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Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 04 – Cap. 09 – Vida Tranquila no Vilarejo Doldia

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Fomos recebidos no vilarejo Doldia como heróis por salvar as crianças e proteger a vila contra o ataque de Gallus. Queriam que passássemos a estação das chuvas residindo com eles.

Gyes também se desculpou oficialmente comigo por ignorar ordens, me despir e me jogar em uma cela. E também pela água gelada que foi jogada em mim. Descobriu-se que a maneira diferenciada do povo-fera se ajoelhar era deitando com o rosto para cima e deixando a barriga exposta. No começo pensei que ele estava zombando de mim, mas todos os presentes estavam falando sério sobre isso. A única coisa em minha mente era a inveja que senti enquanto olhava para seu tanquinho peludo e musculoso, então não me demorei a aceitar o pedido de desculpas.

Eris, no entanto, não o fez. Ela ficou chateada quando soube pelo que eu tinha passado, e deu um Soco Boreas na barriga exposta de Gyes, antes de jogar água em sua cabeça. Uma vez que o homem ficou parecendo um rato afogado, ela olhou para ele e disse:

— Agora estamos quites.

Ela nunca falhava em me impressionar.

 

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No momento, estávamos na casa de Gustav. Era a maior do vilarejo, situada bem acima do solo entre as árvores. Com três andares de altura e construída com madeira, parecia que poderia desabar instantaneamente diante de um terremoto, mas era forte o suficiente para que um adulto correndo ali dentro não causasse um único tremor.

Éramos oito: Eris, Ruijerd e eu, além do líder tribal Doldia, Gustav, e seu filho Gyes, o líder dos guerreiros. Uma das garotas que resgatei dos contrabandistas, a filha do meio de Gyes, Minitona, também estava presente. Sua filha mais velha, Linianna, aparentemente estava estudando em um país diferente. E havia outra garota que tínhamos resgatado que era da tribo Adoldia: a filha do meio do líder tribal Adoldia, Tersena. Ela era uma menina com orelhas de abano e bastante desenvolvida para sua idade. Estava planejando voltar para casa, mas isso se tornou impossível quando a estação das chuvas começou, e passaria os próximos três meses no lugar.

As meninas conversavam animadas, com latidos e miados, sobre como quase foram sequestradas.

— Estou tão feliz por não ter sido levada. Ouvi dizer que há uma família nobre louca e doente em Asura que só tem interesse sexual pelo povo-fera. Vai saber o que aconteceria comigo.

Gallus também falou sobre como uma certa família nobre paga especialmente bem por gente-fera com sangue Doldia. Parecia que aqueles que eram fáceis de treinar eram vendidos pelos preços mais altos.

— Não há lugar para esse tipo de escória entre os nobres Asuranos! — E lá estava Eris, falando como se essa conversa não tivesse nada a ver com ela ou sua família, mesmo sendo muito provável que a tal família nobre tivesse algo como “rat” no nome. E também começava com a letra G.

Nunca perguntei de onde vinham as empregadas da casa de Eris, mas talvez algumas delas tivessem sido sequestradas. O avô de Eris, Sauros, era um bom homem, mas sua visão de mundo tinha alguns aspectos estranhos. Bem, eu manteria minha boca fechada. Algumas coisas seriam melhores se não fossem ditas.

Eris pareceu lembrar de algo, já que de repente mostrou a todo o anel que estava em seu dedo.

— A propósito, conhecem Ghislaine? Ganhei este anel aqui dela. — Eris não conhecia a língua do Deus Fera, então falou na língua humana. Dos presentes, os únicos que podiam entender a língua, além de Ruijerd e eu, eram Gustav e Gyes.

— Ghislaine…? — Gyes fechou a cara. — Ela… ainda está viva?

— Hein?

Sua voz estava cheia de desgosto. Ele cuspiu as palavras como se deixassem um gosto amargo em sua língua.

— Ela é uma mancha no nome da nossa tribo.

E isso foi apenas o começo do ataque de Gyes a Ghislaine. Ele falou na língua humana, para que Eris pudesse entender. Sua voz estava cheia de uma emoção imprópria para um irmão mais velho falando de sua irmã mais nova, enquanto falava sem parar sobre a falha que a mulher era como pessoa.

Foi difícil para mim ouvir tudo, visto que ela já até salvou minha vida. Parecia que a mulher tinha feito algumas coisas realmente desprezíveis no vilarejo, mas ainda assim, tudo isso aconteceu quando era uma criança. A Ghislaine que eu conhecia era desajeitada, mas esforçada. Ela mudou, se reajustou como pessoa. Não merecia que falassem assim dela. Era uma instrutora de espada altamente respeitável, bem como uma excelente aprendiz de magia.

Então, pensei, como devo esclarecer isso…? Esquece isso.

— Esse anel também, isso foi algo que nossa mãe deu a ela para que parasse de ficar furiosa sem motivos. Mas não é como se tivesse funcionado. Não passava de uma garota surtada e inútil.

— Você… — comecei a dizer.

— Ah, cala a boca! O que você sabe sobre Ghislaine?! — Eris me cortou, berrando em voz alta o suficiente para dividir a casa em duas. Os outros ficaram pasmos com sua explosão. Afinal, apenas Gyes e Gustav podiam entender a língua.

Senti medo de que ela pudesse acabar ficando violenta. Mas, em vez disso, a garota parecia frustrada, com lágrimas nos olhos. Ela cerrou os punhos trêmulos, mas não os balançou.

— Ghislaine é incrível! Incrivelmente incrível! Quando você pede ajuda, ela aparece na mesma hora! Ela é super rápida! E super forte! — As palavras de Eris provavelmente não estavam saindo só de sua boca. Mesmo se os outros não entendessem o que estava dizendo, a tristeza em sua voz transmitia muito bem todo o significado. E também estava expressando minhas emoções. —Ghislaine é… hic… guh… não é alguém que você pode simplesmente… hic… — Eris tentou o seu melhor para não socar ninguém, mesmo em meio às lágrimas.

 

 

 

Isso mesmo, ela não poderia socar Gyes. Durante seu tempo neste vilarejo, Ghislaine sempre foi violenta. Se Eris fechasse o punho, o homem poderia simplesmente dizer: “Viu? As duas são farinha do mesmo saco.”

Quando olhei para ele, Gyes parecia confuso.

— Não, não posso… Isso é inacreditável. Ghislaine… é respeitada? Isso não pode…

Vendo isso, contive minha raiva.

— Vamos parar essa conversa aqui — sugeri, colocando meus braços ao redor dos ombros de Eris.

Ela olhou para mim sem acreditar.

— Por quê… Rudeus, você… odeia Ghislaine?

— Não, eu também gosto dela. A pessoa que conhecemos e a que eles conhecem podem ter o mesmo nome, mas não são a mesma. — Olhei para Gyes. Até ele reconsideraria sua postura se conhecesse a Ghislaine atual. O tempo muda as pessoas. Eu sabia muito bem disso.

— Certo… — Eris não parecia satisfeita, mas pelo menos parecia aliviada com o que eu disse.

— Espere, ela é… agora Ghislaine realmente é uma pessoa incrível?

— Para não dizer muito, eu a respeito.

Minhas palavras levaram Gyes a uma profunda contemplação. Considerando o que o ouvimos dizer, devia ter acontecido muita coisa entre ele e ela. Com a simples menção ao nome de Ghislaine, o homem começava a ferver de raiva. Ser parente de sangue tornava tudo pior.

— Então que tal pedir desculpas?

— Sinto muito…

Depois disso a atmosfera ficou meio desconfortável. Talvez porque fosse a segunda vez que forçamos Gyes a se desculpar conosco no mesmo dia.

Quanto a Ghislaine, eu tinha me esquecido completamente dela durante o último ano, mas a mulher provavelmente também tinha sido deslocada durante o incidente. Fiquei curioso sobre onde e o que ela estaria fazendo. Conhecendo-a, imaginei que provavelmente estava procurando por mim e por Eris. Foi frustrante não termos conseguido obter nenhuma informação durante nossa estadia em Porto Zant.

 

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Uma semana se passou. A chuva continuou caindo o tempo todo. Ficamos com uma casa vazia do vilarejo e passamos nosso tempo lá. Recebíamos comida, independentemente de termos contribuído ou não com alguma coisa, já que éramos considerados heróis da Grande Floresta, mesmo com o vilarejo na pior graças ao dano daquele incêndio.

A terra ficou inundada e o caos chegou ao máximo quando uma criança caiu na água. As pessoas ficaram bastante chocadas, mas gratas quando usei minha magia para salvá-la. Achei que talvez devesse usar minha magia para afastar as nuvens de chuva, mas logo desisti. A própria Roxy disse: manipular o tempo não seria uma boa ideia. Se eu forçasse a chuva a parar, algo terrível poderia acontecer com a floresta.

Para ser honesto, só queria que isso andasse logo e parasse para que pudéssemos seguir em frente. Mas, novamente, só iria parar depois de três meses. Eu teria que suportar.

Estava chovendo quando decidi dar um passeio pela aldeia. Como se tratava apenas de um vilarejo, não havia nenhum armeiro, armadureiro ou estalagem de qualquer tipo. Na maior parte, eram moradias particulares e depósitos, ou guaritas para seus guerreiros. E estava tudo sobre as árvores.

Parecia até uma maquete, só que em 3D! Verdadeiramente fascinante. Apenas andar era o bastante para que meu coração disparasse de tanta excitação. Mas havia um lugar onde era proibido ir. Pelo visto, logo adiante havia um lugar especial. Eu não tinha intenções de me intrometer.

Durante minha caminhada, encontrei um caminho que se cruzava em dois níveis. Fiquei no de baixo esperando que alguma garota pudesse passar por cima de mim, mas foi Geese quem apareceu.

— Yo, novato! Então você também ficou livre, eh?

Ele parecia feliz e acenou para mim. O homem também recebeu anistia por suas contribuições quando a aldeia estava em apuros.

— Aham. “Nunca mais faça isso”, disseram eles. Idiotas, todos. Claro que vou fazer de novo.

— Ei, gente! Vocês ouviram? Esse cara não aprendeu a lição!

— Ei! Vamos lá, pare com isso. Não posso fugir agora, não antes que a estação das chuvas termine.

Em outras palavras, ele estava planejando repetir seu erro. Sério, que caso perdido.

— Além disso, permita-me devolver o seu colete.

— Eu disse para você parar com essas merdas polidas. Só fique com ele — disse.

— Tem certeza?

— Esta estação ainda está fria.

Bem, Geese ao menos não parecia ser um cara totalmente mau. O jeito como era gentil, mas evasivo, me lembrava Paul. Paul… Gostaria de saber se ele estava bem.

 

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Duas semanas se passaram e a chuva não parava.

Eu aprendi que os Doldia tinham sua própria magia secreta. Permitia que encontrassem inimigos usando um uivo de longo alcance e, com suas vozes especiais, podiam fazer os oponentes perderem o senso de equilíbrio. A maneira como Gyes me paralisou com sua voz era um desses tipos de magias. Pelo que ouvi, parecia ser uma do tipo que manipulava o som.

Quando disse a Gustav que “Adoraria que me ensinasse”, ele concordou do fundo do coração. Infelizmente, não importa quantas vezes demonstrasse aquilo para mim, eu não conseguia imitá-lo direito. Parecia que isso dependia das cordas vocais únicas dos Doldia.

Claro que depende, pensei amargamente comigo mesmo. De acordo com as probabilidades, eu não poderia usar a maior parte da magia única que as tribos individuais possuíam. Parecia injusto que o povo-fera e outras raças pudessem usar magia humana tão facilmente. Eu sabia que o elemento-chave era canalizar mana para minha voz, mas não importa como fizesse isso, o resultado era sempre decepcionante. O melhor que pude fazer foi obrigar meu oponente a recuar por um momento. Parecia que, no final das contas, eu não era nenhum Wagan.

Nesse ponto, Gustav ficou bastante chocado com a forma como eu usava magia não verbal.

— Hoje em dia as escolas de magia ensinam até isso?

— É porque minha mestra me ensinou muito bem — expliquei, elogiando Roxy sem nenhum motivo aparente.

— Eh? E de onde é a sua mestra?

— Da tribo Migurd, da Região Biegoya do Continente Demônio. Sua magia… Acho que aprendeu na Academia de Magia, não foi?

Quando eu disse a Gustav que também planejava ir para a Academia de Magia, ele pareceu impressionado e disse:

— Uau, você já está nesse nível e ainda está motivado a melhorar? — Aquilo fez eu me sentir bem.

 

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Três semanas se passaram.

Monstros também apareceram pelo vilarejo. Um deles era um gerridae, que apareceu surfando rapidamente pela água abaixo apenas para saltar de repente e atacar. Outro era como uma cobra d’água que subia pelas árvores. A vila era guardada por seu bando de guerreiros feras, mas seus narizes impressionantes e vozes semelhantes a sonares eram inúteis na chuva, mas muitas vezes os monstros escapavam de seu olhar vigilante e infestavam a vila.

Enquanto Eris e eu caminhávamos, uma das crianças do povo-fera quase foi agarrada por um réptil do tipo camaleão bem diante de nós. Eu prontamente o derrubei com meu Canhão de Pedra, e a criança abanou o rabo adoravelmente e me agradeceu.

Eu era estranhamente popular entre as crianças da aldeia, sem dúvida porque fui o herói que as salvou em seus momentos de necessidade. De vez em quando, vinham até mim e me lambiam na bochecha ou me mostravam a coleção de bolotas que tinham colhido antes da chegada da estação das chuvas. Eu era tipo uma celebridade.

Eris, em uma verdadeira demonstração da infâmia de sua família, não pôde conter sua empolgação ao ver uma aglomeração tão grande de tantas crianças adoráveis com orelhas e caudas. Ela irritava as crianças respirando de forma irregular enquanto acariciava suas cabeças e tocava suas caudas.

Não podíamos ficar parados enquanto essas criaturas adoráveis eram atacadas por monstros. Foi por isso que propus que Ruijerd ajudasse nas defesas da aldeia, mas ele se opôs à ideia.

— Os guerreiros daqui se orgulham de seu papel na aldeia — disse ele. Proteger esta aldeia era seu dever. Contanto que não pedissem a ajuda de um estranho, interferências não eram da nossa conta. De qualquer forma, essa era a crença do Superd. Eu não entendia direito.

— Mas a segurança das crianças não é mais importante do que isso?

Ruijerd fez uma pausa e pensou por alguns segundos antes de se voltar para Gyes para dar sua opinião.

O homem acolheu bem a ideia.

— Ah, Mestre Ruijerd, você vai nos emprestar sua assistência? Isso seria de grande ajuda! — O incidente de sequestro diminuiu drasticamente o número de seus guerreiros. Então Gyes se ofereceu para compensar Ruijerd por sua ajuda em nome do bando guerreiro.

Foi assim que todos os monstros da aldeia foram exterminados. Ruijerd os encontrava e eu usava minha magia para derrotá-los. Iríamos recuperar seus corpos, despojá-los de qualquer coisa útil e vendê-los para Gyes. Era um ciclo proveitoso.

Ruijerd estava certo sobre uma coisa: No começo os guerreiros do vilarejo nos desaprovaram. Mas assim que aniquilamos impiedosamente qualquer monstro que entrasse na vila e perceberam que a estação das chuvas iria passar sem nenhuma vítima, finalmente começaram a sorrir.

— Achei que a tribo deles tivesse mais orgulho do que isso. É uma vergonha confiar a proteção de sua aldeia a outra raça. — O Superd era o único incomodado. Parecia que o povo-fera de várias centenas de anos atrás era bem diferente de suas contrapartes modernas.

 

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Um mês se passou.

A força da chuva parecia estar diminuindo, mas provavelmente era apenas minha imaginação. Eris, Minitona e Tersena estavam se tornando grandes amigas. Elas pareciam gostar de passear juntas, mesmo com a chuva. Fiquei curioso sobre o que estavam fazendo.

Eris estava ensinando a língua humana a elas. Sim, isso mesmo. Estava ensinando uma língua para outras pessoas! Não era a hora nem lugar para eu invadir e tentar ajudá-la; se fizesse isso iria apenas destruir sua imagem. Bem, no final das contas, eu era um homem que sabia ler o clima.

Foi a primeira vez que Eris conseguiu fazer amigas de sua idade. Fiquei orgulhoso ao vê-la se dando tão bem com as meninas. O cabelo ruivo, as orelhas de gato e as orelhas de cachorro… Ver todas brincando felizes era mais do que suficiente para mim.

Embora Eris devesse ter cuidado ao envolver os braços em volta delas sem pensar. Poderiam interpretar mal as suas intenções, assim como fizeram comigo. Na verdade, o Senhor Gyes ficava sempre observando. Como ele se sentiria como pai, vendo Eris com as narinas dilatadas, jogando os braços ao redor de sua filha?

— Ah, Lady Eris, aprecio você se dar tão bem com minha filha.

Mas o quê…? Esta foi uma reação totalmente diferente da que ele me deu! O homem deveria ter sido capaz de cheirar a emoção que irradiava de Eris agora, então por que não o fez? Essa era apenas a diferença entre homens e mulheres, imaginei. Sim, tinha que ser isso. Claro que seria.

— A propósito, sinto muito pelo assunto envolvendo Ghislaine. Não nos vemos há muito tempo, então talvez eu tenha entendido mal. Parece que minha irmã mais nova cresceu um pouco durante seu tempo mundo afora. — Ele abaixou a cabeça. Parecia que havia aceitado isso no último mês. Que bom.

— Claro que sim. Ela é o Rei da Espada Ghislaine! E sabe o que mais? Agora Ghislaine consegue usar até magia — disse Eris se gabando.

— Hahaha, Ghislaine usando magia? Lady Eris, suas piadas são muito inteligentes.

— Sério! — Ela insistiu. — Rudeus ensinou ela a ler, fazer cálculos e usar magia.

— Lorde Rudeus…?

Depois disso, Eris começou a se gabar de Ghislaine e de mim incessantemente. Ela falou sobre minhas aulas na Região de Fittoa. Começou falando sobre como ela e Ghislaine haviam aprendido mal e como ela me respeitava por ficar com as duas e ensiná-las tudo. Eu me senti envergonhado ao ouvir tudo.

Gyes disse como ficou impressionado repetidas vezes e, quando finalmente se separaram, ele se aproximou da caixa de madeira em que eu havia me escondido para espiar.

— Então me diga, o que um professor respeitável está fazendo em um lugar como este?

— Observar as pessoas é um hobby meu — gaguejei.

— Ah, sim, parece um hobby muito nobre para se ter. A propósito, como você ensinou Ghislaine a ler?

— Sério, não foi nada de demais. Eu só fiz tudo do jeito normal.

— Do jeito normal…? Não consigo imaginar — disse Gyes.

— Quando ela era aventureira, passou por muitas dificuldades porque não sabia das coisas. Faz sentido que você não seja capaz de imaginar.

— Então essa é a história… Quando ela era pequena, minha irmã nunca ficava feliz, a menos que pudesse bater em alguém quando acontecesse algo que não gostasse.

A julgar pelo que ele estava dizendo, Ghislaine parecia ter sido exatamente como Eris quando era mais nova. Especialmente nas partes em que arrumava briga com as pessoas e que, por ser forte, poucos podiam impedi-la. Gyes deve ter se queimado várias vezes com seu fogo. Ele não seria um irmão mais velho muito bom se fosse muito mais fraco do que sua irmã mais nova.

Falando em irmãos mais velhos, eu também era um. Gostaria de saber como Norn e Aisha estavam. Sempre quis escrever uma carta para elas, mas acabava esquecendo. Assim que a chuva parasse, seguiríamos para a capital do País Sagrado de Millis, onde enviaria uma carta para Buena Village. Se eu tivesse enviado uma lá do Continente Demônio, provavelmente não teria chegado, mas com certeza não teria problemas se enviasse de Millis.

— A propósito, Mestre Rudeus.

— Sim?

— Quanto tempo você pretende ficar dentro dessa caixa de madeira?

Até que elas fossem se trocar bem na minha frente, é claro. Afinal, estava quase de noite. No momento iriam brincar na água, mas teriam que colocar suas roupas de dormir depois.

— Sniff, sniff… Posso sentir o cheiro da sua excitação sexual.

— O quêê?! Sem chances; mas que absurdo. Será que não tem nenhuma garota do povo-fera se dando prazer e chegando ao êxtase justo agora?

Enquanto eu tentava bancar o idiota, Gyes levantou uma sobrancelha.

— Mestre Rudeus. Estou grato pelo que você fez antes. E também me desculpo, mesmo agora, por ter te entendido mal. — Do nada seu tom mudou. — Mas se colocar a mão na minha filha, será uma história completamente diferente. Se não sair dessa caixa agora, vou jogá-la na água da enchente.

Ele estava sério. Eu não hesitei. Saltei daquela caixa em um instante, na mesma velocidade de um daqueles Pula Pirata.

— Eu sou um protetor deste vilarejo. Não queria ter que te dizer isso, mas… controle-se um pouco.

— Sim senhor.

Sim, bem, me empolguei um pouco demais. Isso eu admitiria.

 

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Um mês e meio se passou.

Ruijerd e Gustav se davam tão bem quanto irmãos. O Superd fazia visitas frequentes à casa dos Dedoldia, e os dois bebiam juntos e trocavam histórias de seus passados. As histórias eram banhadas a sangue, mas na verdade eram bem interessantes de se ouvir. Era quase como ouvir um ex-membro de uma gangue de motoqueiros exagerando sobre o quão fodão foi em sua juventude. Mas as coisas que Ruijerd e Gustav falavam pareciam ter realmente acontecido.

Graças a essas conversas, aprendi um pouco mais sobre o povo-fera. “Povo-fera” era um termo genérico para as tribos que viviam na Grande Floresta. Muitas se originaram aqui, mas cruzaram para o Continente Demônio e passaram a ser chamados de demônios. Uma característica externa dessas tribos era que uma parte de seu corpo mantinha uma aparência animalesca. Cada tribo também tinha um dos cinco sentidos aprimorados. Para ficar mais claro, Nokopara e Blaze também eram parte do povo-fera.

Os Doldia eram particularmente especiais entre as tribos. Apenas uma delas mantinha a paz da floresta ao mesmo tempo que protegia a Fera Sagrada. Eram os Doldia.

Então havia os Dedoldia, parecidos com gatos, e os Adoldia com uma aparência de cachorro. Essas eram as duas famílias principais que foram divididas em uma dúzia de ramos familiares. Em outras palavras, a realeza da Grande Floresta. Embora não estivessem fazendo muito para merecer o título, eram eles que liderariam todos quando surgisse a necessidade.

Também havia elfos e hobbits vivendo na Grande Floresta. Eles estavam concentrados na parte norte da floresta, então não tinham muito contato com o povo-fera. Porém, todas as tribos se reuniam uma vez ao ano e participavam de um festival perto da Grande Árvore Sagrada. De acordo com Gustav, embora suas tribos tivessem diferenças, todas viviam como amigas na Grande Floresta.

Quanto aos anões, eles viviam não na Grande Floresta, mas mais ao sul, no sopé das Montanhas Wyrm Azul. Os dragões azuis voavam pelo mundo e só retornavam à cordilheira para fazer seus ninhos quando colocavam ovos ou criavam seus filhotes, como aves migratórias. Ao contrário das aves migratórias, no entanto, retornavam apenas uma vez a cada dez anos.

Desde tempos imemoriais, homens e pessoas-fera passaram pela guerra e pela amizade uns com os outros. Uma guerra, que na verdade estava mais para uma pequena competição, ocorreu há apenas cinquenta anos. Gustav nos regalou as histórias de seu envolvimento e como o bando de guerreiros mais fortes do povo-fera destruiu um grupo de soldados humanos que vagava pela floresta. Foi muito dramatizado, mas ouvir a maneira como as coisas aconteciam do ponto de vista do povo-fera era muito novo e divertido.

Para se opor a isso, Ruijerd sacou seu trunfo, a história sobre o Clã Superd durante a Guerra de Laplace. Os dois trocaram gracejos como se estivessem competindo, mas como ambos eram velhos, isso meio que se transformou em um sermão sobre os bons e velhos tempos.

— Os guerreiros de hoje em dia são uma verdadeira desgraça.

— Eu entendo muito bem o que você quer dizer, Mestre Ruijerd. Muitos deles são fracos e decepcionantes.

— Exatamente — disse Ruijerd. — Quando eu era jovem, os homens eram fortes e durões.

Eram literalmente espíritos gêmeos. Este podia até ser um mundo diferente do meu primeiro, mas a camaradagem dos velhos era a mesma.

— Você está extremamente correto. Gyes pode até liderar os guerreiros, mas seu julgamento é pobre. Ele é bom em liderar as pessoas, mas se pudesse avaliar melhor as situações, então Mestre Rudeus não teria passado por tudo aquilo — disse Gustav.

Ruijerd discordou.

— Não, Rudeus é um guerreiro. Ele deveria ter entendido que, se baixasse a guarda em território inimigo, corria o risco de ser capturado e mantido em cativeiro. Mesmo assim, ele baixou a guarda. Se tivesse levado as coisas a sério, teria sido capaz de derrotar alguém como Gyes. Foi tudo fruto de seu fracasso.

Ai. Por mais verdade que isso fosse, doeu. Ruijerd tinha fé em mim, e foi por isso que me permitiu voltar sozinho. No entanto, fui pego bem facilmente. De certa forma, traí sua confiança.

— Mas Mestre Ruijerd, isso não é um pouco cruel? Aconteceu algo horrível com seu camarada.

— Como um guerreiro, você deve assumir a responsabilidade por suas próprias batalhas. Além disso, Rudeus poderia ter escapado sozinho a qualquer momento. Aprecio que ele confie em mim como seu companheiro, mas não se trata de uma criança. Um guerreiro não força seus camaradas a uma posição difícil se permitindo ser pego!

Cara, Ruijerd, você com certeza está exagerando, pensei. Talvez você possa escapar por conta própria se for pego, mas tente não esperar muito de mim. Meus poderes não são ilimitados, sabe?

 

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Dois meses se passaram.

Sempre que eu estava em meu quarto, a Fera Sagrada entrava lentamente. Ela vivia nas profundezas da aldeia ao lado das flores e das borboletas, mas uma vez por dia durante o tempo de caminhada vagava livremente por onde quisesse. Sua rota favorita (e atual) era onde quer que eu estivesse.

— Olhe só, se não é a Fera Sagrada. Que negócio você tem aqui com um viciado em sexo como eu?

— Ruff!

Ruff para a vida, hein?

— Ruff!

Não foi uma boa resposta.

Não tinha certeza sobre a Fera Sagrada ser macho ou fêmea, mas, de qualquer forma, ela se acomodou ao meu lado. No momento, eu estava segurando o molde de uma estatueta em minhas mãos. Parecia que demoraria algum tempo até a chuva parar, então decidi tentar fazer uma.

O modelo era Ruijerd. Talvez esteja se perguntando por que eu o escolhi, mas pense bem: Os Superd eram como bichos papões sem rosto.

As pessoas tremiam de medo ao ver um cabelo verde, mas não havia cor na figura que fiz. Era apenas algo feito de pedra   Quem sabe, se deixasse uma impressão forte o suficiente, as pessoas o aceitariam melhor.

Primeiro a sua silhueta. O cabelo sera o último detalhe.

— Woof. — A Fera Sagrada pressionou seu corpo contra minha coxa e descansou sua cabeça em meu joelho. Fiquei intrigado, já que nunca fui tratado assim por nenhum animal. — Arf? — O animal olhou para minhas mãos como se perguntasse o que eu estava fazendo. Apesar de sua juventude, o filhote parecia bastante calmo.

Finalmente decidi acariciar seu pescoço.

— Não tenho mais nada para fazer, então estou criando algo.

— Woof. — A fera lambeu minha mão e abanou o rabo. Claramente não me odiava. Ainda estava chovendo lá fora, então provavelmente também não tinha mais nada para fazer. Provavelmente ansiava por alguma emoção.

— Quer brincar?

— Woof!

Então, nós dois nos agarramos e rolamos. Comecei a desfrutar de seu pêlo macio e fofo, e a Fera Sagrada fez uma quantidade moderada de exercícios. Foi uma verdadeira situação de ganho mútuo.

Toc, toc. Alguém estava batendo na porta enquanto estávamos brincando.

— Hm? Entre.

— Perdão. — Uma mulher com roupa de guerreira entrou. Era Laklana. Ela era uma das responsáveis pela Fera Sagrada e viria buscá-la quando seu tempo de caminhada estivesse perto do fim.

— É um prazer te rever.

— Digo o mesmo, Mestre Rudeus. Além disso, daquela vez… — Cada vez que ela me via, Laklana se desculpava pela vez em que jogou água fria em mim. O primeiro pedido de desculpas foi mais do que suficiente. — Deixando aquilo de lado, você poderia, por favor, parar de ser tão apegado à Fera Sagrada?

— Do que está falando? Estou apenas me divertindo enquanto brinco com ela.

O quê, mais uma acusação falsa? Ela realmente não sentia muito por nada, não é? Se não tomasse cuidado com suas palavras, da próxima vez ficaria nua em uma cela e eu seria o único jogando algum líquido.

— Mas eu posso sentir o cheiro de sua excitação.

— Não é pela razão que você está pensando…

A verdadeira razão era porque toda vez que ela vinha e abaixava a cabeça, meu pervertido interior começava a sussurrar: “Ei, moça, se você pudesse resolver isso com um simples pedido de desculpas, não precisaríamos chamar a polícia, certo? Se realmente quer resolver isso, sabe o que precisa fazer, certo? Vamos dar umazinha.”

— A Fera Sagrada é extremamente preciosa para os Doldia. Estou ciente de que você a salvou de danos maiores, mas desenvolver sentimentos por ela é…

— O ponto é que não estou desenvolvendo nenhum sentimento.

A Fera Sagrada era um tipo de fera mágica que nascia uma vez a cada poucas centenas de anos. Não tinha nome próprio. Desde eras longínquas, só aparecia quando o mundo enfrentava uma crise, e quando se tornava adulta partia ao lado de um herói, usando seu grande poder para salvar o mundo.

Bem, ao menos era essa a lenda. Era por isso que a Fera Sagrada recebia uma criação tão cuidadosa, bem no fundo do Vilarejo Doldia, em uma área restrita onde havia uma grande árvore que chamavam de Árvore Sagrada. Então é claro que vivia sendo protegida. Eles tomavam o cuidado de não expor o filhote ao mundo exterior, do qual o animal pouco sabia. Ainda era um cão, então liberavam um tempo para caminhar todos os dias.

Pelo visto, levaria mais cem anos até que a Fera Sagrada atingisse a idade adulta. Se as histórias fossem verdadeiras, o mundo enfrentaria uma calamidade. Nesse meio tempo, Laklana supervisionaria a proteção da Fera Sagrada. Quanto à Árvore Sagrada, estava localizada além do caminho bloqueado que eu havia visitado antes.

— Será que… Lorde Rudeus é o herói?

— Woof! — O filhote latiu.

A expressão de Laklana se transformou em choque.

— O quê?! O que você está dizendo?

Hm? Do que ela estava falando?

— Arf!

— Eu entendo, mas…

— Woof!

— Entendo…

Por que diabos você está falando com este cão como se estivesse tendo uma conversa normal? pensei. Eu podia ouvi-lo latindo. Essa com certeza não era a língua do Deus Fera. Como ela estava entendendo isso? Estava usando algum tipo de tradução bilingual?

— A Fera Sagrada disse que você não é o único.

— Imaginei isso. — Embora eu desejasse que ela elaborasse melhor o que falava.

— Mas pelo visto a Fera Sagrada é muito grata a você.

— Eh? Fiquei naquela cela o tempo todo, então imaginei que tinha se esquecido de mim.

— Woof!

— Lamentável, ela disse, mas ela nos pediu para alimentá-lo com alguma comida deliciosa. Mestre Rudeus, você gostou das refeições que fornecemos, sim?

De fato. A comida era no mínimo muito boa. E também pude repetir sempre que quis. Realmente achei aquilo estranho, já que se tratava de uma prisão. Então foi a Fera Sagrada que pediu aquele tratamento para mim? Usar a comida como forma de gratidão soava exatamente como algo que um cão faria.

— Mas já que fizeram aquilo, eu teria gostado que tivesse me soltado de minha cela.

— Woof! — (Ou, aparentemente, “O que é uma cela?”)

— Um lugar onde você prende pessoas más — expliquei.

— Arf! — (“Mas também estou preso.”)

Continuamos um pouco após isso, tendo uma conversa com Laklana como nossa intérprete. Parecia que a Fera Sagrada não sabia todos os detalhes sobre o que aconteceu. Isso incluía não ter consciência do cheiro de excitação que Gyes alegava estar saindo de mim, ou por que o homem resolveu me levar sob custódia. Também não parecia saber muito sobre que seu sequestro implicava, além de que aquilo foi uma experiência aterrorizante. Em outras palavras, ainda era apenas uma criança. Não era certo exigir reparações de uma criança, então desisti.

— Consegui passar o tempo de um jeito meio confortável, então estou grato. — Diante de minha gratidão, abanou o rabo e lambeu meu rosto.

Heh heh, você com certeza é fofo, pensei enquanto acariciava seu pescoço, apenas para ser empurrado para o chão. Aah, você não pode! Não onde as pessoas possam nos ver…!

— Mestre Rudeus, esta é a maneira da Fera Sagrada mostrar respeito. Você poderia, por favor, tentar conter seu afeto?

— Você está entendendo mal, o cheiro que está sentindo é minha excitação por sua causa.

— Hã?!

— Foi rude da minha parte; desconsidere isso. — Merda, merda. Deixei meus verdadeiros sentimentos escaparem.

— Ahem… Fera Sagrada, é hora de voltarmos para a Árvore Sagrada.

— Woof!

A fera obedientemente se virou para sair, como foi dito, e partiu sem uma única reclamação.

Isso se tornou algo diário. Mas vamos manter em segredo entre nós que, alguns dias depois, Laklana ficou incrivelmente chateada comigo quando tentei ensinar a Fera Sagrada a se sacudir.

Só assim, sem nada terrivelmente agitado acontecendo, três meses se passaram e a chuva parou.

 


 

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