Paul estava hospedado em um lugar chamado Pousada Porta D’Alvorada, mas me levou para o bar ao lado. Havia cerca de dez mesas redondas de madeira e, no momento, eu estava sentado bem em frente ao meu pai.
Ainda era dia, mas não éramos os únicos no bar. Na verdade, todos os lugares estavam ocupados. Os caras que derrubei no armazém estavam sentados, tendo seus ferimentos tratados pelos curandeiros do grupo. Nem seria preciso dizer que os olhares que me deram não foram muito amigáveis.
Pelo visto eram todos membros da gangue de Paul. E, dentre todos, quem mais chamava a atenção era, com certeza, a guerreira sentada diagonalmente atrás dele.
Ela tinha cabelos castanhos curtos com as pontas feitas, uma boca carnuda e um rosto bastante encantador. Mas era sua silhueta e sua roupa que faziam com que realmente se destacasse. Seu peito era enorme, sua cintura era fina e sua bunda arredondada. Por alguma razão, ainda estava usando aquela armadura de biquíni. Pelo visto ainda não tinha nem vinte anos.
Era aquela garota que anteriormente me deu tanto trabalho. Paul a chamava de “Vierra”. Ela definitivamente tinha o tipo de corpo pelo qual eu podia imaginar meu velho babando. Eu mesmo achei difícil desviar o olhar quando olhei na direção dela… e aquela roupa absurdamente minúscula certamente não ajudava em nada.
A própria “armadura de biquíni” não era algo tão raro neste mundo. Afinal, a maioria dos ferimentos poderia ser curada instantaneamente com magia, então algumas espadachins optavam por equipamentos de proteção mais leves, aceitando o fato de que às vezes mostrariam demais. Conheci algumas pessoas assim no Continente Demônio, e tinha que assumir que ela estava na mesma situação. Mas eu nunca tinha visto ninguém com tão poucas roupas antes. Normalmente, uma armadura como aquela seria usada sobre roupas leves, e não sobre a pele nua. E qualquer um usaria alguma proteção para cobrir ao menos algumas partes das próprias juntas. Agora podíamos até estar apenas em um bar, então faria sentido não se incomodar em usar nada mais para a proteção. Da mesma forma, normalmente se usaria um casaco sobre esse tipo de armadura quando não estivesse lutando. Ao menos era isso que as mulheres faziam no Continente Demônio. Mas algumas das espadachins mais experientes não pareciam se importar tanto…
Espera. Ela não tinha colocado um sobretudo no armazém depois que lancei o feitiço? Por que diabos iria tirá-lo de novo?
Bem, tanto faz. Eu poderia muito bem aproveitar o colírio para os olhos enquanto tivesse a oportunidade. Mm, sim, de fato. Esplêndido, esplêndido… Ops.
Acidentalmente encontrei o olhar da garota enquanto a cobiçava. Ela me deu uma piscadela rápida, então devolvi uma das minhas.
— Ei, Rudy… Rudy?
Nesse ponto, percebi que Paul estava falando comigo e, com pesar, desviei meus olhos da guerreira.
— Olá, Pai. Quanto tempo.
— É. Uh… é bom ver que você ainda está vivo, garoto.
A voz de Paul transbordava exaustão. O homem realmente tinha mudado bastante. E, com certeza, não foi para melhor. Nunca o tinha visto tão abatido ou desgrenhado antes.
— Bem… obrigado…
Para ser honesto, estava tendo muita dificuldade para entender essa situação. O que diabos Paul estava fazendo nesse lugar? Estávamos no País Sagrado de Millis. Ficava tão longe do Reino Asura quanto a Mongólia da África. Ele estava me procurando?
Não, não podia ser. Ele nem sabia que eu tinha sido teletransportado para o Continente Demônio. Devia haver algum outro motivo. O que aconteceu com seu trabalho de proteger Buena Village?
— Então… o que está fazendo aqui, Pai?
A pergunta parecia um ponto de partida razoável para mim, mas Paul reagiu com óbvia surpresa.
— O quê? Você viu minha mensagem, não viu?
— Sua mensagem…? — Mas do que ele estava falando? Não me lembrava de ter recebido nenhuma mensagem.
Por algum motivo, Paul franziu a testa, carrancudo, diante da minha confusão. Consegui de alguma forma perturbá-lo?
— Se importa em me contar o que andou fazendo até agora, Rudy?
— Uh, estive basicamente tentando sobreviver. É uma longa história…
Eu realmente esperava que Paul explicasse a situação primeiro, mas como ele perguntou, decidi contar a história de minha jornada para Millishion. Comecei com meu teletransporte para o Continente Demônio com Eris, descrevendo como fomos resgatados por um demônio, nos tornamos aventureiros e passei um ano inteiro viajando até Porto Vento.
Parando para olhar para o passado, a jornada foi bem divertida. Sofremos com um começo difícil, é verdade, mas por volta do sexto mês já estávamos acostumados com a vida de aventureiro. Aos poucos, comecei a gostar de contar minha própria história. Minhas descrições de eventos tornaram-se mais eloquentes e comecei a descrever vários episódios de maneiras cada vez mais dramáticas. Nada era ficção, mas dei um jeito de moldar tudo, transformando as coisas em uma grande e espetacular história.
Para começar, dividi nossa aventura pelo Continente Demônio em três partes claras:
Capítulo Um: Encontrei meu querido amigo Ruijerd, e fizemos um nome para nós mesmos na cidade de Rikarisu.
Capítulo Dois: Prometendo ajudar Ruijerd em sua busca e corrigir vários erros, o grande mago Rudeus iniciou sua grande jornada.
Capítulo Três: Fui pego em uma armadilha covarde do povo-fera e me tornei um prisioneiro indefeso em sua aldeia.
Podia haver um exagerinho aqui ou ali, mas mantive a narrativa fiel à realidade. Depois de um tempo, comecei a me divertir tanto que passei a balançar as mãos e adicionar efeitos sonoros dramáticos às cenas de ação.
Além disso, optei por deixar de fora todo o caso com o Deus Homem.
— E então, quando finalmente chegamos a Porto Vento, a primeira coisa que encontramos foi… — Assim que estava encerrando o capítulo dois de minhas “Crônicas de Uma Jornada Errante Através do Continente Demônio”, abruptamente fiquei em silêncio. Por algum motivo, o humor de Paul piorou. Havia algo muito parecido com uma carranca em seu rosto, e ele tamborilava os dedos na mesa, irritado.
Será que foi algo que eu disse? Realmente não entendi por que ele estava chateado, então decidi tentar descobrir ao continuar.
— Uh, então de qualquer forma… Depois disso, nós fomos para a Grande Floresta…
— Chega — disse Paul, seu tom nitidamente irritado. — Já entendi, certo? Você passou o último ano e meio brincando por aí.
A maneira como ele disse isso meio que me irritou.
— Como é que é? Na verdade passei por muitos problemas.
— Ah, é? Quando?
— Hein?
Ele me pegou desprevenido com isso. Minha voz soou um pouco estranha.
— Do jeito que você acabou de descrever, a coisa toda pareceu uma maldita caminhada no parque.
Bem, claro. Isso porque contei as coisas assim de propósito. Mas, parando para pensar, talvez tenha me empolgado demais.
— Olha, Rudy… deixe-me perguntar uma coisa.
— O que foi?
— Por que não se incomodou em tentar descobrir se mais alguém foi teletransportado para o Continente Demônio?
Fiquei em silêncio. Foi a única coisa que pude fazer. Afinal, não consegui pensar em nenhuma boa resposta para sua pergunta. Havia apenas uma resposta possível. Um motivo simples.
Nem pensei nisso.
No início, estava totalmente ocupado com os problemas do nosso grupo. Mas mesmo depois de começarmos a tomar controle das coisas, nunca pensei que alguém além de nós pudesse ter sido enviado para o Continente Demônio.
— Acho… que esqueci disso. Um… eu estava meio que ocupado e…
— Ah, estava? Você encontrou tempo para ajudar algum demônio aleatório que nunca viu antes, mas não conseguiu pensar nas outras pessoas que provavelmente também foram enviadas para lá?
Voltei a ficar em silêncio.
Talvez tivesse priorizado as coisas erradas. Certo. Mas não conseguia ver motivo para me questionar sobre isso depois de tudo feito.
Eu simplesmente não pensei nessas coisas na hora certa. O que se supunha que deveria ter feito?
— Hah! Então, e aí? Você não procurou ninguém. Não se preocupou em escrever sequer uma única carta. Só ficou por aí, curtindo a vida de aventureiro com uma garotinha bonita e um guarda-costas invencível! E então, quando chegou a Millishion… hah! A primeira coisa que fez foi tropeçar em um sequestro, colocar uma calcinha na cabeça e fingir que é algum tipo de herói?
Com um bufo zombeteiro, Paul estendeu a mão para pegar uma garrafa de álcool na mesa ao lado. Ele bebeu metade em um único gole e cuspiu no chão fazendo barulho.
Sua atitude estava realmente começando a me irritar. Eu não ia dizer para que não bebesse, mas estávamos no meio de uma discussão importante.
— Olha, eu fiz o melhor que pude, entendeu? Fiquei preso em um lugar totalmente desconhecido, sem dinheiro, e senti que tinha que me concentrar em manter Eris segura. Você realmente pode me culpar por ter esquecido algumas coisas?
— Não estou culpando você nem nada, garoto. — O tom de voz de Paul soou zombeteiro como sempre.
Neste momento não pude deixar de levantar minha voz.
— Então por que continua me atacando assim?! — Minha paciência tinha limites. Não entendi o motivo para o homem estar agindo assim.
— Por quê? — Mais uma vez, Paul cuspiu no chão revelando desgosto. — Isso é o que eu quero saber. Por quê?
— Como é que é? — A cada segundo que passava a conversa ficava mais confusa. O que ele estava tentando dizer?
— Essa criança, Eris, é a filha de Philip, não é?
— Hã? Uh, sim, claro que é.
— Eu mesmo nunca vi ela, mas tenho certeza de que é uma garotinha bonita. Foi por isso que não enviou nenhuma carta? Poderia acabar ficando mais difícil dar uns pegas nela se aparecesse um monte de guarda-costas, imagino.
— Ah, vamos lá! Já te disse, só esqueci! — Nenhum pensamento do tipo tinha passado pela minha cabeça.
É verdade que Eris era a criança de uma família poderosa. Os Greyrats possuíam muita influência. Se eu tivesse falado com o lorde local de Porto Zant, poderiam ter nos dado um ou dois guarda-costas. Claro, acabei em uma cela de prisão em uma vila do povo-fera antes de ter a chance de tentar algo assim. Mas já não tinha explicado isso?
Ah, espera. Não. Na verdade, não tive a chance de chegar nessa parte…
Ainda assim, realmente senti que fiz o melhor trabalho que pude diante das circunstâncias. Eu não estava dizendo que havia tomado as melhores decisões possíveis em todos os momentos, mas não achei que Paul tivesse o direito de me criticar depois de tudo feito.
Após um momento de silêncio, a mulher da armadura de biquini colocou a mão no ombro dele, chegando por trás.
— Capitão, por que simplesmente não esquece isso? Sabe, ele ainda é uma criança. Não precisa ser tão ríspido assim.
Não pude deixar de bufar. Sério, típico do Paul. Apesar de toda sua conversa fiada, não conseguia nem se controlar perto das mulheres. E desde quando um cara desses podia falar desse jeito comigo?
Apenas para registrar: Não coloquei um único dedo em Eris. Claro, em alguns momentos me senti tentado. Às vezes, meus desejos pecaminosos quase levavam a melhor sobre mim. Mas, no final das contas, nunca a toquei.
— Sabe, Pai, não sei se você tem algum direito de me dar algum sermão por causa de mulheres.
— O quê…?
Paul semicerrou os olhos ameaçadoramente neste momento. Mas na hora, não percebi.
— Afinal de contas, quem é essa garota atrás de você?
— Vierra? O que tem ela?
— Diga-me, minha Mãe e Lilia sabem que você está tão íntimo com uma mulher tão bonita?
— Não, elas não sabem. Como diabos saberiam? — Paul contorceu o rosto amargamente, mas eu nem estava olhando para ele. Estava muito ocupado aproveitando o fato de que finalmente consegui levar alguma vantagem.
— Então pode traí-las tanto quanto seu coração quiser? A propósito, ela está usando uma roupa e tanto. Acho que logo vou ganhar mais um irmão ou irmã.
De repente, me encontrei deitado no chão com meu rosto latejando dolorosamente. Paul estava olhando para mim com ódio nos olhos.
— Já estou farto dessa merda, Rudy.
Ele me deu um soco. Por quê? Mas que diabos?
— Olhe. Se você chegou até aqui, já passou por Porto Zant, não passou?
— Passei. E daí?
— Então você já sabe, não sabe?!
Do que ele estava falando?! Isso realmente não fazia qualquer sentido. Tudo que poderia dizer era que Paul estava escondendo algo de mim… e que estava chateado por eu não saber o que era esse “algo”. Mas que piada. Eu não era nenhum sabe-tudo, inferno. O mundo transbordava com coisas que não sabia.
— Não faço ideia do que você está falando! — Me levantei com um salto e dei um golpe em Paul.
Mesmo enquanto ele se esquivava do soco, ativei meu Olho da Previsão.
Ele vai pegar minha perna e me fazer tropeçar.
Pisei com força no pé de Paul e girei para dar outro soco em seu queixo.
Ele vai se esquivar do meu soco e me acertar um contragolpe.
O homem se movia bem até demais para um bêbado. Canalizei magia em minha mão direita. Se eu não fosse páreo para ele em uma briga de curta distância, poderia simplesmente partir para o uso de feitiços.
O redemoinho que invoquei atingiu meu pai de frente. Com um grito mudo de surpresa, girou para trás no ar, voando para além do balcão do bar. O barulho de garrafas quebrando passou por todo o cômodo quando ele caiu no chão.
— Puta merda! Agora já chega! — Paul se pôs de pé na mesma hora, mas cambaleou instavelmente ao tentar se mover.
Você andou bebendo demais, idiota. No passado ele fora muito mais forte. O velho Paul teria dado um jeito de evitar meu redemoinho, mesmo naquela posição estranha.
— Rudy, seu moleq…
— Capitão!
Enquanto Paul vacilava, outra mulher correu para o seu lado. Desta vez, era a maga de robe. Então ele estava cercado por garotas, não estava? Foi incrível como teve coragem de me dar um sermão.
— Me deixa em paz! — Empurrando a maga para o lado, Paul caminhou pelo cômodo de volta até mim.
— Com quantas mulheres você dormiu enquanto estive longe, hein, Paul?
— Cale a maldita boca!
Ele vai me lançar um golpe poderoso com a mão direita.
Mas que soco mais previsível. Esse era o mesmo Paul que eu conhecia? Mesmo sem o Olho da Previsão, eu provavelmente poderia ter desviado.
— Hah! — Agarrei seu braço estendido e o puxei para frente para algo como um lançamento de ombro com um braço só. Claro, eu não entendia nada de judô. Usei uma rajada de magia do vento para impulsioná-lo , então apenas o joguei no chão com o máximo de força que consegui.
— Gah…!
Paul não conseguiu nem amortecer a queda direito. Enquanto ele estava jogado no chão, eu me abaixei e montei no homem, prendendo seus braços sob meus joelhos do jeito que Eris sempre fazia.
— Olha aqui… eu dei… o meu melhor, entendeu?!
E bati nele.
E bati de novo.
E mais outra vez.
Rangendo os dentes, Paul olhou para mim com os olhos cheios de uma fúria amarga.
Porra, o que havia de errado com ele?! O que foi que fiz para merecer aquele olhar?!
— O que você esperava de mim?! Eu fui parar em um lugar totalmente desconhecido! Não tinha ninguém para pedir ajuda! E ainda consegui chegar até aqui! Isso não é bom o bastante?!
— Você poderia ter feito melhor e sabe disso!
— Isso não é verdade!
E voltei a dar socos nele. E de novo.
Pelo visto, nenhum de nós tinha mais coisas a dizer. Paul apenas olhou para mim enquanto sangue escorria dos cantos de sua boca.
Parecia realmente irritado. Como se estivesse lidando com alguém totalmente irracional. Por quê? Eu nunca tinha visto uma expressão assim em seu rosto. Não era assim que ele era. Que se fod..
— Pare com issooooo! — De repente, algo me acertou pelo lado. Balancei um pouco com o impacto e, no instante seguinte, Paul me empurrou para longe dele e se sentou.
Assumindo que voltaria a ser atacado, logo me preparei. Mas Paul não se moveu em minha direção… porque agora havia uma garotinha parada bem entre nós.
— Pare! Pare agora!
A criança tinha o nariz de Paul e o cabelo dourado de Zenith. A reconheci na mesma hora. Era Norn. Norn Greyrat – minha irmãzinha. Ela tinha ficado muito maior desde a última vez que a vi. Agora devia ter cinco anos, não é? Talvez até seis. Por que estava parada na minha frente e com os braços abertos?
— Pare de bater no Papai!
Pisquei, confuso.
— Hein? — Bater no Papai? O quê? Não. Vamos lá …
Norn estava olhando para mim, parecendo que ia explodir em lágrimas a qualquer momento. Quando olhei ao redor do lugar… por algum motivo, todos estavam olhando para mim como se eu fosse o cara mau.
— Isso é sério…?
Senti meu sangue gelando. Memórias de décadas anteriores passaram pela minha mente. Memórias de todas as vezes em que sofri bullying em minha vida anterior. Naqueles tempos, sempre que tentava me defender, todos da sala de aula costumavam me olhar assim.
Certo, certo, claro. Então eu é que estava errado, de novo, hein?
Tanto faz. Desisto.
Já chega disso. Era hora de ir embora. Eu não tinha encontrado nada que valesse a pena ser visto, e também não tinha feito nada. Seria melhor voltar para a pousada e esperar por Eris e Ruijerd. Podíamos deixar esta cidade de imediato… talvez em um ou dois dias. Sério, não seria o fim do mundo. A capital não seria o único lugar onde poderíamos fazer algum dinheiro. Digo, Porto Oeste devia ter uma filial própria da Guilda, certo?
— Escute, Rudy. Você não foi o único teletransportado pela Calamidade. Todo mundo de Buena Village também foi.
Paul estava dizendo alguma outra coisa, mas simplesmente ignorei.
Hm? O quê?
O que era isso agora?
— Deixei uma mensagem para você com as Guildas de Porto Zant e Porto Oeste. Você não se tornou um aventureiro? Por que diabos não leu?
Hein? Eu não tinha visto nada do tipo em Porto Zant…
Não, espera. Certo. Nunca tivemos a chance de visitar a Guilda dos Aventureiros de lá, não foi? Após chegarmos, a primeira coisa que fiz foi partir em busca de Ruijerd, e aquela saída terminou comigo trancado em uma cela de prisão no Vilarejo Doldia.
— Enquanto você estava curtindo suas férias, um monte de gente morreu.
Eu tinha visto “O Incidente de Deslocamento” com meus próprios olhos. Tinha visto a escala daquela calamidade mágica. Por que não pensei nisso? Até o Deus Homem disse que o desastre tinha sido “enorme”. Não existia motivo para supor que não tivesse chegado a Buena Village.
Então… todos de casa desapareceram…
— Isso significa que… Sylphie também está desaparecida?
— Está mais preocupado com uma garota do que com sua própria mãe, Rudy? — disse Paul, irritado e carrancudo.
Minha garganta fechou.
— O quê?! V-você não encontrou nem a minha Mãe?!
— Isso mesmo. Não consegui a encontrar em lugar nenhum! E nem Lilia!
As palavras me acertaram como um soco no estômago. Minhas pernas tremeram e cederam; tropecei para trás, mal conseguindo me segurar em uma cadeira antes de cair.
— Mas estivemos procurando. Estivemos procurando por todos os desaparecidos. Esse é o objetivo do Esquadrão de Busca e Resgate.
O Esquadrão de Busca e Resgate? Toda essa gente fazia parte de uma equipe de busca organizada?
— M-mas… por que uma equipe de busca e resgate sairia por aí sequestrando as pessoas?
— Isso é por que alguns dos deslocados foram vendidos como escravos.
Segundo meu pai, era algo comum: Alguém era teletransportado para um lugar totalmente desconhecido. Não faria ideia sequer de onde estava. E então alguém se aproveitaria disso para enganar e escravizar os sem entendimento.
Paul e os outros membros do esquadrão compararam incontáveis registros com suas listas de pessoas desaparecidas, foram ver todos os Fittoanos escravizados que localizaram e então tentaram convencer seus proprietários a libertá-los. Mas, pelo visto, muitas dessas pessoas se recusaram a desistir de sua “propriedade”. Sob as leis escravocratas de Millis, não importava como alguém acabasse sendo escravizado – uma vez que fosse um, não era nada mais do que uma propriedade privada de seu dono. Portanto, Paul recorreu à libertação compulsiva de escravos.
Roubar um escravo era crime, claro, mas havia algumas brechas na lei. O esquadrão se aproveitou de todas elas para libertar muitas pessoas.
Claro, estavam dispostos a respeitar os desejos de qualquer pessoa que optasse por permanecer na situação atual. Mas praticamente todos os escravos que encontraram imploraram, em prantos, para serem levados de volta para sua terra natal. O garoto que tinham acabado de salvar era um desses casos. Não era de se admirar que parecesse tão familiar. Era Somal, uma das crianças que costumava implicar com Sylphie. No último ano, foi forçado a trabalhar como uma espécie de garoto de programa.
Paul e seus companheiros ouviram os gritos amargos de incontáveis Fittoanos escravizados, alguns que inclusive ainda não haviam conseguido resgatar. Fizeram muitos inimigos entre a nobreza local e os membros do esquadrão começaram a se afastar como resultado de seus métodos cada vez mais enérgicos. Paul estava sendo pressionado de todos os cantos. Cada dia se demonstrava uma nova e estressante provação. Mesmo assim, perseverou. A única coisa que importava era encontrar e resgatar as vítimas da Calamidade, e tudo o que fez, fez por elas.
— Achei que você tivesse descoberto a situação há muito tempo, Rudy. Presumi que já estava fazendo sua parte.
Tudo o que pude fazer neste momento foi inclinar minha cabeça. Ele não estava sendo justo. Como eu poderia saber de tudo?
Mas, novamente… quando realmente pensei no assunto…
Era perfeitamente possível que pudesse ter encontrado Fittoanos deslocados em algumas das cidades pelas quais passamos no Continente Demônio. Se tivesse falado com eles, provavelmente teria conseguido uma noção de quão grande foi o desastre. Não tinha me esforçado o suficiente para entender a situação. Priorizei ajudar Ruijerd em vez de descobrir mais sobre a Calamidade.
Estraguei tudo. Simples assim.
— E agora descobri que você estava brincando de aventureiro…
Brincando, hein…?
É. Realmente não poderia argumentar contra isso.
O tempo todo em que estive roubando as calcinhas de Eris, olhando de soslaio para as moças da Guilda dos Aventureiros, fantasiando com o Grande Imperador Demônio e cobiçando uma garota com orelhas de gato, Paul esteve procurando desesperadamente por nossa família desaparecida.
Não era de admirar que tenha ficado tão irritado comigo.
Ainda assim, eu não conseguia me desculpar. No final das contas, tentei o meu melhor. Pensei nas coisas e tomei as decisões que pareciam mais razoáveis para mim.
E agora o que deveria fazer?
Paul não disse mais nada. Norn também ficou em silêncio. Mas eu podia ver a hostilidade em seus olhos, e isso me machucou profundamente. Parecia que tinham arrancado um grande pedaço do meu coração.
Olhei ao redor do lugar e vi que os camaradas de Paul também estavam olhando para mim com olhos de reprovação.
Mais memórias dolorosas vieram à tona. Lembrei-me do dia após um bando de delinquentes me despir e me amarrar do lado de fora para que todos vissem. Lembrei-me de como todos olharam para mim quando entrei na sala de aula naquela manhã.
Minha mente ficou paralisada.
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Em algum momento, voltei para o nosso quarto na pousada.
Desabei na cama. Não tinha certeza do que tinha acontecido comigo, ou por quê. Não tinha certeza de nada. Meu cérebro não devia estar funcionando direito no momento.
— Hã…?
Algo dentro das minhas roupas fez um barulho audível. Procurando por elas, encontrei o papel para escrever que comprei naquela tarde. Esmaguei aquilo e joguei fora.
— Hah… — Com um longo suspiro, voltei para a cama e abracei meus joelhos contra o peito.
Não queria mais fazer absolutamente nada.
Nunca tinha sido tratado tão friamente por um pai antes, nem mesmo em minha vida anterior. Mesmo com tudo que foi dito e feito, Mamãe e Papai sempre foram muito gentis comigo.
Mas agora, Paul tinha me rejeitado por completo. Ele olhou para mim da mesma forma que meu irmão da minha vida anterior no dia em que me expulsou de casa.
Onde errei?
Ao considerar tudo, achei que tinha feito um trabalho decente. Mesmo agora, nenhuma das minhas principais decisões se destacou como uma falha crítica. A única coisa que me veio à mente foi como, desde o começo, pedi para Ruijerd me ajudar. Naquele momento segui o conselho do Deus Homem, embora desconfiasse profundamente dele.
O fato de ter contado sobre minhas viagens da forma mais alegre possível também não ajudou. Isso foi em parte porque tinha me empolgado, mas também não queria deixar Paul preocupado… e também estava pensando no meu orgulho. Queria convencê-lo de que poderia me cuidar muito bem.
Entretanto, Paul não estava com o humor adequado para ouvir uma incrível história de aventuras. E os membros do seu time também não. Eu com certeza escolhi as palavras erradas. Por um lado, nunca quis sugerir que Sylphie fosse mais importante do que minha mãe. Mas Paul e Norn estavam lá… não era natural presumir que Zenith também estaria bem?
Não. Isso não passa de uma desculpa. Naquele momento, Zenith nem tinha passado pela minha cabeça.
E quanto a toda aquela coisa sobre ser um mulherengo? Foi Paul quem começou com isso, e eu nunca toquei em Eris. Um canalha sem-vergonha como ele não tinha o direito de me dar um sermão…
Ah. Espera. Agora isso fazia sentido. Talvez ele também não tivesse tocado naquelas garotas. Sim… isso explicaria por que se irritou tanto comigo.
Certo. Agora eu tinha ligado todos os pontos.
Eu só teria que voltar no outro dia e conversar com Paul de novo. Só ficamos um pouco exaltados, isso foi tudo. Eu já tinha lidado com esse tipo de coisa antes. Assim que conversássemos, ele entenderia.
Sim. Da próxima vez daria tudo certo. Eu também estava preocupado com nossa família, é claro. Se tivesse descoberto que estavam desaparecidos antes, também teria procurado.
Foi realmente uma pena eu ter passado mais de um ano no Continente Demônio sem reunir qualquer informação. Mas, no final das contas, continuei vivo. Ainda tinha a chance de consertar as coisas. Tudo o que tínhamos que fazer era planejar uma busca calma e completa. Encontrar algumas pessoas presas em um mundo tão grande levaria um tempo, claro; e Paul entendeu isso, com certeza. Assim que o acalmasse, poderíamos decidir nosso próximo movimento. Poderíamos nos concentrar nos lugares que ninguém havia procurado. Eu também ajudaria, é óbvio. Depois de deixar Eris em Asura, poderia simplesmente continuar viajando para o norte ou ir para algum outro lugar.
Sim. Então tudo bem. Em primeiro lugar, vou… ver Paul de novo. E voltarei… àquele bar e…
— Urp…!
De repente, dominado pela náusea, pulei da cama e corri para o banheiro. Em pouco tempo, vomitei tudo que tinha no estômago.
A um nível racional, tinha resolvido tudo, mas ainda não me sentia melhor. Já fazia muito tempo que não enfrentava esse tipo de hostilidade de um membro da família, e doeu demais para poder suportar.
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A tarde já estava começando quando Ruijerd retornou. Parecendo um pouco mais feliz do que o normal, o homem pegou um pequeno envelope e começou a mostrá-lo para mim. Mas quando olhei para ele de onde estava na cama, o Superd parou e franziu a testa.
— Aconteceu alguma coisa, Rudeus?
— Encontrei meu pai. Ele está aqui na cidade.
A expressão de Ruijerd ficou ainda mais tensa.
— Ele te disse algo desagradável?
— Sim.
— Já faz algum tempo que vocês não se viam, correto?
— Bem, sim.
— Mas vocês brigaram?
— Sim.
— Conte-me os detalhes.
Descrevi todo o incidente do início ao fim da forma mais honesta que pude. Assim que terminei, Ruijerd disse “entendo” e depois ficou em silêncio.
Foi o fim da nossa conversa. Depois de algum tempo, ele saiu do quarto em silêncio.
Eris voltou à noite.
Claro, a julgar pelo tanto que estava animada, algo devia ter acontecido. Havia folhas grudadas em suas roupas e manchas de poeira em seu rosto… mas ela parecia feliz. Parecia que o trabalho de matar Goblins havia corrido bem. Ao menos algo deu certo.
— Olá, Eris.
— Ei, Rudeus! Estou de volta! Você nem imagina o qu… Hein?
Quando eu sorri para ela, Eris arregalou os olhos diante do choque. Um instante depois, atravessou o quarto correndo até mim.
— Quem foi?! — gritou freneticamente, me sacudindo pelos ombros. — Quem fez isso com você?!
— Estou bem. Não é nada demais.
— Ah, vamos lá! Você não pode estar falando sério!
Ficamos nessa por um tempo, mas Eris se demonstrou realmente persistente. Acabei cedendo e contando o que aconteceu com Paul. Com uma voz monótona e sem emoção, contei toda a história pela segunda vez – o que eu disse, como ele reagiu e como tudo terminou.
Eris respondeu com uma explosão de fúria.
— Não acredito nisso! Como ele poderia dizer essas coisas?! Você trabalhou duro para nos trazer até aqui! E ele chama isso de brincar?! Que fracasso de pai! Vou matar aquele idiota estúpido!
Com essa declaração um tanto alarmante, ela saiu furiosa do quarto enquanto empunhava a espada. Não tive energia o bastante para a impedir.
Poucos minutos depois, Ruijerd carregou Eris de volta para o quarto pela nuca, como um gatinho rebelde.
— Me solta, Ruijerd!
— Você não deve interferir em uma briga de família — disse o Superd, depositando sua prisioneira no chão.
Eris na mesma hora se virou e olhou para ele.
— Existem algumas coisas que você nunca deve dizer ao seu filho! Mesmo se estiverem brigando!
— Isso é verdade. Mas posso entender como o pai de Rudeus se sentiu.
— Ah, é? Bem, e como Rudeus se sente, então?! Você o conhece! Ele é a pessoa mais despreocupada e confiante do planeta. Você pode dar um soco ou um chute, e ele simplesmente dá de ombros! Mas olhe para ele agora… Está arrasado!
— Então talvez você deva o consolar. Tenho certeza que uma jovem como você conseguiria fazer isso.
— O qu…?!
Quando Eris moveu a boca, sem palavras, Ruijerd se virou e saiu do quarto em silêncio.
Deixada para trás comigo, ela começou a ficar inquieta, então começou a vagar ao redor do quarto sem fazer nada em particular, mas parecia nervosa. E frequentemente lançava olhares em minha direção. Às vezes parava, assumia sua pose usual de braços na cintura e abria a boca para dizer algo, apenas para fechá-la e retomar sua caminhada. A garota estava seriamente impaciente. Era como assistir a um urso no zoológico ou coisa do tipo.
No final, se sentou ao meu lado, na minha cama, em silêncio. Não disse uma palavra. E deixou um pouco de distância entre nós.
Qual será o tipo de expressão que tinha no rosto? Eu não estava olhando com muita atenção. Não tinha energias para isso.
E passou mais um pouco de tempo em silêncio.
Eventualmente, percebi que não estava mais sentada ao meu lado. Assim que comecei a me perguntar para onde tinha ido, me abraçou por trás.
— Está tudo bem. Estou aqui por você… — Enquanto falava essas palavras, Eris abraçou minha cabeça com força. Eu estava envolto em suavidade, calor e o leve cheiro de suor de seu corpo.
Depois do ano e meio que passamos juntos na estrada, aquele cheiro se tornou muito familiar. E agora, era estranhamente reconfortante. A rejeição da minha família me encheu de ansiedade e medo, mas agora esses sentimentos pareciam derreter.
Talvez, neste momento, Eris também fosse “família”. Se ela tivesse existido na minha vida anterior, eu poderia ter escapado da minha miséria muito, muito antes. A julgar pelo quanto aquele abraço fez por mim, com certeza parecia possível.
— Obrigado, Eris.
— Sinto muito, Rudeus. Não sou muito boa nesse tipo de coisa…
Estendi a mão para apertar uma das mãos de Eris enquanto ela me abraçava. Era a mão de uma espadachim – forte e calejada. Uma prova de seu trabalho duro. Não era exatamente o que se esperaria de uma jovem senhora de uma casa nobre.
— Não se desculpe. Isso significou muito para mim.
— Certo…
Algo dentro de mim estava se recompondo. Senti que estava ficando um pouco mais calmo.
Com um suspiro silencioso de alívio, me deixei cair de volta contra Eris. Precisava me apoiar um pouco nela… pelo menos por enquanto.
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