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Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 05 – Cap. 04 – Reunidos

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Ponto de Vista do Paul

Eu ainda não tinha saído do bar.

O sol estava prestes a se pôr, então o lugar estava começando a receber mais clientes que não eram membros do meu time. Por outro lado, muitos dos meus já haviam partido. Mas não era como se isso realmente me importasse. Estava plantado em uma mesa sozinho, bebendo como um peixe.

Pelo visto, era óbvio que eu não estava de bom humor. Todos por perto estavam mantendo distância.

— E aí! Estava te procurando, amigão.

Todos, exceto o recém-chegado, pelo visto.

Olhei para cima e me vi cara a cara com um macaco sorridente. Foi a primeira vez que vi sua cara feia em um ano.

— Geese…? Onde diabos você esteve, hein?

— Aah, que hostil! Você parece ainda mais mal-humorado do que o normal, meu amigo.

— E o que você esperava?

Estalando minha língua irritado, estendi a mão e toquei minha bochecha. O lugar em que Rudeus havia me batido ainda estava latejando. Talvez devesse ter engolido meu orgulho e deixado um de nossos curandeiros me tratar.

Aquele maldito moleque, praguejei. “O Continente Demônio pode ser cruel, mas minha magia foi mais do que páreo para ele”, hein? Bem, bom pra você. Se isso não foi nada mesmo, por que não deu um tempo para procurar pela sua mãe?

Ah, mas pelo menos pude ouvir suas ideias sobre as melhores maneiras de cozinhar carne de Grande Tartaruga. “Se eu não tivesse tido a ideia de criar uma panela usando a magia da Terra, teríamos ficado comendo pedaços carbonizados e fedorentos daquela coisa por um ano inteiro!” Não havia mais nada que pudesse ter feito com o tempo que passou caçando ingredientes para um guisado de monstro?

Ugh. Que se dane.

E então, para completar, teve a coragem de me acusar de traição! Eu nem pensei em tocar em uma mulher no último ano e meio, seu idiota presunçoso! Você não fez nada para ajudar e acha que tem o direito de pegar no meu pé?

Ah, você não sabia, hein? Que ótima desculpa. Se realmente se incomodasse em olhar o mundo ao seu redor, Zenith ou Lilia poderiam já estar conosco!

Sério. Mas que piada…

— Hee hee hee. Pelo visto, acho que vocês ainda não se encontraram. — Sorrindo para si mesmo por algum motivo obscuro, Geese pediu uma ou outra coisa. Provavelmente algum goró. O homem bebia mais ainda do que Talhand, e Talhand era um anão. — Ei, Paul. Certifique-se de dar uma passada na Guilda dos Aventureiros amanhã, viu?

— Por quê?

— Porque acho que vai encontrar alguém interessante.

Alguém interessante? Geese aparentemente achou que essa reunião iria melhorar meu humor. Dado o momento de sua chegada, e quem eu “encontrei”… não foi difícil adivinhar sobre quem estava falando.

— Você está falando do Rudy?

Fazendo beicinho, o macaco velho coçou a cabeça.

— Hã? Como você sabe?

— Já esbarrei com ele hoje.

— Mas você não parece lá muito feliz. Brigaram ou coisa do tipo?

Uma briga…? Bem, acho que sim. Mas aquilo mal poderia ser considerado uma.

Droga. Só de pensar naquilo, meu rosto voltou a doer…

— Paul, o que houve? Me conta. — Geese se levantou e puxou sua cadeira para perto de mim. Com aquele rosto amigável, o homem sempre teve talento para ouvir os problemas das pessoas. Esta não foi a primeira vez que enfiou o nariz nas minhas coisas e me encorajou a reclamar.

— Tudo bem, olha só isso…

Fui em frente e contei a Geese o que aconteceu antes.

Fiquei feliz em ver Rudeus, é claro. Mas parecia que não estávamos encarando a situação da mesma forma, então perguntei a ele o que andou fazendo nos últimos tempos. Nesse ponto, ele começou a falar alegremente sobre sua jornada pelo Continente Demônio.

Cada palavra que saía de sua boca era ostentação desnecessária, então observei que poderia ter usado seu tempo de forma mais produtiva. Então ficou chateado comigo. Ele fez uma piada sobre eu estar dormindo com todas por aí. E foi então que perdi toda a minha paciência. E depois nós brigamos, e o moleque chutou meu traseiro. Fim.

— Ahh… tá. Entendi…

Geese ouviu pacientemente a história toda, balançando a cabeça e fazendo alguns breves comentários aqui e ali. Senti que o homem estava simpatizando comigo. Mas então, depois que terminei as coisas, ele me olhou nos olhos e disse:

— Bem, parece que suas expectativas podem ter sido um pouco injustas, chefe.

— Hein? — respondi, soando como um completo idiota.

Injusto? Onde é que fui injusto? E com quem?

— Acha que eu esperei demais? Do Rudy?

— Digo, cara, pensa comigo — Geese continuou enquanto eu piscava confuso. — Claro, o garoto é incrível. Nunca vi ninguém que pudesse lançar feitiços não verbais como ele. E quando o vi trocando golpes após golpes com o Santo do Norte Gallus, senti arrepios até na espinha. Rudeus é o tipo de prodígio que só se vê uma vez por século.

Certo. Rudeus era um prodígio. Um gênio. Sempre poderia fazer qualquer coisa que definisse como objetivo, mesmo quando criança. Por um tempo, tive a impressão de que também tinha alguns defeitos relativamente sérios, mas… bem, ao final de sua estadia em Roa, Philip estava disposto a casar sua própria filha com ele. Philip! O mesmo cara que falava mal de mim pelas costas!

— Sim, isso mesmo. Ele é inacreditável. Quando tinha apenas cinco anos…

— Mas, no final das contas, ainda é só uma criança. — Surpreso com a firme interrupção de Geese, fiquei em silêncio. — Rudeus ainda é um garoto de onze anos — repetiu lentamente, apenas para deixar claro. — Nem mesmo você fugiu de casa antes dos doze, certo?

— Sim…

— Qualquer um mais jovem do que isso ainda é só um pirralho melequento. Não é isso que você sempre dizia?

— Sim, certo, claro. E daí se eu falava isso? — Vamos lá. Rudy já está mais forte até do que eu.

Claro, eu estava um pouco bêbado naquela hora. Entretanto, mesmo levando isso em conta, estava claro que o garoto havia melhorado drásticamente. Eu podia até estar bêbado, mas também estava dando tudo de mim; me abaixei para usar a “Postura de Quatro Pernas” do Estilo Deus do Norte e até mesmo fiz uso da “Espada Silenciosa” do Estilo Deus da Espada. Mas minha espada só cortou a calcinha que o moleque estava usando na cara. Rudy também não estava levando a luta a sério. O fato de nenhum dos meus companheiros ter sofrido nada pior do que alguns ferimentos leves era prova suficiente disso.

Era difícil dizer como cresceu como lutador desde a última vez que o vi. Mas, mesmo aos sete anos, já era mais inteligente do que eu. Agora era mais inteligente e mais forte do que eu. Então, onde estava a irracionalidade ao esperar que pudesse fazer mais do que deveria? Sua idade não refletia em suas capacidades.

— Paul, o que você estava fazendo quando tinha onze anos?

— Hm…?

Pelo que me lembro, passei a maior parte daquele ano em casa, treinando com a espada e sendo mastigado pelo meu velho. Ele encontrava motivos para reclamar de cada coisinha que eu fazia, e aproveitava todas as chances que tinha para me dar alguns tapas.

— Acha que naquela época poderia ter sobrevivido sozinho no Continente Demônio?

— Heh. Gesse, você está esquecendo de um pequeno detalhe. Rudy encontrou um demônio guarda-costas, lembra? Esse cara fala a língua Humana, do Deus Demônio e Deus Fera, e é forte o suficiente para derrotar um monstro de rank A sozinho. Qualquer um poderia se virar com uma companhia dessas.

— Não — declarou Geese com confiança. — Você não teria feito isso. Sem chance. Mesmo se você fosse lá agora, ainda não sobreviveria por conta própria.

Não posso dizer que ouvir isso melhorou meu humor. Geese continuar sorrindo para mim do outro lado da mesa também não ajudava. O sorriso do homem era seriamente irritante.

— Hah! Certo! E isso só não ressalta meu ponto? Rudy conseguiu algo que eu não consigo. Meu filho é um prodígio! Ele já pode andar com os próprios pés! Não tenho mais nada para ensinar. Foi errado esperar que o garoto colocasse esses talentos em uso, hein?! Eu sou mesmo o errado aqui?!

— Sim, você é. Mas isso não é nenhuma novidade, né? — Ainda sorrindo, Geese parou por um momento para beber a cerveja que acabara de receber. — Ahhhh! Agora sim. Você não consegue beber esse tipo de coisa na Grande Floresta, sabia?

— Geese!

— Tá bom, tá bom. Não precisa gritar. — Geese bateu com sua caneca de madeira na mesa e me olhou nos olhos, sua expressão de repente ficou muito mais séria. — Escuta, Paul. Você nunca pisou no Continente Demônio, não é?

— E daí?

Isso era verdade. Nunca tive o prazer de visitar o lugar. Sim, mas eu tinha ouvido rumores, é claro. Todo mundo fazia parecer que o lugar era perigoso, onde qualquer um encontraria monstros toda vez que saísse para dar um passeio e precisava comê-los para sobreviver. Mas “muitos monstros” era algo com que até eu poderia lidar, fala sério.

— Bem, é onde eu nasci e fui criado, lembra? E, na minha opinião, todo o continente é uma merda.

— Sabe, parando pra pensar agora, você nunca falou muito sobre o lugar. O que há de tão terrível lá?

— Em primeiro lugar, não existem estradas adequadas. Há alguma trilha entre as cidades, é claro, mas você não encontrará nada parecido com aquelas estradas seguras, suaves e sem monstros que existem em Millis e no Continente Central. Se estiver viajando para qualquer lugar, é melhor estar preparado para ser atacado por monstros de rank C a qualquer momento. Ou algo até pior.

Certo, eu sabia que o lugar tinha muitos monstros, mas rank C ou pior? No Continente Central, as pessoas teriam que ir fundo em uma floresta para encontrar algo tão perigoso. Muitos monstros desse rank viviam em grandes bandos ou tinham alguma habilidade especial letal.

— Geese, acho que você está exagerando um pouquinho demais.

— Não. Cara, presta atenção, não estou te falando nada de complicado. É assim que o Continente Demônio é. O lugar está infestado por monstros desagradáveis.

Geese parecia perfeitamente sério, mas era assim que ele sempre parecia quando estava mentindo. Dessa vez eu não iria cair nesse tipo de merda.

— Agora, digamos que alguém tenha jogado uma criança no meio de um lugar como aquele. É um garoto realmente talentoso e, veja bem, não tem nenhuma experiência de combate no mundo real.

— Certo…

Sem experiência real, hein? Parecia que estávamos mais uma vez falando sobre Rudy. Pensando bem, eu nunca tinha ouvido falar dele entrando em nenhuma batalha de verdade antes. Mas pelo visto o garoto conseguiu lutar contra alguns supostos sequestradores em Roa, e Ghislaine achava que poderia ser derrotada se existisse alguma distância entre os dois. Eu não conhecia um único espadachim melhor do que aquela mulher. Se ela não podia se aproximar dele com segurança, então provavelmente não havia nem mil pessoas no planeta capazes de o derrotar em seu alcance ideal.

No geral, sua falta de experiência real não me parecia grande coisa. Alex R. Kalman, o segundo Deus do Norte, não matou um Imperador da Espada na primeira batalha em que lutou?

— Nesse momento, um adulto aparece e se oferece para ajudar a criança. Esse cara é um demônio, e também é muito forte. Na verdade, ele é um Superd. Você já ouviu falar deles, não ouviu?

— Claro. — Para ser franco, eu não tinha certeza se acreditava nessa parte da história. Pelo que ouvi, havia apenas um punhado de Superds sobrando, mesmo no Continente Demônio.

— Então, o garoto tem alguém que lhe oferece ajuda quando ele está em uma situação desesperadora. E o cara está disposto a ajudá-lo a atravessar um lugar totalmente desconhecido. E os Superds são assustadores, é claro! A criança não tem ideia de como o sujeito pode reagir a uma recusa. Ela simplesmente teria que aceitar a oferta, certo?

— Aham, provavelmente.

— Mas com o passar dos dias, o pequeno e inteligente Rudeus começa a se perguntar: “Afinal de contas, por que esse cara está me ajudando?”

Claro. Isso soava como algo esperado de Rudeus. A pergunta poderia nunca me ocorrer, mas o garoto sempre foi perspicaz com esse tipo de coisa. Eu sabia o quão estranhamente perceptivo ele era desde aquele dia em que entrou em cena para salvar Lilia da ira de Zenith.

— O problema é que ele não consegue descobrir. Não sabe o que o cara quer de verdade.

Bem, e então? Ninguém nunca consegue saber o que um estranho está realmente pensando. Essa é a razão pela qual caras como Geese conseguem ganhar a vida.

— O Superd resolve ajudar por algum tempo, mas poderia facilmente abandoná-los ou traí-los caso sentisse vontade… ou assim pensa Rudeus. E é por isso que ele decide tentar agradar o cara.

— Esse plano não faz sentido, Geese. Um Superd ao menos tem um lado bom?

— Olha, não vem dar uma de espertalhão. Mas você entendeu o que quero dizer, certo? Rudeus decide apelar para as emoções desse cara. Ele quer fazer com que o homem acredite que todos são amigos.

Hmm. Isso explicaria por que Rudy passou tanto tempo ajudando o suposto demônio. E, para ser sincero, até que fazia sentido. Ele não estava apenas ganhando pontos extras com seu protetor, mas também tendo a chance de desenvolver suas próprias habilidades como aventureiro, para o caso de precisar contar com elas mais tarde. Tive que admitir, isso parecia racional. Provavelmente era o caminho mais seguro que poderia ter escolhido.

Hmph… o menino tinha uma boa cabeça sobre os ombros, não tinha?

— Tch. Você pode pensar até que uma criança tão inteligente conseguiria encontrar algum tempo para descobrir mais alguma coisa.

Geese ergueu uma das mãos e abriu os dedos.

— Ele está em uma terra desconhecida — disse, dobrando um para baixo. — Está em sua primeira aventura. Não importa o quão inteligente seja, é tudo novidade. Precisa aprender o básico rápido, antes que alguém se aproveite dele. Está tentando manter um demônio que pode traí-lo a qualquer momento feliz. Ah, e tem uma amiguinha atrás dele, uma que precisa proteger.

Quando terminou de falar, Geese tinha abaixado todos os dedos. Com um breve encolher de ombros, passou para seu argumento final.

— Se o garoto também conseguisse vasculhar o continente em busca de outras pessoas que foram teletransportadas, bem, isso o tornaria sobre-humano. Sério, eu estaria pronto para dar a ele um lugar nos Sete Grandes Poderes.

Os Sete Grandes Poderes, hein? Isso despertou algumas memórias. Antigamente, eu costumava sonhar em conquistar esse tipo de fama. Ainda assim, senti que Rudy realmente tinha o talento bruto para algum dia entrar naquela lista. E eu não acreditava que isso era apenas o meu orgulho paternal falando.

— O garoto poderia acabar trabalhando até a morte enquanto tentasse. Sei que Rudeus é um prodígio, mas todo ser humano tem seus limites, cara. Ainda mais quando são crianças.

— Certo, olha — interrompi. — Se foi tão difícil, então por que ele fez a coisa toda parecer uma grande e divertida aventura? Parecia até um daqueles pirralhos ricos e mimados que se metem no primeiro andar de um labirinto só para ter algo de que podem se gabar. — Se a viagem tivesse sido tão difícil para Rudy, ele não teria a descrito com tanta alegria. No lugar disso, teria me falado do quanto sofreu e sobre as dificuldades que enfrentou. Mas o moleque não mencionou sequer um obstáculo em seu caminho.

— Por quê? Porque não queria te preocupar, é óbvio.

— Hein? — Eu grunhi, de alguma forma parecendo ainda mais estúpido do que antes. — Por que diabos ele iria ficar preocupado comigo? Por acaso sou um fracasso como pai?

— Sim, com toda certeza do mundo.

— Tch. Certo, acho que você tem razão. Sou um homenzinho fraco que se afoga na bebida por motivos idiotas. Suponho que nosso pequeno prodígio sentiu muita pena ao me ver.

— Odeio ser quem te conta isso, Paul, mas não é preciso ser um prodígio para ter pena de você agora — disse Geese, deixando um suspiro escapar. — Sei que você não pode ver seu próprio rosto, então deixe-me dizer uma coisa. Cara, você está péssimo.

— Ah, é? Péssimo o bastante para ganhar alguma simpatia até do meu próprio filho?

— Aham. Se ele aparecesse aqui justo agora, não acho que acabariam brigando. Rudeus provavelmente se sentiria muito mal se você dissesse qualquer coisa.

Eu estendi a mão e toquei meu rosto. A barba por fazer que não tinha me incomodado em barbear por vários dias raspou audivelmente contra meus dedos.

— Olha, Paul. Só vou repetir o que já falei aqui — disse Geese enquanto seu tom de repente ficava firme. — Você esperava muito do seu filho.

Esperar muito foi realmente algo irracional da minha parte? Rudy sempre fez tudo o que queria, desde quando era pequeno. Tudo o que sempre fiz foi criar obstáculos em seu caminho com minhas tentativas desajeitadas de ser pai. Para falar a verdade, ele nunca precisou de mim.

— Me conta uma coisa. Por que você não pode simplesmente ficar feliz por ele ter chegado até aqui? Realmente importa que tipo de viagem o garoto fez? Digamos que foi realmente um cruzeiro despreocupado, e que passou cada minuto do seu tempo aos amassos com sua namorada. E daí? Agora ele está aqui, e está seguro. Não é algo para se comemorar?

Claro que seria. No começo eu até fiquei feliz.

— Você preferia que seu filho voltasse com os olhos fundos e com um ou dois membros faltando? Porra, existia a chance até de você só se “reunir” ao cadáver dele. Ah, não, erro meu… Se ele tivesse morrido no Continente Demônio, não haveria nem mesmo um corpo para você encontrar.

Rudy? Um cadáver? Eu o tinha visto saudável e cheio de vida, então agora era impossível até mesmo imaginar esse tipo de coisa. Mas apenas alguns dias atrás… eu não tinha imaginado exatamente esse cenário enquanto me afundava no desespero?

— Deus, que pooobre criança! Depois daquela longa e difícil viagem, finalmente encontrou seu querido pai novamente, mas o cara acabou virando um saco de bosta bêbado! Se eu fosse ele, teria rompido os laços na hora.

Ah, bom. Agora ele já estava de teatrinho.

— Já entendi o recado, Geese. Você não está errado, tá bom? Mas há uma coisa que ainda não entendo.

— Hm? E o que é?

— Por que Rudy não sabia sobre o que aconteceu com Buena Village? Tenho certeza de que tinha uma mensagem esperando por ele em Porto Zant.

 

 

 

Geese abriu a boca como se quisesse explicar, depois fez uma careta e desistiu. Eu reconheci essa expressão. Isso significava que ele estava escondendo algo.

— Uh, sei lá. Provavelmente só deu azar e não viu a mensagem.

— Espera… exatamente onde você se encontrou com Rudy? Eu estava supondo que você o encontrou em Porto Zant.

Eu não sabia onde Geese passou o último ano, mas Rudeus tinha vindo para Millis pelo norte. E Porto Zant era a única cidade naquela direção que era grande o suficiente para o homem realmente se dar bem.

Definitivamente deixei uma mensagem para Rudy naquela cidade. E, além disso, tínhamos membros de nossa equipe posicionados lá. Seu trabalho era coletar informações de qualquer viajante que cruzasse do Continente do Demônio. Se o garoto era um aventureiro, a Guilda seria uma parada obrigatória, certo?

— Na verdade, me encontrei com Rudeus no vilarejo do Clã Doldia. Bem, pra ser sincero, foi um choque. Ele foi jogado nu em uma cela de prisão, acusado de agredir a Fera Sagrada deles.

— Nu? Em uma prisão do povo-fera? Isso é sério…?

Ghislaine já tinha me falado dessas coisas. Para os membros da tribo Doldia, ser despido, acorrentado em uma cela de prisão e encharcado com água gelada era a maior de todas as humilhações. Quase nunca submetiam estranhos a tal tratamento, mas, quando o faziam, geralmente acabava com a morte do prisioneiro. Uma vez molhei Ghislaine, era só uma brincadeira, e ela me olhou como se eu tivesse matado seus pais.

— Então, uh… o que aconteceu lá?

— O quê? Rudeus não te contou tudo?

— Tudo o que ouvi foi a parte em que ele viajou pelo Continente Demônio. — Por que não me falou que não tinha visto a mensagem que deixei em Porto Zant? Isso era realmente muito importante.

Ah, certo. Nem perguntei sobre essas coisas.

Droga. Por que eu tinha que ser tão pavio curto?

Precisava me acalmar e começar a pensar nas coisas com mais cuidado. Rudy era um garoto inteligente, mas de alguma forma falhou em ver minha mensagem, ou até mesmo ouvir sobre a situação. Se tivesse passado algum tempo em Porto Zant, teria tropeçado nesse tipo de informação sem nem procurar.

Em outras palavras, deve ter se metido em algo no momento em que chegou lá – algo que o fez ser levado pela tribo Doldia. Seja lá o que fosse, devia ser um enorme incidente. Parte do nosso pessoal localizada no Porto Zant deveria voltar em dois ou três dias para fazer seu relatório regular, mas talvez algo grande tivesse acontecido no norte.

— Bem, eu mesmo não sei todos os detalhes — disse Geese. — Mas estava andando com os Mildett na Grande Floresta quando soube de um boato de que os Doldia tinham prendido uma criança humana.

— Hm? Espera aí. Aonde você estava? — Os Mildett? Não era uma tribo de gente-fera? Não eram os únicos com orelhas de coelho?

— Em um vilarejo Mildett. Naquele em que o chefe mora, aquele lugar na verdade é bem grande, mas…

A explicação de Geese foi dolorosamente prolixa e irritante. Sério, fiquei tentado a interrompê-lo no meio do caminho. Mas eu havia perdido a chance de obter informações importantes ao ficar impaciente com Rudy antes. E embora raramente aprendesse com meus erros, não era estúpido o suficiente para estragar tudo do mesmo jeito duas vezes, ainda mais no mesmo dia.

Eventualmente, o conto errante de Geese chegou ao fim. Tentei resumir o que ele me disse.

— Então, basicamente, você estava passeando por todas as tribos da Grande Floresta… e os convencendo a enviar quaisquer humanos perdidos que encontrassem para Millishion?

— Isso aí. Heh heh. Fique à vontade para demonstrar gratidão!

— Tá, te devo essa… — Isso provavelmente explicava o constante fluxo de refugiados aparecendo da área da Grande Floresta e que vinham me pedir ajuda.

— Bem, enfim! Quando ouvi sobre esse garoto humano, meio que tive uma ideia, então saí correndo. Não quero me gabar nem nada, mas sou um homem com muitas conexões, né? Acontece que conheço até um pessoal do vilarejo Doldia. Pedi para um de seus guerreiros, um amigão meu, para me jogar na mesma cela que o garoto.

— Calma aí. Por que você precisava ficar preso com ele?

— Se o pior acontecesse, só poderia ajudar em sua fuga se fizesse isso. É muito mais fácil escapar de uma prisão de gente-fera do que invadir uma.

Eu estava familiarizado com o talento de Geese para escapar de prisões. Sempre que ele era preso por executar algum tipo de esquema, voltava logo, como se nada tivesse acontecido.

— De qualquer forma, eu estava assumindo que encontraria o garoto deitado em posição fetal e chorando sem parar, sabe? Mas em vez disso… ha ha!

— O que aconteceu? Ele estava bem?

— Cara, ele tava de boa lá, todo peladão! E as primeiras palavras que saíram de sua boca foram: “Bem-vindo ao destino final da vida!” Como deveria reagir a isso?! — Geese teve que parar por um momento para rir de sua própria história.

— Cara, isso não parece ser motivo para risada…

— Mas foi hilário! Paul, na mesma hora eu saquei que ele era seu filho!

Eu não entendia o que havia de tão engraçado nisso. Ou como havia descoberto tão rapidamente.

— Cara, ele é a sua cópia — Geese continuou. — Ridiculamente arrogante! Adora mandar nos outros! Uma vez, ele estava tentando flertar com uma garota fera, sabe? Ela olhou para ele e disse: “Posso sentir o cheiro da sua excitação”, mas mesmo assim o garoto continuou cobiçando o corpo dela! O menino é seu filho, sem dúvidas!

Neste ponto, o homem parou para outra crise de riso. Eu me mexi desconfortavelmente na cadeira, lembrando de alguns episódios de minha juventude.

— Mas ainda demorei um pouco para ter certeza absoluta — disse Geese, fazendo uma pausa para esvaziar uma segunda caneca de cerveja. — Mas, sim, é isso aí. Não dá para culpar o garoto por não ter visto sua mensagem. Pelo que parece, ele não passou nenhum tempo em Porto Zant.

— Hm? Geese, calma aí. Vocês ficaram na mesma cela, não ficaram? Então…

Ele não poderia ter simplesmente explicado tudo?

— Enfim! — disse Geese, levantando-se de seu assento. — Tenho certeza de que haverá um pouco de constrangimento familiar remanescente aqui, mas faça um favor ao seu velho amigo Geese e vá se reconciliar com o garoto, certo?

— Ei, espera. Eu ainda quero…

— Ah, claro. Esqueci de mencionar, mas parece que Elinalise e companhia foram para o Continente Demônio no seu lugar. As pessoas estavam dizendo que alguma elfa andou ordenhando metade dos homens de Porto Zant, e ambos sabemos o que isso significa.

— O quê? Sério? — Para ser sincero, eu achava que Elinalise era a que mais me odiava.

— Heh heh. No final das contas, não te odeiam tanto quanto deixam transparecer.

Com isso, Geese saiu do bar. Claro, ele não pagou pelo que bebeu. O sujeito nunca fazia isso. Mas, desta vez, não me importei em pagar sua conta.

De qualquer forma, bebi mais do que o suficiente por um dia. Já estava na hora de ir embora e esperar a noite passar.

Em breve teria que conversar com Rudy. Talvez no dia seguinte…

— Chega de bebida por esta noite, amigão — disse Geese, que colocou a cabeça pela porta. — Amanhã você vai para a Pousada Luz D’Alvorada sóbrio, entendeu?

— Tá, tá! Eu sei! — Com um suspiro irritado, coloquei minha caneca de cerveja na mesa.

Agora que pensei nisso, parecia que tinha exagerado nos últimos dias. Por que continuei me afogando nessa merda? Eu ainda tinha muitas outras coisas que precisava fazer.

— Um… Capitão Paul? Terminou de falar com seu amigo?

Enquanto eu revirava as coisas na minha cabeça, uma mulher se aproximou da minha mesa, toda hesitante. Havia uma expressão de desculpas em seu rosto. Minha cabeça não estava boa o suficiente para reconhecê-la já de cara, mas depois de estudar seu rosto por alguns segundos, percebi que era Vierra – um dos membros do meu esquadrão.

— Heh. O que há com você, garota? Sentiu vontade de usar algo modesto pela primeira vez?

— Bem, sim… — Com um aceno ambíguo, Vierra sentou-se no assento que Geese havia acabado de desocupar. Por alguma razão, nesta noite não estava usando seu costumeiro traje provocante. Ela havia trocado para uma roupa perfeitamente normal que a fazia parecer mais com uma garota comum da cidade. — Eu estava preocupada sobre o que aconteceu com seu filho antes poder ter sido minha culpa, senhor.

— O quê? O que te faz pensar uma coisa dessas?

— Er, bem, parecia que… a maneira como me visto pode ter feito com que ele entendesse mal a natureza do nosso relacionamento…

— Isso não faz sentido. O rebeldezinho deu uma olhada no tamanho do seu peito e tirou suas próprias conclusões.

Havia uma razão para Vierra se vestir daquele jeito. A mulher tinha sido uma aventureira comum em Fittoa, mas o Incidente de Deslocamento a deixou presa no Continente Millis, sem nenhum equipamento para usar. Ela foi rapidamente capturada por uma gangue de bandidos que a trataram como seu brinquedo. Era o tipo de pesadelo que deixaria a maioria das pessoas destruídas por dentro, mas ela conseguiu superar tudo com pura força de vontade.

No entanto, também tínhamos acolhido uma garota que não se recuperou tão rapidamente: Sua irmã, Shierra. Mesmo agora, Shierra tremia incontrolavelmente em cada vez que um homem olhava para ela. E tivemos vários casos semelhantes em nosso esquadrão.

Para proteger todas de atenção indesejada, Vierra começou a usar uma armadura deliberadamente reduzida para atrair os olhares de todos os homens. Ela também era o membro de nosso esquadrão mais adepto para confortar e cuidar de mulheres que foram submetidas a esse tipo de trauma. Como um homem sem forma de compreender aquele tipo específico de dor, eu a considerava uma parte indispensável da equipe.

Não tínhamos qualquer relacionamento sexual, é claro. Essa era uma ideia ridícula.

— Não foi culpa sua. Entendeu?

— Sim, senhor…

Ainda parecendo um pouco abatida, Vierra se levantou e voltou para a mesa onde as outras garotas estavam sentadas. Olhando ao redor do cômodo com um pouco mais de cuidado do que antes, percebi que mais do que algumas pessoas estavam me olhando com óbvia preocupação em seus olhos.

— Ah, fala sério… Não me olhem assim, seus idiotas! Eu vou fazer as pazes com ele amanhã, tá bom?!

Empurrei minha cadeira para trás, me levantei e saí do bar.

Quando voltei para o meu quarto na pousada, encontrei Norn já dormindo.

Me servi de um copo d’água da jarra que estava em nossa mesa e bebi tudo de uma só vez. O líquido morno desceu até meu estômago embrulhado.

Consegui sentir a sobriedade voltando ao meu corpo. Sempre tive uma alta tolerância ao álcool; ficava meio duro quando bebia bastante, mas os efeitos nunca pareciam durar muito tempo. Quando a névoa em minha cabeça começou a se dissipar aos poucos, olhei para minha filha, que estava enrolada com seu cobertor na cama, e acariciei suavemente a sua cabeça.

Me senti mal por Norn. Realmente mal. Com um pai como eu, ela tinha muito para reclamar, mas sempre guardava tudo para si e fazia o possível para sorrir. Se eu a perdesse, não teria forças para continuar vivendo.

— Mm… Papai…

Norn se mexeu um pouco na cama. Não parecia que eu tinha a acordado; provavelmente estava apenas falando enquanto dormia.

Norn não era como Rudy. Ela era uma criança normal. Eu tinha que mantê-la segura.

De repente, um pensamento estranho me ocorreu: se Rudy também fosse uma criança “comum”, não estaria dormindo neste quarto com Norn? Ele teria ficado em casa conosco, em vez de sair para ser um tutor. E, no momento do desastre, poderia estar puxando minha manga, perguntando se também poderia abraçar Norn.

Se Rudy fosse comum – um garoto normal de onze anos – eu não o olharia da mesma forma que olhava para Norn? Como alguém que precisava proteger?

Com isso senti minhas pernas tremendo. Finalmente entendi por que Geese me disse que “Ele ainda é uma criança.”

Que diferença fazia se Rudy fosse comum ou não? Isso importava mesmo? E se o gênio fosse Norn? Eu teria falado com ela daquele jeito? Se Norn tivesse voltado para mim depois de partir em uma aventura, sem saber de nada do que tinha acontecido… eu teria dito que esperava mais dela?

Depois que comecei a pensar nisso, não consegui dormir. Não queria nem deitar na cama. Saí de nossa pousada, encontrei um balde de alumínio cheio de água do lado de fora e joguei ele todo na minha cabeça.

E então, lembrando-me da expressão no rosto de Rudy quando ele saiu do bar, inclinei-me e vomitei.

Refresque sua memória, Paul. Quem foi que machucou a criança daquele tanto?

Olhando para o balde de alumínio, vi o rosto de um completo idiota. Quem quer que fosse esse idiota, era obviamente o último homem no mundo que tinha qualquer direito de se chamar de pai.

— Ah, merda. Isso pode ser complicado…

Se eu estivesse no lugar de meu filho, cortaria as relações sem pensar duas vezes.

 

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Ponto de vista do Rudeus

 

Na manhã seguinte, quando me sentei para tomar o café da manhã, meu humor estava relativamente melhor.

Tínhamos acabado de caminhar até o bar ao lado da pousada. A comida em Millishion era definitivamente saborosa. Nossas refeições estavam ficando cada vez melhores conforme viajávamos pelo continente e pela Grande Floresta. Nesta manhã, comemos pão fresco, uma espécie de sopa clara de sabor leve, uma salada simples de vegetais e fatias grossas de bacon. Nada mal.

Embora eu não tivesse comido na noite anterior, o jantar parecia ser acompanhado por algum tipo de sobremesa. Era um tipo específico de gelatina doce que era muito popular entre os jovens aventureiros, tendo conquistado até mesmo uma menção em uma balada popular recente sobre as aventuras de uma jovem maga.

Bem, isso era até legal. Era sempre bom ter alguma comida decente na barriga. Ficar com fome deixa qualquer um irritado. E ficar irritado arruina o apetite. E um apetite arruinado só deixa você com ainda mais fome. Era um ciclo vicioso. Seria o suficiente para deixar até um andróide carrancudo.

— Entre…

Enquanto eu refletia sobre esses assuntos e tomava um gole de uma bebida parecida com café após a refeição, o barman voltou sua atenção para a entrada. Um homem cansado e de cara pálida estava parado na porta. Quando vi seu rosto, estremeci por puro reflexo.

Ele olhou ao redor por um momento, então me viu.

Naquele momento, todas as emoções que experimentei no dia anterior voltaram à tona. Mesmo que não tenha dito uma palavra para mim, me encontrei desviando o olhar para o chão.

Só pela minha reação, as duas pessoas com quem eu estava sentado pareceram perceber quem devia ser o homem na entrada. Ruijerd franziu a testa; Eris chutou a cadeira para trás e se levantou.

— Quem você pensa que é?

O homem começou a caminhar em nossa direção, mas Eris havia se plantado bem no meio do seu caminho. Com os braços cruzados, os pés bem separados e o queixo levantado, olhou para o homem severamente – apesar do fato de que ele era duas cabeças mais alto do que ela.

— Sou Paul Greyrat… o pai dele.

— Eu sei disso!

Enquanto eu olhava para as costas de Eris, Paul falou sobre sua cabeça com uma voz ironicamente jocosa.

— O que há, Rudy? Agora está se escondendo atrás de garotinhas? Que playboyzinho.

Algo nessas palavras – ou talvez seu tom – me aliviou um pouco. Isso me lembrou da maneira como ele costumava me provocar no passado. Eram boas lembranças.

Decidi que Paul estava tentando preencher a distância que se formou entre nós. Afinal, ele tinha saído de seu caminho para me encontrar logo cedo. Eu estava calmo o suficiente para pelo menos tentar conversar.

— Rudeus não está se escondendo atrás de mim! Eu é que estou escondendo ele! De um pai fracassado! — Fechando as mãos em punhos, Eris estremeceu de fúria. Parecia que estava prestes a dar um soco no queixo de Paul.

Lancei um olhar para Ruijerd. Pelo visto, sentindo o que eu queria, ele agarrou Eris pelo pescoço e a levantou do chão.

— Ei! Me solta, Ruijerd!

— Devíamos deixar os dois sozinhos.

— Você viu Rudeus ontem à noite, não viu?! Esse homem não tem o direito de se chamar de pai!

— Não seja tão dura com ele. A maioria dos pais está longe de ser perfeito.

Ruijerd se dirigiu para a saída, carregando uma Eris relutante. Mas, ao passar por Paul, ele parou por um momento.

— Você tem todo o direito de dizer o que quer. Mas a única razão pela qual pode fazer isso, é por que seu filho ainda está vivo.

— Uh… sim…

As palavras de Ruijerd carregavam um peso real. Ele parecia se considerar o pai mais fracassado do mundo. Talvez sentisse algum tipo de simpatia por um colega desastrado.

— Você realmente não deveria mandar nas pessoas com um movimento de queixo, Rudy.

— Você entendeu tudo errado, Pai — protestei. — Na verdade só foi um contato visual. Nem precisei mover o queixo.

— Não tenho certeza se isso realmente faz diferença — disse Paul, sentando-se à minha frente. — Então, era aquele o cara demônio de quem você estava me falando ontem…?

— Sim. Aquele é Ruijerd da tribo Superd.

— O Superd, hein? Parece um cara bastante amigável. Acho que os rumores devem ser um pouco exagerados.

— Não ficou com medo dele nem nada do tipo?

— Não seja idiota. Ele é o homem que salvou meu filho.

No dia anterior, Paul não parecia pensar assim, mas… provavelmente não seria muito útil apontar esse ponto.

Então…

— Enfim. Posso perguntar por que você está aqui?

Minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia, e Paul se encolheu na cadeira.

— Uh… bem, eu queria dizer que sinto muito.

— Pelo quê?

— Por tudo o que aconteceu ontem.

— Não precisa se desculpar. — Era bom que ele estivesse disposto a fazer isso, mas depois de uma boa noite de sono no peito de Eris, eu estava pronto para confessar os erros que cometi. — Para ser honesto, até agora na verdade fiquei só brincando.

No começo as coisas foram um pouco complicadas, é claro. Mas, na maior parte do tempo, nossa jornada transcorreu sem problemas e tive muito tempo para me entregar a várias perversões. O fato de nunca ter conseguido reunir informações sobre a Região de Fittoa foi, sem dúvida, um fracasso da minha parte. Nunca tive a chance de bisbilhotar em Porto Zant, mas passamos um bom tempo em Porto Vento. Poderia ter encontrado algum tipo de corretor de informações por lá e descoberto mais sobre a Calamidade.

Não procurei pelas coisas que deveria. Foi algo desleixado e descuidado da minha parte.

— É compreensível que tenha sentido raiva de mim, Pai. Eu também sinto muito… Não consigo imaginar como as coisas devem ter sido agitadas para você.

Toda a Região de Fittoa foi “deslocada” e nossa família acabou espalhada ao vento. Quando pensei em como Paul deve ter se sentido nos dias e semanas que se seguiram, não consegui o culpar por sua atitude severa. Fiquei viajando em uma bolha de ignorância, felizmente ignorante quanto à tragédia em curso ao meu redor.

— Não fale algo assim, Rudy. Sei que você também deve ter passado por momentos difíceis.

— Não, isso não é verdade. Para ser sincero foi moleza. — Afinal, Ruijerd estava comigo. Depois de nosso começo conturbado em Rikarisu, as coisas correram relativamente bem. Nosso guarda-costas garantiu que os monstros nunca nos emboscassem. Ele caçou nosso jantar sem ser solicitado, e até interferiu quando Eris e eu brigamos. Para mim, pelo menos, a jornada foi virtualmente relaxante. A palavra “moleza” parecia adequada.

— Ah, é mesmo? Então foi moleza, hein…? — Eu não sabia o que Paul estava pensando no momento, é claro. Mas, por alguma razão, sua voz tremia um pouco.

— Aliás, sinto muito por não ter visto sua mensagem. Sobre o que era?

— Eu só disse que estava bem e pedi que você fizesse uma busca na parte norte do Continente Central.

— Entendi. Bem, posso ir lá dar uma olhada assim que deixar Eris na Região de Fittoa.

Por que eu estava falando como um robô? Tudo o que disse parecia estranhamente tenso. Parecia até que estava ansioso. E porque estaria? Perdoei Paul e ele me perdoou. As coisas definitivamente não seriam as mesmas de antes, mas esta era uma situação de emergência, certo? E todo mundo fica tenso em uma emergência. Claro. Fazia sentido.

— Deixando isso de lado por enquanto, poderia entrar em mais detalhes sobre a situação atual na Região de Fittoa?

— Sim, com certeza. — A voz de Paul era tão robótica quanto a minha e tremia um pouco cada vez que ele falava. Será que também estava nervoso?

Não, não. Primeiro devia tentar descobrir o que estava por trás do meu próprio comportamento. Realmente havia algo estranho nisso… Eu não conseguia agir da maneira de costume.

Como é que falava com Paul antes daquilo acontecer? Costumávamos ser bem casuais um com o outro, não é?

— Vejamos. Por onde devo começar…?

Com a voz ainda tensa, Paul me deu um resumo completo do que tinha acontecido em Fittoa enquanto eu estava fora. Todos os edifícios da região desapareceram e todos os residentes foram teletransportados para algum canto aleatório do planeta. Muitas mortes já haviam sido confirmadas e muitas outras pessoas ainda continuavam desaparecidas.

Paul descreveu como recrutou voluntários para o Esquadrão de Busca e Resgate e os transformou em uma organização funcional. Escolheu basear suas operações em Millishion, já que era o lar da sede da Guilda dos Aventureiros e um bom ponto central para reunir informações.

O esquadrão tinha outra base de operações na capital do Reino Asura, e o ex-mordomo Alphonse comandava as coisas por lá. Alphonse também era o líder geral da organização e estava ativamente fornecendo ajuda aos refugiados que haviam voltado para a Região de Fittoa.

Paul também explicou que havia deixado mensagens para mim em cidades de todo o mundo. Esperava que pudéssemos nos separar e procurar os membros desaparecidos de nossa família em lugares variados.

Como o mais velho e independente de seus filhos, provavelmente seria minha responsabilidade ajudar. Eu ainda era uma criança, sim, mas tinha a mente de um adulto. Se tivesse visto a mensagem, teria me incitado a agir.

Zenith, Lilia e Aisha estavam todas desaparecidas. E era perfeitamente possível que eu tivesse passado por uma delas em algum lugar no Continente Demônio. Isso era apenas um fato, e foi o suficiente para me fazer lamentar tudo que fiz por lá. Estive com tanta pressa que raramente ficávamos em uma única cidade por mais do que alguns dias.

— Então está tudo certo com Norn?

— Aham, tivemos sorte. Ela estava me tocando quando tudo aconteceu.

De acordo com Paul, era assim que a magia de teletransporte normalmente funcionava: Se estivesse em contato físico com alguém quando ela o atingisse, seriam enviados para o mesmo destino.

— Ela está bem?

— Aham. No começo ela pareceu um pouco desconfortável por ter ido parar em um lugar desconhecido, mas agora é basicamente a mascote do esquadrão.

— Sério? É bom ouvir isso.

Ao menos Norn estava segura e feliz. Esta era definitivamente a única colher de chá ao se analisar toda a bagunça que foi feita. Era algo a se comemorar, com certeza.

Mas, por alguma razão, eu ainda estava me sentindo meio triste.

Nossa conversa foi interrompida. Isso parecia estranhamente… esquisito. Paul e eu não éramos assim antes, não é? O que aconteceu com a maneira como costumávamos fazer piadas e brincar um com o outro? Mas que peculiar.

Depois de um tempo, Paul disse uma coisa ou outra, mas não consegui responder direito.

Minhas respostas foram ficando cada vez mais breves e apáticas.

Em algum momento, todos os outros clientes tinham ido embora do bar. Em pouco tempo, provavelmente seríamos convidados a sair para que pudessem se preparar para a correria do almoço.

Acho que até Paul percebeu isso. Então passou para o tópico principal, e também final.

— Rudy, o que você planeja fazer a partir de agora?

— Em primeiro lugar, vou levar Eris de volta à Região de Fittoa.

— Não sobrou quase nada de Fittoa, sabe?

— Eu sei. Mas ainda assim, vou fazer isso.

Mesmo que Philip, Sauros e Ghislaine ainda estivessem desaparecidos e não encontrássemos nenhum rosto familiar esperando por nós, tínhamos que ir. Afinal, voltar para lá sempre foi nosso objetivo. Seguiríamos nosso objetivo inicial. E assim que chegássemos a Fittoa, poderíamos testemunhar seu estado com nossos próprios olhos.

Depois disso, eu poderia partir para buscar na parte norte do Continente Central… ou talvez até mesmo pediria a Ruijerd para me ajudar a voltar ao Continente Demônio. Inferno, poderia até mesmo tentar ir para o Continente Begaritt. Bem, eu meio que sabia a língua de lá.

— Depois disso, vou começar a procurar nas outras partes do mundo.

— Tudo bem…

Com isso, a conversa esfriou de novo. Eu não fazia ideia do que dizer.

— Aqui. — Nesse momento, o garçom abruptamente colocou dois copos de madeira na nossa frente. Nuvenzinhas de vapor subiam suavemente do líquido dentro deles. — Isso é por conta da casa.

— Ah. Obrigado. — Agora que pensei nisso, minha garganta estava dolorosamente seca.

Assim que percebi isso, também notei algumas outras coisas. Eu estava apertando minhas mãos com força; minhas palmas estavam úmidas de suor. Minhas costas e axilas também pareciam estranhamente frias. E a franja do meu cabelo estava colada na minha testa.

— Ei, garoto. Não vou fingir que sei o que está acontecendo aqui, mas…

— Hm…?

— Ao menos olhe para a cara dele.

Foi só quando ouvi essas palavras que me dei conta. O tempo todo evitei de encarar o olhar de Paul. Depois de desviar meus olhos quando ele entrou, não voltei a olhar para seu rosto. Nem uma vez.

Engolindo em seco, olhei para meu pai. Seu rosto estava cheio de incerteza e angústia. Parecia um homem prestes a desabar em lágrimas.

— Por que você está fazendo essa cara?

— Que cara? — disse Paul, sorrindo amarelo.

Com sua expressão apática e bochechas fundas, parecia uma pessoa completamente diferente do homem que eu conhecia. Mas, por alguma razão, senti como se já tivesse visto um rosto muito semelhante em algum lugar. Onde foi? Tinha a sensação de que fazia muito tempo…

E me lembrei…

Tinha visto algo parecido no espelho do banheiro, na minha antiga casa.

Tinha acontecido um ou dois anos depois de eu me tornar totalmente recluso. Naquela altura, ainda achava que tinha tempo para mudar as coisas. Mas também estava ciente de que havia uma distância cada vez maior entre mim e todos que conhecia – uma que talvez nunca fosse capaz de superar.

Ainda assim, eu estava simplesmente com muito medo de voltar a sair. E assim, sentimentos de ansiedade e frustração constantemente cresceram dentro de mim. Talvez tenha sido o período mais emocionalmente volátil da minha vida.

Entendo. Então era isso…

Paul, sem sucesso, procurou desesperadamente por sua família. Apesar de todos os seus esforços, não tinha encontrado um único rastro de notícia por muito tempo. Ficava constantemente preocupado. E, finalmente, começou a se perguntar: E se estiverem feridos? E se estiverem doentes? E se já estiverem mortos? Quanto mais pensava nisso, mais preocupado ficava.

E então, finalmente, eu apareci… com um sorriso alegre no rosto. Foi tão diferente do que Paul havia imaginado que ele acabou ficando irritado.

Uma vez passei por algo semelhante. Não muito depois de começar minha vida como um perdedor, alguém que eu conhecia desde o ensino fundamental foi me visitar e começou a me contar sobre o que estava acontecendo na escola. Eu estava profundamente deprimido e com muita dor, mas ele falava sobre sua vida como se não existisse nenhuma preocupação com o mundo. Aquilo fez meu estômago doer. Acabei explodindo e lançando insultos ásperos contra aquela pessoa.

No dia seguinte, disse a mim mesmo que me desculparia na próxima vez que o cara aparecesse. Mas ele nunca mais voltou. E eu também não estendi a mão para ele. Deixei algum tipo de orgulho teimoso me segurar.

Agora me lembrava. Era exatamente a mesma cara que vi no espelho.

— Pai, tenho uma proposta.

— O quê…?

— Nessas circunstâncias, acho que precisamos tentar agir como adultos.

— Uh, sim, acho que não agi de forma muito madura ontem… Mas não tenho certeza de onde você quer chegar.

O gelo dentro do meu coração estava derretendo rapidamente. Finalmente entendi como Paul estava se sentindo. Depois de resolver uma parte do quebra-cabeça, o resto, na verdade, seria bem simples.

Voltei a pensar no passado – no dia em que Paul me criticou por brigar, e respondi com minhas próprias palavras ásperas. Na época, não fiquei nem um pouco impressionado com suas habilidades de pai. Mas ele tinha apenas vinte e quatro anos, era muito jovem para ser pai, então decidi não fazer um julgamento muito severo.

E já tinham se passado seis anos. Paul agora já tinha entrado na casa dos trinta. Ele ainda era um pouco mais jovem do que eu na minha vida anterior e já havia realizado mais do que eu. Quando briguei com meu amigo, nem tentei consertar as coisas. Acabei encontrando maneiras de me convencer de que era tudo culpa dele. Em comparação, Paul estava se esforçando muito mais.

Eu não era mais a mesma pessoa daquela época. Jurei para mim mesmo que iria mudar, não jurei? Acabei esquecendo disso, mas não podia me permitir repetir os mesmos erros estúpidos de novo e de novo.

Esta era uma briga muito maior do que a última, sim. Mas eu estava me comportando exatamente da mesma maneira que naquele dia, de seis anos atrás. Estávamos ambos cometendo os mesmos erros estúpidos, de novo. Achei que tinha percorrido um longo caminho desde então, mas, em vez disso, parecia que só tinha andado em círculos. Precisava reconhecer isso.

E o mais importante: Tive que dar um verdadeiro passo adiante.

— Vamos fingir que o dia de ontem nunca aconteceu.

A proposta parecia bastante simples. Fiquei profundamente magoado com o que Paul me disse naquele bar. A dor era quase insuportável. Meu amigo, que passou em minha casa, preocupado comigo, deve ter sentido algo semelhante quando o afastei. E foi daquele jeito que as coisas terminaram. Nunca mais nos vimos.

Desta vez as coisas não seriam iguais. Eu não deixaria meu vínculo com Paul ser quebrado.

— Ontem nós dois não brigamos. Agora, neste momento, estamos nos vendo novamente pela primeira vez em anos. Entendido?

— Do que você está falando, Rudy?

— Não pense demais nisso, por favor. Apenas abra bem os braços. E anda logo!

— Uh… tá bom… — Paul abriu os braços, parecendo um pouco indeciso.

E eu prontamente me joguei neles.

— Pai! Senti sua falta!

Seu corpo exalava um cheiro sobressalente de bebida. Ele parecia estar sóbrio, mas eu não ficaria surpreso se ainda estivesse de ressaca. Afinal de contas, quando foi que começou a beber tanto? Nos velhos tempos, eu achava que ele nem bebia.

— R-Rudy? — Paul parecia não saber como reagir.

Descansando meu queixo em seu ombro, murmurei um conselho bem baixinho.

— Vamos lá. Você acabou de se reunir com seu filho. Não há nada que queira dizer?

Isso era meio ridículo, claro. Mas, mesmo assim, abracei o corpo sólido de Paul com todas as minhas forças. Não foi apenas seu rosto que ficou mais magro. Seu manequim parecia estar um ou dois tamanhos menor do que antes. Claro, eu cresci nos últimos anos, então isso provavelmente tinha algo a ver com isso; mas era óbvio que meu pai havia passado por alguns momentos muito difíceis.

Após um momento de hesitação, Paul conseguiu murmurar:

— Eu… eu também senti sua falta.

E uma vez que ele disse aquelas primeiras palavras, foi como se as comportas se abrissem.

— Também senti sua falta, Rudy… Senti tanto a sua falta! Eu procurei e procurei, mas não consegui encontrar ninguém… Comecei a pensar que vocês poderiam estar todos mortos… Comecei… imaginando você…

Quando olhei para Paul novamente, várias lágrimas escorriam por seu rosto. Não era uma imagem lá muito bonita. O homem estava soluçando feito um bebê.

— Desculpa… Eu sinto muito, Rudy…

Bem, ótimo. Agora ele também está tornando as coisas mais fáceis.

Afaguei a sua nuca algumas vezes. Por um tempo, nós dois apenas choramos juntos.

E então, pela primeira vez em cinco anos, finalmente me reuni com meu pai.

 

 


 

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