melhor assim. Parecia que só Elinalise, Cliff e eu íamos nos encontrar com Soldat.
Quando o dia chegou, nós três caminhamos juntos para a Guilda dos Aventureiros. As estradas da cidade estavam claras o suficiente, mas sua superfície ainda estava branca e com uma camada de neve pisoteada. O material era removido regularmente ao longo do dia, mas as tempestades de neve sempre ficavam mais intensas à noite, e a remoção de neve mágica da cidade não conseguia acompanhar isso.
— Ei! Rudeus, está me ouvindo?
— O quê? Claro que estou ouvindo.
Nos últimos minutos, Cliff vinha se gabando de seus planos para a sua própria pesquisa. Ele já vinha há algum tempo afundando em intensos estudos sobre maldições, com o objetivo final de livrar Elinalise. Mas as maldições existiam desde os tempos antigos e eram um objeto de estudo contínuo ao longo de toda a história, então se livrar de uma não era tão fácil quanto se imagina. Apesar de toda a bravata de Cliff, seis meses de pesquisa dedicada ainda não resultaram em nenhum grande sucesso.
— Isso não é difícil, trabalhar tão duro e não conseguir nenhum resultado?
— Não estou nem um pouco preocupado — disse Cliff, sua voz cheia de genuína confiança. — Eu sou um gênio, então eventualmente vou descobrir algo!
Esse era um cara a se admirar. Eu sabia que jamais conseguiria algumas coisas, não importa o quanto tentasse; provavelmente não conseguiria me motivar a ficar batendo em uma barreira intransponível como essa. Abrir caminho para uma nova fronteira jamais alcançada era, na verdade, algo que só um “gênio” poderia esperar fazer.
— Ainda assim, se você descobrir alguma coisa sobre maldições, espero que compartilhe seu conhecimento comigo.
— Hm…?
Parei por um momento para pensar nisso. Senti como se tivesse ouvido a palavra maldições aparecer algumas vezes durante minha jornada do Continente Demônio para esta cidade.
— Uh, vejamos…
Exatamente onde foi que ouvi? Maldições, maldições… por algum motivo, o som da palavra me fez querer estremecer de medo. Provavelmente porque Orsted tinha algumas delas. Foi o Deus Homem que falou sobre isso, certo?
Pensando bem, ouvi que o Deus Demônio Laplace também era amaldiçoado. Ele supostamente a transferiu para as lanças que deu aos Superds, condenando-os a séculos de perseguição.
— Bem, ouvi dizer que Laplace uma vez transferiu a maldição dele para vários objetos e os usou para a transferir a uma certa tribo de demônios.
— Objetos…?
— Certo. Para ser mais específico, as lanças que os Superds usaram durante a Guerra de Laplace. Graças à maldição naquelas armas, eles perderam a sanidade e acabaram ganhando a reputação de assassinos inescrupulosos.
Cliff arregalou os olhos.
— O quê? Eu nunca ouvi sobre isso antes! Será que é verdade mesmo?!
— Bem, ouvi isso de terceiros, então não posso afirmar com certeza.
Foi o Deus Homem quem me disse isso, não? Sim, parecia isso mesmo. Acreditar na sua palavra me parecia seguro. Eu não conseguia imaginar o que ele ganharia ao me contar uma mentira dessas.
— De qualquer forma, esse é um conceito muito intrigante. Eu não sabia que era possível transferir uma maldição para um objeto. — Cliff levou a mão ao queixo e acenou com a cabeça, pensativo, aparentemente ponderando a respeito da ideia.
— Mas não sei como você faria isso. Sinto muito.
— Está tudo bem. Só saber que isso já foi feito é bem útil.
Mas alguém além de Laplace já tinha conseguido algo do tipo? Parecia o tipo de truque maligno que se esperaria que um Deus Demônio usasse, mas não me surpreenderia se houvesse algum tabu antigo contra brincar com esse tipo de coisa.
Dito isso… Crianças Abençoadas e Amaldiçoadas supostamente eram a mesma coisa, certo? Talvez houvesse um precedente de ao menos tentar mover uma bênção para algum recipiente.
— Hmm. Cliff, você sabe se alguém já tentou transferir uma bênção, em vez de uma maldição?
— Hm? O que uma bênção tem a ver com isso? — disse Cliff, inclinando a cabeça com curiosidade.
Estranho. Parecia que nem estávamos falando sobre a mesma coisa.
— Uh, bem, as Crianças Abençoadas são iguais às Amaldiçoadas, certo? Todos nascem com algo esquisito em sua mana, o que lhes dá poderes estranhos. A única diferença é se o efeito passa a ser positivo ou negativo.
— Isso é novidade para mim…
Olhei para Elinalise em busca de reforços, mas ela também estava olhando para mim com surpresa. Era óbvio que nenhum dos dois tinha ouvido isso antes. Será que não era um fato conhecido? Mas eu parecia me lembrar de alguém mencionando isso de um jeito bem casual…
Espera, foi o Deus Homem também.
Isso era tudo informação dele, não era? Aquele cara precisava parar de despejar conhecimento misterioso e obscuro em mim como se isso não fosse nada.
— Mesmo assim, isso tudo é bem interessante… Objetos, eh? Muito interessante, de fato… Eu talvez pudesse tentar isso… — Cliff estava se contorcendo de empolgação. Ele parecia convencido de que eu tinha dado uma pista importante. Para ser bem honesto, acho que estava engolindo tudo o que eu disse com um pouco de facilidade demais, mas, que seja.
De qualquer forma, parecia que as maldições tinham alguma conexão com os chamados deuses deste mundo. O Deus Homem, o Deus Dragão e o Deus Demônio tinham todos ao menos uma. E então havia as Crianças Abençoadas, que eram supostamente de alguma forma “divinos”. Havia alguma conexão significativa nisso, ou era só coincidência?
— Obrigado, Rudeus. Acho que você me ajudou a ter uma ideia!
O rosto de Cliff estava cheio de otimismo e energia. Enquanto ele estava nisso, talvez pudesse encontrar uma maneira de consertar a “maldição” que afligia minhas partes íntimas.
— Ei, Atoleiro! Há quanto tempo!
Soldat e seus amigos me cumprimentaram com sorrisos agradáveis; em poucos minutos, havíamos chegado a uma taverna próxima e nos acomodado em torno de uma grande mesa.
Quando ouviram sobre o relacionamento de Cliff e Elinalise, os membros do Líder Escalonado ficaram… chocados, para não dizer mais.
— Mas que diabo? — soltou alguém, sufocando uma risada. — Você vai mesmo se casar? E eu aqui pensei que você ia ser uma vadia para o resto da vida.
Cliff explodiu de raiva, é óbvio. Mas Soldat e os outros acharam isso simplesmente hilário, o que levou a fúria do garoto a novos patamares. Por um momento, pensei que as coisas ficariam complicadas. Por sorte, Elinalise de alguma forma acalmou o namorado e, ao mesmo tempo, mudou de assunto. A mulher às vezes era bem impressionante, especialmente quando se tratava de controlar casos de raiva.
Pensando bem, nunca a vi ficando com raiva ou caindo em prantos. Ela às vezes ficava mal-humorada, é claro, mas nunca muito chateada. Paul era a única pessoa que mencionou odiar. O que diabos meu velho fez com ela, afinal?
Enquanto eu refletia sobre isso tudo, o assunto de alguma forma foi direcionado para a minha roupa. Estava usando o meu uniforme escolar, assim como de costume.
— É engraçado ver você com essa roupa, Atoleiro! Te faz parecer com qualquer novato aleatório!
Alguns alunos da Universidade de Magia criavam o hábito de vir para a Guilda dos Aventureiros ainda usando seus uniformes, com no máximo uma capa colocada sobre eles. Eram quase todos novatos de rank F ou E, então não interagiam com o grupo de Soldat com muita frequência. Mas às vezes, apareciam implorando por um convite para o Raio.
— Hmm. Bem, se agora eu sou um novato, por que não ajo como tal e carrego a sua bagagem para você?
— Hah! Boa tentativa, criança. Ninguém toca em nossas coisas além de nós!
— Tá bom, tá bom. Parece que me lembro de você escondendo todos os bens daquele dragão perdido…
— Ah, cara, aquele foi um dia e tanto…
Relembrar essas coisas era divertido. Quando derrubei aquele Wyrm Vermelho, o grupo todo carregou a sua carne e escamas de volta para a cidade, para que fosse tudo igualmente dividido.
— Ah, claro. Aliás, Atoleiro! Então, estávamos no Neris Tundra no outro mês, e…
Desse ponto em diante, a conversa mudou de relembrar o passado para histórias das aventuras recentes do Líder Escalonado. Cliff ainda ficou algum tempo parecendo mal-humorado, mas à medida que Soldat e os outros continuaram, seus olhos começaram a brilhar de excitação. Pensando bem, no passado ele sonhava em se tornar um aventureiro, certo? Acho que ele ainda é só um adolescente. É fácil esquecer disso, dada a forma como Cliff costuma agir.
— E no final pelo menos saímos de lá inteiros… Enfim, está na hora de irmos para outro lugar, né? Onde vamos?
Todos nós terminamos de comer e a história estava acabando. Parecia um bom momento para encontrar outra taberna e começar a beber de verdade, mas… Um mensageiro do clã apareceu do nada, logo quando estávamos saindo.
— Ei, Soldat. Acabaram de convocar outra reunião.
— O quê, de novo? Isso é sério? Já ficamos nisso pela manhã toda!
— Sinto muito, mas é isso. Acho que hoje o líder está bem cheio de energia.
Pelo jeito, Soldat estava sendo chamado para uma reunião repentina de líderes de grupo, e recusar-se a aparecer não era uma opção.
— Merda. Foi mal, Atoleiro. Eu estava ansioso para desperdiçar o dia e encher a cara contigo, mas acho que não vai rolar. Vamos continuar com isso outra hora, hein?
— Sem problemas, Soldat. Pode me enviar uma mensagem sempre que estiver livre. — Com um aceno firme de cabeça, Soldat desceu a rua a passos largos.
Qualquer que fosse o caso, tínhamos perdido o anfitrião da nossa festa, então devia ser hora de encerrar o dia. Entretanto, ainda estava no início da tarde – umas 14:30, no máximo. Se eu já fosse para casa, ficaria com muito tempo para matar.
— O que vamos fazer agora? — perguntei, olhando pelo grupo.
— Bem, na verdade — disse Elinalise —, eu esperava que pudéssemos ensinar uma ou duas coisas sobre aventuras ao Cliff.
— Ah, é?
Interessante. Elinalise devia ter percebido como o seu namorado ficou animado com as histórias do Líder Escalonado e decidiu mostrar o seu talento como aventureira.
— Aah, isso sim parece divertido. Educar um novato, hein?
— Podemos ir junto?
Os outros membros do Líder Escalonado também pareceram aprovar a ideia. Depois de um pouco mais de conversa, todos concordaram em dar a Cliff um gostinho da vida de aventureiro. A ideia era aceitar um pedido para matar um monstro de rank A e dar a ele alguma experiência real. Cliff estava meio mal-humorado com a forma meio condescendente com que todos falavam dele, mas sua empolgação pareceu superar isso.
— E quanto a você, Rudeus? — perguntou Elinalise.
— Bem… Acho que vou deixar para a próxima. — Eu poderia dar alguns conselhos sobre como contribuir em um grupo com vários magos a Cliff, mas, de alguma forma, não achei que ele gostaria de receber uma palestra de alguém mais jovem. Em situações assim, era mais fácil engolir o orgulho, já que todos os que estavam ensinando eram mais velhos.
Além disso, passar alguns dias caçando um monstro ardiloso não me parecia a melhor das ideias. Se eu não falasse com Nanahoshi antes, poderia imaginá-la ficando muito, muito irritada. Apesar de seu auto-imposto isolamento, a garota parecia estranhamente faminta por qualquer companhia. Ela ficava mal-humorada toda vez que eu passava um ou dois dias sem ajudar. Se queria ser uma verdadeira reclusa, precisava aprender a saborear o estilo de vida solitário. Claro, ela parecia sentir muita falta do Japão, então eu conseguia entender os motivos para querer alguém com quem conversar em sua língua nativa. Porém, como alguém que decidiu continuar vivendo neste mundo, era difícil resistir a dizer para que a garota começasse a sair do quarto com mais frequência.
— Então tá bom. Então você avisa a todos para onde estamos indo?
— Claro, sem problemas. Tome cuidado, Elinalise. Vocês estão com um iniciante, então não o arrastem para algum lugar muito perigoso.
— Não se preocupe, Rudeus. Ao contrário de uma certa pessoa, não estamos planejando desafiar um Wyrm Vermelho ou um Rei Demônio.
Não era como se eu tivesse lutado contra Badigadi porque queria, mas tá bom. Tanto faz.
Depois de me despedir, voltei sozinho para a Universidade. Partindo do Distrito dos Aventureiros, precisava atravessar a praça comercial central de Sharia. Quando entrei na área, o cheiro tentador de espetinhos de carne grelhada soprou até mim. Olhei em direção ao cheiro e descobri que vários mercadores montaram barracas ao ar livre, apesar da neve em todo canto. Cara, deve ser difícil fazer negócios nesse frio…
Ainda assim, eu tinha tempo livre para gastar. Eu poderia voltar aos dormitórios, mas não tinha muito o que fazer por lá, fora estudar, praticar e fazer estatuetas. Talvez acompanhar Cliff e os outros teria sido algo mais inteligente do que ficar pensando muito no assunto. Bem, tarde demais.
— Bom, já estou aqui. Olhar os arredores não vai fazer mal. — Saí sem rumo pelas ruas do Distrito Comercial.
Não precisava de nada em particular, mas talvez encontrasse algo interessante. Depois daquela discussão com Cliff, fiquei um tanto interessado nos vários tipos de itens mágicos existentes. Afinal, aquelas lanças amaldiçoadas que Laplace deu aos Superds deviam ser implementos mágicos de algum tipo.
Até esse momento eu não tinha gasto muito tempo pensando em itens mágicos, já que os que eram encontrados à venda eram incrivelmente caros. Mas Fitz parecia se equipar com alguns, e Nanahoshi tinha os seus próprios artefatos, também úteis. Sharia era basicamente a cidade natal da Guilda dos Magos. Eu talvez encontrasse algumas coisas interessantes à venda. Não estava planejando comprar nada, mas olhar as vitrines não faria mal a ninguém.
Incidentalmente, embora eu tenha a princípio confundido as duas coisas, itens mágicos e implementos mágicos eram duas coisas distintas. Os implementos mágicos eram objetos feitos pelo homem com círculos mágicos gravados neles. Quando o usuário entoava um encantamento específico, sua mana fluía pelo objeto e produzia algum efeito. Desde que a mana do usuário não acabasse esgotada, poderiam ser indefinidamente reutilizados. Os itens mágicos, por outro lado, eram objetos infundidos com seu próprio suprimento de mana. Eles eram ativados por meio de algum tipo de gesto ou ação. Só podiam revelar os seus efeitos algumas vezes por dia, mas seu suprimento interno de mana se regeneraria com o passar do tempo.
Resumindo: os implementos mágicos poderiam ser usados rapidamente e em sucessão, mas exigiam o uso de mana, enquanto os itens mágicos tinham usos limitados, mas não exigiam nada do usuário. Itens mágicos eram geralmente considerados mais práticos e úteis, já que não precisava gastar sua preciosa mana ou memorizar um encantamento para usá-los. Mas a maioria dos que existiam foram encontrados nos labirintos, e os seus usos eram meio que aleatórios. Assim sendo, aqueles com efeitos poderosos tendiam a alcançar preços astronômicos. Aquelas botas que Fitz usava, por exemplo, provavelmente valiam muito mais do que todos os bens que eu possuía somados. E só para lembrar, algumas das armas conhecidas como “espadas mágicas” foram feitas pelos homens, mas também tinham as qualidades de um item mágico.
Claro, eu tinha mais mana do que suficiente para fazer o que quisesse, então implementos mágicos também me serviam bem. Mesmo aqueles que usavam muita mana para serem úteis para a maioria das pessoas poderiam ser úteis para mim. Eu esperava que em algum momento pudesse tropeçar em algo do tipo, algo erroneamente classificado como um produto “defeituoso”, caso procurasse o suficiente pelas lojas.
Mas então, enquanto caminhava por alguma rua aleatória, notei dois rostos familiares.
— Hm?
Luke e Fitz estavam conversando na frente de um tipo de loja de roupas. Fitz estava olhando para alguma bugiganga na vitrine com uma expressão encantada no rosto. Luke também estava sorrindo, embora parecesse ligeiramente exasperado. Ele já estava carregando uma enorme sacola de compras em uma das mãos. Parecia até que estavam em um encontro.
Fitz não disse que estaria protegendo Ariel? Não tem problemas em os dois ficarem assim? Bem, tanto faz. Dizer pelo menos um oi não custa nada…
— Boa tarde. Eu não esperava encontrar vocês dois aqui.
— O qu… Rudeus?!
Luke se virou, seu rosto endurecendo diante do choque. O homem, como sempre, parecia não gostar muito de mim. Eu estava tentando o meu melhor para não ser um pé no saco, mas acho que nos últimos tempos acabei por receber atenção demais. Isso provavelmente era uma fonte de irritação para eles. Entretanto, tudo com o que eu me importava mesmo era manter uma boa relação com Fitz.
— Hm…?
Fitz parecia, de alguma forma… diferente. Será que era a roupa? Não. Era alguma outra coisa. Eu não conseguia definir o que era.
— Mestre Fitz, você mudou o seu visual ou algo assim?
Assim que as palavras saíram da minha boca, Fitz estremeceu e olhou para mim com uma expressão de puro choque no rosto. Será que é assim que normalmente ficava? Seu corpo também parecia… de alguma forma um pouco mais arredondado.
Enquanto eu continuava a estudá-lo, Fitz desviou o rosto do meu. Um instante depois, Luke se colocou entre nós dois.
— Olá, Rudeus. O que você está fazendo aqui? Podemos ajudar em algo?
Parecia que ele estava escondendo Fitz de mim… como um namorado superprotetor ou algo assim. Seu tom era calmo e, embora seu olhar fosse afiado, não era abertamente hostil. Ainda assim, havia uma tensão clara em sua voz. Será que o momento do nosso encontro foi inconveniente?
Os dois estavam mesmo saindo em um encontro? Será que Luke jogava para os dois lados, e ambos tivessem algo juntos? Tentar manter isso em segredo até que faria sentido. Se descobrissem que os guardiões de Ariel eram amantes, alguma agitação poderia ser criada.
Mas não pensei que fosse esse mesmo o caso, claro. Só que, por alguma razão, o pensamento me fez estremecer.
— Na verdade não. Acabei vendo vocês e resolvi passar para dizer olá… Uhm, Mestre Fitz?
Fitz não olhava em minha direção já há algum tempo. …Hã? Ele está me tratando com indiferença? Mas por quê? Será que foi algo que eu disse?
— Entendo. Obrigado pelos cumprimentos. Devo lembrá-lo, porém, de que Fitz não deve ficar conversando enquanto está protegendo a Princesa. Tenho certeza que você entende.
Suas palavras foram superficialmente amigáveis, mas Luke estava tentando me afastar. Ao menos uma coisa estava clara. Eu com certeza apareci em um momento inconveniente. Ainda assim, me ignorar desse jeito parecia muito chocante da parte de Fitz…
Ele ainda não estava nem olhando para mim. Bem, não. Ele às vezes me lançava alguns olhares, mas não eram exatamente amigáveis. Eu poderia dizer que ele estava de testa franzida. Sua linguagem corporal deixou muito claro que estava impaciente pela minha partida. Às vezes posso até ser meio desatento, mas até eu pude ver que ele estava me esnobando.
— Qual o problema? — perguntou Luke calmamente.
— Não é nada. Por favor, desculpem-me.
Me virei e saí em silêncio. Acho que não deixei nada transparecer, mas, por dentro, isso me destruiu. Ser evitado daquela forma por Fitz doía tanto que eu mal conseguia pensar direito.
Eu tinha perdido todo o interesse em olhar as vitrines. Era hora de ir para casa.
A estrada à minha frente estava coberta por uma camada de neve ligeiramente suja. E estava nevando de novo, é claro.
Neste dia o vento estava muito frio.
Lentamente, voltei para o campus da Universidade.
Pensei um pouco nas coisas enquanto caminhava, mas não consegui encontrar nenhuma explicação para o motivo de Fitz ter me tratado daquele jeito. Pelo que me lembrava, não tinha feito nada para aborrecê-lo. Eu meio que queria conversar com alguém. Ou talvez só desabafar.
Zanoba estava na Guilda dos Magos, ajudando-os em sua pesquisa sobre as Crianças Abençoadas. Ele provavelmente tinha levado Julie consigo. Linia e Pursena eram, tecnicamente, uma opção, mas eu não estava muito otimista de que levariam isso a sério. Deveria acabar com elas tirando conclusões precipitadas e me provocando sem parar. Elinalise e Cliff não eram uma opção, é claro. Badigadi também não parecia estar pelo campus. E Nanahoshi… meio que estava ocupada com seus próprios problemas.
Não consegui pensar em ninguém a quem recorrer. Eu não tinha muitos amigos.
No final, fui direto para a biblioteca. Em momentos assim, era melhor sentar em um lugar quieto e se perder em um livro idiota por um par de horas. Uma história de heroísmo ou aventuras poderia cair bem. Será que alguma história sobre Badigadi e Kishirika foi transformada em livro? Era esse o tipo de coisa que eu estava querendo: a história de dois guerreiros incomparáveis, golpeando magos lamentáveis enquanto gargalhavam…
Entrei na biblioteca, fazendo um aceno de leve com a cabeça para o guarda. Nunca tivemos nenhuma conversa real, mas eu aparecia com frequência o suficiente para que ele me deixasse entrar sem me parar. Parei por um momento para tirar a neve das minhas roupas, usei um feitiço não verbal para me secar rapidamente e depois me dirigi para o meu lugar de sempre com um pequeno suspiro de alívio.
O prédio estava, como esperado, quase vazio. Não existiam muitos alunos que passavam os dias de folga na biblioteca. Neste mundo, a literatura em geral não era tão ampla… afinal, a taxa de alfabetização não era das mais altas.
— Hein…?
Fitz estava, de alguma forma, presente. Ele estava sentado à mesa que geralmente compartilhávamos, lendo um livro com a cabeça apoiada nas mãos e uma expressão um pouco entediada no rosto.
— Ah! Olá, Rudeus. — Quando ele percebeu que eu estava me aproximando, olhou para cima com seu sorriso tímido de sempre. — Já voltou? Achei que você ficaria fora até tarde. Encontrou o seu amigo?
— Uh, sim… — Me sentei do outro lado da mesa de Fitz e estudei o seu rosto com bastante cuidado. Ele parecia… normal. Suas roupas e maneirismos eram os mesmos de sempre.
Havia algo de muito estranho nisso tudo. Lá fora corri de onde ele estava e fui direto para a biblioteca. O caminho que segui era, resumindo, o mais curto de todos. E como diabos ele chegou na minha frente?
— Uh, algum problema? Tem algo no meu rosto? — disse Fitz, passando a mão ansiosamente pelo rosto.
Essa era a outra coisa, essa mesma. Por que ele estava agindo assim? Tinha esnobado de mim há cinco minutos, mas agora parecia totalmente relaxado e confiante.
— Por que você me ignorou daquele jeito?
A pergunta saiu da minha boca antes que eu pudesse me conter. O sorriso de Fitz congelou. Depois de um momento, ele cuidadosamente assumiu uma expressão séria.
— Bem, sabe… Na verdade, não devo falar com ninguém quando estou de guarda. Sou o Fitz Silencioso e tal, lembra? Minha voz é meio infantil, então as pessoas não me levam a sério quando eu falo. Quando estou em público, principalmente quando estou protegendo a Princesa Ariel, ela quer que eu fique o mais quieto possível.
— Então é isso? Mas eu não vi a Princesa Ariel por lá.
— Ah, ela estava em uma das lojas de roupas. É um lugar em que sabemos que podemos confiar. E Luke e eu não somos os únicos guardas dela. Os outros estavam de vigia ao lado da Princesa enquanto vigiávamos de longe. Uhm, mas não conte sobre isso para ninguém.
As palavras de Fitz saíram suavemente, sem qualquer momento de hesitação. Era quase como se ele já tivesse ensaiado tudo com antecedência.
— Entendo. Bem, então sinto muito por te atrapalhar enquanto estava trabalhando.
— Ah, está tudo bem! Também, sinto muito. Eu não estava tentando ser rude nem nada.
Eu estava começando a ter uma ideia do que realmente estava acontecendo. Não tinha como ter certeza absoluta, mas… era provável que a Princesa Ariel de alguma forma tivesse assumido a aparência de Fitz como um disfarce. Devia haver algum item ou instrumento mágico de alguma forma envolvido nisso tudo. Ela não tinha falado comigo porque sua voz não seria afetada pelos poderes da coisa. Será que a cor dos olhos também não tinha mudado? Isso explicaria por que Fitz ficou até com os olhos escondidos. Caso contrário, a revelação de que Ariel precisava se disfarçar como se fosse ele poderia ser perigosa.
Sim. Quanto mais eu pensava nisso, mais sentido parecia fazer. O motivo pelo qual “Fitz” me evitou antes era bastante simples. Eu era amigável o suficiente com a pessoa real e teria percebido através de sua tentativa de imitá-lo.
Certo. Afinal, eu não tinha feito nada para que ele ficasse com raiva. Essa me pareceu uma boa explicação. Vamos adotá-la.
— Ah, isso é um alívio. Achei que você agora me odiasse, Mestre Fitz. Por um minuto fiquei muito preocupado.
— Ahaha… Não seja ridículo, Rudeus. Eu não poderia te odiar, mesmo se tentasse…
Fitz coçou atrás das orelhas, envergonhado. Ele fazia esse gesto o tempo todo, mas, ultimamente, meu coração disparava sempre que isso acontecia. Afinal, por que uma pessoa tão adorável tinha que ser um cara?
Supondo que fosse mesmo… Eu ainda queria acreditar no contrário.
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Nos últimos tempos Fitz tinha ocupado muitos dos meus pensamentos.
Como sempre, só nos encontrávamos uma vez a cada poucos dias. E não era como se tivéssemos muito o que conversar quando o fazíamos. Mas, mesmo assim, eu não conseguia parar de pensar nele. Às vezes, me pegava lembrando dos pequenos gestos que ele fazia. A maneira como coçava as orelhas. A maneira como se espreguiçava ao terminar alguma tarefa. Outras vezes, pensava em seu cheiro – a maneira como eu sentia seu cheiro quando ele passava por mim no corredor. Acima de tudo, pensava em seu sorriso. Aquele sorrisinho tímido dele se recusava a sair da minha cabeça.
Isso não era diferente nos dias que eu não o via. Sempre que me deparava com uma multidão de alunos, me descobria procurando por ele.
Em minha defesa, devo dizer que Fitz quase sempre estava no meio da multidão. A Princesa Ariel e seus lacaios eram famosos nesta escola. Quando saíam para tratar dos assuntos do conselho estudantil, um punhado de gente era atraída e formavam uma imensa multidão de curiosos. E mesmo naquele grupo de pessoas atrativas, Fitz, em particular, recebia muita atenção. O Fitz Silencioso raramente falava em público, mas era um dos guardas de maior confiança da Princesa e um dos magos mais habilidosos de toda a Universidade. Não era de se surpreender que as pessoas se interessassem nele.
Eu mesmo já era um dos interessados. Sempre que o via, meus olhos pareciam segui-lo.
Eu reconhecia o que esses sintomas significavam, é claro. Eu estava apaixonado. Me apaixonei por um cara. Presumindo que ele fosse mesmo um, mas eu não estava totalmente convencido disso.
E esta parecia ser uma questão importante. Dependendo do sexo dele, eu teria que aceitar o fato de que era gay, ou talvez bissexual. Não que a curto prazo isso importasse, já que minha “condição” ainda não havia sido curada.
Eu ainda meio que estava esperando que ele acabasse por ser uma garota.
Assim que finalmente consegui admitir os meus sentimentos para mim mesmo, comecei a reunir algumas informações sobre o assunto.
A abordagem mais simples e ética seria perguntar ao cara em questão, mas esse seria o meu último recurso. De acordo com tudo o que eu sabia, ele podia ficar constrangido por causa de seu encantador rosto feminino.
Comecei indo para o Edifício dos Professores. Se presumia que existiam registros dos alunos em arquivos no escritório, com a verdade verdadeira registrada neles. Eu esperava que tivessem alguma política sobre a proteção da privacidade dos alunos, mas talvez pudesse convencê-los a me ajudar ao menos desta vez.
Depois de alguma procura, consegui encontrar o professor encarregado do quarto ano, que estava servindo como orientador de Fitz. Apresentei a questão diretamente a ele.
— Você pode me dizer qual é o gênero do Mestre Fitz, Professor?
— Não posso lhe dar nenhuma informação sobre Fitz.
— Tem certeza disso? Você não poderia quebrar uma regrinha, só desta vez?
O professor se encolheu um pouco enquanto eu falava. Parecia me achar um tanto assustador. Atualmente, muitos alunos ficavam pálidos toda vez que me viam, mas eu não esperaria isso de um membro do corpo docente. Talvez pudesse usar isso a meu favor.
— Se não pode ser flexível nesse caso, posso atirar um Canhão de Pedra especialmente grosso no seu traseiro e podemos ver o que acontece…
— Eee! Espera, eu… Eu…
— Hmm? Será que no lugar disso você prefere algum tipo de explosão?
— S-sinto muito, mas não posso te dizer nada mesmo…!
O homem se provou um osso duro de roer. Bem, o corpo docente ao menos não cedia a ameaças, e isso era algo bom.
— Eu só estava brincando, Professor.
Desistindo da abordagem baseada em intimidação, saí à procura de Jenius. Se não conseguia obter nenhuma resposta daqueles que ficavam por baixo, iria direto ao topo.
Encontrei nosso amado vice-diretor em meio a uma batalha violenta com uma montanha de papéis. Dado o tamanho desta universidade, deviam haver muitos formulários para assinar ao longo dos dias. Me senti um pouco mal por atrapalhar, mas não era como se isso fosse exigir muito tempo.
— Olá, Vice-Diretor Jenius.
— Ah. Bom dia, Rudeus.
— Você parece bem ocupado, devo admitir…
— Ah, nem tanto. Graças a vocês mantendo as crianças problemáticas sob controle, minha vida tem ficado bem mais fácil.
Crianças problemáticas? Será que ele estava falando de Badigadi e Zanoba…? Não era como se fossem crianças no verdadeiro sentido da palavra.
— De qualquer forma, o que posso fazer por você?
— Na verdade, gostaria de pedir algumas informações sobre o Mestre Fitz.
O Vice-Diretor franziu as sobrancelhas.
— Sinto muitíssimo, mas as pessoas que podem mandar deram instruções bem rígidas a respeito dele e de seu empregador.
— É mesmo? — Fiquei um pouco tentado a dizer que não me importava, mas algo a respeito da exaustão em seu rosto me fez reconsiderar. A administração tinha os seus próprios problemas, é claro. Podiam ter garantido algum tipo de suporte crucial ao aceitar a segunda princesa e a sua comitiva. — Poderia ao menos me dizer qual é o gênero de Fitz?
— O gênero…? Hmm… — Jenius me ofereceu um de seus famosos sorrisos estranhos. Essa era a sua verdadeira especialidade. Por cerca de um minuto, ele pensou no meu pedido. Entretanto, quando esperando em absoluto silêncio, um minuto pode parecer muito tempo. — Fitz… é um homem.
No final, essa foi a extensão da sua resposta.
No final das contas, eu ainda não tinha certeza sobre o gênero de Fitz.
Jenius havia apoiado a história oficial, mas era óbvio que estava sob pressão e pensou nisso por um tempo estranhamente longo. Era difícil dizer se foi ou não sincero comigo. Claro, ele usou automaticamente os pronomes “ele” e “dele” para Fitz, antes mesmo de ouvir a minha pergunta… isso significava que me disse a verdade?
Não, pensar demais não serviria de nada. De qualquer forma, eu não tinha evidências para tomar uma decisão.
Sem perceber, fui até a biblioteca e marchei para a mesa onde sempre estudava com Fitz. Sentei e soltei um suspiro leve. Afinal, qual era o sentido em descobrir o gênero dele? Eu poderia pelo menos dizer a ele como me sentia? Poderia confessar os meus sentimentos? Eu, de todas as pessoas?
Em teoria, era melhor arrancar essas coisas do peito… mas a ideia parecia meio errada. Eu não estava abordando isso da maneira certa. Em primeiro lugar, o que eu queria que acontecesse depois de confessar?
Isso era importante. Muito importante, na verdade.
Com a condição do meu corpo, eu não poderia ir muito longe. Meu guindaste não queria se mover, mas não era como se eu estivesse com falta de gasolina. Meu cérebro ficava o tempo todo repleto de pensamentos sujos e malignos. Em algum momento eu não seria mais capaz de me conter. Mas não seria capaz de fazer nada quando tentasse. Isso soava como tortura.
Certo. Vamos deixar as palavras bonitas que as pessoas falam o tempo todo de lado. Chega de eufemismos sobre meus “sentimentos”.
Quero dormir com o Fitz. Quero fazer todo tipo de coisa com ele. Quero provar. Quero tentar um pouco disso e um pouco daquilo… bem, talvez isso esteja indo um pouco longe demais…
— Deus, eu gostaria de poder ao menos bater umazinha…
Assim que murmurei essas palavras para mim mesmo, uma mão caiu no meu ombro. Me virei e olhei para cima, e me encontrei cara a cara com Fitz.
— Bater uma o quê? — disse ele, inclinando a cabeça curiosamente para o lado.
— Waaaagh! — Pulei de repente, enredando meus pés nas pernas da minha cadeira.
— Whoa! Cuidado! — Fitz estendeu a mão e agarrou a minha, tentando me apoiar. Mas não foi forte o suficiente para me puxar para cima.
— Aaaah!
Acabamos caindo juntos, ainda enrolados na cadeira, empurrando a mesa para trás enquanto nos esparrávamos.
E quando batemos no chão… Fitz caiu por cima de mim. Eu estava deitado de costas, segurando-o em meus braços.
O rosto dele estava muito perto do meu.
Graças aos enormes óculos escuros, não pude distinguir muito bem a sua expressão. Mas podia ver a ponta de seu nariz e seus lábios finos a apenas alguns centímetros de distância. Senti o calor e peso do seu corpo sobre o meu. Mas não era como se ele pesasse muito.
Um cheiro agradável invadiu as minhas narinas. Era o cheiro de Fitz, com uma intensidade maior do que qualquer outra que eu já tinha experimentado antes. Eu poderia passar um dia inteiro saboreando isso.
Meus braços, de alguma forma, envolveram-se em torno de seus quadris e nádegas enquanto batíamos no chão. Sua cintura era esguia e feminina. Seu traseiro não era exatamente redondinho, mas era macio. A sensação, por si só, fez meu garotinho ficar de pé… em sentido…
Puta merda.
— Ah! F-foi mal, Rudeus! — Ficando todo vermelho, Fitz logo tentou se levantar e sair de cima de mim.
— Mestre Fitz… você na verdade é uma garota, não é?
Ele olhou para mim em choque, então ficou boquiaberto, sem palavras, por alguns segundos, até que finalmente conseguiu balançar a cabeça.
— N-não! Eu já falei, sou homem!
Pulando e ficando de pé, ele ficou alguns passos longe de mim, então se virou e correu para a saída. Fitz havia deixado vários livros sobre a mesa. Talvez estivesse pegando alguns documentos de referência para alguma aula, igual no dia do nosso primeiro encontro na biblioteca.
Mas neste momento havia algo ainda mais importante em minha mente.
— Estou duro…
Depois de três longos anos sem qualquer sinal de vida, o júnior finalmente estava mais uma vez saudando a bandeira. Após tanta frustração e decepção, só tocar em Fitz me excitou.
Cautelosamente, abaixei uma mão para ter certeza de que não estava apenas alucinando.
— Uau… Isso não é um sonho, é?
Neste momento, por fim entendi o significado por trás do conselho do Deus Homem. Era por isso que ele me disse para dar uma olhada pela biblioteca.
Dito isso… desde o início eu sabia que Fitz estava escondendo as coisas de mim. Qualquer que fosse o seu gênero, se estava escondendo alguma coisa, tinha que ser por um bom motivo. Eu não queria estragar o seu disfarce com as minhas teorias e meus erros.
Eu estava apaixonado pelo Fitz. E Fitz queria ser conhecido como homem. Nessas circunstâncias não seria justo priorizar os meus sentimentos? Ou meus desejos, no caso?
Claro que não.
Eu não tinha o direito de expor os seus segredos, incluindo o seu gênero. Na verdade, eu tinha a responsabilidade de respeitar seus desejos e ajudá-lo a esconder o que quisesse. Essa parecia ser, na verdade, a única forma de abordagem segura. Quanto mais eu ficava tentado, mais pensava em me esgueirar e sussurrar: Vou manter minha boca fechada, então venha ao meu quarto esta noite.
Merda. Agora estava imaginando Fitz tirando todas aquelas camadas de roupas volumosas, uma a uma, enquanto eu olhava das sombras. Não, não. Nããão! Pensamentos ruins! Pensamentos muito ruins!
Ele… ou ela… Me ajudou tantas vezes, de tantas formas. Traí-lo assim seria algo verdadeiramente imperdoável. Eu só teria que tratá-lo da mesma forma que sempre fiz. E se ele parecesse em risco de ser exposto, eu silenciosamente interviria para ajudar. No meu primeiro dia na escola, ele fez o mesmo por mim, mesmo provavelmente tendo sido uma jogada arriscada da sua parte.
— Mas espera aí. Se Fitz for mesmo uma mulher…
Nesse ponto, meu raciocínio seguiu pela tangente e memórias vivas passaram pela minha cabeça.
Eu, de repente, comecei a me lembrar de todas as piadas sujas que contei na frente de Fitz. Minha frase no mercado de escravos, as coisas que falei quando capturei Linia e Pursena… meu deus, e aquelas coisas que fiz ele dizer quando me entregou o meu cajado!
Me contorci de agonia por um tempo.
Assim que terminei essa deliciosa viagem pela estrada da memória, descobri que meu soldadinho havia retomado seu estilo de vida como um recluso. Não importa o quanto eu o incitava, ele se recusava a acordar, que teimoso. Acho que ele ao menos não era tão desagradável quanto o meu antigo, já que não começou a bater no chão quando o atormentei.
Eu realmente queria dar umas sacudidas naquele idiota, pela primeira vez em anos… mas, pelo visto, minha condição ainda estava longe de ser completamente curada.
Ah, bem. Agora eu ao menos poderia ter esperanças. Não faz sentido apressar as coisas. No momento, voltei para o meu quarto para tentar fixar aquela sensação maravilhosa na minha memória.
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Na manhã seguinte, tive de fazer um grande esforço para colocar meu corpo preguiçoso em uma posição sentada. Eu estava tão preocupado com a breve recuperação do meu parceiro que não consegui dormir direito. O garotinho em questão ainda estava, infelizmente, se fingindo de morto.
Minha mente estava cheia de pensamentos e imagens de Fitz, mas eu não tive a menor reação daquele traidor lá embaixo. Quando ele iria parar de ficar de mau humor e me ajudar a liberar um pouco do vapor que estava aumentando dentro de mim? Será que só as memórias não eram o bastante para agradá-lo?
Eu ainda não sabia o motivo exato por trás do seu despertar, mas algo a respeito do Mestre Fitz era obviamente a chave para curar a minha condição. O Deus Homem esteve o tempo todo certíssimo. Passaram meses e eu não percebi, mas o remédio do qual precisava esteve sempre disponível.
Ainda assim, quando diminuí o ritmo para pensar sobre isso de forma racional, um grande problema permaneceu. Como eu conseguiria uma receita para o uso?
Eu não queria fazer nada que deixasse Fitz desconfortável ou com raiva. Curar a minha condição era importante, mas manter a confiança dele também era. Se fosse seis meses mais cedo e eu pensasse que Fitz era uma garota, poderia ter cortejado de uma forma mais agressiva, mas, a essa altura, eu já tinha sentimentos genuínos por ele. Não queria mais repetir o erro que cometi com Eris e partir cedo demais para o contato físico. Eu não queria que Fitz saísse da minha vida sem dizer nada.
Ah. Então, agora, eu era o cara que contava com o guarda-costas travestido de uma princesa para curar a minha impotência, hein? Parecia um conceito divertido para um show. Se está gostando disso, Deus Homem, que tal me dar uma gorjeta?
Com um sorrisinho sarcástico, rolei para fora da cama beliche que ainda tinha só para mim e me espreguicei. Não consegui suprimir um bocejo longo e alto; o dia com certeza seria longo.
Fui até o balde vazio que havia deixado em um canto do quarto e o enchi de água morna. O rosto que me encarava lá de dentro era relativamente bonito. Herdei uma boa mistura do visual mulherengo e rebelde de Paul e as feições mais suaves da minha mãe. De acordo com os padrões do meu mundo antigo, o resultado não era ruim, mesmo não sendo o que as pessoas deste mundo considerassem perfeito. Não importa quantas vezes eu olhasse para esse rosto, não conseguia pensar nele como meu, mas já tinha me acostumado a isso. Era melhor do que o último, e isso já era bom o bastante para mim.
Mas isso atraía o Fitz? Isso era o mais importante.
Certo, chega. Não adianta nada ficar pensando nisso. Fitz era um homem e eu não faria nada com ele. Por enquanto era essa a minha posição oficial.
Quando comecei a lavar o meu rosto, percebi uma coisa no meu queixo. Quando cutuquei, minha pele esticou um pouco com aquilo. Era uma barba. Um único fio de barba.
— Acho que já estou chegando nessa idade, huh…
Os humanos deste mundo parecem não envelhecer de forma muito diferente. Meu pai não fazia o tipo de cara peludo, então demorou um pouco para aparecer qualquer coisa no meu rosto, mas eu já tinha uns fios de cabelo crescendo em alguns outros lugares.
Mas não tinha certeza de como isso funcionava para as pessoas das outras raças, assim como Fitz. Os elfos tinham alguma diferença? Ele já tinha cabelo lá embaixo?
Hm…?
Algo a respeito desse pensamento por algum motivo me incomodou. Senti como se estivesse prestes a me lembrar de algo, mas isso não chegava à minha cabeça.
— Ah, tanto faz. — Com um encolher de ombros, arranquei o cabelo do meu queixo.
Passaram-se dois dias sem qualquer progresso.
Não tive nenhum contato com Fitz nesse tempo. Eu não correria o risco de fazer nada suspeito, como tentar rastreá-lo. Não há nada para ver aqui, oficial. Estava tudo como sempre.
Na terceira manhã após o incidente, entretanto, encontrei Luke esperando por mim no corredor do dormitório masculino. Não entrei em pânico. Já esperava que isso acabasse acontecendo.
— Olá, Mestre Luke — falei tão brilhantemente quanto era possível. — O que faz aqui a esta hora?
Luke não parecia muito animado. Algo na maneira como olhou para mim sugeria que não estava de bom humor.
— Preciso conversar com você sobre o Fitz.
Como esperado. Mas eu já havia anteriormente elaborado uma resposta para esse tipo de acontecimento.
— Não sei do que você está falando.
— Eh? É mesmo? — O tom de Luke era desafiador. Ele estava procurando mais informações sobre o que havia acontecido no outro dia? Será que esperavam esconder a verdade de mim no caso de pressionarem com suficiente insistência? E eu estava bem em deixar as coisas seguirem nessa direção, é claro.
Ainda assim, seria realmente tão problemático se eu soubesse o segredo de Fitz? Talvez tivesse algo a ver com o fato de que eu tecnicamente era um Greyrat. Neste momento os meus laços com a família Boreas já tinham sido cortados, mas ainda não sabia o que pensavam de Paul. Seja qual fosse o caso, achei que expressar as minhas intenções com o máximo de clareza seria importante, já que estava tendo a chance.
— Só reiterando, Luke… Não tenho intenção de torná-los meus inimigos. Não sei nada sobre Fitz, ou quaisquer segredos que ele possa estar escondendo.
— Você está disposto a fingir que não sabe de nada…? Por quê?
— Bem, neste momento eu não estou ligado às famílias Boreas ou Notos. E o mais importante, irritar a Princesa Ariel seria um pouco assustador.
Um olhar de pura surpresa passou pelo rosto bonito de Luke e ele ficou em silêncio. Será que falei algo perigoso? Continuar fingindo que eu não sabia de nada talvez fosse a coisa mais inteligente a se fazer.
— De qualquer forma, isso é tudo o que tenho a dizer.
— Certo. Desculpe por incomodar…
Com essas últimas palavras, saí e deixei Luke de pé no corredor.
Após as minhas aulas do dia, fui até as salas de Nanahoshi para nossos experimentos de rotina. Por alguma razão, porém, encontrei Fitz parado do lado de fora.
Pelo que eu lembrava, ele não deveria aparecer para me ajudar de novo pelos próximos dias, até que tivesse uma folga dos seus deveres como guarda-costas da Princesa. Eu tinha quase certeza disso. Mas ele apareceu do mesmo jeito, e devia existir alguma razão para isso. E, provavelmente, tinha algo a ver com certos eventos recentes. Fitz e Ariel não tinham motivo para acreditar na minha palavra. Na verdade, tinham muitos bons motivos para desconfiar de mim.
Em outras palavras, Fitz provavelmente estava presente para ficar de olho em mim. Talvez quisesse confirmar se eu quis dizer aquilo mesmo para Luke.
Mantive o silêncio por algum tempo e o rosto de Fitz foi ficando visivelmente tenso. Após alguns minutos disso, Nanahoshi murmurou: “O que houve? Vocês brigaram ou coisa do tipo?” enquanto desenha um novo círculo mágico.
— N-não! Não brigamos nem nada!
A resposta de Fitz foi hilariante e estranha. Ele era tão adorável quando ficava nervoso. Ainda assim, estava óbvio que ainda duvidava de mim. Bem, como deveria ganhar a confiança de alguém em uma situação dessas?
Me ajoelhar e oferecer algum tributo a Ariel talvez fosse a melhor forma. Tudo que eu realmente conseguia pensar era em comprar para uma bela caixa de doces ou algo assim para ele… mas dado o quão cautelosos estavam sobre mim, isso poderia resultar em um horrível tiro pela culatra.
— Olha, eu não me importo, de qualquer forma — disse Nanahoshi, sua voz claramente irritada. — Só não me arrastem para essa idiotice.
A garota tinha uma política rígida de evitar problemas enquanto estivesse presa neste mundo. Fitz estava profundamente envolvido com a realeza Asurana, e Nanahoshi com certeza não queria se envolver em nenhum conflito entre nós dois. Claro, se ela saísse por aí falando com as pessoas de um jeito tão rude, em algum momento ainda conseguiria criar alguns problemas para si mesma. Mas agora eu era basicamente a única pessoa com quem ela interagia, então isso talvez não fosse grande coisa.
Bem, tanto faz. Se ela não queria se envolver com este mundo, essa decisão era só sua. Eu não tinha direito algum de opinar a respeito do assunto. Senti que tentar ser um pouco mais extrovertido com ela não faria mal… mas a garota estava passando todos os dias desenhando centenas de círculos mágicos sem parar. Sugerir que devia reservar um pouco de energia para socializar seria bem difícil.
— Tch…
Eu, normalmente, realizava esses experimentos enquanto conversava sobre qualquer coisa com Fitz ou Nanahoshi, mas desta vez estávamos todos em silêncio. O único som era o ocasional estalo da língua de Nanahoshi. Para não dizer muito, vamos falar que a atmosfera estava tensa.
— Bem, já chega… Terminamos por hoje.
Depois de algumas horas disso, Nanahoshi encerrou o dia, com a voz baixa e cansada. Mais uma vez, não fizemos nenhum progresso real.
Enquanto caminhávamos de volta para os dormitórios, Fitz e eu ainda não conseguíamos iniciar uma conversa. Eu queria falar sobre algo. Queria agir da mesma forma de sempre. Mas o que deveria dizer?
Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, chegamos à bifurcação na estrada que levava ao dormitório feminino.
— Ei, Rudeus… — Fitz deu alguns passos à frente e falou comigo em um tom estranhamente tenso.
— Sim? O que é?
Ele apertou a mão contra o peito. Era óbvio que diria algo importante. Talvez algo sobre o seu gênero. Me preparei o melhor que pude.
— Desculpa… Na verdade, não é nada. Tchau.
— Então tá bom. Até mais…
Fitz olhou para o chão enquanto se virava e trotava rapidamente em direção ao seu dormitório. Exalando suavemente, o observei partir com uma sensação desagradável em meu peito. Decidi não causar nenhum problema que pudesse prejudicar a ele, mas… para ser honesto, isso era um pouco difícil de suportar.
Tradução: Pimpolho
Revisão: PcWolf
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