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Dor, Dor, Vá Embora – Cap. 09 – Que Haja Amor

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Minha irmã, com o pretexto de tê-la “ignorado”, por não nos olharmos nos olhos, quando nos cruzamos no corredor, me arrastou pelos cabelos até o quarto, abriu a porta e me empurrou para dentro.

Suportando a dor no cotovelo depois de ser severamente jogada no chão duro, olhei para cima e vi os delinquentes que ela trouxera, gritando coisas vulgares em minha direção, cheios de alegria.

O quarto estava com um cheiro azedo, era como uma lixeira cheia de garrafas de cerveja e latas vazias. Tentei correr, mas quando virei meu calcanhar, um homem de pálpebras caídas, sem os dentes da frente, chutou minha canela e eu caí no chão. Eles gargalharam.

Então começaram as festividades habituais. Eu deveria ser o brinquedo deles. Um encheu um copo de uísque até a borda e me disse para virar. Eu, é claro, não tinha o direito de recusar, então, relutantemente, peguei o copo.

Então uma mulher, usando tanto perfume que parecia até uma butique, proclamou que o tempo havia acabado e piscou para o homem ao seu lado. Ele prendeu meus braços atrás das minhas costas e forçou minha boca a abrir. E a mulher colocou o uísque.

Eu já sabia, por experiências anteriores, que se teimasse e me recusasse a beber aquilo, um castigo pior viria a seguir. Então não resisti e engoli tudo.

Tentei, desesperadamente, não gritar por causa da sensação de queimação na garganta e do cheiro peculiar como o de uma mistura de remédios, madeira  e trigo. Todos zombaram.

De alguma forma, bebi todo o conteúdo. Em um período de dez segundos, senti uma forte náusea. Tudo, desde minha garganta até o estômago, queimava. Meus sentidos estavam confusos e embaralhados, como se alguém estivesse agarrando minha cabeça e chacoalhando. Eu já estava a um passo da embriaguez. Então ouvi um barulho sinistro por perto.

— Certo, hora do segundo! — A mulher empurrou o copo na minha cara.

Já me faltava energia para correr, e as mãos que me prendiam não se moveriam, por mais que eu tentasse resistir. O uísque foi servido e, diante do cheiro, comecei a tossir horrivelmente.

— Nojento — disse o homem me segurando, liberando meus braços e me empurrando.

 Tendo perdido meu senso de equilíbrio, senti como se fosse voar até o teto e me agarrar a ele, mas na realidade só caí no chão.

Me arrastei em direção à porta, desesperada em busca de uma forma de escapar, mas alguém me puxou de volta pelos tornozelos.

Minha irmã se agachou ao meu lado e disse:

— Se você aguentar uma hora sem vomitar, vou te deixar ir.

Eu estava prestes a balançar minha cabeça, sabendo que não havia maneira de isso acontecer, mas antes que pudesse, ela me deu um soco no estômago. Minha irmã nem mesmo pretendia me dar uma chance.

Me peguei vomitando no mesmo local e todos aplaudiram.

Uma mulher baixa e robusta anunciou que eu seria punida por perder o jogo, pegou um taser e o ligou.

O som de choque fez eu me encolher. Já sabia quanta dor aquilo poderia induzir, sabia melhor do que qualquer um deles.

Na mesma hora, ela colocou o eletrodo no meu pescoço e um grito, que eu não poderia imaginar que era meu, saiu de minha boca. Achando aquilo engraçado, me deu vários choques, visando áreas com a pele mais fina. De novo. E de novo. E de novo. E de novo.

Como se fosse para preencher as lacunas entre as dores que me infligiam, o álcool só me trouxe mais náuseas. Quando voltei a vomitar, todos vaiaram e eu sofri um golpe particularmente dolorido.

E ainda assim não senti qualquer tipo de sofrimento. Esse tipo de coisa não era suficiente para me “quebrar”.

A familiaridade é uma coisa assustadora; me tornei capaz de superar essa agonia.

Esvaziei minha cabeça para me preparar para qualquer tipo de ataque e, em vez disso, a enchi de música. Enquanto me repreendiam, me concentrei em recriar exatamente a mesma música de sempre em minha mente, só para entorpecer meus outros sentidos.

Vou à biblioteca amanhã e escutar muitas outras músicas, decidi.

A pequena e monótona biblioteca que estava na área por mais de três décadas tinha poucos livros, mas era rica em música, e eu ficava ouvindo elas no canto de escuta quase todos os dias.

No início, preferia as músicas mais intensas que pareciam afastar minha melancolia. Mas logo descobri que a coisa mais eficaz para lidar com a agonia não eram letras excelentes ou uma melodia confortável, mas “beleza pura”, e então meu gosto mudou para canções mais calmas.

“Significado” e “conforto” seriam ocasionalmente deixados para trás. “Beleza” não serviria como qualquer aconchego, mas isso estaria sempre no mesmo lugar. Mesmo se eu não entendesse no começo, aquilo iria pacientemente esperar pela minha chegada.

A dor destrói sentimentos positivos, mas as pessoas não podem perder o costume de considerar algo belo como belo. Na verdade, a dor só torna a beleza ainda mais aparente. Qualquer coisa para a qual isso fosse verdade seria apenas uma imitação da verdadeira beleza. Música simplesmente divertida, livros que não eram mais que interessantes, pinturas não tão profundas – não se podia confiar em nada disso, então quão valiosas poderiam ser essas coisas?

Como Pete Townshend1Guitarrista do The Who. disse: “Rock and roll não resolverá seus problemas, mas permitirá que você dance, mesmo com eles.”

Na verdade, meus problemas não seriam resolvidos. Essa era a essência da minha salvação. Eu não acreditaria em nenhum pensamento que tivesse como pré-requisito a hipótese de resolver todos os meus problemas. Se não houvesse nada a ser feito a respeito, nada seria feito.

Esqueça aqueles “alívios” como o patinho feio se transformando em um lindo cisne. Como eu pensava, o patinho feio teria que ficar feliz permanecendo feio.

Quanto tempo levou? Podiam ter sido minutos, ou horas.

De qualquer maneira, quando acordei, minha irmã e seus amigos haviam partido. Sobrevivi ao tormento deles por mais um dia. Fui vitoriosa.

Me levantei e fui até a cozinha para tomar uns dois copos d’água, depois fui ao banheiro para vomitar. Parei na frente da pia para escovar os dentes.

Meu reflexo no espelho estava terrível. Meus olhos estavam injetados de sangue, meu rosto estava pálido e minha camisa cheia de manchas de uísque, vômito e sangue.

Me perguntei quando foi que tinha sangrado e comecei a verificar se estava ferida, mas não encontrei nada. Mas quando comecei a escovar os dentes, percebi que mordi minha bochecha ao ser atacada com o taser. Minha escova ficou toda tingida de vermelho.

Eram 4 da manhã. Peguei uma aspirina e remédio para o estômago que estavam nas prateleiras da sala de estar, vesti meu pijama e deitei na minha cama.

Não importa o quanto eu estivesse ferida, não havia como mudar que o dia seguinte seria um dia normal de escola. Precisava descansar ao menos um pouco.

Peguei o ursinho de pelúcia debaixo do travesseiro e o abracei. Até mesmo eu me questionava quanto a esse método de me consolar. Isso realmente me surpreendia.

Mas supus que poderia continuar assim. Embora há muito tempo desejasse um abraço de verdade, sabia que não havia ninguém que faria isso por mim.

O colégio público, passando uma sensação de isolamento graças às árvores grossas ao redor, não era um que eu frequentava de boa vontade.

Esperava frequentar uma escola particular local, mas minha mãe insistia que mulheres não precisavam de muito estudo, e meu padrasto alegou que nenhuma escola que eu frequentasse mudaria alguma coisa, recusando-se a me deixar fazer exames de admissão em qualquer lugar que não fosse a instituição pública a uma única viagem de ônibus de casa.

Sempre que o sinal das aulas tocava, todos ignoravam e as vozes continuavam soando pela sala de aula. As aulas não tinham nada de interessante e, ao meio-dia, um terço dos alunos já tinha ido embora.

Atrás da quadra ficavam centenas de filtros de cigarros e, cerca de uma vez por mês, alguém era preso, engravidava ou desistia; era esse tipo de escola.

Mas eu disse a mim mesma que tinha que ser grata por estar indo para o ensino médio. Algumas crianças nem mesmo recebiam uma educação adequada no ensino médio.

As aulas do meio-dia começaram. A sala estava tão barulhenta que eu não conseguia entender nada do que o professor estava dizendo, então comecei a ler um livro, até que algo acertou meu ombro por trás.

Era uma bolinha de papel com algumas letras. Alguém também jogou um copo de café para cima, e aquilo acabou manchando minhas meias. Muitos riram, mas nem me importei em virar.

Durante a aula, não iriam fazer nada pior do que isso. Se jogar uma bola de papel em mim fosse tudo que fariam, então poderia ignorar e continuar estudando.

De repente, levantei os olhos e fiz contato visual com a professora. Uma jovem de quase trinta anos. Ela também devia ter visto a bola de papel, mas se fez de sonsa.

Só que não a culpei por isso. Da mesma forma, se ela acabasse se tornando alvo dos alunos, eu não faria nada. Apenas cuidávamos de nós mesmas.

Depois das aulas, fui direto para a biblioteca da cidade. Eu queria ouvir músicas? Sim. Mas também queria chegar rapidamente a algum lugar tranquilo e dormir.

Era estranho usar a biblioteca como um lugar de lazer, mas eu não sabia se existia outro lugar onde poderia dormir tranquilamente.

Em casa, meu pai ou minha irmã podiam me acordar e me bater a qualquer momento, e na sala de aula, se cochilasse descuidadamente na minha mesa, poderia ter minha cadeira puxada ou lixo despejado sobre a minha cabeça.

Eu não conseguia dormir nesses lugares, então dormia na biblioteca. Felizmente, o tipo de pessoa que queria me prejudicar não chegava perto disso. Além do mais, eu poderia ler livros e até mesmo ouvir música. Bibliotecas: uma invenção fantástica.

A privação do sono enfraquece fundamentalmente as pessoas. Só reduzir a quantidade de sono pela metade serviria para afetar severamente a minha resistência a coisas como a dor física, difamação verbal e ansiedade quanto ao futuro.

Se eu cedesse pelo menos uma vez, levaria muito tempo e esforço para voltar a parecer a mesma de sempre. Não, se eu não fosse cuidadosa, talvez nunca pudesse voltar ao normal.

Precisava ser forte e resiliente. Portanto, dormir direito era algo indispensável. Qualquer dia que eu não conseguisse dormir por mais do que quatro horas em casa, dormia na biblioteca.

Não diria que a cadeira dura da sala de estudos particular era confortável para isso, mas era o único lugar ao qual eu poderia pertencer. Durante o horário de funcionamento das 9h às 18h.

Depois de ouvir um pouco de música leve, verifiquei “Regras da Vida” de John Irving2Autor e roteirista norte-americano. e li. Minha sonolência chegou ao máximo após ler pouco mais que algumas páginas.

O tempo passou tão rápido, parecia até que alguém havia o roubado, e uma bibliotecária sacudiu meu ombro para dizer que o local já estava fechando.

O álcool do dia anterior tinha finalmente saído de meu organismo e minha dor diminuiu. Baixei a cabeça para ela, coloquei o livro de volta na estante e saí da biblioteca.

Quando fiz isso já estava completamente escuro. Em outubro, o sol começava a se pôr muito mais cedo.

No caminho para casa, o vento frio me fez tremer e pensei na mesma coisa de sempre:

Será que hoje vai chegar alguma carta?

Passaram-se cinco longos anos desde que nos tornamos correspondentes. Nesse tempo, meu ambiente mudou muito.

Meu pai morreu de derrame e, vários meses depois, minha mãe se casou com o homem que agora era meu padrasto. Meu sobrenome mudou de “Hizumi” para “Akazuki” e ganhei uma irmã dois anos mais velha.

No momento em que vi o homem com quem minha mãe me disse que pretendia se casar, na primavera do meu primeiro ano do ensino médio, previ que minha vida seria totalmente destruída e pensei comigo mesma: “Estou condenada.”

Cada elemento dele me passava esse pressentimento. Embora eu não conseguisse expressar em palavras por que me sentia tão mal, depois de 17 anos de vida, não precisei dizer “Acho que o chamaria de má pessoa” ou “Acho que o chamaria boa pessoa” – à primeira vista, ele era claramente uma má pessoa. Isso foi o que meu conhecimento acumulado subconscientemente me disse.

Por que minha mãe escolheu este portador da praga, de todas as pessoas?

Como previ, meu padrasto era um exemplo de portador de males. Ele se sentia inferior com sua posição social e não perdia a chance de passar por cima dos outros para encobrir isso.

Além disso, era um covarde. Só tinha como alvo aqueles mais fracos do que ele. Repreendia os prestadores de serviço por “dificilmente prestarem um serviço”, perguntando seus nomes só para insultá-los; ou quando um carro batia na traseira do dele, obrigava toda a família a descer e se desculpar na rua.

Mesmo assim, parecia acreditar honestamente que tais ações eram “másculas” e que estava prestando um serviço a todos.

A parte mais terrivelmente preocupante era que minha mãe, pelo menos, parecia estar tomada por sua ideia de “masculinidade” impulsionada por seu próprio senso de inferioridade. Ele estava verdadeiramente além de qualquer ajuda.

Como alguém que pensava assim, meu padrasto acreditava que usar a violência para garantir sua posição como chefe da família era um elemento essencial da masculinidade.

Quais eram os outros elementos? Beber, fumar e apostar. Ele reverenciava essas coisas como símbolos de masculinidade. Talvez tivesse gostado de acrescentar “mulheres” à lista, mas, infelizmente, nenhum esforço em sua “masculinidade” faria qualquer mulher – exceto minha mãe – se aproximar dele.

Talvez mesmo ele sabia disso e às vezes repetia, embora ninguém tivesse perguntado, algo assim: “Amar minha única esposa me faz sentir como se tivesse algo pelo que viver. Então, embora eu tenha tido inúmeras oportunidades de ir atrás de outras mulheres, não tive interesse.”

E, claro, antes que essas palavras mal saíssem de sua boca, batia em minha mãe.

Tentei impedir a violência várias vezes, mas ela me disse: “Kiriko, por favor, não fale. Quando você participa as coisas só ficam piores.”

Depois que ela me disse isso, eu simplesmente fiquei de lado e observei.

De qualquer forma, foi escolha de minha mãe. Tudo o que pude fazer foi observar o desenrolar.

Um dia, quando estava sozinha com ela, perguntei:

 — Você não pensa em se divorciar?

Mas ela disse coisas como “Não quero incomodar meus pais” e “Não tenho esperança sem um homem”, até mesmo terminando com “Todos nós temos nossos defeitos.”

Um tour completo por todas as palavras que eu não queria ouvir, pensei.

A violência do meu padrasto gradualmente passou a ter como alvo também a mim, sua enteada. Bem, era o fluxo natural das coisas. Ele me batia pelas razões mais triviais, como chegar em casa um pouco tarde ou sair da escola mais cedo. Seus abusos foram lentamente aumentando, até que um dia meu padrasto, bêbado, me empurrou escada abaixo.

Não foi tão sério quanto poderia ter sido, já que não me machuquei em nenhum lugar particularmente ruim, mas aquela ocasião deixou minha mãe furiosa e, no dia seguinte, ela brevemente sugeriu o divórcio.

Sim, apenas insinuou. Desconfiada da raiva do marido, ela teve o cuidado de não falar a palavra “divórcio”.

Simplesmente disse:

— Se você continuar tratando Kiriko e eu desse jeito, talvez terei que tomar algumas medidas por conta própria.

E ela não teve permissão para dizer mais nada. Meu padrasto pegou um copo próximo e jogou na janela.

Na época, eu estava em meu quarto lendo um livro de referência. Quando ouvi o som da janela se espatifando, minha caneta parou e, hesitante, me perguntei se deveria verificar a sala de estar.

Só então, a porta se abriu e meu padrasto entrou correndo. Quase gritei e acho que deveria – deveria ter gritado o mais alto que pudesse.

Assim, talvez, alguém da vizinhança me escutaria e correria em… Estou brincando, claro.

Minha mãe apareceu por trás, soluçando e gemendo.

— Pare com isso! Ela não tem nada a ver com essas coisas! — Mas mesmo assim ele me bateu. Caí da cadeira e bati com a lateral da cabeça na mesa.

Mesmo assim, não conseguia pensar muito mais do que “Ótimo, então ele não vai me deixar nem estudar em paz.” Gostando ou não, acabei me acostumando com a violência doméstica diária.

Mas, quando ele me bateu uma segunda vez, uma terceira, uma quarta, uma quinta, um medo arrepiante surgiu em meu interior. Foi a primeira vez que experimentei isso.

Tive um pensamento súbito. E se esse homem não conhecer nenhum limite?

Na mesma hora comecei a chorar e meu corpo todo tremeu. Talvez fossem lágrimas choradas porque eu já previa a tragédia dos meses que viriam.

Minha mãe continuou tentando agarrar a mão do meu padrasto, mas com a diferença de força, era rapidamente afastada.

— É sua culpa — dizia ele. — Não estou fazendo isso porque quero. Mas se você vai me fazer de idiota, terei que descontar nela também. É tudo culpa sua…

Eu não fazia ideia do que ele estava dizendo. Mas, de alguma forma, entendi seu motivo para me bater, ao invés de fazer isso com minha mãe, a quem sua raiva era dirigida. Isso era mais eficaz do que bater nela.

Fui espancada por quase duas horas seguidas. Exatamente como ele queria, minha mãe nunca mais falou em divórcio.

Como se ele gostasse, acontecia sempre que eu não o ouvia, batia na minha mãe e, quando ela não o ouvia, batia em mim.

Minha única salvação era minha correspondência com Mizuho. Se houve algum momento bom na minha vida, foi quando convenci Mizuho a se tornar meu correspondente.

Esperei por minha oportunidade desde aquele dia de outono na sexta série, quando nosso professor nos disse que ele trocaria de escola.

Mas sendo tão covarde, foi difícil dar o primeiro passo e, no final das contas, não fui capaz de trazer à tona o assunto de nos tornarmos correspondentes, até seu último dia.

Se não tivesse reunido coragem o suficiente para começar a trocar cartas com Mizuho, não teria nada pelo que viver. Eu provavelmente teria morrido aos 13 ou 14 anos. Então elogiei meu eu do passado.

Para ser honesta, a “correspondência” de que falo é provavelmente um pouco diferente da que a maioria das pessoas pensaria.

Em minhas cartas, não escrevia lamentando para Mizuho sobre como vivia com medo de meu padrasto, da minha meia-irmã e da escola para que ele me confortasse.

Escrevia as coisas exatamente como aconteceram por alguns meses depois de começar, mas assim que meu padrasto chegou e as coisas mudaram completamente, comecei a mentir sobre tudo.

Isso não quer dizer que eu não tivesse vontade de reclamar e chorar, e de que Mizuho me consolasse. Mas eu temia que a minha própria mudança também o mudasse.

Se tivesse escrito sobre minhas dificuldades exatamente ao pé da letra, Mizuho passaria a se preocupar comigo e tomaria cuidado ao escolher temas inofensivos, não mais falando tanto sobre os acontecimentos positivos de sua vida.

Então, nossa correspondência seria reduzida a uma forma escrita de aconselhamento.

Eu não queria isso. Então, criei uma “Kiriko Hizumi” fictícia. Meu pai estando morto, minha mãe se casando novamente com o pior humano vivo, sendo terrivelmente intimidada na escola, mas não ligava para isso. Tudo isso era para Kiriko Akazuki lidar, e não tinha nada a ver com Kiriko Hizumi. Kiriko Hizumi era uma garota que vivia uma vida normal, mas plena, que também podia refletir sobre a felicidade com que foi abençoada.

Eu gostava de às vezes me tornar ela para poder escrever minhas cartas. A partir do momento que escrevia a segunda frase, já podia assumir o papel de Kiriko Hizumi.

À medida que pequenos detalhes, que davam a minhas mentiras um toque de verdade, se acumulavam, comecei a sentir como se estivesse vivendo duas vidas ao mesmo tempo.

Ironicamente, minha vida ficcional logo superou a real. Se, por exemplo, tivesse escrito cartas do ponto de vista de Kiriko Hizumi e Kiriko Akazuki, e pedisse a estranhos para adivinhar o que descreve uma vida real, eu esperaria que nove entre dez escolhessem Kiriko Hizumi.

Foi nessa medida que mergulhei na minha ficção e fugi da minha realidade. Dias de abuso sem fim. Se tivesse passado pela menor mudança que fosse, poderia parecer mais real.

Eu amava Mizuho.

No entanto, achei estranho “amar” alguém que não via há cinco anos simplesmente porque nos dávamos bem.

O que eu estava fazendo me apaixonando pelo destinatário de minhas cartas, cujo rosto mal conseguia imaginar?

A possibilidade de que, porque ninguém mais ocuparia tal posição, eu não tinha outras opções para amar a não ser ele, era algo que não tinha evidências o suficientes para negar.

Também podia ser por nós realmente não termos conversado muito a não ser pelas cartas, então eu só via seu lado bom.

Ainda assim, estava estranhamente convencida disso. Mizuho era o único no mundo por quem eu me sentia assim.

Não havia base, mas não precisava haver. Nunca quis forçar ou usar a lógica para explicar meus próprios sentimentos.

Uma paixão não devia exigir nenhum tipo de explicação para os outros. Se alguém acha que isso é necessário, suspeito que vê o amor mais como um “meio” do que como um “fim”.

Minha mente, sempre ansiosa para se tornar difícil de salvar, decidiu criar um Mizuho imaginário baseado em suas cartas, caligrafia e papéis usados.

Na minha imaginação, ele havia crescido muito depois da escola primária e agora era cerca de uma cabeça mais alto do que eu. Uma boa diferença de altura para dar abraços.

Apesar da eloquência alegre em suas cartas, imaginei que, se nos encontrássemos pessoalmente, ele ficaria tímido demais para me olhar nos olhos e teria problemas para falar. Ocasionalmente, isso o levaria a me dizer coisas surpreendentes sem qualquer hesitação.

Normalmente ele teria uma expressão um tanto sombria, e sua maneira de falar poderia ser chamada de calma, na melhor das hipóteses, e indiferente, na pior. Mas seu sorriso ocasional seria igual ao de quando tinha 12 anos.

Isso me pegaria de surpresa assim que aparecesse, aquele sorriso vertiginosamente adorável.

Esse era o Mizuho que imaginei. Fiquei chocada ao descobrir, quando nos reunimos mais tarde, quantas de minhas previsões estavam corretas, mas já seria um pouco tarde.

Quando voltei para casa, não fui verificar a caixa de correio, mas sim embaixo de uma estátua de coruja na porta da frente. Eu tinha combinado com o carteiro, com quem tinha feito amizade, para que colocasse qualquer correspondência de Mizuho Yugami naquele lugar.

Claro, não era sempre o mesmo entregador, então alguns dias uma carta ia parar diretamente na caixa de correio.

Olhei sob a coruja e vi que não havia nenhuma carta. Suspirando, abri a porta da frente. Logo me arrependi. Devia ter, primeiro, verificado lá dentro.

Meu padrasto tinha acabado de chegar, jogar sua pasta de lado e estava tirando os sapatos.

— Estou em casa — falei humildemente. Ele rapidamente virou as costas para mim e enfiou algo no bolso do terno.

Me encontrei estranhamente presa a essa ação. Isso me passou um mau pressentimento.

—Ei, ei — disse ele.

Definitivamente parece estranho, pensei comigo mesma. Soava exatamente como uma pessoa culpada responderia. Meu desconforto aumentou.

Eu corajosamente perguntei:

— Um… você acabou de esconder alguma coisa?

— Hmm…?

Na mesma hora seu tom ficou pior. Ele assumiu uma postura ofensiva e respirou fundo, como se fosse se preparar para gritar a qualquer momento.

Mas isso me disse, sem dúvidas, que se sentia culpado por alguma coisa. E também, sem dúvidas, tinha a ver com a coisa que estava escondida em seu bolso. Um homem tão descarado não teria outra razão para esconder uma simples correspondência.

— É algo dirigido a mim — declarou ele opressivamente. — E é melhor você tomar cuidado com o que fala.

Imaginando que teria uma confusão se perguntasse de forma indireta, fui direto ao ponto.

— Nesse caso, pode me mostrar? Só por um segundo.

Na mesma hora seu rosto revelou uma expressão de pânico. Mas tão rápido quanto aquilo apareceu, mudou para raiva.

Uma de suas crenças era que o caminho para a vitória, nesse tipo de situação, seria revelado para quem assumisse a vantagem e gritasse primeiro. E, de fato, isso era eficaz, ainda mais quando o outro era alguém mais fraco e sem escapatória.

— Quem você pensa que é? — grunhiu ele, se aproximando de mim. Senti um cheiro gorduroso. Ele agarrou meu colarinho e bateu levemente em minha bochecha.

Porém, com isso, pude confirmar que havia um envelope saindo de seu bolso. Pelo papel cinza de alta qualidade e pela caligrafia do endereço, reconheci como uma carta de Mizuho.

Ele percebeu para onde eu estava olhando, soltou meu colarinho e me empurrou.

— Não abuse da sorte — disse enquanto subia as escadas.

Tentei persegui-lo, mas minhas pernas não se moviam. Meu corpo sabia o quão inútil era resistir àquele homem.

Desabei no chão. Ele era a única pessoa que eu não queria que soubesse sobre isso.

Aquele homem se trancou em seu escritório e leu aquela carta que Mizuho escreveu para mim. E devia estar rindo enquanto descobria mais uma de minhas fraquezas.

Ele sempre foi assim. Não sei se o chamaria de bisbilhoteiro, mas meu padrasto queria saber todos os segredos de sua família. Por ser um defensor da masculinidade, parecia apreciar consideravelmente as coisas no reino da fofoca.

Sempre que minha mãe recebia um telefonema, ele exigia um relatório sobre o que estava acontecendo. Ele abria toda e qualquer correspondência que chegava por conta própria. Sempre que tinha chance, dava uma espiada nos celulares (embora eu não tivesse um, então não era um perigo pelo qual passava). E o vi entrar furtivamente em meu quarto para mexer nas gavetas mais de duas vezes.

E agora isso. Teria que me contentar com ele lendo a carta. Não haveria nada de vergonhoso escrito ali.

Além do fato de que eu estava mentindo o tempo todo, nossas correspondências eram perfeitamente saudáveis. Não havia nada com que se preocupar caso fosse lida.

A coisa da qual eu mais tinha medo era que meu padrasto, para esconder a verdade de ter lido uma carta endereçada a mim, jogasse as provas em algum lugar da estação de trem ou em uma lata de lixo de alguma loja de conveniência.

Só de imaginar isso fez meu pulso disparar. Essas cartas eram meus tesouros. Minha crença. Minha vida. Perder uma era mais doloroso do que ter meu corpo sendo queimado.

Quando meu padrasto foi trabalhar no dia seguinte, abandonei toda vergonha e honra e vasculhei as latas de lixo ao redor da casa. Então peguei uma lanterna e vasculhei todas as latas de lixo ao longo de seu trajeto.

No banheiro de uma loja de conveniência próxima à sua empresa, encontrei o envelope cinza amassado.

Mas os tão importantes conteúdos não estavam em lugar nenhum.

Se fosse uma ocorrência única, eu poderia aceitar que se perdesse. Poderia simplesmente escrever que tinha a colocado na minha bolsa para ler em outro lugar e acabei perdendo no meio do caminho.

Mas eu tinha certeza de que, depois desse evento, meu padrasto ficaria atento à caixa de correio e aos arredores.

E quando encontrasse uma carta endereçada a Kiriko Hizumi, ele ficaria feliz em enfiá-la no bolso, se vangloria com sua superioridade enquanto a lia em segredo, depois a amassar e a descartar em algum lugar a caminho do trabalho.

Continuar se correspondendo pode acabar sendo difícil, pensei.

Por que não consegui “desfazer” o fato de meu padrasto encontrar a carta?

Estava certa de que devia ter algo a ver com a culpa que sentia por continuar mentindo para Mizuho.

Não era um relacionamento saudável, deveria ser encerrado e, talvez, este incidente fosse uma boa chance para acabar com essas coisas. Sentindo-me assim por um segundo, meu desejo perdeu sua pureza e força, e o “adiamento” do evento se tornou muito difícil.

A sensação de que coisas ruins sempre acontecem de uma vez pode ser uma ilusão do tipo: “sempre começa a chover quando eu começo a lavar meu carro.”

Mas, no mesmo dia em que me desesperei por não conseguir encontrar a carta, algo ainda pior aconteceu.

Quando fui para a escola na hora do almoço e entrei na sala de aula, algumas meninas me agarraram pelo pescoço e me arrastaram para trás da quadra.

Não fiquei particularmente surpresa, pois notei que ficaram de olho em mim por um tempo. Foi como ver a água começando a cair do céu nublado.

O grau em que meus colegas de classe me detestavam não era extremamente alto ou fraco, estava estacionado bem entre as duas extremidades.

Eu era forte o suficiente para resistir, mas não o suficiente para me defender. E não era fraca o suficiente para ceder, mas o suficiente para desistir de melhorar a situação.

Quer fosse nos esportes, jogos de tabuleiro ou intimidação, seria mais agradável vencer alguém que fosse “forte, mas ainda fraco”.

Ao perceber isso, embora eu não tivesse como me tornar mais forte ou mais fraca, apenas a sensação de que descobri o motivo diminuía significativamente as minhas preocupações.

Deve ser por isso que as pessoas que levam vidas miseráveis se tornam mais introspectivas, pensei.

Depois que todas as seis garotas me bateram, elas me jogaram no chão. Minha boca foi aberta e um balde de água suja foi despejado.

Eu não sabia de onde tinham tirado a água, mas parecia ter o mesmo tipo de impureza da água usada para a limpeza ao fim do dia. Pelo visto, as pessoas realmente gostavam de me ver bebendo coisas estranhas.

Tentei prender a respiração e me recusar a engolir, mas alguém agarrou meu pescoço e o apertou, fazendo com que uma quantidade considerável de água descesse.

O gosto misto de detergente e sujeira encheu minha boca e desceu da minha garganta ao estômago. Não suportei e vomitei. Nossa, ultimamente tinha passado o tempo todo vomitando.

— Limpe isso mais tarde — disse uma colega, satisfeita, e foram embora. Fui a uma área de lavagem e vomitei mais ainda, depois lavei minhas roupas e corpo.

Meu uniforme molhado pingava água e, suportando o olhar dos transeuntes, desci o corredor até meu armário na frente da sala de aula. Mas quando o abri, minha camisa não estava lá. De repente, percebi a torneira aberta na pia a alguns metros de distância. Minha roupa com certeza estava lá, ficando encharcada. Quanta meticulosidade. O que tinha as levado tão longe?

Fui até a enfermaria, peguei uma muda de roupa emprestada e coloquei meu uniforme e minha camisa na secadora.

Meus olhos estavam começando a perder o foco, e algo dentro de mim parecia prestes a se quebrar. Mas eu mal consegui me manter firme. Respirando fundo várias vezes, exibi meu corpo inerte.

Dizem que o sofrimento torna as pessoas tolas, mas ser abusada por todos estava apenas me deixando vazia.

Então, talvez, isso não devesse ser chamado de sofrimento, mas emaciação. Eu estava me desgastando dia após dia.

Depois da escola, parei na biblioteca, sentei na cadeira dura e escrevi uma carta para Mizuho.

Só para escrever a frase “Quero conversar cara a cara” tomou vinte minutos. “Tem coisas que simplesmente não consigo dizer pelas cartas. Quero que nos olhemos nos olhos e conversemos.”

A comunicação por meio de cartas estava ficando difícil. Eu não tinha um celular. Até mesmo usar o telefone residencial era difícil, com minha família assistindo, e eu não tinha dinheiro para manter conversas longas e satisfatórias em um telefone público.

Mas ainda queria manter minha relação com ele. O que significava que teríamos que nos encontrar pessoalmente. Eu não tinha outra escolha. Decidi que conheceria Mizuho.

Dito isso, era um tiro no escuro. Mizuho logo veria as diferenças entre a Kiriko Hizumi fictícia e a Kiriko Akazuki real.

Talvez pudesse enganá-lo por algumas horas, mas se nosso relacionamento continuasse além das cartas, não seria capaz de esconder a verdade para sempre.

Quando me reunisse com Mizuho, teria que confessar minhas mentiras. Como ele responderia?

Ele era gentil, então mesmo que soubesse que havia sido enganado por cinco anos, não demonstraria sua raiva, eu tinha certeza. Mas ficaria, sem dúvidas, desapontado. Não pude deixar de ficar com medo disso.

Ou talvez estivesse sendo otimista demais. Só porque eu era indiferente, não significava que poderia considerar os outros da mesma forma.

Afinal, eu parecia ter uma qualidade incomum que fazia com que todos, em todos os lugares, me odiassem o tempo todo. Precisava levar isso em consideração.

Talvez o pior cenário fosse que Mizuho me desprezaria por minhas mentiras, diria que não tive tato e desapareceria da minha vida.

Não, para começar, talvez nem mesmo aceitaria minha sugestão. Era possível que fosse amigável comigo porque era por meio de cartas, e não estava interessado o suficiente para se preocupar em me encontrar pessoalmente. Eu podia vê-lo me considerando uma garota atrevida.

Mas poderia “desfazer” essas coisas. Porque depois do dia em que encontrei o cadáver atropelado de um gato cinza que adorava aos oito anos, me tornei uma maga. Me tornei capaz de fazer eventos voltarem a não acontecer, ao menos por determinado tempo.

No entanto, se Mizuho mostrasse sua aversão por mim, e eu anulasse isso, manteria a memória dele me rejeitando. Seria capaz de continuar com nossas correspondências com uma cara séria, mesmo sabendo disso?

Quando tivesse perdido todas as esperanças, o que deveria fazer?

Simples. Iria, como sempre, procurar refúgio na fantasia. Algo fácil de imaginar: Um trem. A hora não importava, mas digamos que seria de noite.

Estaria em um cruzamento ferroviário. Uma pequena travessia de ferrovia sem ninguém por perto. Ding, ding, ding. O alarme começaria a soar. Eu iria procurar pela hora certa e passar pelo portão, então deitaria no meio da pista. Meu pescoço e minhas canelas ficariam posicionados bem no topo dos trilhos. Depois de olhar para as estrelas por alguns segundos, iria lentamente fechar os olhos. Sentiria os trilhos começando a vibrar. E também a luz forte batendo em minhas pálpebras. Os freios iriam ranger, mas já seria tarde demais. Meu pescoço seria destruído em um instante.

Essa era a minha fantasia.

Que mundo bom. Quantas maneiras fáceis e confiáveis de se acabar com a vida. E é por isso que fui capaz de viver tão intensamente.

“Se você não aguenta mais esse jogo, pode simplesmente tirar da tomada. Você tem esse direito.”

Até o momento em que eu realmente não pudesse suportar, seguraria o controle para descobrir todos os detalhes desse jogo doentio.

A propósito, em dezessete anos de brincadeira, aprendi uma coisa: É inútil esperar por qualquer tipo de “intervenção do criador”.

Após cochilar até o horário de fechar, coloquei a carta em uma caixa de correio perto da entrada da biblioteca e fui embora.

Enquanto caminhava pelas ruas residenciais cheias de luz quente, todas as famílias pareciam viver em harmonia. Mas percebi que a realidade não podia ser assim, e todos tinham seus próprios problemas terríveis para lidar.

Eu talvez não estivesse escutando os gritos ou lamentos saindo de suas casas.

Depois de esperar por uma semana, sentindo-se como a garota de Please Mr. Postman, ainda não recebi resposta de Mizuho. Comecei a perder a cabeça, incapaz de parar de imaginar coisas ruins.

E se sua resposta demorasse porque estava pensando em como me recusar? Ou será que estava simplesmente ocupado com a escola e os clubes? Será que tinha enviado sua resposta e meu padrasto a pegou? Ele ficou chateado por eu não ter tocado em nada que tinha escrito em sua última carta? E se algo tivesse acontecido com ele? Esgotei suas boas graças com minha falta de vergonha? Ele nunca mais responderia? Será que já tinha percebido minhas mentiras há muito tempo?

Me encarei no espelho do banheiro escuro da biblioteca.

Meus olhos estavam com enormes olheiras, até mesmo turvos.

Ninguém ficaria ansioso para conhecer uma garota tão horrível, pensei.

Dez dias se passaram. Comecei a pensar na possibilidade de realizar minha fantasia de travessia na ferrovia.

Ao voltar da biblioteca, vi o conhecido carteiro chegar à minha casa e sair correndo.

Com o coração disparado, procurei por baixo da estátua da coruja. Mas meu desespero só aumentou. Por precaução, também verifiquei a caixa de correio, mas, claro, também não encontrei nada lá. Pateticamente voltei a verificar sob a coruja. Nada.

Eu fiquei lá. Meu ódio por tudo isso se tornou insuportável. Enquanto considerava destruir a coruja para me distrair pelo menos um pouco, uma voz soou de trás.

Me virei e me deparei com o carteiro; ele tinha propositalmente voltado até onde eu estava. O homem baixo, de quarenta e poucos anos, retribuiu gentilmente a saudação.

Em sua mão estava um envelope cinza com papel de alta qualidade.

E ele sussurrou:

— Eu estava aqui há um momento e estava prestes a colocar isso sob a coruja, como de costume, mas seu pai estava voltando para casa. Você quer evitar que ele veja, certo?

Fiquei muito grata para conseguir dizer qualquer coisa. Obrigada, obrigada. Me curvei profundamente para ele, de novo e de novo.

Seu rosto bronzeado se distorceu em um sorriso triste. Ele devia estar vagamente ciente da minha situação. “Lamento não poder fazer nada por você”, diziam seus olhos.

Então eu respondi da mesma maneira. “Não precisa se preocupar com isso. Além do mais, isso não é comum?”

Não querendo que ninguém interrompesse o momento, fui até a sala de espera de uma rodoviária local e abri o envelope. Minhas mãos tremeram. Só para ter certeza, verifiquei o endereço e o remetente de novo. Kiriko Hizumi. Mizuho Yugami. Sem erros. Contanto que isso não fosse uma ilusão que realiza desejos, esta carta foi escrita de Mizuho para mim.

Peguei a carta e lentamente digeri as palavras escritas ali. Alguns segundos depois, inclinei-me no encosto do banco e olhei para as estrelas.

Dobrei a carta, coloquei-a de volta no envelope e segurei-a sobre o coração. Os lados da minha boca se ergueram naturalmente, com um sorriso aparecendo. Minha respiração parecia um pouco mais quente do que o normal.

— Mizuho — sussurrei.

O som desse nome foi, no momento, a minha vida inteira.

Houve um incidente em que o dinheiro foi roubado da carteira de um aluno e, como não estava na sala de aula na época, eu era a principal suspeita.

Dois professores me questionaram, na sala dos professores, sobre o que eu estava fazendo naquele momento. Respondi que estava secando minhas roupas na enfermaria depois que meus colegas as sujaram, e a enfermeira também deveria saber disso, então poderiam, por favor, confirmar essas coisas desde o início?

Faltavam menos de trinta minutos para meu encontro com Mizuho, então fiquei agitada e falei asperamente.

Os professores tinham suas dúvidas. Eles sabiam o tipo de tratamento a que os alunos geralmente me submetiam e começaram a questionar se eu estava me vingando. Consideraram o negócio da enfermaria uma criação flagrante de um álibi.

— Não vamos chamar a polícia, então apenas confesse logo.  — Um professor de matemática se intrometeu para dizer. Meu tempo de espera continuou sendo prolongado.

Assim que passaram dez minutos do horário combinado, saí da sala dos professores sem nem avisar.

— Espere! — gritaram eles e agarraram meu braço, mas eu me esquivei e corri.

Ignorei seus gritos de “Acha que pode fugir?” por trás de mim. Ao fazer isso, obviamente só se convenceriam ainda mais da minha culpa. Mas eu me importava? Não estava nem aí.

Por mais que corresse, o horário combinado, às 17h, já havia passado. Mas, talvez, Mizuho esperasse por mim se fosse apenas por uma hora, digamos.

Corri sem me importar com as pessoas que passavam. Suor escorria pela minha testa. Meu dedão do pé escorregava em meus mocassins baratos, descascando toda a sua pele. Meu coração gritou de falta de oxigênio. Minha visão tremeu. Mas continuei correndo.

Mizuho havia indicado uma pequena estação de trem, bem no meio da linha que ligava nossas casas, como nosso ponto de encontro.

Felizmente, ficava perto da escola. Se eu me apressasse, poderia chegar lá em trinta minutos.

Mais calamidade esperada. Logo depois de virar uma esquina, uma bicicleta voou na minha frente. Nós dois seguimos o mesmo caminho para tentar evitar um ao outro e colidimos de frente.

Minhas costas bateram no asfalto e o impacto me deixou incapaz de respirar. Cerrando os dentes enquanto me agachava no chão, esperei que a dor diminuísse.

O colegial andando de bicicleta correu e se desculpou. Agi como se não fosse nada, levantei-me, disse:

— Desculpe, estou com pressa. — O afastei e voltei a correr. De repente, a dor subiu pelo meu tornozelo e vacilei.

Fiz um pedido vergonhoso ao aluno do ensino médio, pedindo desculpas insistentemente para mim.

— Um, não se preocupe com o acidente. Mas, será que não poderia me levar até a estação de trem?

Ele aceitou de bom grado. Sentei na garupa da bicicleta e o garoto usando blazer me levou até a estação. No final das contas, com isso cheguei mais rápido do que se fosse à pé. A sorte ainda não tinha desistido de mim.

Ao chegar à rotatória do lado de fora da estação, falei:

— Aqui já está bom. — Desci da bicicleta e corri para o prédio, arrastando a minha perna.

Um relógio que se destacava entre os arbustos mostrava que faltavam dez minutos para as 19 horas. Um apito de partida ecoou pela plataforma. O trem parado começou a se mover.

Tive um mau pressentimento.

Fiquei sozinha sob as luzes fluorescentes piscantes. Depois de ver o ponteiro dos segundos do relógio dar três voltas, sentei-me em uma das cadeiras, das quais havia apenas seis.

Com o suor seco, meu corpo ficou frio e senti uma dor latejante na cabeça. Peguei um livro de bolso na bolsa e o abri no colo.

Li as palavras mecanicamente, mas não entendi seu significado. Mesmo assim, continuei a virar as páginas.

Não esperava que, se esperasse assim, Mizuho apareceria correndo até mim sem fôlego.

Só precisava de algum tempo para aceitar o fato de que desperdicei nossa única chance de nos encontrarmos.

— Você não pegou o trem?

Me virei e me deparei com o garoto que tinha me levado ao local. Eu não poderia me incomodar em explicar a situação, então assenti.

Ele abaixou a cabeça.

— Sinto muito mesmo. A culpa é minha.

Fiz o mesmo.

 — Não, para começo de conversa, não tinha como eu conseguir. Na verdade, você me trazer até aqui de bicicleta me ajudou a chegar mais rápido do que o esperado. Muito obrigada.

O menino era cerca de uma cabeça mais alto do que eu e tinha um ar melancólico. Ele comprou chá com leite quente em uma máquina de venda automática e me ofereceu.

Agradeci e aceitei, o usei para aquecer as mãos e bebi lentamente. Me acalmar fez com que a dor em meu tornozelo despertasse, mas, em comparação com as feridas que os outros me infligiram de forma hostil, isso não era nada.

Voltei a observar o garoto enquanto ele estava sentado a dois acentos de mim. Eu não tinha percebido antes por causa de minha fixação com o encontro, mas seu uniforme me parecia familiar. Mesmo assim, não conseguia me lembrar de onde o tinha visto.

Um blazer de malha e uma gravata cinza. Era diferente dos vários uniformes que eu tinha visto pelo caminho da escola, e não era um uniforme de nenhuma das escolas que eu esperava frequentar.

Levei meu tempo procurando cada canto e recanto da minha memória. Era isso. Há cerca de dois anos, algo me levou a usar um computador da biblioteca para pesquisar sobre uma determinada escola.

Seu uniforme era o mesmo que eu tinha visto os alunos usando na primeira página do site da escola.

Quando me lembrei do que me levou a fazer aquela pesquisa, uma teoria instantaneamente surgiu em minha mente. Mas a rejeitei na mesma hora. Algo tão conveniente não poderia realmente acontecer.

Me senti patética por, mesmo que por um breve motivo, me entreter com uma ideia tão ridícula.

Percebendo que eu estava olhando para ele, o garoto piscou com um olhar do tipo: “O que foi?”. Logo desviei o olhar. Mas ele continuou me encarando, curioso, por algum tempo. A modéstia de seu olhar só me deixou ainda mais nervosa.

Assisti outro trem chegando e partindo. E outro.

De repente, ficamos sozinhos na estação.

— Você está esperando alguém? — perguntou o garoto.

— Não, na verdade não. Eu só…

Minhas palavras travaram. Ele esperou que eu continuasse. Mas, ao perceber que as palavras que viriam depois de “eu só” eram “me sinto confortável perto de você, então não estou com vontade de ir embora”, tive que fechar minha boca.

O que iria dizer a esse garoto que acabara de conhecer? Eu estava ficando muito confiante só por ele ter sido um pouco legal comigo.

Depois de ver outro trem partir, falei:

— Um… Agradeço sua preocupação, mas você não precisa me fazer companhia para sempre. Dificilmente fico incapaz de me mover por causa de meus ferimentos ou coisa do tipo. Só estou aqui porque quero.

— Nós pensamos da mesma forma. Também só estou aqui porque quero.

— É mesmo…?

— Hoje aconteceu algo meio estranho — murmurou ele. — Tenho certeza de que te atropelei porque me deixei ficar totalmente distraído. Sei que não devia reclamar sobre isso para você, mas, no momento que eu sair daqui, estarei sozinho, e terei que voltar a enfrentar a minha tristeza de novo. Não quero fazer isso, então não pretendo sair.

Ele se espreguiçou e fechou os olhos. O clima melhorou e eu comecei a ficar com sono.

Só algum tempo depois é que percebi que a pessoa sentada ao meu lado era o garoto que eu adorava.

Surpreendentemente, minha “teoria muito conveniente” era quase perfeita para a realidade. Mizuho esperou trinta minutos e, quando eu não apareci, decidiu ir direto para a minha escola, de bicicleta, e me atropelou no caminho.

Se não tivéssemos nos desviado para a mesma direção e colidido, poderíamos ter facilmente passado um pelo outro. Fiquei grata por esse acontecimento.

— Há algo que preciso confessar — disse Mizuho.

 Em minha tolice, eu o interpretei mal, pensando que era uma confissão de amor, e fui jogada em uma confusão. Tendo pensado tanto em como seria maravilhoso se ele se sentisse da mesma forma, não consegui pensar em nenhuma outra possibilidade.

Ah, o que eu faço? Fiquei em conflito. Embora eu estivesse muito feliz por Mizuho se sentir assim, não sabia como responder. Porque a garota que ele amava era alguém diferente da “Kiriko Akazuki” que estava diante dele.

Na verdade, eu deveria ter dito o quanto antes: “Não sou eu quem você ama, mas sim Kiriko Hizumi, a pessoa fictícia que inventei.”

Mas as palavras ficaram presas na minha garganta. Enquanto eu imaginava como, se ficasse quieta, Mizuho sussurraria palavras doces para mim, imediatamente coloquei de lado minha ética, minha consciência e meu bom senso.

Poderia simplesmente dizer a verdade depois que ele se confessar para mim, disse meu lado astuto. Depois de ter espremido aquela breve felicidade o suficiente para esmagá-la, eu poderia revelar que era Kiriko Akazuki, que não tinha direito ao seu amor, e suportaria seu desprezo.

Antes ou depois da confissão, não fazia muita diferença.

Com uma vida assim, precisava de pelo menos um momento para sonhar.

— Tenho escondido coisas de você desde o ensino fundamental, Kiriko.

Por quanto tempo ele ficou pensando nisso? Fiquei mais feliz, mas também mais triste. Provavelmente porque eu também o estava traindo por um tempo semelhante. Por tanto tempo, brinquei com ele usando minha ilusão da Kiriko Hizumi inexistente.

Minha consciência teve um segundo fôlego.

 — Um, Mizuho, eu… — interrompi corajosamente, mas Mizuho falou por cima de mim.

— Duvido que você possa me perdoar agora, mas ainda preciso me desculpar com você.

Se desculpar?

Por fim, percebi que eu estava cometendo um grande mal-entendido. Ele não estava confessando seu amor por mim.

Então, o que é que estava confessando? Havia algo para se desculpar?

O “Mizuho Yugami” das cartas é inteiramente fictício — disse ele. — Não é nada mais do que uma pessoa que inventei para continuar me correspondendo com você. A pessoa que você vê agora, o verdadeiro Mizuho Yugami, é alguém completamente diferente daquele nas cartas.

— Mas que…? — falei, meio aliviada. — Como assim?

— Vou explicar as coisas em ordem.

E então descobri a verdade.

Tendo pensado apenas em mim, quando ouvi a confissão de Mizuho, fiquei tão chocada que perdi a chance de admitir minhas próprias mentiras.

Fiquei contente por termos contado o mesmo tipo de mentira pelos mesmos motivos desde a mesma época, contente que sua aparência, ar geral e fala eram exatamente como eu imaginava, tão, tão, tão contente, que não parecia mais ser a hora de revelar meus próprios segredos.

Depois de recuperar alguma presença de espírito, ouvi algumas palavras impensáveis saírem da minha boca.

— Então é isso? Mizuho, você me enganou por esse tempo todo? — O que eu era, a suja falando do mal lavado?

— Sim — concordou ele, acenando com a cabeça.

— Então, no final das contas, você nunca teve um único amigo, não é?

— Isso mesmo — disse ele, mais uma vez concordando.

— Entendo.

Parei de falar nesse momento, levei a lata vazia de chá com leite aos lábios e fingi estar tomando um gole.

— Eu não me importo se você me odiar — declarou Mizuho. — Mereço isso pelo que fiz a você. Por ter mentido sem parar durante cinco anos. Vim aqui hoje porque queria falar com a Kiriko, de dezessete anos, pelo menos uma vez. Não quero nada além disso. Estou satisfeito.

Ele é um mentiroso, mas um mentiroso honesto, pensei comigo mesma. E eu era uma mentirosa desonesta.

— Ei, Mizuho — murmurei.

— O que?

— Por favor, pelo menos responda esta próxima pergunta sem mentir. O que você pensou quando me encontrou? — Ele suspirou.

— Eu queria que você não me odiasse.

— Nesse caso — falei sem demora — serei sua amiga.

Eu, aquela que geralmente imploraria por algo parecido, tirei vantagem da honestidade de Mizuho.

Ele arregalou os olhos e, pouco depois, gargalhando, disse:

 — Obrigado.

Talvez essa mentira não fosse necessária. Se eu fosse honesta e revelasse que também não tinha um único amigo e era abusada em casa e na escola, talvez Mizuho e eu pudéssemos sentir uma espécie de codependência e afundar confortavelmente em um relacionamento desesperador, doentio e abjeto.

Mas, apenas uma vez, eu queria interagir com alguém como se fosse uma garota normal. Não sendo desprezada, ou alvo de pena, sem levar em consideração minha família ou meu passado, para ser vista como eu mesma.

E, o mais importante, queria tentar, na realidade – unilateralmente –, as fantasias que me vieram à mente enquanto nos correspondíamos.

A primeira coisa que fiz com minha posição, foi providenciar para que passássemos mais tempo juntos.

— Mizuho, você deveria passar mais tempo com os outros — anunciei. — Te olhando, parece que seu maior problema é estar acostumado ao ritmo de uma pessoa sozinha. Então, primeiro, precisa começar a aprender o ritmo de duas pessoas juntas.

Eu só pretendia inventar algo ao acaso, mas, na verdade, isso era algo em que pensava com bastante frequência.

— Entendo o que você quer dizer — disse Mizuho. — Mas, como?

— Você pode começar se encontrando comigo. Com mais frequência.

— Mas isso não vai te incomodar, Kiriko?

— Você está incomodado, Mizuho?

 — Não — disse ele, balançando a cabeça. — Estou feliz.

— Bem, também estou feliz.

— Às vezes não entendo o que você está falando, Kiriko…

— É porque acho que você não precisa entender.

— Entendo. — Ele franziu a testa.

Nos encontrávamos três dias por semana – Segunda, Quarta e Sexta-Feira – para passar algum tempo após a aula juntos.

Como existia o perigo de haver pessoas que me conheciam na estação de trem, mudamos nosso ponto de encontro para um mirante, ao lado de uma trilha para pedestres, em um bairro residencial de estilo ocidental, a cinco minutos a pé.

Era em uma tenda pequena com o teto hexagonal pintado de verde e um banco grande. Nos sentávamos lá com uma caixa de som e ouvíamos alguns CDs. Usávamos um fone de ouvido, cada um pegava um lado, e tocávamos os CDs que levávamos.

Havíamos conversado muito sobre músicas em nossas cartas, mas, dada a natureza das letras, só podíamos compartilhar experiências passadas. Assim, ser capaz de compartilhar uma experiência no tempo presente foi algo novo e emocionante.

Às vezes, deixávamos alguns pensamentos vazarem ou explicávamos o que mais gostávamos em uma música, mas geralmente só imergíamos nisso em silêncio.

Os fios dos fones de ouvido que nos conectavam eram curtos, então, naturalmente, nos inclinávamos para perto um do outro e, às vezes, nossos ombros se tocavam.

— Kiriko, isso não torna as coisas meio constrangedoras? — perguntou Mizuho timidamente.

— De fato. Mas você não acha que é o certo para se acostumar com as pessoas, Mizuho?

Apresentei uma lógica aparentemente válida para justificar a distância. Ele só respondeu “Acho que você está certa”, e então se apoiou no meu ombro.

— Você é pesado — reclamei. Ele me ignorou, agindo como se estivesse muito focado na música.

Nossa. Fiquei pasma. Não por Mizuho, mas por mim mesma. Usando minha posição, conquistada com mentiras, para fazer um garoto seguir tudo o que eu dizia.

Era um ato baixo que não podia ser perdoado. Se eu fosse atingida por um raio, por um meteoro ou atropelada por um carro, não teria o direito de reclamar.

Algum dia preciso contar a verdade para ele, disse a mim mesma.

Mas toda vez que via seu sorriso humilde, toda vez que seu corpo tocava o meu, toda vez que ele me chamava de “Kiriko”, minha honestidade ficava abalada.

Só mais um pouquinho. Não posso me permitir esse sonho só mais um pouquinho? Então continuei mentindo.

No entanto, um mês após meu reencontro com Mizuho, um repentino fim chegou àquele relacionamento. Minha máscara caiu e ele viu minhas verdadeiras cores.

Após o incidente do roubo de dinheiro, meus colegas me trataram como uma ladra. Há muito tempo já existiam rumores infundados sobre eu ser uma puta, então não dei muita moral quando começaram a me chamar de ladra.

Infelizmente, esta era uma escola cheia de indivíduos com dedos pegajosos, onde carteiras e outros itens eram roubados quase diariamente, então a responsabilidade por todos esses eventos passou a ser atribuída a mim.

Até mesmo o roubo de uma carteira de estudante, de uma sala de aula do terceiro ano na qual eu nunca havia entrado, foi transformado em obra minha. Qual seria o ponto em roubar algo assim?

Depois da escola, um grupo que esperava logo do lado de fora do portão me pegou e espalhou tudo da minha bolsa pela estrada. Vasculharam até mesmo os bolsos do meu uniforme e a minha carteira.

Suspeitei que isso significava que já haviam saqueado meu armário e minha mesa também.

Claro, não havia razão para encontrarem a carteira de estudante roubada, então a busca terminou depois de cerca de vinte minutos. Mas isso não significava que estava tudo acabado.

Como vingança, me empurraram para dentro de uma vala de escoamento de água. Não havia qualquer água correndo, mas havia uma lama com um odor podre e quase 20 centímetros de profundidade de folhas mortas. Ao ser jogada lá, meu pé escorregou e caí na lama. Assim sendo, o conteúdo da minha bolsa começou a cair, uma coisa por uma. As pessoas rindo gradualmente sumiram.

Senti uma dor aguda na minha coxa. Ao tropeçar, me cortei em um caco de vidro ou algo assim, conseguindo um enorme ferimento que sangrou bastante.

Em um lugar tão sujo assim, poderia acabar sendo infectado com bactérias.

Tenho que sair daqui rápido, decidi.

E ainda assim minhas pernas não se moveram. Não era por causa da dor, nem pelo choque ao ver minha ferida grotesca.

Senti como se houvesse algo pressionando meu estômago, tornando difícil respirar direito. Parecia que, no final das contas, me feri como qualquer outra pessoa.

Isso não é nada comparado ao ginásio, quando você foi empurrado para a piscina congelante no inverno, disse a mim mesma.

Deitada com o rosto para cima na lama fria, pensei. Esta vala é muito mais profunda do que a minha altura. Mesmo se eu pudesse saltar e agarrar a borda, seria difícil rastejar para fora. Deve haver uma escada em algum lugar.

Mas antes de encontrar isso, teria que juntar o conteúdo da minha bolsa. Meus cadernos e coisas do tipo provavelmente se tornaram inúteis, então levaria apenas o indispensável.

Desistirei de ir ao nosso ponto de encontro hoje. Vou apenas dizer que fiquei doente ou algo assim. Assim que eu puder sair, irei direto para casa, lavarei minhas roupas à mão, depois as jogo na máquina de lavar… Então, pensarei no que fazer a seguir.

O CD que eu peguei para escutar com Mizuho pousou perto de mim. Fui pegá-lo e notei que tinha quebrado.

Dei uma olhada ao redor. Não estava só escuro feito breu, havia cercas em ambos os lados da vala, então ninguém poderia nem mesmo me ver.

Então, pela primeira vez em muito tempo, eu chorei. Segurei meus joelhos e me encolhi, soltando soluços.

Assim que comecei, as lágrimas fluíram sem resistência e esqueci sobre como parar.

As pessoas que me empurraram para a vala de irrigação não jogaram necessariamente todos os meus pertences na lama. Algumas folhas impressas e cadernos foram deixados na estrada para serem espalhados pelo vento.

Uma dessas coisas acabou sendo encontrada por Mizuho, que estava fazendo seu caminho para casa. Sua boa audição não deixou meu choro, misturado ao vento, passar despercebido.

Ouvi alguém pulando a cerca e caindo ao meu lado. Na mesma hora parei de chorar e prendi a respiração. Quem quer que fosse, não queria que me vissem chorando na lama.

— Kiriko? — Uma voz familiar chamou, e meu coração quase congelou.

 Na mesma hora virei meu rosto, tentando me esconder. Por quê? Eu estava confusa. Por que Mizuho estava ali? Como descobriu que eu estava naquela vala?

— É você, Kiriko? — perguntou novamente. Fiquei em silêncio. Mas quando ele voltou a chamar o meu nome, decidi me revelar.

Eu já teria que esclarecer as coisas em algum momento.

Tentar prolongar esse momento acabou fazendo com que minhas mentiras fossem expostas dessa forma terrível.

Esta foi minha retribuição.

Levantei meu rosto e perguntei:

— Como você sabia que eu estava aqui? — Ele não respondeu minha pergunta.

 — Ah, então é você, Kiriko.

Sem dizer mais nada, Mizuho jogou algo no ar, saltou e caiu de bunda na lama. Com isso, algumas gotas de lama respingaram e atingiram o meu rosto.

Então, pouco depois, muito mais caiu. O que ele havia jogado foi sua mochila escolar aberta, então, livros didáticos, cadernos, estojos de lápis, etc., caiu tudo na lama, coisa por coisa.

Ele se deitou de bruços, exatamente como eu estava fazendo. Não se preocupou com suas roupas e cabelos ficando enlameados. E ficamos em silêncio por um tempo.

— Ei, Kiriko.

— Sim?

— Olhe para aquilo. — Mizuho apontou diretamente para cima.

Isso mesmo, pensei. Hoje é o solstício de inverno.

Deitamos juntos na lama, olhando para a lua cheia.

Não falei nada sobre o ferimento em minha coxa. Eu não queria preocupá-lo ainda mais.

Enquanto andávamos pela vala escura, fazendo sons de esmagamento com nossos passos, confessei todas as minhas mentiras. Falei sobre ter mentido em todas as minhas cartas desde o ginásio. Sobre como minha situação familiar acabou se tornando problemática com a chegada de meu padrasto e minha meia-irmã. E na mesma época também comecei a ser intimidada na escola, ficando sem nenhum lugar ao qual pertencia. E contei todos os detalhes sobre o tratamento que tinha recebido.

Aparentemente de propósito, ele não fez nenhum som de afirmação ou disse qualquer desculpa; só me ouviu em silêncio.

Certa vez, tentei ir ao conselheiro escolar que aparecia uma vez por semana e contar meus problemas, mas aquele universitário de 24 anos só dava respostas irritantemente exageradas e formais quando eu dizia qualquer coisa.

Isso me soou como um apelo extremo ao fato de que ele estava ouvindo, e me lembro claramente de como essa “sinceridade” forçada me incomodou.

Então Mizuho me emprestando um ouvido e, calando a boca durante esse tempo, me deixou feliz.

Eu só queria que ele soubesse como eu realmente era; não busquei sua piedade. Portanto, mesmo quando se tratava de violência doméstica e abuso, fiz um esforço para explicar tudo da forma mais indiferente possível.

Mas isso ainda não mudava o fato de que estava o preocupando. Qualquer pessoa que ouvisse alguém abrindo o coração dessa forma certamente sentiria algum tipo de senso de dever. “Preciso dizer algo reconfortante para ela.”

Mas essas palavras mágicas não existiam. Meus problemas eram muito complicados e nenhuma solução prática podia ser vista. E amaciamentos como “Isso parece difícil” ou “Você é incrível por suportar isso” já tinham deixado de ser úteis há muito tempo.

A menos que estivessem na mesma situação que eu e fossem capazes de superá-la, todas as palavras de consolo soavam vazias.

Na verdade, será que realmente era possível uma pessoa confortar outra? Se fosse seguir as coisas às suas conclusões lógicas, todas as pessoas, exceto o indivíduo em si, não passam de estranhas.

As pessoas são capazes de incluir desejos pelo bem dos outros dentro dos desejos pelo próprio bem. Mas talvez seja impossível desejarem o bem apenas do outro. Talvez, em um sentido mais amplo, sempre tenha que haver algo para si mesmo.

Ele, talvez, estivesse pensando coisas semelhantes. O garoto silenciosamente agarrou minha mão enquanto eu falava sobre a dor que havia sido infligida a mim. Foi a primeira vez que estive de mãos dadas com um garoto.

Eu só queria esconder o meu constrangimento, mas disse algo que poderia ser confundido comigo o afastando.

— Mas suponho que te contar isso não vai adiantar de nada, Mizuho.

Por um momento seu aperto enfraqueceu. Ele foi perspicaz o suficiente para ver a intenção por trás da minha declaração.

Sim, eu estava perguntando implicitamente: Você pode me salvar?

O silêncio durou cerca de trinta segundos.

Ele falou comigo.

— Ei, Kiriko.

— O que é?

De repente, Mizuho agarrou meus ombros e me empurrou contra a parede atrás de mim. Ele fez essas ações gentilmente, então não bati com a cabeça ou com as costas na parede, mas pareciam tão diferentes do normal de Mizuho que fiquei nervosa demais para brincar.

Ele aproximou sua boca de meu ouvido e sussurrou:

— Se você realmente vier a odiar tudo isso, apenas me diga. Então eu posso te matar.

Achei que era uma resposta muito bem pensada da parte dele.

—Você é uma pessoa fria, Mizuho…

Eu disse algo que não queria dizer, porque se tivesse dito algo como “Obrigada”, teria começado a chorar.

— Sim. Talvez eu seja uma pessoa fria — falou com um sorriso solitário.

Coloquei minha mão em suas costas e lentamente o puxei para perto. Ele respondeu com uma ação semelhante.

Entendi. Aquela afirmação que à primeira vista parecia perturbadora era a prova de que ele estava, com total seriedade, pensando em uma maneira de me salvar.

Sua conclusão foi que essa era a única maneira de fazer algo a respeito de coisas que não poderia mudar sozinho.

O mais importante não era que eu morresse, mas que Mizuho me matasse. O garoto em quem eu mais confiava prometeu, quando chegasse a hora, colocar o ponto final em todas as minhas dores. Eu nunca tinha ouvido uma promessa mais reconfortante. Pelo menos não antes dessa, e talvez nunca mais o fizesse.

Tomei banho e troquei de roupa na casa de Mizuho. Pelo visto, seus pais sempre voltavam para casa só depois da meia-noite. Enquanto meu uniforme estava sendo lavado, ficamos sem saber o que fazer por um breve momento e, pela primeira vez, interagimos de maneiras normais para um garoto e uma garota adolescentes.

Para outros, provavelmente pareceria uma brincadeira insignificante, mas para alguém que vivia uma vida como a minha, foi um marco importante que me deu paz de espírito por dias.

Nosso relacionamento era o mais insalubre3Algo que não é bom para a saúde. e sem saída que poderia ser.

Mas, pensando melhor, desde o começo não havia qualquer saída, então pude sentir alívio enquanto mergulhava em um pântano sem fundo.

Enquanto a distância entre nossos corações ficava menor, na superfície, nosso relacionamento usual continuava.

As únicas mudanças a se mencionar eram que começamos a nos encontrar com o dobro de frequência, e quando ouvíamos música juntos, Mizuho começou a enrolar um lenço vermelho escuro, que sempre usava, ao redor do meu pescoço.

A cor abandonou o mundo e começou a nevar em vez de chover – um inverno cinzento chegou.

Um dia, nos aconchegamos com nossos casacos de sempre e ouvimos música na tenda. Bocejei sem parar, quase não tendo dormido nos últimos dois dias.

Mizuho sorriu amargamente.

— Entediada?

— Não, de jeito nenhum — respondi, esfregando os olhos. — Recentemente, começaram o trabalho de reforma da biblioteca que costumo frequentar. — Isso por si só não fazia muito sentido, então acrescentei uma explicação sobre como costumava dormir na sala de estudos da biblioteca sempre que precisava.

— Então você não pode dormir em casa, hein?

— Não, ainda mais ultimamente. As amigas da minha meia-irmã entram e saem quando bem entendem. Meu padrasto consegue dormir com qualquer barulho, então ele não se incomoda com isso. Ontem à noite, me acordaram às 2h30 e conduziram um experimento de furar orelhas.

Movi meu cabelo sobre a orelha e mostrei os dois pequenos orifícios nela. Mizuho aproximou o rosto e ficou olhando.

— Acho que se eu deixar assim vai sarar logo, mas não usei nenhum desinfetante ou pomada, então estou um pouco preocupada.

— Isso não doeu?

— Nada de especial. A perfuração durou só um instante.

Mizuho correu os dedos pelas feridas recentes.

— Isso faz cócegas — avisei, e ele achou isso engraçado.

O garoto tocou minha orelha com todos os dedos, como se tentasse determinar sua forma na completa escuridão.

Ter a parte de trás da minha orelha e lóbulo tocados causou arrepios no meu cérebro, e me senti de alguma forma culpada por isso.

— Ultimamente, mesmo quando meu padrasto e minha meia-irmã não me incomodam, me oponho a dormir em casa. A biblioteca é onde consigo dormir melhor. Não posso me deitar e a cadeira é dura, mas tem CDs e livros, é bem silenciosa e, por último, mas não menos importante, não preciso ver ninguém que não quero.

— E agora a biblioteca está em reforma?

— Parece que não poderei usá-la por pelo menos uns vinte dias. Só queria encontrar outro lugar como aquele.

Mizuho parou de mexer na minha orelha e ponderou. Ele colocou a mão no queixo e fechou os olhos. Então passou por uma realização.

— Eu conheço um lugar que atende a quase todos os seus requisitos, Kiriko.

— Hm…? Gostaria de saber qual é. Urgentemente.

Me inclinei para a frente e, bem diferente do normal, Mizuho desviou o olhar.

— A seleção com certeza não chega aos pés daquela da biblioteca, mas há alguns livros que não são tão ruins. E você também pode ouvir música, é claro. É cercado por árvores, por isso é assustadoramente silencioso e não há hora de fechar. E não só é de graça, como você pode se deitar lá.

Ele olhou nos meus olhos.

— Mas há um problema sério.

Perguntei, contendo meu riso:

— É onde você costuma dormir, Mizuho?

— Exatamente — respondeu, balançando a cabeça. — Portanto, não posso realmente chamar de uma boa sugestão.

— Vou ser honesta com você e dizer minha opinião: Isso parece bem positivo. Se não for um problema para você, gostaria de interferir nesse lugar agora mesmo.

— Então vamos parar com as músicas de hoje por aqui…

Mizuho desligou o reprodutor de músicas e tirou o fone do meu ouvido.

Eu nunca tinha entrado no quarto de nenhum garoto além do de Mizuho. Portanto, o fato de seu quarto ser quase sobrenatural em sua falta de vivacidade e falta de coisas poderia ser um indicativo de sua personalidade, ou fosse apenas como os quartos dos garotos geralmente eram – eu não seria capaz de afirmar. Mas poderia dizer que uma estante gigante quase tocando o teto com todas as prateleiras lotadas até a borda, não era algo que se esperava no quarto de todo garoto de 17 anos do ensino médio. Ao me aproximar, senti um cheiro leve de papel velho.

Vestindo o pijama que Mizuho me emprestou e arregaçando as mangas três vezes, gritei para o outro lado da porta:

— Já pode entrar!

Mizuho olhou para mim, agora em sua camisa do ginásio, curioso. Seu olhar me fez cócegas, então apontei para a estante para redirecioná-lo para lá.

— Estou surpresa. É um número de livros impressionante.

— Bem, não é como se eu tivesse lido todos — explicou ele em um tom de zombaria. — Não é como se eu gostasse de livros. Se eu tiver que dizer algo sobre isso, então é mais um hábito de colecionar. Eu simplesmente gosto de passear pelas livrarias e comprar todos os livros que vejo sendo mencionados o tempo todo nas revistas… aqueles em que valem a pena “depositar minha confiança”, eu acho.

— Então você é estudioso.

Ele balançou a cabeça.

 — Me desanimo rápido, então fico cansado das coisas assim que as começo. Então concluí que deveria tornar aquilo que acho mais chato, meu hobby. Por que acha que isso aconteceu?

— Porque o risco de decepção era baixo, certo?

— Isso mesmo. E enquanto estava procurando pacientemente por algo, mesmo que eu não goste de ler, passei a entender os sentimentos das pessoas que gostam de ler. Foi um grande passo em frente. — Ele endireitou os vincos dos lençóis, puxou o cobertor e ajustou a posição do travesseiro. — Mas por enquanto vamos parar de conversar. Está pronto. Durma o quanto quiser.

Sentei-me nos lençóis frios, deslizei sob as cobertas e descansei minha cabeça no travesseiro.

Até eu sabia que meus movimentos eram estranhos. Mas me dizer para não ficar nervosa era inútil. Se alguma vez houve uma garota que não ficaria nervosa dormindo na cama de um garoto que ela amava, então ela provavelmente já havia perdido o que a tornava humana.

Me senti envolvida pelo cheiro de Mizuho. Era difícil de descrever, mas o elemento essencial era que se tratava do cheiro de outra pessoa. Um que eu nunca teria.

A única vez que ele me abraçou foi quando estávamos em uma vala de irrigação, então eu não fazia ideia, mas achei que sentiria o cheiro se enterrasse meu rosto em seu peito.

E, dentro de mim, esse cheiro estava inextricavelmente ligado a uma sensação de segurança, prazer e carinho. Por um momento, considerei levar o cobertor para casa comigo, em segredo, claro.

— Voltarei para te acordar em uma boa hora. Então, boa noite.

Mizuho fechou as cortinas, apagou a luz e se preparou para ir embora, mas eu o impedi.

— Um… você pode ficar aqui até eu dormir?

Ele respondeu um tanto nervoso:

— Eu, pessoalmente, não me importo, mas… O que você pretende fazer se eu tiver alguma ideia estranha?

Seu rosto corou um pouco, mas eu não tinha como saber disso, já que as luzes estavam apagadas.

Entendo. Então Mizuho me via assim.

O que eu sempre quis saber – se sua boa vontade para comigo era puramente amigável, ou se havia elementos românticos também – estava respondido. Uma sensação de calor encheu meu peito.

— Se isso acontecer, vou fingir que me oponho — respondi.

— Isso não é bom o suficiente — falou ele, rindo envergonhado. — Se eu tentar fazer qualquer coisa com você, você pode me dar um bom soco entre os olhos. Isso vai colocar um covarde como eu de volta no lugar na mesma hora.

— Entendido. Vou me lembrar disso.

Guardei na memória: nunca vou dar um soco no meio dos olhos dele.

Mizuho acendeu uma luz de leitura e começou a ler um livro. O observei com meus olhos entreabertos.

Esta pode ser uma visão que nunca esquecerei na minha vida, pensei enquanto caía no sono.

Depois, frequentemente peguei emprestada a cama do quarto dele. Assim que eu vestia o pijama e me enfiava sobre as cobertas, Mizuho ligava uma música bem baixinha e meus sentidos esvaiam-se lentamente.

Assim que eu acordava de meu sono profundo, ele me servia um chá quente.

Então pegávamos sua bicicleta e ele me levava para casa.

Depois da primeira vez, percebi que, enquanto cochilava, Mizuho realinhava perfeitamente o cobertor caso ficasse torto, e aprendi a me virar naturalmente durante o sono para puxá-lo o suficiente para bagunçar o realinhamento.

A parte difícil era me impedir de sorrir logo depois que ele gentilmente agarrava e puxava as cobertas. Impedir que um sorriso aparecesse nesses momentos era como manter aquele calor dentro de mim, e meus sentimentos de desejo por ele aumentaram.

Uma vez, Mizuho analisou o meu rosto bem de perto. Eu estava de olhos fechados, mas podia sentir sua respiração e dizer que ele estava agachado ao lado da cama.

No final das contas, porém, Mizuho não fez nada. Se ele tivesse, eu provavelmente teria aceitado sem qualquer problema. Não, eu, na verdade, estava esperando por isso. Teria ficado feliz se ele tivesse alguma “ideia estranha”. Afinal, eu e ele tínhamos dezessete anos. Jovens de 17 anos eram “criaturas explodindo com isso e aquilo” e não eram capazes de se controlar.

Mesmo assim, suponho que não desejava nada mais do que ele lá, lendo e dormindo profundamente enquanto tudo permanecia ambíguo.

Até que nós dois simplesmente não aguentássemos mais, decidi que gostaria de mergulhar nesta perfeição feita de imperfeições.

Mizuho sentou na cama e coloquei minha cabeça em seu colo.

— Cante uma canção de ninar para mim — pedi egoisticamente.

Ele cantarolou Blackbird4Canção dos Beatles, escute clicando aqui. bem baixinho.

À medida que relaxávamos dessa forma, o fim se aproximava cada vez mais. Eu estava vagamente ciente disso, mas o tempo se arrastou em um ritmo incrivelmente mais rápido do que imaginei.

Se soubéssemos que nos restava menos de um mês, sem dúvida teríamos transmitido rapidamente cada centímetro de nossos sentimentos um pelo outro e feito todos os tipos de coisas que os amantes fazem. Mas não foi assim.

Em um sábado sombrio no final de dezembro, levei Mizuho para uma cidade distante. Viajamos de trem por cerca de uma hora, chegamos a uma estação tão pequena que poderia ser confundida com um depósito de lixo. Teias de aranha sem donas pendiam da sala de espera e um emaranhado de teias estava em toda a plataforma.

Chegamos, depois de trinta minutos de caminhada, a um cemitério público em uma colina. Lápides pontilhavam o terreno limpo. Entre elas, estava o túmulo de meu pai.

Não levei flores ou incenso. Apenas coloquei minha mão na sepultura, sentei na frente dela e contei a Mizuho sobre meu pai.

Não eram memórias significativas que valessem a pena chamar de memórias, mas eu gostava do meu pai. Quando era pequena e me sentia mal porque minha mãe me repreendia, ou quando as coisas não iam bem com meus amigos, ele me convidava para passearmos de carro. Dirigindo pelas estradas desertas e tocando música antiga no som do carro, ele explicava as boas qualidades das canções de tal forma que até uma criança como eu poderia entender. E também foi ele quem me contou a citação de Pete Townshend. Talvez a razão pela qual comecei a ouvir música de forma tão indulgente foi porque senti sua presença nela. Um símbolo da época em que minha casa era pacífica e eu não precisava me preocupar com nada.

Quando terminei de falar sobre meu pai, de repente toquei em um assunto diferente.

— Meu padrasto fez um empréstimo. Achei que com o vício dele por jogos isso acabaria acontecendo, mas acabou sendo algo bem pior do que eu poderia ter imaginado. Isso não pode mais ser pago pelos meios normais. Além disso, as pessoas de quem ele está pegando emprestado não parecem ser do tipo honesto e, como foi por causa do jogo, seria difícil pedir falência.

O conflito entre meus pais não conhecia limites. Talvez se sentindo um pouco culpado por isso, desta única vez, meu padrasto não tinha se voltado para a violência ainda, mas era apenas uma questão de tempo.

Tive a sensação de que da próxima vez que ele tivesse a chance, faria algo – eu não sabia o quê – impossível de se superar.

Eu não seria capaz de adiar as ações do meu padrasto. A enorme dívida que ele acumulou sem dúvida arruinaria minha vida. Mas esse tipo de infelicidade vagarosa, parcelada, não ativaria minha magia. O que era necessário era o grito de minha alma por causa de uma dor repentina, focalizada, simplesmente compreendida.

Além disso, mesmo que eu pudesse “desfazer” a dívida, não havia garantia de que ele não repetiria o mesmo erro. No final das contas, minha magia não tinha quase nenhum uso.

Me levantei e limpei um pouco de sujeira de minhas roupas.

 — Tudo bem, Mizuho. Estou começando a ficar cansada.

— Entendo.

— De que maneira você vai me matar?

Ele olhou para mim sem responder. Algo parecia incomodá-lo. Ele nunca tinha me mostrado tal expressão, então vacilei.

Logo depois, Mizuho me beijou com bastante força. Ter nosso primeiro beijo em um cemitério parecia tão apropriado para nós que adorei a desesperança de tudo isso.

Quatro dias depois, a hora finalmente chegou.

Ao voltar para casa, a primeira coisa que meus olhos encontraram foi o cadáver de minha mãe.

Não, a essa altura, talvez ela ainda não fosse um cadáver. Talvez estivesse apenas em uma condição na qual, se recebesse ajuda imediata, poderia ser salva.

Mas, de qualquer forma, quando verifiquei seu pulso horas depois, ela estava morta.

Minha mãe estava deitada no chão com uma roupa diferente do normal, então não pude dizer se era realmente ela. Era desse tanto que seu rosto estava deformado. Sua cabeça estava totalmente branca.

Meu padrasto estava sentado em uma cadeira, servindo uma bebida em um copo. Enquanto eu corria até minha mãe, ele ordenou bruscamente:

 — Esqueça isso.

Me agachei ao lado dela, prendi a respiração enquanto olhava para seu rosto inchado e ensanguentado e, um momento depois, senti a dor de um golpe forte na minha têmpora.

Meu padrasto me tirou do chão e me arrastou para o meu quarto. Me encolhi segurando meus joelhos, e ele puxou meu cabelo com força e deu um soco na base do meu nariz.

Minha visão ficou vermelha e sangue quente escorreu do meu nariz. Com medo de que sua violência se tornasse pública, ele geralmente não mirava no rosto, mas desta vez, já era.

— Você também quer me expulsar daqui, não é? — perguntou ele. — Então tenta. Faça o que fizer, vou segui-la por toda a sua vida. Você não pode fugir de mim. Porque somos uma família.

Ele me deu um soco no plexo solar e passei por dificuldades para respirar. Previ uma longa tempestade. Levantei minhas mãos para desesperadamente defender ao menos meu rosto, para quando me encontrasse com Mizuho. Separando completamente minha mente do meu corpo, enchi minha cabeça vazia com música. Toquei todas as faixas do álbum “Pearl”, de Janis Joplin5Ouça clicando aqui., em ordem.

No momento em que A Woman Left Lonely terminou, seu ataque parou por um instante. Mas era simplesmente porque seu punho estava gasto por bater na minha mãe por tempo demais, então ele passou a usar um cinto de couro.

Balançando o cinto como um chicote, meu padrasto me bateu várias vezes. Cada chicotada me despertava uma dor que tornava a sensação de estar viva um incômodo.

Mesmo depois da última música – Mercedes Benz, uma música que foi lançada apenas como uma faixa a cappella, porque Janis morreu de overdose de heroína depois de ir comprar Marlboros com $5,50 trocados – sua violência insistente não deu sinais de que acabaria.

Parei de pensar. Parei de olhar. Parei de ouvir. Parei de sentir.

Voltei a desmaiar pela enésima vez

A tempestade havia acabado. Ouvi uma lata de cerveja sendo aberta. O som de nozes sendo mastigadas ecoou pela sala.

Crunch, crunch, crunch. Crunch, crunch, crunch.

Eu nem tinha energias para me levantar. Consegui mover meu pescoço para olhar para o relógio na parede. Quatro horas se passaram desde que cheguei em casa.

Tentei me levantar, mas minhas mãos estavam amarradas. Com aquelas coisas que geralmente eram usadas para manter cabos juntos, supus. Elas estavam amarradas nas minhas costas, então não pude fazer nada.

Meu corpo estava coberto de marcas. Minha blusa ensanguentada teve metade dos botões arrancados, e a pele exposta do meu pescoço até minhas costas doía como se tivesse sido queimada.

Não – provavelmente tinha sido queimada. Era esse tipo de dor que parecia, e havia um ferro de passar ainda colocado em uma tomada próxima.

Senti algo duro rolando em minha boca. Não precisei cuspir e verificar se era um molar.

Senti um gosto amargo, então concluí que devia ser o sangramento de onde meu dente foi quebrado. Eu poderia ter gargarejado com o sangue.

Esperando até que meu pai fosse ao banheiro, rastejei até minha mãe imóvel e toquei seu pulso. Sem pulso.

Antes de mais nada, pensei: “Se eu ficar aqui, também serei assassinada.”

Poderia chorar pela morte de minha mãe após fugir para um lugar seguro. Eu só tinha que me afastar daquele homem. Me arrastei para fora da sala de estar, fui ao corredor e cheguei à porta da frente. Então, com minhas últimas forças, me levantei e abri a porta com minhas mãos amarradas e saí. Então voltei a me rastejar desesperadamente.

Meu corpo e mente brevemente separados estavam difíceis de se juntar. Já tinha entendido o que havia acontecido comigo, mas ainda não conseguia sentir que era algo real.

Era a hora de eu “desfazer” tudo, mas ainda via tudo como sendo da conta de outra pessoa. Eu talvez já tivesse sido quebrada há muito tempo. Como pude permanecer tão calma depois que minha mãe foi morta?

Alguém agarrou meu ombro.

Minha coluna congelou. Não consegui sequer gritar. Paralisada de medo, todas as minhas forças me deixaram.

Quando percebi que era a mão de Mizuho, fiquei tão aliviada que poderia ter desmaiado. E, por fim, as lágrimas surgiram.

Swish, swish, swish, swish, elas escorreram.

Não consegui entender nada. Por que ele estava ali? Eu não queria que ele me visse assim.

Assim que Mizuho removeu as amarras em torno de minhas mãos, eu imediatamente cobri meu rosto ensanguentado e espancado.

Ele tirou o casaco, colocou-o em mim e me abraçou. Me agarrei a ele e chorei muito.

— O que aconteceu? — perguntou ele.

 O garoto falou com extrema gentileza para tentar me acalmar, mas a vibração de sua respiração me indicou que tipo de emoções turvas ele estava sentindo.

Expliquei de uma forma fragmentada que deixava tudo que era importante de lado. Quando cheguei em casa minha mãe estava desmaiada. Mesmo apanhando, corri até ela. E sofri todos os tipos de violência por quatro horas seguidas. Quando tudo acabou, minha mãe já estava morta.

Ele ouviu com paciência e logo compreendeu tudo. Praticamente não precisou de tempo para chegar à decisão.

— Apenas espere. Devo conseguir acabar com isso bem rápido.

Com isso, ele entrou na minha casa. A questão do que pretendia fazer sequer passou por minha mente esgotada. Eu deveria ter “desfeito” tudo que meu padrasto fez antes. Mas a minha gratidão por Mizuho ter aparecido atrapalhou e minha alma não gritou.

A neve começou a cair.

Mizuho retornou em menos de cinco minutos.

Ver seu rosto e camisa manchados de sangue, bizarramente, me deu a ideia de que ele estava bonito, ao invés de lamentável.

A faca em suas mãos contava toda a história do que havia “acabado”.

— Mentiroso — falei. — Você escolheu a pessoa errada para matar. Você não disse que me mataria?

Mizuho riu.

 — Você não sabia que eu era um mentiroso desde o início?

— Agora que você mencionou, isso é verdade…

Ele cometeu um erro. Esse foi o pior resultado que pude imaginar.

Mas também não poderia adiar isso. Era impossível desfazer o esforço que ele fez por mim.

— Ei, Mizuho.

— Sim?

— Vamos fugir. Para algum lugar ao menos meio longe.

Ele caminhou comigo em suas costas. Mizuho roubou uma bicicleta desacorrentada na estação de trem, me colocou na garupa e pedalou.

Nós dois entendemos que nossa fuga não levaria a lugar nenhum.

Não tínhamos intenção de realmente fugir.

Só queríamos um tempo para nos despedir.

— Assim que terminarmos o ensino médio, vamos morar juntos — disse Mizuho.

Embora sabendo que era impossível, concordei.

Ele continuou pedalando a noite toda. O céu azul profundo ficou violeta, depois se dividiu em duas camadas de vermelho e azul opacos. Então o sol nasceu e a bicicleta pedalou através dos raios da manhã.

Nossos corpos frios começaram a esquentar e a fina camada de neve na estrada derreteu.

Paramos em uma loja de conveniência e compramos frango e bolo. O balconista era um estudante universitário apático, então entregou nossas coisas sem dizer uma palavra sobre nossos rostos. Sentamos em um banco e comemos.

— Frango e bolo faz com que pareça um aniversário — comentei.

— Bem, de certa forma, é um dia para se comemorar. — Brincou ele.

Alunos do ensino fundamental olhavam com curiosidade para o casal ensanguentado e machucado do ensino médio comendo comida de festa no início da manhã. Parecíamos sujos o suficiente para que um deles se perguntasse: “Hã, é Halloween? São fantasias de Halloween?” Olhamos um para o outro e rimos.

E voltamos a nos mover. No caminho, passamos por um grupo de alunos do meu colégio. Vê-los se divertindo me fez lembrar que era o dia do festival cultural deles. Parecia um evento de algum outro mundo distante.

Entre eles estava uma pessoa que me intimidava. Ficaram pasmos ao me ver, coberta de hematomas, andando na garupa de uma bicicleta e sendo levado para longe da escola por um garoto coberto de sangue.

Enterrei meu rosto nas costas de Mizuho e chorei enquanto ria, e ria enquanto soluçava. Senti como se um veneno que havia infestado meu corpo por tanto tempo estivesse finalmente sendo lavado.

Por fim, fomos a um parque de diversões. Esse era o meu desejo. Queria ir a um parque de diversões com Mizuho apenas uma vez. Ao mesmo em que passei momentos felizes com meu pai e minha mãe.

Sua camisa e minha blusa ensanguentadas estavam escondidas sob os casacos, mas os hematomas em meu rosto e o cheiro de sangue nele não podiam ser escondidos.

Os transeuntes nos olharam, sentindo um ar de violência sobre nós, algo inadequado para o parque. Mas Mizuho e eu não ligamos e andamos de mãos dadas.

Ele disse que queria andar na roda-gigante e eu disse que queria andar na montanha-russa. Depois de uma briga breve e inocente, ele cedeu e fomos primeiro na montanha-russa.

E, por volta desse momento, minhas memórias ficaram confusas.

Tudo que eu conseguia lembrar vagamente era o seguinte: O acidente aconteceu logo depois de entrar na montanha-russa.

Talvez tenha sido um castigo divino. Não para Mizuho, mas para mim.

Um som. Uma tremedeira. Uma sensação de flutuação. Metal. Gritos. Confusão. Outro som ao meu lado. Crunch, crunch, crunch, crunch, crunch, crunch, crunch, crunch, crunch. Sangue respingando. Gritos. Confusão. Sangue respingando. Carne. Gritos. Vômito. Choro.

Quando acordei, Mizuho havia partido e em seu lugar estava algo que costumava ser ele.

Foi isso que pensei.

Porque ele me conheceu, Mizuho se tornou um assassino.

Porque ele me conheceu, Mizuho teve uma morte horrível.

Foi tudo minha culpa.

Se eu não estivesse lá, isso não teria acontecido.

Mizuho não deveria ter me conhecido.

Por todo esse tempo, pensei que era meu padrasto quem causava toda a desgraça.

Mas estava enganada. O problema era eu.

Atrai meu padrasto e meia-irmã para perto, matei minha mãe e Mizuho.

Até o fim, só criei problemas para eles.

Ouvi o som de uma caixa de música que já não ouvia há muito tempo.

Realizei um adiamento em uma escala maior do que qualquer outra. Voltei àquele dia, meses atrás, e “desfiz” o reencontro entre Mizuho e eu. Não tinha o direito de encontrá-lo.

Mas “Kiriko Hizumi” não fez nada de errado. Eu não precisava apagar a existência dela também, a garota que deu apoio a ele.

Então, apenas desfiz o reencontro. Apaguei o momento em que ele ia me ver e o devolvi à sua vida normal de colegial.

Devia ser o melhor. Sem mim, Mizuho deveria ser capaz de fazer amigos, se apaixonar e viver normalmente.

E eu esqueci tudo. Tudo o que ele me disse. Tudo o que ele fez por mim. O calor de suas mãos. As memórias que ele me deu.

Porque só pensar nele poderia contaminá-lo com minha infelicidade contagiosa.

Depois de desfazer nosso reencontro, parei de envelhecer. Um ano se passou e continuei com 17, do jeito que estava no segundo ano do ensino médio.

Em essência, eu aparentemente estava adiando o envelhecimento, mas não me lembrava de ter feito isso.

Talvez em algum lugar do meu coração, tive um pensamento relutante. Quero ao menos ficar do jeito que era quando ele me amava.

E, assim, inconscientemente, esperei o dia de nosso reencontro.

 


 

Tradução: Taipan

Revisão: PcWolf

 

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