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Como um Herói Realista Reconstruiu o Reino – Vol. 04 – Cap. 03 – Um Mercador de Escravos Incomum

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– 30° dia, 11° mês, 1.546° ano, Calendário Continental – Capital Real Parnam –

Com a confusão causada pela anexação da Amidônia resolvida, o povo recuperou a calma.

Estava em pleno inverno e, nesta manhã, eu estava achando mais difícil abandonar o calor da cama. Quando acordei com o som da porta sendo fechada às pressas, comecei a me mexer, minha mente ainda apenas meio desperta.

Brr… Que frio. Além disso, minha cabeça está pesada. Será que peguei alguma coisa? Preciso de mais cobertores para esta cama no escritório de assuntos governamentais. Depois vou pedir isso às criadas.

Enquanto pensava nisso, me virei e algo macio tocou minha testa.

— Ahn — disse uma voz estranhamente amorosa.

Estava acontecendo algo muito estranho…

Quando minha mente clareou, comecei a entender minha situação. Primeiro, minha cabeça estava presa. Alguém parecia estar a segurando com força. Era por isso que me parecia pesada? Bem, pelo menos não era um resfriado…

Espera, o problema não era esse! Minha testa estava pressionada contra o peito dessa pessoa. Se ficasse um pouco mais macio, significaria…

— Nossa, quê?!

Rapidamente me libertei do aperto da pessoa.

Lá, diante dos meus olhos, estava Roroa com uma expressão satisfeita em seu rosto adormecido. Ela estava babando um pouco, mas fingi não notar esse detalhe.

Huh? Hein? Essa situação… Por que Roroa está dormindo ao meu lado?!

Esse quarto… Era definitivamente o escritório de assuntos governamentais. Eu estava na minha cama, sem dúvidas. Então, por que estava a compartilhando com Roroa? Ela estava… ao menos vestindo roupas.

Na verdade, nenhum de nós estava de pijamas; estávamos ambos vestindo roupas normais.

Huh? O que diabos aconteceu na última noite? Vasculhei minhas memórias, tentando lembrar do que tinha acontecido…

— Souma? O que, diga, por favor, você está fazendo? — Ouvi uma voz fria acima de mim.

Lentamente virei a cabeça, com um rangido parecido ao de um robô sem óleo, e lá estava Liscia com aquele sorriso que emitia uma aura aterrorizante, assim como uma máscara hannya. Atrás dela estava Aisha, que por algum motivo chorava.

— Ah… bom dia, Liscia, Aisha — murmurei.

— Não venha com “bom dia” para o meu lado! — gritou Liscia, puxando as minhas cobertas.

Roroa se encolheu em posição fetal, parecendo com frio, mas não acordou.

Liscia colocou a mão no quadril e perguntou:

— Qual é o significado disso?! Aisha correu para o meu quarto aos prantos e, quando perguntei qual era o problema, ela disse: “Fui acordar Sua Majestade e o encontrei dormindo com Roroa!”

— Por que você colocaria as mãos na Roroa antes de tocar em mim ou na princesa?! Não posso aceitar isso! — gritou Aisha em meio às lágrimas.

Hm, por favor, não diga isso tão alto, implorei em silêncio. Se os trabalhadores do castelo ouvissem isso, cochichariam sobre como fui “pego em flagrante”!

— Calma, Aisha! Roroa e eu estamos vestindo roupas, certo? Tenho certeza de que nada do que vocês estão imaginando aconteceu… Eu acho.

— Por que não pode ter mais certeza?! — gritou Aisha.

— Bem, não lembro do que aconteceu antes de eu dormir — falei. — Afinal, por que estamos na mesma cama e vestidos?

— O que realmente aconteceu? — demandou Liscia. — Por que não tenta se lembrar do que fez na noite passada?

Seguindo a sugestão de Liscia, repassei os acontecimentos da noite anterior em minha mente.

Lembrei de ter feito alguns trabalhos para resolver as coisas após a anexação da Amidônia, a fim de ajustar o regime de tributação (o Principado da Amidônia tinha uma população menor que o reino e, para compensar, a carga tributária individual era maior). Convoquei Roroa, Colbert e os burocratas dos ministérios das finanças de ambos os países para reuniões que duraram até tarde da noite.

As conversas duravam desde dois dias antes, e já tínhamos virado uma noite inteira. Estávamos fazendo breves pausas à medida em que avançávamos.

No final, quando chegamos a um plano geral, era outro dia e já batiam cerca das três da manhã de hoje. Àquela altura já estava todo mundo fora de si.

Colbert e os burocratas saíram do escritório cambaleando feito zumbis, enquanto eu mergulhava na cama ainda usando minhas roupas… e provavelmente adormeci. Desde então, algum tempo passou. Roroa talvez tivesse dormido ali mesmo, em vez de voltar para seu quarto.

Balancei o ombro dela enquanto ela continuava avidamente dormindo.

— Ei, Roroa. Acorde.

— Hm… Que foi? Querido… Ainda estou com sono. — Roroa esfregou os olhos enquanto se sentava na cama.

— Não, não é “O que foi?” — demandei. — Por que você está dormindo aqui?

— Dê um tempo para esta garota — disse ela. — Fiquei completamente exausta depois de todas as reuniões de ontem. Não tinha forças para me arrastar para o meu quarto, então me juntei a você na cama, Querido. — Roroa se espreguiçou e levantou da cama com as pernas trêmulas. Ela ainda estava grogue e não conseguia ver direito. — Nada bom. Ainda estou cansada. Vou voltar a dormir no meu próprio quarto.

— Sim… — disse Liscia, com uma expressão de que lavava as mãos de toda essa situação. — Aisha, por favor, pode carregar essa garota de volta para o quarto dela?

Aisha despertou de seu torpor.

— Sim! Agora mesmo, princesa!

— Além disso, não te disse para não me chamar de “princesa”?

— E-Entendi. Pri… Lady Liscia.

Agora que Aisha tinha se tornado a segunda candidata a rainha primária e suas posições estavam próximas, Liscia começou a dizer para não se dirigir a ela como princesa, e sim para usar seu nome. Mas Aisha ainda estava entendendo errado.

Ela apoiou a grogue e cambaleante Roroa e a conduziu para fora do escritório de assuntos governamentais.

Tendo visto as duas partirem, olhei hesitantemente para Liscia.

— Hm… É assim que as coisas são, então eu poderia pedir seu perdão desta vez? — Eu, por alguma razão, parecia um homem dando desculpas depois de ser pego traindo, mas viver como um homem era isso.

— Sinceramente… — Liscia inchou um pouco as bochechas enquanto se jogava na cama. — Essas coisas só acontecem porque você tem uma cama aqui. Será que eu deveria quebrá-la?

— Por favor, não — exclamei. — Onde eu dormiria?

— Você finalmente preparou seu próprio quarto, não? Ou prefere usar a minha cama? Use uma diferente todo dia. — Liscia me direcionou um olhar pesado.

Ela queria dizer que eu deveria usar as camas dela, Aisha, Juna e Roroa, revezando em uma diferente a cada dia…?

— Acho que eu ficaria nervoso demais para dormir, então deixe-me de fora disso, por favor — falei.

— Nossa — murmurou ela. — Estou sendo perseguida por Marx para “Produzir um herdeiro, e logo!” sabia?

— Urkh… Pode esperar mais um pouco? Tenho algo em mente.

— Algo em mente? — perguntou ela.

Levantei da cama e me espreguicei.

— Finalmente estabilizei a situação política interna do país. Também tenho um pacto secreto com o Império e, embora existam alguns países próximos que me preocupam, as coisas devem estar estáveis por agora. Mas, bem, isso depende do que o Domínio do Lorde Demônio vai fazer.

— Suponho que sim…

— E também… Consegui me convencer de que deveria me tornar rei — falei.

— Eu preferiria se você dissesse que se decidiu a isso.

— Me resolvi a respeito disso… Eu acho, não? Estou preparado para enfrentar as consequências.

— Não estou vendo nenhuma diferença — disse Liscia.

— Não há nada no meu caminho. Então… — Inflei meu peito para parecer mais confiante. — Agora vou fazer o que eu quiser. Até agora, garantir meu poder era a maior prioridade, então estava evitando políticas que causariam muito rebuliço na sociedade. Se alguma política fosse exagerada, causaria uma confusão interna desnecessária e poderia ter beneficiado algum eventual adversário estrangeiro. Mas, agora, não preciso me preocupar com isso. Vou fazer mais e mais para reerguer este país.

Declarei isso com bastante força, mas Liscia continuava com uma expressão seca no rosto.

— Tudo bem, mas… o que isso tem a ver com você ainda não ter colocado a mão em mim?

Fiquei em silêncio.

Parecia que não consegui contornar  o problema. Pensei que tinha conseguido mudar de assunto…

Então deixe-me dizer, não era como se eu fosse contra fazer essas coisas com Liscia e as outras. Não, sério, eu queria ficar todo amoroso com elas. Digo, a situação atual estava me deixando com um sério caso de bolas azuis. Mas, primeiro, havia algo que eu precisava fazer. Para o bem de Liscia e das outras.

— B-Bem, você eventualmente descobrirá a resposta — falei.

— Você não está só fugindo do dever? — demandou Liscia.

Quando ela tentou olhar nos meus olhos, dei o meu melhor para desviar o olhar.

— Realmente preciso de pessoas mais capazes trabalhando para mim — falei.

Eu estava sentado à uma mesa “kotatsu” com Liscia, Aisha, Juna e Roroa, que acordou depois de voltar a dormir, e estávamos almoçando. Decidi que era um bom momento para abordar aquele assunto.

Este era o meu quarto no castelo, que fiz após Hakuya informar que “Já está na hora de você ter um quarto só seu.” A verdade é que o quarto me foi reservado há muito tempo, mas estava o usando como depósito para os Pequenos Musashibos. Como ele insistiu para que eu o usasse, fiz uma grande reforma. Para isso, usei o apoio financeiro para sustentar o estilo de vida do rei (meu salário) e fiz enormes reformas para adequá-lo ao meu gosto… e qual foi o resultado?

Os dois quartos pequenos, cada um com cerca de seis tatames (algo como 106,7 pés quadrados), eram conectados por uma porta entre eles, criando um quarto quase do tamanho de um apartamento japonês.

Um quarto tinha um carpete sobre o piso de madeira, era onde ficava meu espaço de trabalho com uma máquina de costura de pedal. Era um quarto onde eu poderia me concentrar totalmente em fazer roupas ou acessórios, exclusivamente como hobby, ou bonecos como os Pequenos Musashibos.

O cômodo que serviria como meus aposentos normais era, graças a alguns retoques agradáveis do decorador (eu), uma perfeita reprodução de um quarto ao estilo japonês. Assim que soube que havia uma cultura de tatames no Arquipélago do Dragão de Nove Cabeças, adquiri alguns desses tapetes de palha e os coloquei neste quarto.

Além disso, havia uma área no centro do ambiente que tinha sido escavada, em cima da qual coloquei uma mesa redonda com um cobertor enfiado entre o espaço por onde nossas pernas iam e o fundo da mesa. Havia outro buraco cavado dentro daquela área, e embaixo dele instalei o aquecedor que Genia desenvolveu com base em uma ideia que eu dei.

Resumindo, recriei um hori-gotatsu.

Na área escavada onde nossos pés repousavam, havia uma grade de ferro em forma de cúpula, que nos impedia de tocar no aquecedor. Era um espaço adorável, quente no inverno e arejado no verão, uma vez que tirasse o cobertor. Na verdade, era um espaço que deixava sentir a atenção do decorador (a minha) aos detalhes.

E, bem, esse era o tipo de quarto que preparei, mas todas minhas noivas gostaram muito, especialmente Liscia, e começaram a ficar por ali. O hori-gotatsu era muito popular entre elas. Afinal, estava muito frio lá fora.

Após a anexação da Amidônia, Hakuya disse: “Por favor, entenda, isso é necessário para manter sua autoridade”, e me proibiu de usar o refeitório geral, então comecei a fazer meu café da manhã e jantar (o almoço geralmente era no escritório de assuntos governamentais) nessa mesa com Liscia e as outras.

A maioria das refeições era feita pelos chefs do castelo, mas, em alguns dias, quando eu queria comer alguma coisa japonesa, eu mesmo preparava. Afinal, eu tinha arroz, molho de soja e missô para usar.

As refeições que fazia eram novidade para elas, então Liscia e as outras gostavam, mas Hakuya e Marx não ficavam felizes com isso. Não é que eles não gostassem do sabor. Era que eu estava fazendo comida simples, servindo minhas noivas, e todos nós comíamos como se fosse uma delícia, o que estava bem longe da imagem de como um rei deveria ser. Não vi por que mesmo a minha comida tinha que ser digna de um rei, mas…

Para começar, nem Liscia, nem eu, nem as outras éramos do tipo que se entregava ao luxo. Juna e eu éramos ambos ex-plebeus, Liscia tinha levado uma vida militar em que os suprimentos eram limitados e, tendo crescido na floresta, Aisha comia qualquer coisa, desde que tivesse um gosto bom. Até Roroa parecia interessada, dizendo: “Se pudéssemos fazer a comida do seu mundo ficar na moda, venderia, não acha?”

Além disso, embora a comida pudesse ter uma aparência bem simples, usava arroz, o que ainda não era tão comum, então o custo era bem alto.

A propósito, o almoço desta vez era oyakodon, sopa de missô e nukazuke.

— Irmãzona Ai, pode me passar os picles? — perguntou Roroa.

— Mmf, mm-mm-mf (Aqui, Roroa) — disse Aisha com a boca cheia de comida.

— Espera, Roroa — disse Liscia. — Tem arroz no seu rosto.

— Hm? Obrigada, Irmãzona Cia.

Roroa deixou Liscia tirar o grão de arroz que estava preso em sua boca.

Juna olhou calorosamente enquanto Aisha sujava a cara de comida.

Se pudesse cortar apenas esta cena de todos nós ao redor do kotatsu, parecíamos com uma família feliz e real.

— Lady Aisha — disse Serina. — Gostaria de outra porção de sopa de missô?

— Mmf. S-Sim, Madame Serina.

— Ma… Lady Juna — disse Carla. — Nós temos… Também há outra porção de arroz para você.

— Hee hee! Não precisa ser tão tensa e formal, Carla. — Juna soltou uma risadinha.

— V-Você é gentil demais.

Devo me corrigir; havia uma coisa estranha nisso tudo. Havia algo parecido com o tipo de serviço de mesa usado nas escolas primárias durante a hora do almoço no quarto, e, lá, as criadas Serina e Carla estavam esperando para nos servir a comida. Isso estava fora do lugar.

— E espera… Alguma de vocês estava me ouvindo? — protestei.

— Claro — disse Roroa. — Estamos ouvindo, estamos ouvindo.

— Essa é a resposta de alguém que claramente não… — murmurei.

Estou ouvindo. Você está com falta de pessoal, certo?

Quando Roroa disse isso, Liscia franziu a testa.

— Você vai reunir gente de novo? Acho que já temos um grupo bastante diverso de pessoas…

— Quanto mais gente talentosa tivermos, melhor — falei. — Mas o que estou procurando desta vez é um pouco diferente.

— O que quer dizer?

— Hm… Não é bom dizer isso, mas, se fosse classificar as pessoas em uma escala que varia entre S, A, B, C, D e E, o tipo que estou procurando agora se encaixaria na faixa entre B e C. Quero um grande número dessas pessoas.

— Sinto muito — disse Liscia. — Não tenho certeza se entendi o que você está dizendo.

Coloquei minha mão na cabeça de Roroa. Ela estava sentada ao meu lado com uma colher na boca.

— O senso econômico da Roroa, por exemplo, é tudo, menos medíocre. Ela pode manipular grandes quantias de dinheiro, encontrar fundos e obter lucros maiores. Se eu a classificasse como parte da minha equipe, ela receberia um S. Mas uma Roroa não é suficiente para governar um país, é? Ela precisa de um sistema burocrático que lhe servirá de braços e pernas. Além disso, precisa de pessoas capazes de usar matemática para trabalhar com ela. O que nos falta é gente que saiba usar a matemática.

A taxa de alfabetização neste mundo era baixa, e poderia dizer que os únicos que não eram nobres ou cavaleiros capazes de fazer aritmética eram os mercadores. Resumindo, neste mundo, aqueles que sabiam escrever e usar números seriam as pessoas do nível B ou C. Neste momento, neste país, tínhamos uma escassez dessa gente.

— Se é isso que você está procurando, que tal contratar alguns comerciantes que estão fechando as lojas porque não conseguem lucro, ou que foram reduzidos a escravos por um motivo ou outro? — sugeriu Roroa.

Mas balancei minha cabeça.

— Já tentei isso, mas não deu certo. Se alguém for minimamente talentoso, alguém da nobreza ou cavalaria já o terá levado. Bem… mas isso é minha própria culpa — falei, coçando a cabeça.

Roroa inclinou a cabeça interrogativamente.

— Como assim, culpa sua?

— Mudei a forma de funcionamento das avaliações — expliquei.

Neste país, a nobreza e as classes de cavaleiros eram, simplificando, os proprietários de terras. Oficiais militares com terras eram chamados de cavaleiros, enquanto os civis com terras eram chamados de nobres. Era por isso que não havia distinção entre condes e viscondes na nobreza, e qualquer pessoa com uma grande quantidade de terras era chamada apenas de “Lorde”.

Existiam “nobres burocratas” que viajavam para a capital e cidades regionais para trabalhar na burocracia, deixando suas terras aos cuidados dos magistrados. Também existiam “nobres regionais” que iam para seus próprios domínios para administrar as terras pessoalmente. Em relação aos que eu conhecia pessoalmente, Hakuya e Marx seriam nobres burocratas, enquanto Weist, o Lorde de Altomura, seria um nobre regional.

O equilíbrio de poder entre os dois grupos funcionava de diversas formas. Existiam nobres burocratas envolvidos com assuntos de estado, assim como Hakuya, enquanto também existiam nobres burocratas que iam servir nas cidades de poderosos nobres regionais.

Em comparação, os cavaleiros geralmente deixavam suas terras nas mãos de um magistrado enquanto serviam no exército. Isso não era absoluto. Cavaleiros aposentados, como Weist, podiam se tornar nobres, e também existiam cavaleiros que transferiam seu dever de servir nas forças armadas para seus filhos enquanto administravam suas terras.

Agora, quanto à promoção e rebaixamento desses nobres e cavaleiros (ou, dito de outra forma, sua aquisição ou perda de território), até o momento, os cavaleiros eram promovidos caso se destacassem em batalhas, e suas patentes militares eram elevadas, enquanto caso a conduta fosse ruim e tivessem violado ordens, ou se tivessem falhado em realizar determinada operação com sucesso, seriam rebaixados.

Em outras palavras, os cavaleiros nunca eram responsabilizados pelo gerenciamento de suas terras. Portanto, se elas fossem mal administradas, a culpa seria do magistrado, e se demitissem e substituíssem esses magistrados, os cavaleiros não seriam responsabilizados. Mas, bem, se a mesma coisa acontecesse várias vezes, é claro que surgiriam repercussões.

Quanto aos nobres, poderiam ser promovidos viajando para a capital ou cidades para trabalhar como nobres burocratas. Para aqueles que não tinham muito desejo de se envolver com os assuntos do estado, era normal que passassem a ser nobres regionais após suas terras serem um pouco expandidas. Isso porque ser um nobre regional era mais lucrativo. Se houvesse um nobre que não tivesse um forte impulso para o progresso pessoal, se estivesse satisfeito com sua posição, em muitos casos se tornaria um nobre regional. Entretanto, uma vez que se tornassem nobres regionais, eram responsáveis por qualquer má gestão de suas terras.

Bem, quanto a como mudei nossa política de avaliação de nobres e cavaleiros…

— Além das políticas em vigor até este ponto, coloquei bastante ênfase na capacidade de administrar as terras — falei.

Simplificando, além das métricas de avaliação que estavam em vigor, anunciei um sistema de avaliação que dava mais terras àqueles que administravam bem as que já tinham, enquanto reduzia o tamanho das propriedades ou as confiscava caso fossem mal administradas.

Enviei a unidade de operações clandestinas que se reportava diretamente a mim, os Gatos Pretos, para vigiar, e aqueles nobres ou cavaleiros que governavam bem estavam recebendo mais terras, enquanto aqueles que governavam mal estavam tendo suas terras reduzidas ou confiscadas.

Isso reprimiu lordes malignos e magistrados que poderiam ser vistos em dramas de épocas, e meu objetivo era fazer os lordes se comunicarem com seu povo e aproximá-los. Afinal, para um bom governo, era preciso saber o que o povo queria.

Agora… quanto ao que aconteceu como resultado, os nobres e cavaleiros que tinham, até então, deixado seus negócios para os magistrados, começaram a prestar atenção às suas propriedades.

Se seus magistrados fossem medianos ou capazes, não haveria problemas; mas se fossem incompetentes, isso poderia afetar o desempenho do próprio nobre.

Alguns nobres deixaram seus cargos na burocracia para voltar aos seus domínios e começaram a se concentrar completamente na administração dos mesmos. Porém, para a maioria dos cavaleiros que não tinham talento para governar e para os nobres que ainda tinham caminho a trilhar em suas posições burocráticas, correram para encontrar magistrados e pessoal capaz para servir aos seus comandos.

Quando expliquei isso, Juna levou um dedo aos lábios, parecia estar se lembrando de algo.

— Agora que você mencionou, a Avó estava dizendo que isso jogou as coisas em completo caos. Teve um tempo em que os nobres e cavaleiros vagavam pelas ruas como carniçais famintos, gemendo algo parecido com “genteeeee, genteeeee”.

— Sim… — falei. — Sinceramente, acho que foi uma decisão precipitada da minha parte.

A paixão dos nobres e cavaleiros por encontrar gente talentosa ultrapassou em muito a minha imaginação, e qualquer pessoa capaz de escrever ou fazer aritmética básica, mesmo se fosse plebeia, foi recebida como sábia e tratada como tal. Isso porque, se um nobre ou cavaleiro usasse a autoridade para recrutar essas pessoas à força, seriam punidos por isso.

Se soubessem que um escravo (embora não condenasse escravos ao trabalho por seus crimes), uma prostituta ou um favelado poderia escrever e fazer aritmética, iriam até mesmo tirá-los da escravidão e recebê-los a seu serviço. Aqueles que sabiam apenas escrever e fazer aritmética já recebiam esse tratamento, e caso houvesse alguém que fosse especialmente bom nisso, a situação poderia se tornar bem incrível.

Quero que você seja meu magistrado! Um nobre poderia dizer. Mas você não é de uma classe alta o suficiente! Já sei… ao adotá-lo como parente, posso te colocar em uma posição social mais elevada!

Graças aos nobres que pensavam assim, alguns plebeus e escravos passaram por uma mudança meteórica de vida, de forma que normalmente não seria possível. Logo após eu ter dito a Maria que ela deveria abolir a escravidão no Império lentamente, já que seria uma reforma muito grande e enfrentaria resistência, acabei causando o colapso do sistema de classes em meu próprio país?

— Imagino se posso alavancar isso para que a escravidão exista apenas em nome… — murmurei.

— Ah! Falando em escravos, lembrei de uma coisa — disse Roroa, batendo palmas. — Bem, aqui estão algumas informações que recebi através de Sebastian depois que ele abriu uma segunda filial da Corça Prateada aqui em Parnam, há um comerciante de escravos incomum na cidade.

— Um comerciante de escravos incomum? — perguntei.

Roroa riu maliciosamente.

— Acho que é o tipo de gente que você gostaria de ver trabalhando para você, Querido. Hee hee! Que tal você e eu sairmos vagando pela cidade algum dia, e então nos encontrarmos com ele?

— Murgh… Isso não seria um encontro? — reclamou Aisha, parecendo um pouco chateada. — Nada justo.

Roroa acenou com a mão.

— Pelo que tenho ouvido, todas vocês já tiveram encontros com nosso Querido. Agora estamos noivos e vamos nos casar, então também quero ter um tempinho romântico com meu Querido.

— Eu só estava lá como guarda-costas. Ele nunca me levou a um encontro! — protestou Aisha.

— Bem, você também pode vir, Irmãzona Ai — disse Roroa. — Vamos precisar de um guarda-costas mesmo.

— Nesse caso, não vejo problemas. — Tendo sido convidada, Aisha se acalmou facilmente.

Liscia e Juna disseram: “Vamos deixar a Roroa fazer isso”, então ficou decidido que ela, Aisha e eu iríamos juntos para a cidade de Parnam.

Um comerciante de escravos incomum, hein? Fiquei um pouco interessado em saber como seria.

Me chamo Ginger Camus, 17 anos. Sou do Reino de Elfrieden… Ah, acho que agora é Reino da Friedônia, hein. De qualquer forma, sou mercador de escravos na capital do Reino da Friedônia.

Sim… Sou mercador de escravos.

Não é um trabalho dos respeitáveis, hein? Afinal, são pessoas comprando e vendendo outras pessoas.

Bem, além dos escravos condenados, a maioria eram escravos econômicos que não tinham dinheiro para comer e não queriam passar fome, ou que se venderam porque precisavam de dinheiro; então, de certa forma, isso poderia ser visto como uma espécie de sistema de previdência, mas… não era um trabalho que alguém poderia fazer sem ter sangue de barata.

O meu? O meu era fino, sabe? Tipo papel fino, sabe? Eu lutava contra as dores de estômago todos os dias.

Bem, você deve estar se perguntando o que um cara como eu fazia como mercador de escravos. Isso era porque meu avô, que também foi mercador de escravos, faleceu. Meus pais já tinham morrido e meu avô me criou sozinho, e eu literalmente nunca descobri o que ele fazia, até morrer.

Quando o funeral acabou e fui vasculhar suas posses, foi aí que me deparei com a loja e os escravos que ele possuía.

Não posso fazer isso! Eu queria gritar. Mesmo deixando tudo isso para mim, não faço ideia do que fazer com isso!

Pensei em apenas vendê-los para outros mercadores de escravos, então encontrar algum outro negócio para ganhar alguma grana, mas… quando parei para olhar para os escravos sob minha posse, fiquei sem palavras.

— Erm…

Reuni todos os escravos (a mercadoria) em um só lugar. Havia cerca de vinte deles, de várias raças e sexos, desde crianças à meia-idade, alinhados diante mim. Cada um usava uma roupa fina e grosseira que consistia em um grande pedaço de pano com um buraco para passar a cabeça, e olhavam para mim com medo e ansiedade no olhar. Por que estavam tão assustados?

— Você não entende, Mestre da Loja? — Uma escrava com um olhar desafiador deu um passo à frente.

Ela talvez fosse um pouco mais velha do que eu. Era uma bela garota do povo-fera com traços masculinos, orelhas triangulares e uma cauda grossa, longa e listrada. Com as roupas finas que vestia, pude ver que também tinha um corpo bem torneado.

— Você é uma tanuki mística? — perguntei.

— Sou do povo guaxinim — disse ela, olhando para mim.

Como humano, eu não poderia dizer a diferença, mas como os tanukis místicos e os guaxinins eram parecidos, pareciam odiar quando eram confundidos com a outra raça.

— S-Sinto muito… — falei. — Você é?

— Perdão. Sandria, a escrava.

— Certo. San, então — falei. — Prazer em conhecer.

— Hein? Er, certo…

San, com os olhos arregalados, pegou a mão que ofereci. Eu não sabia por que ficou tão surpresa, mas ela parecia poder explicar seu humor para mim.

— San, por que estão todos com medo? — perguntei.

— Porque seu avô faleceu, Mestre da Loja — disse ela.

— Mesmo sendo escravos, estão tristes porque o Vovô morreu? — perguntei.

— Isso porque, em comparação com outros mercadores de escravos, seu avô tratava os escravos bem.

De acordo com San, o tratamento dado aos escravos variava de comerciante para comerciante.

Tecnicamente, como o sistema de escravos econômicos era em parte um sistema de bem-estar social para ao menos evitar que as pessoas morressem, a violência e o abuso sexual eram proibidos. (Embora alguns escravos incluíssem a opção de sexo para se venderem por mais que o dobro do preço.) Entretanto, quando se tratava de até que ponto essas regras eram respeitadas, ou se eram, dependia na maior parte do estado da ordem pública na área e da moral de seus proprietários.

Se uma escrava fosse estuprada por seu mestre, por exemplo, mesmo que apresentasse uma reclamação sobre isso, e mesmo se o nobre fosse punido, já que aquela mulher não teria bens, acabaria de volta nas mãos do comerciante de escravos esperando para ser comprada novamente. Sendo esse o caso, a mulher poderia pensar que aguentar em silêncio seria  melhor. (A menos que sua vida estivesse em perigo; esse seria um assunto totalmente diferente.)

No caso de escravos homens, eram comprados principalmente para serem usados no trabalho manual. Mesmo que trabalhassem até desabar, seria difícil provar que se tratava de um caso de abuso.

No mundo dos escravos, esse tipo de escuridão era excessivo. Os próprios mercadores de escravos também tinham muitas formas e tamanhos.

Alguns tratavam seus escravos como animais, não os alimentando com comida decente. Não permitiam que usassem mais do que coleiras e, nas noites frias, não lhes davam sequer um pedaço de pano como cobertor. Mesmo que seus escravos adoecessem, deixariam que a doença seguisse seu curso. Eles tinham contratos de exclusividade com nobres com certas tendências, e ninguém sabia o que acontecia com as mulheres que eram enviadas…

A lista continuava.

Parecia ainda haver um grande número de comerciantes de escravos com esse tipo de rumor obscuro pairando em torno deles. Parecia que o novo rei tinha ficado alarmado com a situação atual, e vários deles foram presos, mas alguns ainda estavam nas áreas rurais e nos lugares escuros da cidade.

Comparado a isso, o Vovô parecia ter tratado bem os seus escravos. Eles receberam roupas para vestir, mesmo sendo surradas, e eram alimentados adequadamente. Ele não abusava deles e, se adoecessem, cuidava deles. Também não os vendia para nenhum cliente excessivamente estranho. Parece que era um comerciante de escravos decente.

Parecia que o Vovô não queria que eu descobrisse que ele estava neste ramo de negócios, mas não estava muito longe da imagem gentil que eu tinha dele, então fiquei sinceramente aliviado.

— Mas, de tudo que ouvi até agora, vocês também não tinham motivos para gostar dele, não é? — perguntei.

— O que ele fez foi bom o suficiente para nós, escravos — disse San. — Já que, no mínimo, não tínhamos que nos preocupar com nada estranho e desagradável acontecendo conosco. Agora, porém, não podemos mais ter tanta certeza disso.

— Huh? — perguntei.

— Seu avô disse, quando era vivo, que era improvável que você assumisse esse negócio, Mestre da Loja. Que esse trabalho seria muito duro para seu neto tímido e gentil.

Ah… Então é por isso que ele nunca me contou, pensei. Ele provavelmente manteve isso em segredo porque pensou que saber disso acabaria comigo.

San continuou:

— Assim sendo, se você decidir não assumir o negócio, todos nós seremos vendidos para outros comerciantes de escravos. Não há comerciante que poderia comprar todos nós de uma vez. Acabaríamos todos separados. Existem escravos entre nós que são casados, ou irmãs, mas não haveria qualquer consideração por isso. Na verdade, não há garantia de que os comerciantes de escravos que nos receberiam seriam decentes como seu avô era.

— Isso é…

— Além disso, existem aqueles com crianças pequenas entre nós. O rei atual, Sua Majestade o Rei Souma, proibiu a posse de escravos menores de doze anos. Como tal, essas crianças não são escravas, mas se os compradores disserem que só querem os pais, essas crianças serão deixadas em um orfanato. É por isso que estamos todos tristes pela morte de seu avô.

Fazia sentido. Não ficaram tristes pela morte do Vovô em si, mas pela situação em que ficaram… Provavelmente era isso.

Eu não era um escravo. Então, não conseguia entender o sofrimento deles. Ainda assim, não ser capaz de imaginar um futuro brilhante para eles era, provavelmente, ainda mais difícil do que eu imaginava.

Enquanto eu continuava sem palavras, San me entregou algo.

Era uma chibata de equitação. Enquanto eu me perguntava o motivo para ela me dar tal coisa, San me deu as costas e de repente tirou a roupa. Então, depois de ficar apenas de calcinha (a parte de cima não tinha nada) e cobrindo a frente com as roupas que vestia, ela se ajoelhou como se estivesse pagando penitência. Suas costas nuas e cauda fofa foram expostas aos meus olhos.

— Espera, San?! O que você está fazendo?! — gritei.

— Falei acima da minha posição como escrava. Quero que você me castigue.

— Mas por quê?!

— Expressar uma opinião ao mestre da loja é algo que nenhum escravo deveria fazer — explicou San. — Mesmo se você me matar, ou me torturar, ou me vender ao pior tipo de dono por isso, não estarei em posição de reclamar. Não quero isso. Depois de me chicotear na frente de todos, imploro, por favor, me perdoe.

— Não, isso não…

— Vai ficar tudo bem — disse San. — Esse chicote é de uma marca especial. Causa uma dor intensa sem ferir o local onde bate. Você não estará reduzindo meu valor como mercadoria.

— Não é disso que estou falando! — Joguei o chicote no chão, dei a volta na frente de San e me agachei para olhá-la nos olhos. — Você é algum tipo de pervertida que se diverte apanhando, San?

— Não me considero uma… — disse ela.

— Então por que disse isso mesmo sabendo que poderia apanhar por causa disso?

Quando perguntei no tom mais calmo possível, ela baixou o rosto. Sua franja caiu para cobrir seu rosto, então não pude ver sua expressão, mas começou a soluçar enquanto falava.

— Para que, mesmo que feche esta loja… possa prestar a mínima atenção às nossas situações… Pode, no mínimo, procurar compradores que vão deixar as famílias… ficarem juntas…

— A sua família está aqui, San? — perguntei gentilmente.

San balançou a cabeça.

Ela fez isso, mesmo não tendo…

Olhei para cada um dos escravos.

Havia uma mulher apertando o filho contra o peito, olhando para mim com incerteza.

Havia duas escravas, ambas com cerca de dezessete anos, que pareciam irmãs e estavam de mãos dadas. Uma garota estava quieta, mas parecia ter uma fortaleza mental (era a mais velha?). A outra tentava agir toda durona, mas parecia abalada pela incerteza (a mais nova?). A garota quieta estava segurando a outra com força e tentando tranquilizá-la.

San havia se colocado em perigo por elas?

— Você está cuidando bem de todos, não é, San? — perguntei.

Ela não disse nada.

— Poderia colocar suas roupas de novo?

— Mas…!

— Está tudo bem — falei vigorosamente.

San relutantemente colocou as roupas de novo. Quando ela fez isso, notei algo bem torneado balançando por um segundo, mas desviei o olhar com todas as minhas forças.

Assim que San se acalmou, falei com todos os escravos.

— Entendo a situação de vocês. Dito isso, não tenho intenção de assumir este negócio. Eu jamais poderia ser um comerciante de escravos. Isso não vai dar certo.

San não disse nada.

— Porém, acho que vou manter este negócio até que todos vocês sejam vendidos. Claro, não tenho intenção de vendê-los a nenhum comprador estranho. Assumirei a responsabilidade de investigá-los com cuidado. Até onde eu puder, procurarei compradores que permitirão que as famílias fiquem juntas.

Se eu fosse rico, poderia ter fechado a loja e liberado todos eles. Mas, no meu atual estado, não tinha o poder para isso. Ainda assim, queria fazer o que pudesse. Enquanto os rostos dos escravos se enchiam de alívio após me ouvirem falar, sorri para San, que continuava atordoada.

— Isso é o melhor que posso fazer. É bom o bastante?

— Mais que o suficiente… — disse ela. — Você é bom demais para ser verdade, Mestre da Loja.

— Poderia não me chamar assim? Me chamo Ginger Camus.

— Entendido, Mestre Ginger.

Então, dei a San um aperto de mão firme.

— Ei, senhor! — disse um comerciante. — Essa sua escrava parece bem boa.

—  Quanto ela te custou? Você é um garoto rico de alguma boa família ou algo assim?

— Hm… er… Obrigado…

Enquanto polidamente ignorava as pessoas que se dirigiam a mim com suas gírias mercantis, San e eu caminhávamos por uma rua comercial da capital ao meio-dia, carregando sacolas conosco. Elas continham principalmente comida e sabão, junto com tecido novo para fazer roupas simples. Tenho certeza que poderiam descobrir mesmo sem que eu diga, mas quase tudo era para os escravos.

— Bem, conseguimos colocar nossas mãos em uma boa quantidade de tecido de qualidade — falei. — Aquela loja, A Corça Prateada, era boa. O lojista era todo elegante e, quando soube que usaríamos o material para fazer roupas novas para escravos, vendeu um lote inteiro por um preço baixo, sem parecer infeliz com isso.

— Que bom para você — disse ela.

— Ah…! Desculpa, San. Por te fazer vir junto e carregas as coisas para mim.

— Não precisa mostrar tanta preocupação por uma escrava — disse ela com indiferença. — Peça-me para fazer o que quiser.

Ela era um pouco mais alta do que eu, e pelo jeito que caminhava com as costas retas, tinha tanta dignidade que ninguém a tomaria por uma escrava. Será que recebeu uma boa educação?

— Mas, ainda assim, essas lojas, o que há com elas, tendo apenas lojistas escravos? — perguntei.

— Enquanto usarem suas coleiras, os escravos serão completamente leais — explicou San. — Também é possível colocá-los para trabalhar, então acho que isso é normal.

— Ah, entendo.

— Mais importante… por que você se dá ao trabalho de alimentar seus escravos bem e dar roupas novas para eles, mesmo pretendendo deixá-los ir, Mestre Ginger? — perguntou San.

Perguntei:

— Coisas limpas ou coisas sujas, de quais acha que as pessoas cuidarão melhor?

— Das… coisas limpas, eu acho…

— Certo. É a mesma ideia.

Parecia meio errado tratar pessoas como coisas, mas escravos sempre eram tratados como objetos. Sendo assim, eu queria fazer coisas que as pessoas tratariam bem. Eu estava bem ciente da hipocrisia disso, mas era tudo que eu podia fazer no momento.

— Escravos limpos, com a pele boa e bem vestidos parecem mais valiosos — falei. — Acho que isso vai ajudar a afastar compradores que queiram usá-los apenas como mão de obra descartável.

— Ser capaz de vender a mercadoria é o mais importante no negócio — disse San. — Não tenho certeza se você tem a abordagem correta para isso como vendedor.

— É por isso que falei que não fui feito para ser um mercador de escravos, não?

— Não foi? Acho que você pode ser um mercador surpreendentemente bom.

— Isso é exatamente o oposto do que você falou há pouco tempo, sabia?!

— Isso é só tagarelice estúpida de uma escrava. Não se importe. — San sorriu maliciosamente. Urkh, ela definitivamente estava brincando comigo. — Se eu te irritei, então use o chicote…

— Eu não vou, entendido?!

— Mas, se você fizer isso uma única vez, não pode despertar algo dentro de você?

— Não quero despertar nada! Tem certeza de que você não é uma daquelas pervertidas que se divertem apanhando, hein?

— Será que não é uma questão de quem esteja me chicoteando? — perguntou ela.

— Huh?! O que quer dizer com isso…?

— Hee hee. Foi uma piada. — San me mostrou um sorriso alegre e saiu rapidamente, deixando-me comer poeira.

Fiquei lá por um tempo, estupefato, antes de recuperar o juízo e começar a segui-la.

Isso faz questionar quem é a posse e o dono aqui…

Alguns dias depois…

— Certo, pessoal — falei. — Vamos passar para a tabuada de três. Três, começar!

— Um vezes três é três, dois vezes três é seis, três vezes três é nove… — Seguindo minhas instruções, os escravos começaram a recitar a tabuada do três.

Ao lado deles, outro grupo de escravos praticava a escrita, usando água para limpar a lousa. Papel e tinta eram caros, então era o que estávamos usando para substituir.

Queria ter essas coisas, mas… Afinal, eu realmente não tenho tanta liberdade financeira…

— O que você está fazendo desta vez? — perguntou San, parecendo exasperada. Ela tinha acabado de retornar de uma missão à qual a incumbi.

— Hm? Pensei em ensinar todo mundo a escrever e a contar — falei.

— Por quê…?

— Estava pensando um pouco. Quando se trata de ferramentas, aquelas com alguma funcionalidade adicional são mais bem cuidadas, certo? Bem, que tipo de funcionalidade adicional poderia dar aos humanos, imaginei, e a resposta à qual cheguei foi “Educação, quem sabe?”.

A triste realidade era que muitas pessoas pensavam nos escravos apenas como uma fonte de mão de obra barata, destinada a ser usada até quebrar e então descartada.

É verdade que esse era um posicionamento extremo, mas também era verdade que, para os escravos comuns, o trabalho manual pesado era praticamente o único uso. Então, que tal um escravo capaz de escrever e contar? Se um escravo pudesse ler, escrever e contar, isso não o tornaria valioso demais para ser desperdiçado com trabalho manual e ser descartável?

O fato é que aqueles com tais habilidades que caíram ao nível de se tornar escravos eram vendidos a um preço mais alto, e também eram usados para uma variedade mais ampla de serviços do que os escravos capazes de fazer apenas trabalho manual. Eles serviam como lojistas e às vezes eram contratados até mesmo como servos e secretários da nobreza.

Poderia pensar: “Bem, então devemos ensinar todos os escravos a ler e escrever”, mas isso seria ineficiente. Educar os escravos exigia tempo, o que significava que a manutenção custaria caro demais. Além disso, a maioria das pessoas que visitavam os mercadores de escravos procuravam trabalhadores braçais. Havia um número limitado de pessoas que comprariam escravos instruídos. Se houvesse muitos disponíveis, não seriam vendidos, e se o mercador de escravos fosse forçados a vendê-los pelo mesmo preço que os trabalhadores braçais, teria prejuízo. Afinal, isso era um comércio.

Ainda assim, não era algo que me preocupava no momento. Eu não tinha intenção de continuar neste ramo.

Mesmo que tivesse que gastar um pouco das economias que meu avô deixou para isso, não veria problemas, desde que pudesse fazer com que essas pessoas parassem nas mãos de compradores razoavelmente bons, tudo de acordo com o que eu pudesse administrar. Ainda que eu não tivesse lucro, trabalharia duro para vendê-los para pessoas que achasse boas e, depois de ver todos partirem para seus vários destinos, fecharia a loja. Pensei nisso como uma forma de pagar meus respeitos ao Vovô.

— Foi assim que o Vovô me educou, e aprendi o suficiente para poder ensinar o mesmo para todos — falei. — Gostaria que eu também te ensinasse, San?

— Estou tranquila quanto a isso — disse ela. — Venho de uma família de mercadores, por isso posso ler e fazer contas.

Uma família de mercadores? Então como ela acabou virando uma escrava…?

— Hm… Se importaria se eu perguntasse? — Arrisquei.

— Não é uma história muito interessante. O dono de uma loja que foi enganado por outras pessoas descobriu que precisava vender uma de suas filhas para proteger seu comércio e sua família. E isso é tudo.

— O que quer dizer com isso é tudo…?

— É uma história comum — disse San. — O tipo de infortúnio… com que pode se deparar em qualquer lugar.

Não importa quão próspero seja o país, não importa quão boa seja sua governança e ordem pública, a malícia das pessoas nunca acaba. Não existe fim para isso. Acontece que fui eu quem acabou assim, disseram-me os olhos frios de San. Era como se ela já tivesse desistido de tudo.

— Bem, essa é uma habilidade que tenho sorte de ter, então deixe eu ensinar com você — disse San.

— Por favor, faça isso…

Pode ser difícil para uma escrava, mas quero que San também tenha esperança, pensei seriamente, observando-a ensinar um jovem escravo a ler.

Meses depois, minhas vendas não estavam exatamente melhorando. Ou melhor, não vendi nada.

Ha ha ha… O que fazer com isso…?

Enquanto eu ficava sentado ao balcão segurando minha cabeça, San apareceu com um pouco de chá para mim e disse:

— Achei que tinha clientes. Por que não vendeu para eles?

Sim, era verdade, vários clientes apareceram dizendo que queriam comprar escravos. Porém, pelo que notei em minhas entrevistas com eles, nenhum deles era o tipo de gente para quem eu poderia vender.

— Se tenho confiança em algo, é na minha capacidade de ver através das pessoas — expliquei.

— Então não atendiam aos seus padrões, Mestre Ginger?

— Cada um deles olhava para os escravos apenas como ferramentas a serem usadas e depois descartadas — falei. — Não importa o quão educados possam ter se portado. Não é tão fácil esconder as partes sujas do coração.

— Isso é correto…? — perguntou San.

— Prometi a todos que encontraria compradores confiáveis. Tenho que selecioná-los com cuidado.

— Se você continuar dizendo isso, poderá acabar em apuros financeiros e, eventualmente, escravizado, sabe? — perguntou San.

— Isso seria problemático, mas… Há muito tempo, o Vovô disse o seguinte sobre os negócios: “Toda calmaria chega ao fim e as marés podem mudar rapidamente. É por isso que você precisa esperar pela sua chance, sem desistir, e quando a oportunidade aparecer, agarre-se à ela.”

Então, por enquanto, não importa o quão difícil seja, irei perseverar. Portanto, não perderei a chance que algum dia com certeza aparecerá.

Enquanto eu pensava nisso, San sorriu.

— Isso é estranho… Quando estou com você, Mestre Ginger, mesmo eu sendo uma escrava, quase me dá esperanças para o futuro.

Foi um sorriso suave. Por aquele sorriso, senti que poderia me esforçar um pouco mais.

Vai ficar tudo bem. Uma chance eventualmente aparecerá, com certeza. Eu acho… É… Tenho certeza disso!

Era isso que eu disse a mim mesmo enquanto continuava esperando. E então…

A chance apareceu de repente, não muito depois disso.

Certa manhã, quando abri a loja, assim como sempre fazia…

— Com licença! Há algum escravo aqui que saiba ler ou escrever?!

— Preciso de um com urgência! Vou comprar por um bom preço, então deixe-me ficar com ele!

— Eu também! Se você tiver alguma exigência, deixe-me ouvir!

Um enorme número de pessoas de repente se aglomerou dentro da loja. E também estavam todos relativamente bem vestidos e bem cuidados. Muitos estavam lá a mando de seus mestres, mas outros eram nobres ou cavaleiros que foram pessoalmente às compras. San e eu ficamos pasmos.

— Erm… Na verdade, todos nossos escravos sabem escrever e contar… — falei.

— Verdade mesmo?!

— Por favor! Ah, por favor! Permita-me comprar todos!

— Eu cheguei primeiro! Nosso domínio está com problemas!

— C-Calma, por favor! Exatamente o que está acontecendo aqui?! — gemi.

Pedi a San e aos outros que preparassem chá suficiente para todos, depois pedi aos clientes para que explicassem o que estava acontecendo.

Parecia que tudo começou quando nosso jovem soberano, Sua Majestade o Rei Souma, mudou sua política a respeito de como os nobres e cavaleiros deveriam ser avaliados. Suas realizações desde a abdicação do rei anterior foram exemplares. Ele derrotou os três duques que se opunham a ele, derrotou o Principado da Amidônia, que nos atacou, e depois os anexou. Nesse ponto, sua posição no poder estava segura.

Parecia que do nada o rei tinha dito: “A partir de agora, estarei adicionando a capacidade de gerenciar seu domínio à lista de fatores ao decidir promoções e rebaixamentos para a nobreza e cavaleiros, então boa sorte com isso.” (Embora eu duvide que ele tenha dito isso com tanta franqueza.)

Os que estavam em pânico eram os nobres e cavaleiros que não pensavam muito em suas próprias terras, deixando o governo das mesmas para os magistrados. Os nobres burocratas que tinham chegado para trabalhar na cidade viram a participação nos assuntos de estado como seu caminho para o futuro, enquanto os cavaleiros acreditavam que se destacar em batalhas resultaria em promoções. Era por isso que, agora que seriam responsabilizados pela administração de seus próprios domínios, começaram a procurar às pressas por magistrados talentosos e pessoas para trabalhar para eles.

As únicas coisas exigidas de um burocrata rural eram a habilidade de ler, escrever e calcular, mas poucos neste país possuíam essas habilidades. Isso exigia ensino, e aqueles que haviam sido ensinados (ou melhor, aqueles que precisavam ser ensinados) estavam concentrados no topo da estrutura social. Os comerciantes provavelmente também poderiam fazer isso, mas tinham seus próprios negócios, então não seria possível contratá-los sem pagar uma indenização equivalente aos seus lucros. Em outras palavras, havia uma oferta realmente limitada de mão de obra capacitada a se tornar burocrata nas áreas rurais.

Aqueles na parte baixa da estrutura social, mas que trabalhavam duro para estudar por conta própria porque acreditavam que isso algum dia poderia ser útil, foram os primeiros a serem chamados. Todas essas pessoas, porém, foram contratadas por nobres e cavaleiros capazes de oferecer melhores condições. Os que continuavam com problemas eram os nobres e cavaleiros de baixo escalão.

Eles queriam pessoas, mas não podiam oferecer condições boas o suficiente para atraí-las. O último fio de esperança que tinham para se agarrar eram os escravos.

Parando para pensar nisso, os escravos são de todas as esferas sociais, pensei. Os escravos capazes de escrever e contar custam mais, mas alguns foram vendidos.

Parecia que os nobres que tiveram esse pensamento estavam todos correndo em direção aos mercadores de escravos. Os que sabiam escrever e contar e que eram dos grandes mercadores foram vendidos em um instante, e agora estavam procurando pelos mercadores de pequeno e médio porte. Foi assim que chegaram à nossa loja.

— Certo… Entendo a situação — falei. — Tenho uma série de condições a considerar, por isso irei realizar algumas entrevistas.

E, assim, entrevistei cada um dos compradores com potencial, um a um.

Em vez de focar no preço de compra, eu estava preocupado em como os escravos acabariam sendo tratados. Alguns disseram: “Quero empregá-los como burocratas, então estou disposto a libertá-los da escravidão.” Essas pessoas ficaram com a preferência na seleção de escravos. Não vendi para aqueles em que pude ver claras más intenções, e decidi manter os parentes juntos, tanto quanto possível.

Para a mãe com um bebê…

— Vou libertá-la da escravidão! A criança também pode vir! Então, por favor, eu imploro, faça-a ir para o meu domínio!

Foi o que uma cavaleira me implorou, praticamente chorando, então deixei ela fazer a compra… Ela parecia ter se tornado uma cavaleira porque admirava a corajosa Princesa Liscia, mas suas habilidades eram completamente tendenciosas para o lado marcial das coisas, e ela não fazia ideia de como administrar seu domínio. Era por isso que estava com tanta pressa e tão desesperada para encontrar uma boa ajuda. Parecia ser boa gente, e achei que ficaria tudo bem.

Os escravos continuaram sendo, assim, vendidos um após o outro, mas… o que realmente me surpreendeu foram aquelas duas irmãs escravas.

Parecia que um jovem nobre ficou tão apaixonado por elas que não apenas as libertaria, como também queria tomá-las como suas esposas. Além do mais, este nobre parecia ser de uma família bastante grande.

— Você não estava aqui para procurar potenciais burocratas e magistrados? — perguntei.

— É claro que essa era a minha intenção, mas fiquei encantado com a beleza e intelecto delas — disse o nobre. — A minha casa atualmente se encontra em uma situação na qual é melhor não formarmos laços de sangue com outras casas. Tenho certeza de que Sua Majestade ficaria mais segura se eu tomasse uma esposa de nascimento comum. Além disso, quando penso no posto que me espera, não posso dizer que vejo as filhas de outras casas querendo casar comigo.

O nome desse nobre era Piltory Sarraceno. Ele parecia ser o jovem chefe de uma linhagem bastante importante deste país, a Casa dos Sarracenos. Era apaixonado e parecia ser o jovem afável que indicava ser.

Por que um homem de sua posição quer escravos? Pensei comigo mesmo. Sua situação e posto provavelmente tinham algo a ver com isso.

— Hm, não posso permitir que você as leve a qualquer lugar muito perigoso… — falei.

— Garanto, apenas tenho que deixar o país por um curto período de tempo — disse ele. — Se elas forem minhas esposas, juro que as protegerei com minha própria vida. Deixe-me prometer, aqui e agora, que elas jamais morrerão antes de mim!

— U-Uh… Por enquanto, vamos ouvir o que as duas têm a dizer sobre isso.

Fui dominado por sua paixão e permiti que Sir Piltory se encontrasse com as irmãs. Acontece que elas também gostaram bastante do jovem. Ele era bonito, afável e rico, o que o tornava um partidão, mas parecia que o argumento decisivo foi que as duas seriam capazes de ficar juntas. Elas estavam um pouco preocupadas com o posto de Sir Piltory ser em um país estrangeiro, o Império Gran Caos, mas decidiram ir com ele.

Bem, posso dizer que ele definitivamente é um cara bom, então, se as duas concordarem, acho que está tudo bem, pensei.

 

Depois disso, embora eu impusesse sérias condições a respeito do tratamento dos escravos, os compradores apareciam todos os dias e, em pouco tempo, a única que continuava comigo era San.

A razão dela ter sido deixada por último foi porque estava me ajudando. Lidar com toda aquela gente sozinho era demais para mim, e San me serviu de muita ajuda.

Claro, com sua beleza e corpo bem torneado, muitos compradores quiseram levá-la em condições nada inferiores às que as irmãs Anzu e Shiho receberam. Entretanto, a própria San disse: “Vou ficar para te ajudar até que todos os outros tenham sido comprados, Mestre Ginger.” Então cedi à sua amável generosidade.

Estávamos na loja antes de abrir. Enquanto eu me sentava ao balcão, olhei para San, que estava ao meu lado me oferecendo chá.

— San, você…

— Pois não, Mestre Ginger? — perguntou ela.

— Hm… Bom… Não é nada…

— Hm?

Ela havia trabalhado muito pelos escravos, e por mim. Não era como se eu não tivesse sentido algo quando a vi fazendo isso.

Felizmente, foram todos comprados e, graças aos nobres, acabei com alguma reserva financeira. Se eu libertasse San da escravidão, poderíamos começar um novo negócio juntos. Comecei a pensar nas possibilidades.

Mas… Tenho certeza de que aparecerá alguém melhor para a San, pensei. Não há garantia de que meu novo negócio terá sucesso, e San talvez também fique mais feliz assim.

Enquanto eu pensava nisso, a porta que eu tinha certeza de que possuía uma placa de “Fechado” foi aberta. Quando olhei para cima, imaginando o que poderia ser, me deparei com um jovem.

— Tenho um pedido — disse ele. — Posso pedir que venda essa escrava para mim?

Ele estava vestido como um viajante de outro país. Usava um chapéu de palha cônico baixo sobre a testa, assim como uma capa de viagem. Sua vestimenta… Será que era do Arquipélago do Dragão de Nove Cabeças?

— Hm, ainda não estamos abertos para negócios… — falei.

— Peço desculpas — disse o jovem. — Fiquei encantado quando vi essa garota-guaxinim e simplesmente não pude me conter. Existe alguma forma de me ceder essa escrava? Claro, pretendo pagar bem mais do que ela vale. Depois de comprá-la, também a libertarei.

— Exatamente quanto você pagaria? — perguntou San.

— San?! — exclamei.

Embora eu ainda estivesse surpreso por ela estar tentando avançar com as coisas por conta própria, ela sorriu para mim.

— Você fez bem com todos os outros escravos, Mestre Ginger. Eu fiquei sozinha. Assim sendo, como último serviço, irei me vender por um preço elevado e te conseguirei algum dinheiro a mais. Por favor, use ele para iniciar seu novo negócio.

— O que você está falando?!

San ficou o tempo todo pensando nisso?

O jovem estrangeiro colocou um pequeno saco de moedas sobre a mesa.

— Nesta bolsa estão dez moedas de ouro grande e cinquenta moedas de ouro. Esse preço é aceitável?

Dez moedas de ouro grande e cinquenta de ouro eram… 1.000.000?! Um escravo costumava custar entre 10.000 e 20.000. Ele poderia mesmo gastar tudo isso?!

Este jovem… há algo estranho nele…

Ele estava agindo como os homens ricos costumavam agir, usando o poder de seu dinheiro para conseguir o que queria, mas eu não tive nenhuma sensação desagradável a respeito do jovem na minha frente. Ao contrário de Sir Piltory, que levou as duas irmãs, não parecia estar apaixonado por San. De qualquer forma… Senti como se sua atenção estivesse voltada para mim. Como se estivesse observando para ver o que eu faria após me apresentar uma grande quantia de dinheiro…

Enquanto eu observava com cautela, San curvou a cabeça para o jovem.

— É o bastante. Por favor, me leve.

— Já te disse, não decida isso sozinha! — Fiquei de pé e me coloquei entre eles, pegando o saco de moedas e empurrando de volta para o homem. — Sinto muitíssimo, mas ela não está à venda. Quando eu começar meu novo negócio, quero que ela trabalhe para mim.

— Mestre Ginger…

San arregalou os olhos de surpresa. Isso era… meu egoísmo.

— Sinto muito, San — falei. — Ser comprada por essa pessoa pode ser melhor para você. Ele claramente tem consideráveis fundos e não posso garantir que meu negócio fará sucesso.

Mas eu não suportava isso. Quando San estava… prestes a ser tomada de mim, finalmente percebi. Senti, com todas as minhas forças, que não queria perdê-la.

— Mas, por meu próprio egoísmo, não quero te deixar ir — falei.

— Mestre Ginger… Eu agi com presunção… — San chorou ao dizer isso. Então se aproximou de mim e baixou a cabeça. — Por favor… Deixe-me ficar ao seu lado, Mestre Ginger…

— Sim. Claro que deixo. — A abracei gentilmente.

Depois de ficar assim por um bom tempo, lembrei que estávamos ignorando o jovem cliente estrangeiro. Quando olhei para ele, o rapaz estava com um sorriso estranho e forçado no rosto.

Soltei San e fiz uma reverência a ele.

— S-Sinto muito!

— Não, uh… Eu também estava errado — disse ele. — Só queria testar vocês, mas não esperava que os dois de repente começassem a confessar o amor de um pelo outro… Uh, parabéns.

— M-Muito… obrigado — gaguejei.

Q-Que constrangedor. Só de lembrar de toda aquela sequência de eventos fez meu rosto parecer que estava pegando fogo.

Espera, hein…? Me testando? Esse cara acabou de dizer que estava me testando?

Saindo de trás do jovem, uma garota em um robe com capuz que usava o cabelo em maria-chiquinha entrou na loja. Essa garota apareceu ao lado do jovem com um enorme sorriso no rosto.

— Viu? Ele é um comerciante de escravos interessante, assim como Sebastian disse, hein?

— Você pode dizer isso — disse o jovem. — Duvido que haja outro como ele em qualquer lugar deste mundo. Acho que, como diz o ditado, a luz é sempre mais escura sob o poste. Quem diria que havia uma pessoa talentosa como essa escondida na capital real. É por isso que nunca me canso de caçar gente.

O jovem então tirou o chapéu. Aquele rosto… Eu já tinha visto na Transmissão de Voz da Joia!

— V-Vossa Majestade?! — guinchei.

Lá estava Sua Majestade, Souma Kazuya.

Além disso, a garota de pé ao lado dele era a Princesa Roroa do antigo Principado da Amidônia, cujo noivado com o Rei Souma foi anunciado durante a última Transmissão de Voz da Joia. San e eu nos apressamos para nos curvar diante deles, mas Sua Majestade, interrompendo, disse:

— Ah, estou aqui em segredo, então nada disso.

— Hm… Senhor… O que está fazendo aqui? — perguntei, minha cabeça ainda girando devido à confusão.

Souma sorriu.

— Ouvi boas coisas sobre você. Coisas como você ter ensinado os escravos a escrever e calcular, e providenciar que fossem comprados por quem os trataria bem. A partir de agora, os mercadores de escravos da capital começarão a te imitar e educar seus escravos. Parece que o tratamento recebido por eles também melhorou.

— E-Entendo…

— Pelo que parece, você não sabe quão incrível é a sua realização — continuou ele. — Bem, talvez tenha conseguido fazer isso precisamente por ser tão humilde.

O Rei Souma acenou para si mesmo com a cabeça, parecendo satisfeito com a explicação.

— Ginger. Você tentou melhorar o tratamento daqueles que estão em posições sociais mais baixas, dando-lhes empregos. Como resultado, aqueles escravos não são mais escravos. Isso é algo que as pessoas de cima, como a Madame Juna e eu, não poderíamos ter feito com tanta facilidade, mesmo se quiséssemos, sabe? Você, porém, aqui, conseguiu.

— Não… Eu só estava… Estava desesperado para proteger aqueles na minha frente, mesmo que isso fosse tudo que pudesse fazer…

— Tenho procurado pessoas que possam fazer coisas assim. — Sua Majestade pousou as mãos no balcão. — Pretendo estatizar o comércio de escravos neste país. Os mercadores de escravos se tornarão servidores públicos, e terão que passar por testes apropriados. Afinal, isso os tornará mais fácil de gerenciar. Além disso, para garantir que os escravos não serão usados apenas para trabalho manual até serem descartados, também estabeleceremos instalações para treiná-los para o trabalho. Ao mesmo tempo, também pretendo criar um serviço intermediário para ajudar as pessoas a encontrar empregos, para que assim não sejam forçadas a recorrer à escravidão.

— Isso é…

— Sim — respondeu ele. — É exatamente igual ao que vocês têm feito. É isso que o país vai fazer.

Isso é incrível! Fazer isso com certeza salvará gente como a San! Pensei.

Enquanto eu pensava nisso, Souma estendeu a mão para mim.

— E quero contratá-lo como o primeiro chefe do centro de treinamento profissional.

— E-Eu?! — guinchei.

— Você teve a ideia e a implementou sozinho — disse ele. — Acho que você é a melhor pessoa para o trabalho. Pode pegar o dinheiro que te mostrei antes para usar nos preparativos. Por que não usa esse dinheiro para libertá-la e começam a trabalhar nisso juntos?

Olhei para San.

Ela acenou com a cabeça para mim, sorrindo, então disse as seguintes palavras:

— “Toda calmaria chega ao fim e as marés podem mudar rapidamente.”

Sim… Isso mesmo, San, Vovô. É essa oportunidade.

Balancei a cabeça em resposta para San, então peguei a mão que Souma me ofereceu.

— Farei isso! Por favor, deixe-me fazer isso!

— Obrigado. Fico ansioso para ver suas habilidades em ação.

Trocamos um aperto de mão firme. O contrato foi selado.

Vovô, agora vou servir ao rei. Não precisa mais se preocupar comigo, viu?

Enquanto fechava os olhos e relatava isso ao meu avô, que com certeza tinha ido para o céu, Lady Roroa disse, enrolando-se no braço de Souma:

— Parece que você cuidou de tudo. Bem, vamos deixar o trabalho de hoje por isso mesmo. Por agora, acho que está na hora de termos nosso encontro, não é? Certo, Irmãzona Ai?

Quando Lady Roroa gritou em direção à porta, uma forte e bela elfa negra entrou. Não era essa pessoa a segunda candidata a rainha do Rei Souma, Lady Aisha?! Lembro de ter visto ela apresentando o programa de música ao lado do Rei Souma!

Lady Aisha parecia um pouco envergonhada, mas se envolveu no braço oposto a Lady Roroa.

— O-Ora, sim. Devíamos fazer isso.

— Hm, vocês duas? Vocês não podem fazer isso em público… — disse o rei.

— Não!

— Ah, certo…

Quando as duas gritaram ao mesmo tempo, Souma deu de ombros, resignado.

À primeira vista, parecia que ele ficaria com uma linda flor em cada mão, mas estava claramente se sentindo ansioso. Ele podia ser o rei capaz que destruiu o Principado da Amidônia, mas era fraco quando se tratava de mulheres que seriam as pessoas importantes em sua vida.

— Talvez eu também deva tomar cuidado… — murmurei.

— Você disse algo, Mestre Ginger? — Talvez imitando aquelas duas, San me abraçou com um sorriso.

Aquele sorriso me fez sentir realizado, e não havia nada que eu pudesse dizer.

Parecia que não ser páreo para a mulher que se ama era algo que afetava tanto o rei quanto os plebeus.

 


 

Tradução: Taipan

 

Revisão: Sonny Nascimento (Gifara)

 

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Vol. 04 - Cap. 03