Dark?

Como um Herói Realista Reconstruiu o Reino – Vol. 01 – Cap. 04.2 – Um Dia de Folga em Parnam

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Me sentei com os joelhos dobrados, apoiando a cabeça de Souma em minhas coxas.

Quando alguém pousa a cabeça no seu colo, o faz com o corpo deitado horizontalmente ou verticalmente, partindo da sua perspectiva. Essa era a variedade vertical.

Quando olhei para ele, meu rosto estava refletido de cabeça para baixo nos seus olhos.

Souma estava deitado com a cabeça entre minhas duas coxas, o que fez um pouco de cócegas.

— I-isso é… meio constrangedor, sabe. — O rosto dele estava em um tom bem vermelho.

Eu tinha certeza de que o meu também estava…

— Para quem você acha que isso é mais constrangedor? — perguntei. —  Para a pessoa que dá o travesseiro de colo ou a pessoa que o usa?

— Eu não sei… Talvez seja “para a pessoa que vê”, não acha? — disse ele.

— Ha ha ha! Você pode estar certo.

Se Aisha não estivesse dormindo, que expressão teria feito?

Quando ela nos visse parecendo um casal de noivos, será que seu rosto ficaria vermelho? Ou teria dito algo como: “Princesa, não vou permitir que faça isso! Se alguém vai ser o travesseiro, serei eu!” ou algo do tipo?

Quando eu via o carinho que aquela garota demonstrava por Souma, às vezes sentia que havia algo além de lealdade ali…

Às vezes eu suspeitava que entre as duas opções, ela iria com a segunda.

— Você acha que parecemos estar noivos…? — perguntei.

— Bem, só em nome — disse ele.

— Só em nome…

Sempre que esse assunto era abordado, Souma dizia às pessoas que nosso noivado era apenas temporário e que estava só mantendo a coroa por algum tempo. Uma vez que o reino estivesse razoavelmente estável, planejava abdicar ao trono em meu benefício. Eu sentia que era essa a razão pela qual ele sempre me explicava as reformas que estava fazendo com tanto cuidado. Acho que consegui conhecer Souma o suficiente para saber que tipo de pessoa ele era e quais eram as suas intenções.

Ele não desejava fama ou riqueza excessiva. Só queria viver em paz e com sossego. Para Souma, ser um “rei” preso às “obrigações da nobreza” era o exato oposto de seu objetivo de vida. Embora fosse meu pai quem tivesse tomado essa decisão, eu me sentia péssima ao lhe empurrar esse fardo.

Mas, bem agora, este reino estava mudando com Souma no seu centro…

Este país, que fora considerado pelas nações vizinhas como um reino velho e decadente incapaz de mudar, estava passando por mudanças. Era graças a Souma que fomos capazes de lidar com o agravamento da crise alimentar. Quanto a Hakuya, Poncho e os outros, só se ofereceram para servir por causa de Souma. Mesmo se o trono fosse abdicado ao meu favor, eu seria capaz de manter todos por perto?

Mas, além disso, mais do que tudo, eu queria que Souma ficasse no reino. E então…

— Souma… Te incomoda se eu for a sua noiva? — Essas palavras saíram por meus lábios com naturalidade.

Ele arregalou os olhos e virou o rosto brilhando de tão vermelho para o lado.

— Se você coloca as coisas assim, não é justo…

— A-ah, é? — gaguejei.

— Então você está de acordo com isso, Liscia? Comigo sendo o seu noivo?

— Não me importo. — Fiquei um pouco surpresa por ser capaz de dizer isso com tanta clareza. Porém, depois disso, senti que estava ficando um pouco envergonhada. — Sabe, Souma, acho que você é mais capacitado para governar este país do que eu.

— Mesmo que eu seja adequado para isso… vai mesmo ficar noiva de alguém que não ama?

— E isso não faz parte da vida da realeza? — perguntei.

— Eu não sou da realeza. Além disso… prefiro casar por amor.

— Então… Souma, você me odeia? Pode dizer, com certeza, que nunca vai se apaixonar por mim? — perguntei.

— Urgh… Eu falei, quando você diz coisas assim, não é justo. O que acontece com os homens é que, se uma garota mostra o menor sinal de que gosta deles, eles se apaixonam por ela. É esse tipo de criatura que somos. Se uma beldade como você me disser isso, Liscia… de forma alguma não vou ficar consciente a seu respeito.

Souma disse algo que parecia uma desculpa. Ele era surpreendentemente calmo e realista em seus deveres, e por isso era divertido ver enquanto se perturbava em uma situação como essa.

Eu ri.

— Você pode fazer o país mudar, mas quando se trata disso, não tem jeito.

— Me falta experiência… De muitas formas.

— Passo o meu tempo todo estudando e nos meus deveres militares, então também não tenho muita experiência, sabe? — falei.

— Não aja como se as coisas fossem iguais para garotos e garotas. Nossas especificações básicas, no que se trata de amor, são completamente diferentes.

Enquanto conversávamos sobre isso, uma voz hesitante falou:

— Um…

Quando me virei, Aisha tinha em algum momento acordado e estava olhando para nós com um sorriso irônico que parecia estar concentrado com uma intensidade três vezes maior que a normal.

— Por mais quanto tempo vou precisar fingir que estou dormindo? — perguntou ela.

— …

Nós dois saltamos no ar.

Após deixar o parque, caminhamos um pouco mais pela cidade-castelo. Era meio-dia e estávamos ficando com fome, então nós três decidimos ir ao café cantante onde Juna trabalhava.

Enquanto caminhávamos por um caminho de paralelepípedos, Liscia disse:

— Então, sobre o que estávamos conversando antes… — e me fez uma pergunta: — Você também mencionou mudanças nas leis. Como assim?

— Ah. O que fiz foi converter as estradas menores em um paraíso para pedestres e nacionalizar a coleta de lixo.

— Sinto muito… Não faço ideia do que seja isso.

Bem, não, suponho que não faça mesmo. Mas ambas as coisas se relacionam com o problema de higiene e saneamento.

— Então, primeiro, deixe-me explicar essa coisa de paraíso para os pedestres. Isso é simples. Proibi as carruagens de usar qualquer coisa além das vias maiores. Carruagens que transportam mercadorias recebem uma isenção especial, mas apenas durante algumas horas da manhã. Estivemos andando no meio da rua esse tempo todo e ainda não fomos atropelados, certo?

— Agora que você mencionou isso… — Liscia olhou ao redor, mas não encontrou nenhum cavalo.

— Isso proporciona uma redução prática no número de acidentes com cavalos, criando um ambiente seguro para as pessoas fazerem as suas compras, o que ajuda a estimular a economia, mas… o principal objetivo era tirar todo o estrume de cavalo do caminho.

— Estrume de cavalo? — repetiu Liscia.

— Quando o seu cavalo está andando, você geralmente deixa os excrementos dele para trás, certo? Bem, o estrume seca, é pego pelo vento e prejudica o pulmão de quem o inala. Quanto mais anti-higiênico um lugar é, mais provável é que o estrume do cavalo seja deixado ali. Se limitamos o tráfego de cavalos às estradas principais, isso facilita a coleta de seus excrementos. Isso deve reduzir consideravelmente o número de pessoas que contraem pneumonia.

— Hein?! Só isso?! — exclamou Liscia.

— Aham… — falei. — “Isso é tudo” que seria necessário para salvar algumas vidas.

— Urkh…

Podia ser uma forma meio rude de dizer isso, mas eu não poderia permitir que ela descrevesse algo que separa a vida da morte das pessoas como “só isso”.

— Bem, de certa forma, não posso te culpar — falei. — O conceito de higiene ainda não existe neste país. Na verdade, apenas dois dos médicos com que me encontrei conseguiram entender isso.

Acho que já mencionei: por este país ter magia, sua tecnologia estava por todo lugar. Bem, isso era verdade inclusive no campo da medicina.

Assim como se espera de um mundo de fantasia, este lugar tinha o que era chamado de magia de recuperação. Ao converter certas magias para dentro do corpo, era possível aumentar a capacidade natural de cura do corpo. Isso era eficaz no tratamento de lesões externas, assim como arranhões, cortes e hematomas. Praticantes realmente impressionantes podiam até mesmo recolocar um braço que acabara de ser decepado.

Se isso fosse tudo que alguém visse, pareceria algo milagroso.

Por outro lado, a magia de recuperação não conseguia tratar os vírus e infecções que a capacidade de recuperação natural do corpo não podia combater. Todas as pessoas tinham que ajudar a tratar os sintomas daqueles que eram curandeiros e mulheres que sabiam preparar remédios de ervas. Além disso, para os idosos, cuja capacidade de cura natural era reduzida, também não era eficaz no tratamento de lesões externas.

Depois de descobrir como funciona, pode ser fácil pensar coisas como: “Ah, isso é simples”, mas a maioria das pessoas deste país nem sabia coisas sobre micróbios, que dirá sobre os vírus. Quando alguém tenta encontrar respostas para perguntas, não tendo o conhecimento necessário para as responder, tende a encontrar respostas que se enquadram no seu próprio bom senso.

“A magia de cura não funciona” equivaleria a “Nem mesmo os milagres podem curar”, e então se transformaria em “É uma maldição diabólica”.

As pessoas montam essas teorias em suas cabeças e acabam usando coisas bizarras, até indevidas, em suas tentativas de tratar as doenças.

“Se você comprar este pote, nunca ficará doente”, até que funcionaria como um bom argumento para vendas neste mundo, então não seria motivo para risadas. Se fosse para comprar algo assim, então seria melhor enrolar um ramo de alho-poró no pescoço antes de ir dormir.

Entretanto, ainda existiam traços de esperança. Os dois médicos que mencionei. Se eu pudesse colocar os dois para liderar uma reforma prática na medicina deste país…

— Ei, Souma, por que você está resmungando para si mesmo? — A voz de Liscia me trouxe de volta à realidade.

— Foi mal — falei. — Só comecei a pensar por um momento.

— Nossa… Certo, então o que você quis dizer quando disse que nacionalizou a coleta de lixo?

— Exatamente o que parece — falei. — Liscia, você sabe como o lixo é normalmente descartado neste país?

— Ele é classificado como “incinerável” ou “não incinerável” e depois é queimado ou enterrado, certo?

— Nossa, você conseguiu responder isso com bastante facilidade — falei.

— Achou que eu ignorava a vida das pessoas só porque sou da realeza? Não me insulte. Quando fui para a academia militar, morei nos dormitórios, só para você saber — disse ela, indignada.

Entendo. Então ela não é tão ignorante em relação ao mundo quanto eu pensava.

— Mas você ainda está errada.

— Hein? — resmungou Liscia.

— Eu disse “normalmente”, não disse? Sua resposta só representa o modo de pensar da classe alta. Isso está longe de ser a forma comum de pensar.

— B-bem, então qual é a forma mais comum de fazer isso? — perguntou ela.

— Aisha, como seu povo descarta o lixo na Floresta Protegida por Deus? — perguntei.

— Hm? Lixo? — Ela arregalou um pouco os olhos quando de repente direcionei a conversa para o seu lado, mas foi capaz de me dar uma resposta imediata. — Deixe-me pensar… Nós queimamos.

— Isso é tudo? — perguntei.

— Isso é tudo.

— Não pode ser verdade! O que vocês fazem com as coisas que não queimam?! — objetou Liscia, mas Aisha só olhou fixamente para ela.

— Para começo de conversa, vocês jogam as coisas não incineráveis fora? — perguntou Aisha.

— É claro que sim. O que mais faríamos com as ferramentas quebradas? — demandou Liscia.

— Nós as consertamos e continuamos usando.

— Hein…?

— Usamos o lixo de cozinha como fertilizante. Quanto à cerâmica quebrada demais para continuar sendo usada, nós a quebramos em pedaços bem pequenos e espalhamos pelo chão. Se as ferramentas de metal quebram, as consertamos para que possam voltar a ser usadas. Se não puderem ser concertadas, vendemos para algum revendedor de metais usados. — (Um tipo de comerciante que coleta sucata.) — As únicas coisas que jogamos fora são lascas de madeira e armaduras de couro danificadas, mas… nós as queimamos em nossas fogueiras.

Desta vez, foi a vez de Liscia ficar surpresa e arregalar os olhos. Não pude deixar de rir um pouco da conversa entre elas.

— Ha ha! Desta vez a Aisha acertou.

— Soumaaaa… — gemeu Liscia.

— Não fique tão abatida — falei. — Para as classes altas, que precisam manter as aparências, e para os militares cujo equipamento pode representar a diferença entre vida ou morte, provavelmente é melhor se as suas coisas forem praticamente novas. Entretanto, esse não é o caso das famílias comuns. Agora, o exemplo da Aisha levou isso ao extremo, mas as pessoas da capital cuidam das coisas de forma bem semelhante. A principal diferença é que também queimam o lixo da cozinha, não é? Além disso, para o lixo mais volumoso, como móveis de madeira, costumam juntar tudo na praça principal, uma vez por ano, e queimar, certo? Então eles são iguais porque só têm lixo incinerável.

Nesse mundo não havia nada como plástico ou isopor, coisas que precisam de um tratamento especial para a reutilização. A maioria das ferramentas era feita de ferro, pedra, terra (incluindo vidro e cerâmica) ou madeira. Poderiam reutilizar o ferro ao derretê-lo e, se espalhassem bem as pedras, poderiam se misturar ao ambiente. A única exceção eram substâncias artificiais que eram criadas por magos usando magia (substâncias mágicas) mas elas eram bem valiosas, então quase nunca eram jogadas fora.

Quanto às coisas feitas de metal, também podiam ser caras, então as pessoas comuns faziam tudo que era possível para consertá-las. Afinal, fazer o ferro voltar à forma correta era fácil. Quando não havia realmente nada que pudesse ser feito e parecia que comprar algo novo sairia mais barato, vendiam para um comerciante de metais usados por alguns trocados.

Os comerciantes coletavam esse metal e o derretiam, transformando-o em outros produtos de metal.

Entretanto, isso era feito individualmente, então não existiam instalações para essas coisas, ou a capacidade de dedicar uma grande quantidade de tempo, assim sendo, só era possível produzir metal de baixa qualidade. Tudo o que faziam era derreter e deixar endurecer de novo, para que, no processo, as impurezas se misturassem. Com isso, os metais de baixa qualidade acabaram começando a circular pelo país.

Este país era pobre em recursos. Se apenas o metal de baixa qualidade pudesse ser obtido nos arredores, as pessoas seriam forçadas a importar o metal de alta qualidade de outros países. Eu queria limitar esse gasto, tanto quanto possível. Entretanto, se tentasse dizer aos comerciantes de metais usados, que agiam individualmente, para preparar metal reutilizado de alta qualidade, isso não aconteceria.

— E é por isso que nacionalizei a coleta de lixo… Fiz, basicamente, que o país tomasse o controle disso. Mesmo que fosse difícil para um indivíduo fazer isso, quando o estado o faz, podemos gastar um pouco de dinheiro, providenciar instalações especializadas e aproveitar o tempo para fazer as coisas direito. Podemos arrancar até o último prego das tábuas que as pessoas jogam fora e depois reutilizar o ferro.

— Tá, isso é incrível e tal… mas e os mercadores de metais usados? Você não está roubando o emprego deles?

— Ah, está tudo bem — falei. — Para esse trabalho, estou contratando os comerciantes de metais usados como funcionários públicos.

Eles eram, de qualquer forma, profissionais de baixa renda. Pagavam uma pequena quantia pela compra da sucata, então derretiam tudo para vender em atacado às guildas mercantes. Entretanto, como só podiam produzir metal de baixa qualidade, seus preços de venda eram baixíssimos, e acabavam conseguindo pouco lucro. Os mercadores de metais usados estavam, na verdade, na base da hierarquia deste mundo. Por só lidarem com lixo, eram desprezados pelas pessoas.

— Entretanto, agora que isso é um empreendimento do setor público, a compra do metal será custeada pelo país — falei. — Em boas instalações, fornecidas pelo país, os itens a serem derretidos poderão ser reutilizados como metal de alta qualidade e, assim, o país negociará com as guildas mercantes, então não há necessidade de se preocupar com a queda drástica dos preços. Além do mais, receberão um salário mensal compatível com a renda média mensal deste país. Se comparar isso com o que estavam fazendo antes, provavelmente verá que isso é dez vezes melhor, não acha?

— Bem… Não acho que vão reclamar disso — admitiu Liscia.

Na verdade, não recebemos nenhuma reclamação. Muito pelo contrário: quando o ministro de estado que recebeu a pasta da coleta de lixo foi inspecionar a instalação de reprocessamento, foi saudado por trabalhadores com lágrimas nos olhos.

— Mas, se não tomar cuidado, isso não poderia acabar saindo mais caro do que a importação? — perguntou Liscia.

Em resposta ao ponto que ela levantou, balancei a cabeça e disse:

— Sim, algo assim.

Pensando, adicionei:

— Nesta fase provavelmente vamos gastar um pouco mais ao fazer isso. Entretanto, o dinheiro gasto dentro do país tem um valor completamente diferente do dinheiro fora do país. Se gastarmos fora, o capital está saindo, mas se gastarmos dentro, isso vai estimular a nossa própria economia.

— A-a economia de novo, hein… — Para Liscia, levando em conta o seu passado como militar, parecia que esse tipo de assunto não era o seu forte. Os militares tinham sua própria burocracia, então os oficiais provavelmente só precisavam manter as linhas de abastecimento.

— Certo, então vou te passar o ângulo militar — falei. — Vamos falar de diplomacia. Se pudermos conservar os recursos em nosso país, outros países não poderão usar os recursos que importamos deles como uma cartada para a sua diplomacia. O que faríamos se o Principado da Amidônia, por exemplo, que tem estado de olho no nosso país, interrompesse a exportação de ferro para nós?

— Estaríamos com problemas… — disse Liscia. — Não há como dizer quais exigências poderiam nos impor para reabrir o comércio.

— Isso mesmo. Fiz isso com o objetivo de inclusive prevenir esse tipo de situação.

Não vou citar nomes, mas, no meu mundo, houve um país que usava os raros recursos que produzia como uma ferramenta diplomática para pressionar as outras nações. Porém, assim que um determinado país insular começou a ficar sério, encontrou novas rotas de importação de outros países ricos em recursos e desenvolveu tecnologias alternativas, fazendo com que o preço dos recursos raros do outro país despencasse.

— Se pudemos ser moderados com os nossos recursos, isso limitará os danos no caso de outro país interromper o comércio conosco, e se armazenarmos o excedente que juntarmos em tempos de paz, podemos nos preparar, caso seja esse o caso — expliquei.

— Entendo — disse Liscia. — Portanto, mesmo que isso nos coloque no vermelho, a nacionalização ainda faz sentido.

Quando se tratava de assuntos militares e diplomáticas, Liscia aprendia bem rápido. Ela provavelmente era o tipo de pessoa cuja habilidade ou incapacidade de aprender um assunto era um reflexo exato das suas preferências pessoais.

Aliás, enquanto conversávamos sobre essas coisas, Aisha anunciou:

— Esqueçam isso, estou com fome!

Ela parecia a ponto de chorar, igual um cachorrinho que foi forçado a esperar por tempo demais.

O café cantante, Lorelei, ficava em uma esquina ensolarada. Era o lugar onde Juna trabalhava.

Quando ouvi as palavras “café cantante”, imaginei um lugar com uma máquina de karaokê, onde os clientes poderiam cantar à vontade, mas os cafés cantantes deste país eram lugares para desfrutar do chá da tarde enquanto escutava loreleis cantando. Durante a noite, continuava aberto, mas se tornava um bar de jazz. Também existiam lugares assim no Japão?

— Você vai dar as caras por aí, não vai? — perguntou Liscia. — Vamos nos apressar e entrar.

— Fome… — gemeu Aisha.

Com as duas me encorajando a seguir em frente, passamos pela porta e entramos no Lorelei. Desde o momento em que entramos, pude ouvir o canto de Juna. Quando ouvi aquela voz, meus joelhos ficaram fracos.

Ah, certo. Eu que ensinei a música, não foi? Percebi.

Essa era a Juna: ela tinha dominado o canto com a letra em inglês em que nem eu era lá tão bom.

— Ah, mas que voz maravilhosa. Realmente devo ajudar a Madame Juna com isso — disse Liscia.

— Não sei o que essas palavras significam, mas a melodia é bonita — acrescentou Aisha.

Aisha e Liscia pareciam profundamente impressionadas. Bem, claro que estavam. Era uma boa música.

Eu havia prometido ensinar as músicas do meu mundo a ela, mas quando pensei nisso, percebi que só conhecia as canções antigas que aprendi por influência do Vovô, e também as que tinham aparecido nos animes ou tokusatus1São filmes ou séries live-action que usam muitos efeitos especiais., já que gostava dessas coisas. Fiquei hesitante em ensinar as músicas de anime logo de cara, então escolhi essa música específica, que era parecida com uma de anime, mas não era: “Better Days are Coming” de Neil Sedaka2Ouça clicando aqui..

As pessoas devem conhecê-la melhor como a música que Mami Ayukawa fez cover, chamada Z Toki wo Koete3Ouça clicando aqui., usada na abertura daquele anime mecha, Mobile Suit Zeta Gundam. Agora, é só a minha opinião pessoal, mas pensei que para uma música comum, Hiroko Yakushimaru, e para uma de anime, as de Hiroko Moriguchi, combinariam bem com a voz dela. Eu queria ouvir “Tantei Monogatari4Ouça clicando aqui.” e “Mizu no Hoshi ni Ai wo Komete5Ouça clicando aqui.” com a voz dela.

O lugar tinha um estilo retrô-moderno e relaxante. Ao sentarmos em uma das mesas, ficamos ouvindo Juna cantar por um tempo. Poucos minutos depois, ela terminou de cantar e foi até nós.

— Ora, Sua… — começou ela.

— Olá, Juna — falei rapidamente. — Você pode não se lembrar de mim, mas me chamo Kazuya, sou o sucessor de um comerciante de tecidos crepe de Echigo!

Para interromper Juna, comecei a falar a mil por hora. Sendo a mulher inteligente e talentosa que era, só com isso ela entendeu o que estava acontecendo.

— Ah, sim, Kazuya. Isso. Há quanto tempo. Como anda o seu pai?

— Ora, ele anda tão enérgico quanto sempre. Recentemente, a Mãe descobriu que ele estava tendo um caso. Mas isso não é problema.

— Entendo. Kazuya, tenha cuidado ao lidar com as mulheres — disse ela, entrando na minha história.

Eu não poderia tê-la se curvando e me chamando de “Sua Majestade” em um lugar com tanta gente assim. Deveria estar supostamente disfarçado. Ainda assim, fiquei impressionado com sua habilidade de improvisar com uma resposta instantânea para o meu absurdo aleatório. Eu com certeza a queria no castelo.

— Vou te pagar cinco vezes mais do que pagam aqui, então que tal começar a ser a minha secretária pessoal? — perguntei a ela.

— Agradeço a oferta, mas acho que minha vocação está neste trabalho em que os clientes podem aproveitar as minhas músicas, então terei que recusar. — Ela me dispensou de forma leve.

Sim. Até a rejeição dela tem classe.

— Que pena. Porém, dizem que em vez de colocar flores silvestres em exibição no seu quarto, elas ficam mais bonitas quando desabrocham nos campos.

— Ah, mas se você as ama e adora, não as deixe só em exibição, as flores podem brilhar até mesmo em vasos — retrucou ela.

— Entendo. Então devo me esforçar para ser digno de amá-las e adorá-las.

— Sim, digno o suficiente para convencer as flores de que elas querem que você as leve.

— Ha ha ha ha ha.

— Hee hee hee hee hee.

Juna e eu rimos juntos.

Liscia parecia um pouco surpresa enquanto nos observava.

— Parece que, de alguma forma, quando vocês dois conversam, é como se estivessem sondando as intenções um do outro.

Ou assim ela pensou… Você está errada, Liscia, falei silenciosamente. Isso era bem figurativo: Como um irmão mais novo que quer agir de forma mais madura do que é, e então é gentilmente repreendido por sua irmã mais velha por fazer isso.

Aposto que era assim que era… Mesmo sendo praticamente da mesma idade.

Slurrrrrp… Udon de Gelin é delicioso mesmo, não é? — disse Aisha, feliz.

Decidimos ficar no Lorelei e almoçar por lá.

Arrematando seu udon de gelin com tanta rapidez quanto se faria com uma tigela de wanko soba6Um tipo de soba que é comido muito rápido., Aisha gritou: “Mais, por favor!” empurrando a tigela em direção ao nosso garçom.

Um café não é lugar para se comer desse jeito, sabe… pensei.

— Mesmo assim, udon de gelin em um café…? — perguntei.

— Você não gostou?

Juna parecia preocupada, então balancei minha cabeça, dizendo:

— Oh, não. Só pensei que era estranho servir udon em um lugar tão elegante quanto este.

— Desde aquela transmissão, muitas pessoas decidiram provar — explicou ela. — Além disso, ainda não superamos a crise alimentar, por isso ficamos gratos por ter esses ingredientes baratos à disposição.

— Estou trabalhando nisso, mas… sinto muito, não estou me saindo bem o suficiente — falei.

— Não, Sua… Kazuya, acho que você está fazendo bem.

Quando Juna me mostrou aquele sorriso gentil, me fez sentir bem quente e confuso por dentro.

Chute! Chute!

Certo, Liscia, pare de chutar as minhas canelas por baixo da mesa, por favor.

— Você não acha que o Souma trata a Juna de uma maneira diferente da que trata todas as outras pessoas? — perguntou Liscia.

— Agg, slurp… Eu já… slurp… percebi isso também — concordou Aisha.

— Ei, não posso evitar isso… — protestei. — Fico nervoso quando estou conversando com uma linda garota mais velha. Além disso, Aisha, coma ou converse. Escolha uma das opções.

Slurp.

Hein, você escolhe comer? Eu podia até ter tirado sarro dela, mas essa rotina de comédia era exagerada demais, então deixei essa passar.

— E isso logo depois de dizer que também sou bonita… — disse Liscia.

— Na verdade, Liscia, acho você linda, mas de um jeito diferente da Juna, sabe? — falei.

— C-como você conseguiu me ouvir?! — exclamou ela.

Uh, se você não quer ser ouvida, então abaixe um pouco o seu volume, certo?

Parte disso era por que eu estava estranhamente consciente dela, já que me deixou usar o seu colo como travesseiro…

— V-você podia ter fingido que não ouviu — gaguejou ela.

— Como se eu fosse deixar isso passar — retorqui. — Sou um jovem saudável, então não diga coisas que vão me deixar consciente de você com tanta frequência.

— Ah, ora, os seus rostos estão vermelhos. Vocês dois são tão inocentes. — Juna sorria ao nos observar discutindo.

Ao nosso lado, Aisha sorvia seu udon, mas parecia que estava fazendo beicinho.

Slurp… Por que ele percebe a afeição da princesa… Slurp… mas ignora a minha…? Slurp. Ah, mais uma tigela, por favor.

— Isso pode não ser da minha conta… Mas ele talvez não te leve a sério porque você age assim, não? — sugeriu Juna.

— Madame Juna?! O que eu fiz de errado?! — exclamou Aisha.

— Esse seu apetite. Quando te vi no castelo pela primeira vez, parecia uma mulher digna e corajosa que estava disposta a se dirigir diretamente ao rei, mas nos últimos tempos é só uma decepção que come o tempo todo.

— Q-quêêêêêêêêê?! — Aisha começou a olhar para nós com um olhar que parecia implorar: “Diga-me que ela está mentindo, Sua Majestade, Princesa.”

Liscia e eu sorrimos, e então ambos erguemos os braços à nossa frente fazendo um X.

No final das contas, concordei 100% com Juna.

— O Poncho está claramente roubando toda a atenção que devia estar voltada a ela — disse Liscia.

— Onde será que aquela Aisha digna foi parar? — perguntou Juna.

— Wahhh! A culpa é da floresta, já que lá não tem tantos tipos de comida diferentes! — lamentou Aisha.

— Além disso, o que acha que está fazendo ao tentar seduzir um cara que já foi prometido…? — adicionei.

— Hein? — Todas as três me olharam com expressões de surpresa.

Eu falei algo de estranho?

— Um… Souma? Neste país, a poligamia é tolerada, desde que você tenha a riqueza para sustentar várias esposas, sabe? — disse Liscia.

Juna balançou a cabeça.

— E isso funciona para ambos os lados. Arranjos poliândricos são possíveis para as mulheres poderosas. Mas isso é incomum.

— Afinal, se os homens estivessem limitados a uma única esposa, sua casa poderia morrer no caso de algo dar errado — concordou Aisha.

Liscia, Juna e Aisha me disseram isso com caras sérias.

Elas estão falando sério…? Ah, não, acho que provavelmente estão falando sério.

A sociedade deste mundo ainda não tinha saído da Idade das Trevas. Não tinham uma taxa de natalidade estável e seus conhecimentos sobre higiene e medicina eram subdesenvolvidos. Além disso, viviam em tempos difíceis, então provavelmente havia poucas pessoas vivendo com uma expectativa de vida avançada. E mais, em uma sociedade do tipo da Idade Média, onde a “casa” é um conceito importante, desde que possua a riqueza para sustentá-los, quanto mais herdeiros em potencial, melhor. Essa provavelmente era a razão pela qual permitiam a poligamia. Eu conseguia entender isso.

— Mas a mãe da Liscia é a única rainha que eu conheci… — objetei.

Se fosse um sistema polígamo, o pai de Liscia, o rei, não deveria ter mais esposas? Digo, Hakuya também estava me incomodando para eu me apressar e arrumar um herdeiro.

— Ah, na verdade, a minha mãe era a que detinha a autoridade real — explicou Liscia. — Ela é filha do homem que foi rei antes do meu pai, sabe.

— Espera aí, aquele rei se casou com a família dela?! — explodi.

— Sim. Mas, depois de se casarem, ela deixou o governo do país para ele. É por isso que meu pai jamais poderia menosprezar a minha mãe tomando outra mulher como a sua rainha. Mas não posso afirmar que ele não tenha nenhum bastardo…

— Hã? Então está tudo bem em eu assumir o trono sendo que foi ele quem abdicou em meu nome? — perguntei.

— Nenhum problema. Foi o pai quem abdicou, mas ele não poderia fazer isso sem o consentimento da Mãe.

Em outras palavras, a abdicação não foi uma decisão arbitrária do rei, mas algo com que a rainha também concordou, hein?

— Além disso, eu era a única com direito à sucessão e, de qualquer forma, teria que me casar, por isso a diferença, na verdade, não é tão grande — acrescentou Liscia. — É só uma questão de saber se quem detém a autoridade real sou eu ou o meu parceiro.

— Bem, então, em vez disso, Liscia, você não poderia ter sido a governante…? — perguntei.

— Você precisaria pedir a minha aprovação para cada uma das suas reformas, sabia? Não seria um saco?

— Bem… Sim.

Bom, Liscia não era de forma alguma teimosa, mas se eu precisasse da sua aprovação para cada coisinha, minhas reformas sairiam muito mais devagar. Além disso, se a pessoa com o poder de decisão final e a que conduz a reforma não fossem a mesma, não haveria garantia de que os membros de uma facção da contrarreforma não tentariam se colocar entre ambas e causar problemas desnecessários.

— Seu pai tomou uma decisão corajosa ao transferir tudo de uma só vez para mim, hein… — falei.

— Tem razão… Sinceramente, agora consigo ver como isso foi impressionante.

Porém, isso significava que o fardo havia sido transferido para nós.

Ambos suspiramos ao mesmo tempo.

— Então, se quiser, Souma, um relacionamento polígamo é… possível — disse Liscia.

— Você estaria bem com isso, Liscia? — perguntei.

— Eu não ficaria feliz, mas se isso te mantiver no trono…

— Essa é uma forma bem compreensiva de lidar com as coisas… — murmurei.

— Posso tolerar até oito, comigo inclusa.

— Isso é muito! Eu não poderia assumir a responsabilidade por tantas!

Bem, quando ela me disse que eu poderia formar um harém, não era como se a ideia fosse atrativa, mas… Sei lá, só podia imaginar que isso daria muito trabalho. Eu não era do tipo que suportaria discordar veementemente das esposas, e podia dizer que quanto mais mulheres tivesse, mais constrangido me sentiria.

— A propósito, por que você escolheu esse número? — perguntei.

— Posso ficar com você só para mim por um dia na semana — disse ela.

As semanas neste mundo tinham oito dias. Aliás, um mês possuía quatro semanas, fazendo que cada um deles tivesse 32 dias. Um ano tinha doze meses, então o ano deste mundo possuía 384 dias.

Espera, como assim?!, percebi, registrando o que ela havia dito.

Quando Liscia disse aquilo, Juna e Aisha começaram a sussurrar sobre algo.

— Se houvesse oito de nós, acha que conseguiríamos fazer só uma vez por semana?

— Não precisaria ser assim, não é? Se você e uma outra esposa combinassem…

— Entendo. Não é necessariamente só uma vez por semana! Madame Juna, você é brilhante.

— Mas você não gostaria de tê-lo só para você…?

— Aah, que questão difícil.

Não, não, Aisha, Juna, por que vocês estão falando tanto sobre isso?!

Tê-las ao mesmo tempo… Não posso dizer que não gostaria, mas para isso teria que me tornar o rei. Fiquei dividido entre minha personalidade realista, que queria evitar o trabalho duro que surgiria se eu assumisse o trono, e meu desejo de perseguir esse ideal masculino.

Só então, quando estava começando a me sentir incrivelmente estranho…

 


 

Tradução: Taipan

 

Revisão: Roelec

 


 

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