— Liscia, guarde esses documentos para mim — disse Souma.
— Beleza… Guardo — respondi.
Ultimamente, Souma vinha agindo de forma estranha.
Ao pegar a pilha de documentos, pensei em uma coisa.
Recentemente, ele vinha trabalhando na papelada com ainda mais zelo e entusiasmo do que antes. Era como se tivéssemos retornado aos dias logo após meu pai abdicar do trono. Ele não deveria estar tão ocupado agora quanto estava naquela época, mas me parecia que estava procurando mais trabalho do que deveria.
E, no entanto, quando de repente se viu com tempo livre, ele não fez nada em particular, apenas olhou vagamente pela janela. Antes, quando tinha tempo livre, ele teria vindo ao meu quarto e trabalhava em bonecos, ou em roupas fofas para Tomoe, mas nem isso ele estava fazendo nos últimos tempos.
Observei Souma processando documentos em silêncio.
A mudança foi sutil e eu tinha certeza de que quase ninguém no castelo teria notado.
Comecei a falar.
— Hmm…? Aconteceu alguma coisa? — Tendo notado meus olhos nele, Souma ergueu os dele.
Eu disse “Não é nada.” Com apenas essas palavras, me virei e saí do escritório de relações governamentais.
— Ah! Ei, Liscia.
Eu podia ouvir a voz de Souma atrás de mim, mas não consegui me obrigar a virar. Ou melhor, não suportava olhar para Souma como ele estava.
Naquela noite, Juna Doma veio ao meu quarto.
— Então, princesa, o comportamento de Sua Majestade está estranho… era sobre isso que você queria falar, não é? — perguntou ela, inclinando a cabeça para o lado de forma questionadora.
Eu a chamei enquanto ela se preparava para o programa de Transmissão de Voz da Joia, e pedi que viesse para o meu quarto quando a transmissão terminasse. Fiquei grata porque, quando disse a Juna que havia algo estranho no modo como Souma vinha agindo, ela veio, apesar de já ser tarde.
— Sente-se, Juna. — Sentei-me na cama, gesticulando para que Juna se sentasse ao meu lado.
— Com licença — disse Juna, sentando-se ao meu lado.
Eu comecei a falar:
— Não sei como dizer… Ele parece distraído. Às vezes parece que está mais absorto em seu trabalho do que antes, mas a próxima coisa que eu noto é que sua cabeça está nas nuvens e ele está olhando fixamente lá para fora.
— Entendo… Acho que posso entender, mesmo que só um pouco. — Talvez Juna tivesse alguma ideia do que estava acontecendo, porque ela balançou a cabeça com um olhar misterioso no rosto. — Também percebi isso. Quando tive uma reunião com Sua Majestade sobre nosso programa de transmissão, sua mente parecia estar em outro lugar. Porém, eu não consigo te dizer há quanto tempo ele está assim.
— Acho que foi desde que voltamos da Floresta Protegida por Deus — falei.
Fazia apenas duas semanas. Um deslizamento de terra atingiu a casa dos elfos negros, a Floresta Protegida por Deus, que também era a pátria da guarda-costas de Souma, Aisha Udgard. Souma liderou a unidade em que estava na época para realizar resgate.
Quando chegou a notícia do desastre, pediram-me que voltasse à capital para chamar reforços, por isso não participei pessoalmente da operação de resgate. Souma, no entanto, esteve lá com Halbert, Kaede e os outros soldados do Exército Proibido, realizando operações de resgate naquela paisagem infernal de uma zona de desastre.
— Sinto que foi esse o momento em que Souma começou a agir estranhamente. — Talvez tenha sido depois daquele esforço de socorro, afinal…
— Mas ouvi dizer que Sua Majestade foi muito bem enquanto esteve lá — disse Juna.
— Sim — concordei. — Também acho que ele fez um bom trabalho por lá.
Ouvi dizer que ele usou a sua habilidade, Poltergeists Vivos, para controlar ratos de madeira e os fez procurar sob a terra e escombros, ajudando a encontrar muitas pessoas que foram enterradas vivas. Contudo…
— Mas não é assim que Souma se sente a respeito. Talvez seja porque ele viu tantos corpos, ele pensa: “Eu não poderia ter lidado melhor com as coisas?”
— Eu não acho que seja ruim, por si só, ele pensar dessa forma, porém… — Juna tinha uma expressão complicada no rosto.
Era importante refletir sobre as coisas. Mas, a reflexão excessiva pode levar ao ódio de si mesmo, e isso seria contraproducente.
— É exatamente por isso que quero que você o encoraje para mim. — Peguei a mão de Juna, colocando a minha sobre a dela.
Juna arregalou os olhos.
— V-você quer… que eu faça isso?
— Você é a única pessoa a quem posso pedir para fazer algo assim. Aisha ainda está na Floresta Protegida por Deus e Tomoe ainda é pequena. Mesmo assim, se eu fosse perguntar a mamãe ou Serina, elas ainda não seriam próximas o suficiente dele.
— Mas, se for esse o caso, você não seria uma escolha ainda melhor para fazer isso, princesa? — perguntou ela. — Vocês dois estão noivos, e posso ver que você está preocupada com ele.
— Eu… não posso ser a única — falei, baixando meus olhos. — Sou mais jovem do que Souma, então ele provavelmente pensa: “Como homem, não quero mostrar a ela as minhas fraquezas.” Quando ele está na minha frente, Souma coloca uma fachada de forte.
— Eu também tenho a mesma idade de Sua Majestade, você sabe né…?
— Você pode ter a mesma idade, mas seu jeito de agir é mais maduro — falei. — Acho que você faria um bom trabalho em fazer um garoto que está tentando mostrar-se forte ceder.
Quando me sentei direito, Juna baixou a cabeça.
— É por isso, Juna — terminei. — É por isso que estou pedindo que você cuide de Souma para mim.
— Princesa… eu entendo. Posso não ajudar muito, mas permita-me fazer tudo o que puder — disse Juna, levando a mão ao peito e acenando com a cabeça.
Depois de deixar os aposentos de Liscia, Juna dirigiu-se ao gabinete de assuntos governamentais, que também funcionava como quarto de Souma. As coisas eram agitadas durante o dia, com todos os burocratas indo e vindo, mas tarde da noite, tudo ficava calmo o suficiente para fazer a memória de toda aquela agitação diurna parecer uma mentira.
Dois guardas que estavam lá para proteger Souma estavam de cada lado da porta.
Certo, Aisha não está aqui, pensou Juna. Isso era de se esperar, considerando…
Aisha não ficava ao lado de Souma 24/7, mas ela estava com ele tantas vezes que parecia anormal não vê-la ali, protegendo-o.
Juna caminhou até a porta, dando um leve aceno de cabeça para os guardas. Talvez Liscia já tivesse falado com eles, pois não fizeram nenhuma tentativa de impedir sua entrada.
É um pouco tarde para tocar no assunto, mas é uma jogada bastante ousada para a princesa enviar uma dama aos aposentos de seu prometido tarde da noite…
Depois de deixar um homem e uma mulher sozinhos à noite, o que ela pretendia fazer se “algo” acontecesse? Ela acreditava que nada aconteceria? Ou será que, mesmo que “algo” acontecesse, estava disposta a aceitar, desde que isso animasse Souma?
De alguma forma, tenho a sensação de que é a última opção…
Juna deixou um suspiro de admiração escapar. Ultimamente, quando ela olhava para Liscia, havia momentos em que podia ver a dignidade de uma rainha nela. Quando seu súbito noivado com Souma foi decidido pela primeira vez, houve um certo constrangimento entre os dois, mas agora ela parecia ter aceitado a realidade da situação.
Ela é mesmo uma pessoa magnífica.
A cada dia que passava com Souma, Liscia ficava um pouco mais atraente como mulher. Algum dia ela seria uma rainha esplêndida, assim como uma boa esposa e uma mãe sábia. Juna não pôde deixar de respeitá-la como mulher.
A princesa me pediu isso, pessoalmente. Também devo cumprir com o meu dever.
Reafirmando um pouco mais a sua decisão, ela gentilmente bateu à porta do escritório de assuntos governamentais e falou:
— Majestade, é a Juna Doma. Você ainda está acordado?
Ela manteve a voz baixa o suficiente para que, se ele já estivesse dormindo, não o incomodasse.
— Juna? Entre — ela ouviu Souma dizer de dentro da sala.
Quando Juna abriu a porta com um “perdão” e entrou, encontrou Souma olhando alguns papéis à luz de velas. Ele colocou o documento sobre a mesa, voltando um sorriso um tanto cansado para ela.
— O que foi, tão tarde da noite? Você está dormindo no castelo?
— Ah… sim, estou — disse Juna. — Foi decidido que esta noite ficarei no quarto da princesa.
— Uma festa só para garotas? Isso parece divertido.
Quando ele deu a ela uma resposta franca e descuidada, embora Juna pudesse não estar mentindo, ela ainda se sentiu culpada.
— Não… De qualquer forma, o que está fazendo, senhor? Ouvi dizer que você havia terminado seu trabalho governamental do dia.
— Ah, me preparei para ir para a cama… Mas não conseguia dormir, então comecei a olhar os papéis que eu iria revisar amanhã. Achei que isso talvez me ajudaria a ficar com um pouco mais de sono — disse Souma, olhando para a pilha de papéis em sua mesa. Juna percebeu o cansaço em sua expressão.
— Pode ser que… Ultimamente você não está dormindo? — perguntou Juna.
Souma coçou a cabeça um pouco sem jeito.
— Meu corpo está cansado, mas minha mente não me deixa dormir, sabe. Mas quando fecho os olhos e tento dormir, acabo pensando em todo tipo de coisa. Sobre tudo o que fiz, sobre tudo o que ainda há para fazer, sobre se as decisões que tomei foram certas, sobre se as decisões que vou tomar estão certas… Tudo gira dentro da minha cabeça, e eu simplesmente não consigo dormir. — Souma soltou uma risada fraca.
Juna lembrou que desde que foi convocado a este mundo, ele se viu obrigado a carregar muitos fardos pesados: colocar o país de pé, resolver a crise alimentar e dar apoio à área de desastre. Qualquer um desses assuntos seria pesado demais para Souma, que até recentemente era apenas um estudante. E agora, desta vez, precisava encontrar uma solução para o atrito entre ele e os três duques, junto com o problema do movimento do Principado da Amidônia pelas sombras.
Toda aquela pressão deve tê-lo mantido acordado à noite. Quando Juna percebeu…
— Ah! … Perdoe-me, um momento. — Juna pegou a mão de Souma e o fez se levantar.
— Huh? Espere, o quê? — ele tropeçou.
Sem se importar com o aturdido Souma, Juna puxou-o pela mão, puxando-o até a cama simples montada em um canto do quarto, logo depois empurrando-o para baixo. Enquanto Souma jazia ali, de olhos arregalados, deitado na cama, Juna falou com ele, bem baixinho.
— Por favor, durma.
— Huh? J-Juna?
— Por favor, apenas durma. — Juna, que sempre tinha um sorriso caloroso, tinha uma expressão incomum no rosto. Era como se ela pudesse usar essa para repreender um irmãozinho travesso, mas ao mesmo tempo cheia de preocupação com a pessoa com quem estava falando. — Eu sei que as coisas estão difíceis, mas, por favor, cuide-se. A princesa Liscia também está preocupada.
— Liscia está? — perguntou ele.
— Sim. Ela viu através da sua fachada, senhor. Ela sabia que algo estava errado e me enviou aqui. Ela me pediu para fazer o meu melhor para satisfazê-lo.
— Bem, droga… — Souma olhou para o teto com um sorriso irônico no rosto. — Achei… que estava trabalhando muito e dando o meu melhor, sabe…
— Você está trabalhando duro, senhor. Mas você trabalha muito. — Juna sentou-se na beira da cama, apoiando a mão na testa de Souma. Ele podia sentir a mão fria dela roubando o calor de sua testa. Enquanto desfrutava daquela sensação agradável, Souma fechou os olhos.
Enquanto observava Souma, Juna começou a cantar baixinho:
Vá dormir esta noite. Durma até amanhã.
Quando você acordar, ande.
Quando dormir,
Quanto mais andar, mais mãos haverá para apoiá-lo.
Não era uma música do mundo de Souma, mas uma canção de ninar deste. Uma canção que as mães cantavam para as crianças que aprenderam a andar. Uma música que rezava para que andassem muito, dormissem muito e crescessem saudáveis. Porém, a frase “Quanto mais andar, mais mãos haverá para apoiá-lo” tocou o coração de Souma, provocando suas lágrimas.
Souma colocou o braço sobre os olhos, escondendo-os.
— Desculpe… Por deixar você me ver assim.
Juna sorriu.
— Está tudo bem para você reclamar agora. Porque eu também estou do seu lado.
Ao dizer isso, ela acariciou a cabeça de Souma com suavidade.
— Eu posso entender por que você não quer ficar mal na frente da princesa — disse ela, deixando sua voz suave acariciar os ouvidos de Souma. — É por causa desses sentimentos que você consegue trabalhar duro e tentar ser forte. No entanto, quando você ficar cansado disso, me chame. Nas noites em que não consegue dormir, deixe-me cantar para você.
Não muito depois, Juna ouviu sua respiração superficial enquanto ele adormecia. Seu corpo e mente estavam mais do que exaustos o suficiente para isso. Souma devia ter adormecido no momento em que seu coração se acalmou.
Juna se levantou da cama, verificou se Souma estava dormindo e cobriu-o com um cobertor. Em seguida, se dirigiu para a porta para sair em silêncio, estendeu a mão para a maçaneta e… de repente, parou. Ela deu meia-volta de volta para a cama e, puxando o cabelo que caía sobre a orelha, levou o rosto ao ouvido de Souma e sussurrou bem baixinho:
Está tudo bem. Eu estou do seu lado. Se a princesa revelar seus pontos fortes, irei esconder suas fraquezas.
Tradução: Rlc
Revisão: PcWolf
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