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Dor, Dor, Vá Embora – Cap. 03 – Marcando Pontos

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Sempre achei que as pessoas em situações parecidas não conseguiam dormir. Mas depois de um banho quente, trocar de roupa e deitar na cama, minhas pálpebras ficaram pesadas quase na mesma hora e eu dormi como um morto por seis horas diretas.

Quando acordei, surpreendentemente, não estava me sentindo mal. Na verdade, aquela opressão que sentia sempre que acordava durante os últimos meses, sumiu.

Sentei e verifiquei o telefone, mas não encontrei nenhuma mensagem. A garota ainda não estava precisando de mim, pelo visto. Voltei a me deitar e olhei para o teto.

Por que me senti tão bem apesar de ter atropelado alguém na noite anterior? Em uma completa reviravolta, apesar dos pesares, minha mente parecia mais clara do que nunca.

Pensando nisso enquanto escutava os pingos de água caindo na sarjeta, cheguei a uma conclusão:

Talvez tivesse perdido meu medo de decair ainda mais. Em meio à minha existência miserável, sentia que estava apodrecendo. Assim sendo, transbordava de ansiedade ao pensar em quão fundo no poço chegaria, em quão mal ficaria. No entanto, o acidente da noite passada me jogou direto para o fundo. Ao decair ao nível mais baixo que poderia, comecei a sentir um tipo de conforto extremo, mesmo em tanta desgraça.

Afinal, não poderia decair ainda mais. Comparado ao pavor de uma queda em direção ao desconhecido, a dor de bater no fundo do poço era muito mais concreta e suportável.

Não havia mais nada a se perder. Não tinha esperanças para trair, então não poderia me desesperar.

E fiquei à vontade. Não existe nada mais confiável do que a completa resignação.

Assim sendo, resolvi ir até a varanda para fumar. Algumas dezenas de corvos estavam empoleirados nos fios dos postes, e alguns estavam voando ao redor da área enquanto crocitavam.

No momento em que reduzi cerca de um centímetro do cigarro a cinzas, ouvi uma voz feminina na varanda vizinha.

— Boa noite, senhor recluso.

Olhei para a minha esquerda e vi uma garota acenando toda mansa na minha direção. Ela usava óculos, seu cabelo era curto e vestia pijamas. Era a garota que vivia ao lado, uma universitária cursando artes. Eu não lembrava o seu nome. Mas não era como se não me importasse com ela ou algo assim. Só era péssimo em guardar nomes, assim como qualquer outro introvertido.

— Boa noite, senhorita reclusa — respondi. — Você acordou cedo hoje.

— Me passa isso aí — pediu a estudante de artes. — A coisa na sua boca.

— Isso? — perguntei, apontando para o cigarro.

— Aham. Isso.

Estendi a mão e passei o cigarro parcialmente fumado para ela. Como sempre, sua varanda estava repleta de plantas decorativas, como se fosse uma floresta em miniatura.

Ela tinha escadinhas tanto no canto direito quanto no esquerdo, serviam como suportes de flores, e também uma cadeira de jardim vermelha que ficava bem no centro de tudo. As plantas eram tratadas com muito cuidado e pareciam vibrantes e vivas, ao contrário de sua dona.

— Então você saiu ontem — observou ela, tragando a fumaça para os pulmões. — Não esperava isso de você.

— Isso não é ótimo? — respondi. — Ah, sim… Eu já estava prestes a te chamar. Você recebe o jornal todos os dias, certo?

— Sim, mas costumo ler só a primeira página. O que tem?

— Quero ler o jornal desta manhã.

— Hm. Certo, então venha aqui — disse ela. — Também quase te chamei ontem, para a caminhada noturna, sabe.

Fui até o corredor e entrei no apartamento dela. Foi a segunda vez que permitiu a minha entrada. A primeira vez foi quando me chamou para beber juntos e afogar as mágoas, e, bem, eu nunca tinha visto alguém morando em um lugar tão bagunçado na minha vida toda.

Certo, eu não chamaria o lugar de sujo. Estava bem limpinho. É só que o tamanho do cômodo e o número de seus pertences não combinavam. A garota devia ser do tipo que nunca jogava nada fora – o meu completo oposto, que só tinha as coisas mais básicas.

Seu apartamento, desta vez, não estava mais organizado. Na verdade, parecia estar com ainda mais coisas.

Sua sala de estar servia como seu ateliê, então havia prateleiras enormes ao longo das paredes com coleções de arte e abundantes álbuns de fotos, bem como uma coleção enorme de discos que preenchiam todo o espaço disponível.

Em cima das prateleiras, caixas de papelão empilhadas até o teto, e eu só podia imaginar o desastre que um terremoto de bom tamanho causaria.

Uma das paredes tinha um pôster de filme francês e um calendário de três anos atrás. E em um dos cantos havia um quadro de cortiça, com fotos artísticas pregadas nele todo, cobrindo toda sua superfície.

Uma das duas mesas estava com um computador enorme, com canetas e lápis gastos espalhados por todos os cantos. A outra estava limpa e arrumada, com apenas uma vitrola em um suporte de madeira.

Ao sentar na cadeira da varanda, examinei todas as notícias do jornal matutino enquanto era banhado pela luz do sol poente. Como esperado, não havia nada sobre aquele acidente que causei.

A estudante deu uma olhada no jornal, ficando ao meu lado.

— Já faz um tempo que não leio o jornal… Mas parece que não estou perdendo nada demais, hein — pensou ela em voz alta.

— Obrigado — falei, devolvendo-o.

— Não foi nada. Encontrou o que estava procurando?

— Não, não encontrei.

— Ah, mas que pena.

— Não, na verdade é o oposto. Estou aliviado por não ter encontrado nada. Um, posso dar uma olhada na sua TV também?

— Você não tem nem uma TV na sua casa? — perguntou, espantada. — Acho que quase nunca assisto, então, sério, não é algo que eu preciso, mas…

Ela começou a procurar o controle remoto embaixo da cama, o encontrou e a ligou.

— Ah, sabe que horas começa o noticiário local?

— Daqui a pouco, eu acho. É bem estranho ver um recluso interessado nas notícias. Ficou curioso a respeito do mundo exterior?

— Não, matei alguém — disse a ela. — Não consigo parar de pensar se isso virou notícia ou não.

A garota piscou, ainda olhando diretamente para mim.

— Espera. O quê?!

— Ontem à noite, atropelei uma garota. Estava rápido o suficiente para matá-la, tenho certeza.

— Umm… Isso não é nenhuma piada, é?

— Não, não é — respondi enquanto balançava a cabeça. Como ela era o mesmo tipo de pessoa que eu, me sentia à vontade para falar sobre qualquer coisa. — E quando a atropelei, estava totalmente bêbado, já que tomei um bom tanto de uísque. E não estou sentindo nem um pingo de culpa.

Ela olhou para o jornal em sua mão.

— Se isso é verdade, então é estranho que não tenha virado notícia. Será que ainda não encontraram o corpo?

— Bem, apareceram algumas circunstâncias, devo conseguir me safar por ao menos nove dias. Pelo menos nesse tempo, tenho certeza de que ninguém vai descobrir o que fiz. Depois de ler o jornal fiquei convencido disso.

— Hã, não entendi. — Ela cruzou os braços. — Você tem esse tempo todo para ficar conversando comigo? Não devia estar procurando um jeito de se livrar das evidências, fugindo para algum lugar, ou alguma coisa do tipo?

— Você está certa, há um monte de coisas que preciso fazer. Mas não posso fazer nada disso sozinho. Preciso esperar por uma ligação.

— Claro… Bem, ainda tenho minhas dúvidas, mas parece que você é um criminoso bem sério.

— Sim, só podia ser assim.

Imediatamente, a expressão da estudante de artes se iluminou. Ela agarrou meus ombros e me sacudiu, seu rosto estava tão radiante que a palavra “alegre” não seria o bastante para descrevê-lo.

— Olha, eu tô tipo, extremamente feliz — disse. — Agora estou me sentindo muito melhor.

Schadenfreude[1]? — perguntei com um sorriso amargo.

— Aham. Fico feliz em saber que você é um perdedor que não pode receber mais qualquer ajuda.

Seria incorreto chamá-la de insensível, já que a estudante de artes sorriu amplamente por causa de sua consideração por minhas aflições. E isso fez eu me sentir um pouquinho melhor.

Uma reação dessas me parecia melhor do que simpatia ou preocupação, que só resultariam em constrangimento. E, de qualquer forma, ela estava tendo sentimentos positivos graças a mim.

— Então, você se graduou do posto de recluso e virou um assassino.

— Isso não está mais para andar para trás?

— No meu livro é um avanço… Ei, vamos dar uma caminhada hoje à noite. Vamos desperdiçar esse seu tempo restante. O que acha? Vai ser tão reconfortante ter a sua companhia.

— Fico honrado.

— Ótimo. E que tal fazermos um brinde? — Ela apontou para uma garrafa que estava em uma de suas estantes. — Não há muita coisa para você esquecer, então o que acha?

— Vou recusar a bebida. Quando receber a ligação, quero estar apto a dirigir.

— Entendi. Bem, então vou servir água para você, senhor assassino. Porque, uh, aquilo e água é tudo que eu tenho.

Ao vê-la colocar gelo no copo e servir o uísque, senti uma pontada de nostalgia. Foi uma sensação estranha; senti como se estivéssemos em um livro ilustrado ou em uma pintura.

— Desculpa, mas posso tomar um gole disso aí?

— Isso é o que eu já estava planejando servir. — Ela rapidamente encheu mais um copo com uísque.

— Então, saúde.

— Saúde.

As bordas de nossos copos se tocaram e fizeram um tilintar solitário.

— Nunca bebi com um assassino — comentou ela enquanto espremia um limão em seu copo.

— É uma oportunidade única na vida. Certifique-se de saborear a sensação.

— E vou — disse, sorrindo enquanto astutamente semicerrava os olhos.

Minha vizinha, uma estudante de artes reclusa, e eu, nos conhecemos algum tempo após eu também me tornar um recluso.

Um dia, estava deitado na cama ouvindo música. O volume estava bem alto, dispensando qualquer consideração a qualquer pessoa, então logo bateram à minha porta com bastante força.

Será que era um daqueles evangelistas que saíam por aí batendo de porta em porta? Um vendedor de jornal? Decidi ignorar, mas continuaram batendo. Aborrecido, aumentei o volume, e então abriram a porta. Tinha me esquecido de trancar.

A intrusa, usando óculos, tinha um rosto de alguma forma familiar. Concluí que era minha vizinha, e tinha aparecido para reclamar do barulho.

Me preparei para suportar seus insultos, mas ela só foi até o som ao lado da minha cama, tirou o CD, colocou outro e voltou para o seu quarto, nem mesmo falou nada.

Seus problemas não eram com o volume, e sim com meu gosto musical.

Pressionei o botão de reprodução sem nem verificar o que ela tinha colocado lá, e fui saudado por um som de guitarra tão doce quanto um suco de laranja, isso foi meio decepcionante. Esperava que ela pudesse estar me recomendando algo bom, mas, que pena.

E esse foi meu primeiro encontro com a estudante de artes. Mas só descobri que era uma estudante de artes algum tempo depois.

Ambos odiávamos sair, mas frequentemente íamos até nossas varandas. A diferença é que ela ia regar as plantas, e eu, fumar, mas, ainda assim, ficamos cada vez mais próximos conforme nos víamos.

Não havia nada obstruindo nosso contato visual, então quando a via, inclinava a cabeça, já que não éramos muito familiares. A cumprimentava e, com um olhar atento sobre mim, ela retribuía a saudação.

Então, certo dia, no final do verão, a garota estava regando as plantas e eu me apoiei no parapeito esquerdo e comecei a conversar.

— Isso aí é bem impressionante, cuidar dessas plantas todas sozinha.

— Na verdade não — murmurou ela em uma voz quase inaudível. — Não é tão difícil.

— Posso fazer uma pergunta?

Ainda observando as plantas, a garota respondeu:

— Claro, mas posso não responder.

— Não quero ser muito xereta, mas você não saiu do seu quarto na última semana?

— E daí se não tiver saído…?

— Sei lá. Acho que eu ficaria feliz.

— Por quê?

— Porque também não saí.

Peguei uma bituca de cigarro do chão, acendi e dei uma tragada. A estudante de artes abriu bem os olhos e se virou para mim.

— Huh, entendo. Então você sabe que não saí do meu quarto porque você também não saiu do seu.

— Isso aí. O lado de fora está assustador. Deve ser por causa do verão.

— Como assim?

— Andar por aí debaixo do sol me deixa tão infeliz que preciso de uns dois ou três dias para me recuperar. Não, talvez seja só culpa, ou pena…

— Hmm — respondeu a estudante de artes, empurrando seus óculos para o lugar. — Ultimamente não vi o seu amigo. O que aconteceu com ele? Aquele que parece um viciado em drogas. Um que aparecia quase todos dias.

Devia estar falando de Shindo. É verdade que, em alguns dias, seus olhos pareciam fora de foco, e ele constantemente revelava aqueles sorrisos vagos e assustadores, e geralmente parecia um viciado em drogas, mas era divertido ouvi-la dizer isso sem qualquer rodeio.

Consegui conter meu sorriso.

— É o Shindo. Bem, ele morreu. Faz uns dois meses.

— Ele morreu?

— Está mais para suicídio. Ele se jogou de um penhasco enquanto andava de moto.

— Huh… Sinto muito por ter tocado no assunto — disse, desculpando-se com uma voz baixinha.

— Sem problemas. Na verdade essa é uma história feliz, sabe. O cara finalmente realizou o sonho dele.

— Entendi… Parece que existe gente assim — supôs. — Então não está conseguindo sair de casa por ter ficado triste com a morte do seu amigo?

— Gostaria de dizer que não é por causa de algo assim, mas… — Cocei minha testa. — Talvez na verdade seja. Mas realmente não tenho certeza.

— Coitadinho — choramingou ela, como se fosse uma irmã de 7 anos consolando seu irmão de 5 anos. — Então é por isso que você emagreceu tanto no último mês?

— Eu emagreci?

— Aham. Olha, não vou exagerar, mas você está totalmente diferente. Seu cabelo está longo, sua barba está grande, e você parece uma vareta com a cara fechada.

Isso parecia óbvio, claro. Não sair do apartamento indicava que não tinha comido quase nada além de aperitivos enquanto tomava cerveja. Em alguns dias nem chegava a comer algo sólido. Olhando para minhas pernas, percebi que, por quase não ir a qualquer lugar, elas estavam magras como as de um paciente acamado. E não tendo falado com ninguém por tanto tempo, não percebi que toda a minha bebedeira havia deixado minha voz um tanto quanto rouca; não parecia nada com a minha voz de costume.

— Você também está muito pálido. Como um vampiro que não sugou sangue por um mês inteiro.

— Depois vou dar uma olhada no espelho — comentei enquanto apalpava minhas pálpebras.

— Talvez você não veja ninguém nele.

— Se eu for um vampiro, sim.

— Essa é a ideia — disse, sorrindo, grata por eu não ver problemas em sua brincadeira.

— Mas, e aí, e quanto a você? Por que não sai do quarto?

A estudante de artes colocou o regador a seus pés e inclinou-se do lado direito da varanda, na minha direção.

— Vou deixar isso para depois. Por enquanto, acabei de pensar em algo realmente bom — disse enquanto revelava um sorriso agradável.

— Isso é bom — falei.

Naquela noite, como parte de sua ótima ideia, saímos do apartamento vestidos com as roupas mais chiques que pudemos encontrar. Eu estava usando uma jaqueta jeans. Ela estava com um sobretudo azul marinho e um colar, além de um tênis, e também trocou os óculos por lentes de contato e penteou bem o cabelo. Era um traje claramente inadequado para dar apenas uma volta à noite.

Antes disso, houve ocasiões em que fui forçado a sair, como para fazer compras ou ir ao banco. E sempre que era arrastado para o mundo exterior, desse jeito, meu medo pelo mundo além de minha porta piorava.

Ela concluiu que isso só acontecia por seu só sair com relutância e de forma passiva, e que foi por isso que comecei a odiar o momento de sair de casa.

— Primeiro, precisamos começar a sair mais vezes e ensinar a nós mesmos que o lado de fora é um lugar bom — disse a garota. — Todo desajuste é resultado de um ensino equivocado, portanto, o ajuste pode ser alcançado anulando e corrigindo esse ensino.

— De onde você tirou essa citação?

— Acho que foi Han Eysenck[2] que falou isso. É um pensamento bem incrível, não acha?

— Bem, uma ideia bem definida assim é melhor do que ficar escutando bobagens sobre corações partidos, contatos, ou seja lá o que for. Mas qual é o motivo para essas roupas chiques? Não é como se alguém fosse ver isso.

A estudante de artes agarrou a manga de sua peça única e a ajustou.

— Estamos muito tensos, não acha? Acho que é por isso, mas não é algo tão importante assim.

Andamos pela cidade, sem qualquer rumo, vestidos como se estivéssemos indo para uma festa.

Nos últimos tempos, o calor durante o dia ficou mais intenso, mas o vento sempre soprava à noite, fazendo com que parecesse o frio do outono. Nesse horário havia menos insetos em torno dos postes da rua, apenas com os mortos caídos lá no chão.

Contornando os cadáveres dos insetos, a garota parou sob uma luz. Uma enorme mariposa voou sobre sua cabeça.

Ela inclinou a cabeça e me fez uma pergunta:

— Eu sou bonita? — Tomar um pouco de ar fresco parecia ter a animado. Parecia até uma criança no dia de seu aniversário.

— Você é — respondi. Eu sinceramente a achava bonita. Diante de uma visão tão pitoresca, pude realmente entender aquele senso de “beleza”. Então falei que a achava bonita.

— Bom. — Ela revelou um enorme sorriso inocente.

Uma cigarra meio morta estava batendo as asas no asfalto.

Nosso destino naquela noite era uma estação de trem vazia das redondezas. A estação, escondida entre residências, conectava-se a todos os lugares como se fosse uma teia de aranha.

Sentando-me, acendi um cigarro e observei a estudante de artes andar cambaleante pelos trilhos. Havia um gato enorme no cercado pertinho dos trilhos, empoleirado ali como se estivesse cuidando de nós dois.

E foi assim que começamos nossas caminhadas noturnas. Todas quartas-feiras nos arrumávamos e saíamos.

Gradualmente, nos recuperamos ao ponto de podermos sair sozinhos enquanto o sol estivesse no céu. Sua ideia, por mais estranha que parecesse, foi surpreendentemente eficaz.

Cochilei e fui acordado por uma notificação em meu telefone. Me apressei para organizar meus pensamentos. Lembrei-me de beber com a vizinha, de nossa caminhada habitual, de voltar para casa e tomar banho. Talvez tivesse adormecido logo após tudo aquilo.

Já eram 23 horas. Peguei meu telefone e dei uma olhada. Estava recebendo a ligação de um telefone público, mas não tinha dúvidas de que era a garota que atropelei.

— Então você não rasgou a última página — falei ao atender.

O silêncio pairou por vários segundos, era a maneira da garota demonstrar seu orgulho. Ela não queria que parecesse que estava dependendo de mim.

— Você ligou para este número porque quer que eu faça alguma coisa, certo? — perguntei.

E, finalmente, falou:

— Vou te dar uma chance de marcar alguns pontos… Venha para o ponto de ônibus de ontem.

— Entendido — confirmei. — Estou indo agora mesmo. Mais alguma coisa?

— Não tenho muito tempo para explicar. Venha logo.

Peguei uma jaqueta de motociclista e minha carteira e saí sem nem mesmo trancar a porta.

Havia cerca de dez semáforos pelo caminho, mas todos ficaram verdes para mim assim que me aproximei. Cheguei ao destino muito antes do previsto.

No mesmo ponto de ônibus onde meu primeiro dia de serviço havia terminado, encontrei a garota sozinha e usando seu uniforme, enterrando o rosto em um lenço vermelho escuro e bebendo uma lata de chá com leite enquanto observava as estrelas.

Decidi também dar uma olhada para cima, e vi a lua aparecendo por entre as nuvens. A forma claramente visível da sombra da garota a fazia parecer menos com uma mulher jovem, e mais com um velhote com a pele toda enrugada que passou muito tempo sob o sol enquanto era novo.

— Desculpe fazer você esperar.

Saí do carro e dei a volta para o outro lado para abrir a porta do passageiro. Mas ela me ignorou e, em vez disso, sentou-se no banco de trás, jogando a mochila de lado e fechando a porta exasperadamente.

— Para onde devemos ir? — perguntei.

— Para onde você mora. — Ela então tirou o blazer e a gravata.

— Claro, tudo bem. Posso perguntar o motivo?

— Não é grande coisa. Ataquei o meu pai, então não posso voltar para casa.

— Vocês tiveram uma briga?

— Não, eu só resolvi machucar ele… Olha isso.

Ela enrolou a manga da blusa.

Havia um monte de pontos negros em seu braço magro. Mesmo sendo apenas marcas de queimaduras, deviam ter ao menos um ano de idade.

Com oito deles perfeitamente alinhados ao longo de seu braço, suspeitei que tivessem sido feitos de uma forma não natural.

Lembrei-me de como, após o acidente, a menina cancelou o “adiamento” do ferimento na palma da mão para se explicar, depois puxou a manga e disse: “Se você não acredita nisso, posso te dar outro exemplo.”

Este podia não ser mais o mesmo braço que eu tinha visto. Então, naquele momento, ela ainda devia estar adiando o aparecimento das queimaduras. E entre aquele momento e o atual, algo aconteceu para cancelar o feito.

— Essas são marcas que meu pai fez ao enfiar um cigarro em meu braço — explicou ela. — Também tenho algumas nas costas. Quer ver?

— Não, tudo bem — falei, abanando minha mão. — Então… Você atacou seu pai como vingança por isso e fugiu de casa?

— Sim. Amarrei os braços e as pernas dele, e o acertei com um martelo, umas cinquenta vezes.

— Um martelo? — Eu não tinha certeza se tinha ouvido direito.

— Ele está aqui comigo.

A garota tirou o martelo da bolsa. Era um pequeno, parecia um dos que se usavam para martelar pregos em trabalhos de artes na escola primária. E parecia velho; a cabeça estava enferrujada e o cabo enegrecido.

Vendo o quão perturbado eu estava com isso, ela sorriu com orgulho. Ironicamente, foi o primeiro sorriso honesto e adequado que a garota me mostrou.

Durante isso, acabou deixando cair uma das muitas bolsas que carregava consigo.

— Vingança é sempre boa. É tão aliviante. Quem será que devia ser o próximo? Já que não tenho mais nada a perder… Ah, sim. Claro, você também me ajudará, senhor assassino.

Com isso, ela se deitou no banco de trás e rapidamente adormeceu. Devia ter chegado ao limite de sua exaustão. Depois de se vingar de seu pai, sem dúvida agarrou tudo que podia e fugiu.

Diminuí a velocidade e dirigi com cuidado para não a acordar.

Provavelmente só deixou as queimaduras “acontecerem” para justificar sua vingança, percebi.

Por não virar os olhos à violência que sofria de seu pai e aceitar tanto as feridas quanto suas causas, também ganhou o direito de se vingar.

“Quem será que devia ser o próximo?”, perguntou ela. Se tinha que tomar tal decisão, deveria haver pelo menos dois outros dos quais valeria a pena se vingar, talvez mais.

Sua vida deve ter sido realmente dura, pensei.

De volta ao apartamento, abri a porta e retornei ao carro para levar a garota para o meu quarto.

Tirei seus sapatos e meias, deitei-a na cama e puxei as cobertas sobre seu corpo. Então ela, inquieta, estendeu a mão e puxou as cobertas até a boca.

Depois, ouvi cerca de duas ou três fungadas. Ela estava chorando.

Essa garota realmente se ocupa com o processo de sorrir e chorar, pensei.

O que estava deixando-a triste? Não era o curto tempo que ainda tinha sobrando? Ou tinha se arrependido de machucar seu pai? Estava lembrando dos abusos que sofreu no passado? Muitas possibilidades me vieram à mente.

Talvez nem ela soubesse os motivos para suas lágrimas. Provavelmente estava sentindo muitas emoções; sentindo-se sozinha enquanto deveria estar feliz, ou sentindo-se feliz enquanto devia estar triste.

Deitei no sofá e fiquei olhando para o teto, distraído, aguardando pelo amanhecer. O que deveria dizer quando a garota acordasse? O que deveria fazer? Pensei bastante nisso.

E assim começaram os dias de vingança.

 


Notas:

1 – É uma palavra alemã que serve para indicar o sentimento de alegria ou satisfação extrema com a desgraça alheia.

2 – Psicólogo alemão que, enquanto era vivo, era o mais citado em revistas científicas do ramo. Além disso, publicou mais de 50 livros voltados para a área da psicologia.

 


 

Tradução: Taipan

Revisão: PcWolf

 

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