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Calmaria Divina – Vol. 01 – Cap. 15 – Uma Vila

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Thorian, Clareira dos Espíritos.

 

— Como nos encontraram, Thorian? — O senhor, que apresentou-se como Falco, perguntou com voz gentil, apesar da forma seca com que fez a pergunta, enquanto servia duas xícaras de um chá verde, oferecendo uma a mim. — Açúcar?

Ele havia me guiado até uma cabana simples onde poderíamos conversar em particular.

Notei que a porta, feita de madeira trançada assim como as paredes e móveis, não tinha tranca. Precisei me abaixar para passar pela entrada.

— Obrigado. — Respondi, aceitando a xícara e o açúcar. — Nos enviaram para eliminar um criador de monstros. Vejo que tudo não passou de um infeliz engano.

— Um infeliz engano que custa vidas inocentes e fragilizadas. Vocês não são os primeiros, nem serão os últimos enviados. Minha maior infelicidade é ver meu filho mais velho lutar por nós. Aqueles que não recuam, têm um fim prematuro e desnecessário. Fico feliz que nosso encontro não tenha custado uma única vida.

Apenas pude assentir com a cabeça e tomar um gole do chá enquanto pensava em uma resposta adequada. Uma pela qual Falco parecia aguardar pacientemente.

— Eu quero ajudá-los, mas não sei como poderíamos fazer isso. Também não tenho certeza de que meus companheiros aprovariam, eles podem ter pressa para voltar a Vantrol.

— Seley me disse que vocês estavam em três, vocês têm mais alguém aqui?

— Não, somos os únicos. Nosso grupo está dividido e esse é o motivo da urgência em voltar, mas não sabemos onde nossos companheiros estão.

— Entendo. Não gostaria de ficar em seu caminho. Pedirei a Seley que busque seus companheiros, serviremos o almoço antes que partam.

— É uma grande gentileza sua. Ficaremos felizes em aceitar. Existe algo que possamos fazer em troca?

— Na realidade existe. Gostaria que contassem às crianças sobre o mundo fora da clareira. Um mundo que para muitas delas é sombrio, e que outras nunca vão conhecer.

— Será um prazer. — Respondi, surpreso.

Assim que terminamos o chá, o senhor se levantou e me guiou até uma grande praça com uma mesa retangular igualmente grande.

No caminho, Seley, que parecia estar vigiando a cabana na qual estávamos, se aproximou. Falco deu um aceno a ele, dizendo:

— Pode trazê-los, são convidados para o almoço.

 

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Shimitsu.

 

Algum tempo se passou desde que Thorian e o Homem-Madeira desapareceram. Sanir havia tratado minhas feridas com magia e agora apenas esperávamos.

— Ei Shimitsu, tá me ouvindo? — Perguntou irritado.

Eu não estava.

— Hum, acho que tem sangue nos meus ouvidos. — Respondi, batendo na lateral da minha cabeça, mesmo sabendo que não havia nada em meus ouvidos.

— De qualquer forma, você não tem nenhum sinal do Arthur?

— Nenhum. Falando nele, o que é esse Nyxar que vocês estavam falando outro dia?

— Ah! Uma música… — Disse, arrastando a última palavra, fracassando em tentar um tom de misticismo, enquanto buscava seu alaúde.

Pigarreou, tocou um ou dois acordes e começou a cantar:

 

“Nas terras onde a lua dança e brilha,

Nyxar chegou, um estranho sem guia,

Vindo de além, além dos mares sem fim,

Para um mundo onde o destino o traz assim.

 

Ah, Nyxar, que na terra dos sonhos se perdeu,

Onde a língua dos ventos não compreendeu,

Sob os céus estrelados, onde o sol se deita,

Seu nome ecoará, na melodia que se aceita.

 

Mas a língua estranha, barreira cruel,

Impediu-o de pedir, de alcançar seu mantel.

E a fome voraz, maldição que o assalta,

Fez seu espírito partir, sem cura, sem falta.

 

Que sua história ecoe nas lendas do lugar,

Do homem que do seu mundo foi deslizar.

Que nos ensine a valorizar a fala e o abraço,

Para que jamais se perca outro Nyxar no espaço.”

 

Quando percebi, havia me distraído, sem prestar atenção na letra, e agora Sanir me encarava fixamente.

— Foi mal, pode repetir a última parte?

— Eu não.

— Então tá…

Continuou dedilhando seu instrumento em silêncio, até que o chão começou a tremer levemente e o Homem-Madeira que me esqueci o nome surgiu dele.

Saquei Fukushu rapidamente assim que notei que estava sozinho.

— Cadê o Thorian? — Não recuou nem quando minha lâmina estava a alguns centímetros de sua garganta.

— Ele aguarda por vocês, junto de nosso Pai. Serviremos um almoço a vocês, e é bom aceitarem a cortesia. — Respondeu, lentamente afastando a espada.

O Halfling se levantou com um salto.

— Oba! Eu tô faminto. Bo vai comer com a gente?

O homem parou por um segundo, provavelmente surpreso. Eu mesmo não me dei ao trabalho de tentar entender.

Ele parecia relutante. Pude perceber que sua intenção era verdadeira, mas não tinha certeza sobre sua vontade. Ele não confia nem um pouco na gente. Quem confiaria? Eu não confio nele.

— Acredito que isso seja um “Sim”, pelo menos do pequenino. — Se virou para mim — E você?

— Tira o capuz.

— O quê?

— Você desapareceu com meu amigo e reapareceu sozinho. Está nos convidando para uma refeição sendo que há pouco estávamos em combate. E além de tudo nem sequer mostra seu rosto. Como posso confiar em você?

Refletiu por um instante e então levou a mão ao capuz, derrubando-o.

Tinha cabelos castanhos curtos e olho cor de âmbar. O lado direito do rosto desde parte do pequeno nariz até a orelha era coberto por uma camada de madeira que seguia até a nuca, onde se unia à couraça que o cobria por baixo do manto. Sua orelha era um pouco mais longa que a de um Humano, mas menos pontuda que a de um Elfo, o que sugeria que fosse um mestiço.

Realmente um Homem-Madeira. Pensei.

— Satisfeito?

— O bastante.

Ao mesmo tempo em que colocava seu capuz, vinhas surgiram do solo ao nosso redor, formando uma cúpula da mesma forma de quando partiu com Thorian.

 

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Thorian.

 

Observei as crianças enquanto esperava até que Seley retornasse com Sanir e Shimitsu. Contei 17 delas.

Um pequeno trio se aproximou. Um dos dois garotos tinha os olhos completamente brancos e segurava a mão de uma garota que o guiava.

— Senhor, eles disseram que seus olhos são como os meus. É verdade?

— É sim.

Sem saber o que dizer além disso, acariciei o topo de sua cabeça e me levantei da cadeira na qual estava sentado.

— Mas senhor, você consegue enxergar, não consegue? — Perguntou o outro garoto.

— Sim, eu sou capaz de enxergar, mas isso foi um milagre. Eu sempre fui capaz de ver.

— Então você não sabe uma cura?

— Eu sinto muito, mas mesmo que eu seja capaz de curar feridas, não sou capaz de curar algo assim. Mas prometo que assim que aprender, eu volto para curá-lo.

— E sobre mim? — Era a garota, cujas pernas eram retorcidas.

Essas crianças não parecem ter nada tão sério a ponto de serem isoladas. Cegueiras e dificuldades na mobilidade não são motivo de exílio.

Deixei meus pensamentos de lado quando ouvi o nome de Seley vindo da entrada da vila. As crianças realmente gostam dele.

— Fico feliz em conversar com vocês, agora preciso ir.

Dei um sorriso a eles, que retribuíram com um sorriso típico infantil. Afinal, são crianças.

Shimitsu analisava a vila como um caçador analisava o terreno em busca de uma presa. As crianças se assustavam com ele, logo antes de Sanir, sempre animado e Seley as acalmarem.

Acenei para eles enquanto me aproximava.

— Sigam-me, deixaremos suas armas em um local seguro. — Ouvi o guardião dizer.

Shimitsu o encarou, com uma expressão que dizia claramente que não queria ouvi-lo.

— Deixaremos suas armas em um local seguro. — Seley repetiu, com ênfase na última palavra.

— Está tudo bem. Eu vou com vocês.

— Sério isso, Thorian? — O Kitsune respondeu.

— O quê?

— Esquece.

— Como eu não tenho armas, vou procurar Bo. — Sanir disse antes de sair correndo.

Seley olhou para ele, mas decidiu não fazer nada. Ao invés disso, nos guiou até a cabana onde eu havia deixado meu tridente alguns minutos atrás.

Shimitsu hesitou em deixar suas espadas, como imaginei que seria, mas pude convencê-lo.

Quando voltamos, Falco estava terminando de servir as crianças na grande mesa, onde Sanir cantava para as crianças.

 

“Nós somos um bando valente,

Que enfrentou monstros grandes e assustadores!

Uma cidade sumiu num piscar de olhos,

E na floresta neblinosa nós entramos, destemidos.

 

Os monstros eram feios, tipo bem feios mesmo,

Mas a gente deu um jeito neles, sem problema.

A cidade sumiu, eu juro que sumiu mesmo,

Parecia mágica ou coisa assim, bem louca!

 

Na floresta tinha uma neblina densa,

Dava pra se perder só de olhar pra ela.

Mas a gente éramos destemidos, eu já disse isso?

E a gente seguiu em frente, porque somos heróis!

 

Aventura é o nosso nome, a gente não desiste não.

Com nossas espadas e nossa bravura, a gente vai até o fim!

E quando acabar a jornada, a gente vai contar pros amigos,

Das nossas aventuras loucas, que ficaram na história, siiim!”

 

— Siiim! — As crianças gritaram, acompanhando e rindo.

— Vocês enfrentaram monstros de verdade mesmo? — Uma delas perguntou.

— É claro, eu mesmo fui tão bom na batalha que um deles virou nosso amigo!

— Uau!

Shimitsu abriu a boca para dizer algo, mas no lugar deu uma risada, seguida por um suspiro.

— Espero que a comida valha a pena.

Seley se sentou ao nosso lado e acenou para que também nos servíssemos da mistura de um grão que me lembrava o arroz, carne em cubos e alguns vegetais.

A comida estava boa e Sanir liderava o clima da mesa, com piadas que faziam até Seley sorrir às vezes.

— Eles querem algo, o velho e o amadeirado não param de olhar pra gente, e não é só falta de confiança, apesar do velho parecer gostar de você. — Shimitsu cochichou para mim.

— Eles se chamam Falco e Seley. E querem ajuda para proteger a vila. Lether estava errado, eles não são monstros.

— A gente fala com o branquelo quando vazar, mas ele tá junto com o Arthur, então não fazemos ideia de como achá-lo.

— Talvez a gente pudesse ficar um pouco, só até termos sinal dos outros.

— Nem ferrando, quanto antes a gente acabar com isso, antes eu volto pra casa. Lembra que eu só não fui ainda por causa daquele feitiço?

Quando a refeição já estava acabando, Falco ficou em pé.

— Atenção! — As crianças pararam de conversar e se viraram para ele. — Gostaria que todos agradecessem aos nossos visitantes de hoje. Digam “Obrigado pela companhia”.

Elas repetiram, cada uma dentro de suas capacidades.

— “Obrigado pelas histórias”.

Repetiram mais uma vez, agora com suaves risadas ameaçando surgir.

— E por último, “Obrigado pelo…”.

Uma tosse surgiu entre as risadas e alguém tombou do grande banco, interrompendo o homem.

A criança estava próxima de mim, me levantei em um impulso, alcançando a criança caída, uma roda começando a se formar ao nosso redor.

Choros e tristeza tomaram meus ouvidos, paralisei ao ver a criança.

Era o garoto cego de antes, agora descansava olhando para o céu, seu peito imóvel, nenhum sinal de ferimentos. Preparei uma magia de cura antes que pudesse notar que o garoto já havia partido.

— Richard… — Falco suspirou.

Richard, então esse era seu nome. Pensei enquanto fechava seus olhos, me ajoelhando ao seu lado.

— Ó Solarith, Brilho do Amanhecer, receba esta criança em tua luz eterna. Ela que viveu na escuridão terrena, agora encontra paz em teus braços. Guie seus passos além da mortalidade, onde seus olhos cegos vislumbram a glória eterna. Que ela encontre o amanhecer que lhe foi negado aqui.

Terminei minha prece e olhei ao redor. Notei Sanir retraído, mas tentando acalmar as outras crianças.

Seley agora se abaixava para pegar o garoto. Shimitsu afagava a cabeça de outra criança que chorava ao seu lado.

Do outro lado da mesa, vi o primeiro garoto que encontramos na floresta, ele se levantou, mancando, começou a se mover lentamente em direção à floresta.

Pode ser perigoso.

Comecei a ir em sua direção, mas uma vinha brotou do chão, se amarrando em meu pé direito. Olhei para Seley, ele balançava a cabeça negativamente, me dizendo para deixá-lo.

Falco ordenou as crianças em direção a uma área que eu não havia visto antes. Um cemitério com lápides feitas de madeira. Muitas delas.

Seley colocou a criança no chão, acariciando sua testa.

Falco, que estava ao seu lado durante todo o tempo, começou a falar.

— Hoje mais um de nossos amigos se foi. Richard, que esteve conosco durante quase um ano, que compartilhou de nossa alegria e sofrimento. Espero que quando nos reencontrarmos, possamos viver todos juntos novamente, como a família que somos.

Ele acariciou a mão de Richard e deu um passo para trás.

Cada uma das crianças restantes, exceto a que havia ido na outra direção, passou dizendo algo para Richard. Sanir fez o mesmo, sua expressão congelada.

— Eu não te conheci, mas sei que era legal.

Quando todos terminaram, um caixão de plantas se fechou ao redor do garoto, atravessando o solo, uma lápide de madeira surgiu. Seley tocou o local onde o corpo estava alguns segundos atrás e flores de várias cores começaram a crescer ali.

Todos ficaram em silêncio por alguns minutos, então começaram a voltar para a vila.

Sanir veio até mim e Shimitsu, estava abatido. Quando chegou, o Kitsune falou.

— Certo, vamos ajudar eles, contanto que não demore demais.

Deixei um sorriso escapar, movi minha mão lentamente até sua cabeça. Ele parece querer um cafuné.

— Nem tenta! Eu não preciso da minha espada pra arrancar seus dedos.

Recuei minha mão, fingindo que nada havia acontecido.

— Certo, vou falar com Falco.

— Vou achar um lugar tranquilo pra deitar, Sanir vem comigo?

— É claro! — Pareceu acordar com um choque.

Seley se aproximou de mim, enquanto o outro se afastava.

— Eu ouvi o que disseram antes. Vou levá-los até sua cabana.

Enquanto o acompanhava, tentava pensar na melhor forma de perguntar sobre meu pensamento anterior, mas não cheguei em uma resposta antes que chegássemos na pequena cabana de madeira que estava desocupada.

— Podem ficar aqui, é perto da minha, então se qualquer coisa acontecer, estarei por perto.

Não sei se isso era para me confortar ou uma ameaça.

— Eu poderia perguntar…

— Sinto muito, preciso ir atrás de George.

Ele saiu correndo na direção que o primeiro garoto havia ido antes.

George… Pensei, gravando seu nome. Acho melhor falar com Falco.

Segui em direção a sua cabana. Uma cabana cuja fumaça que saía da chaminé se perdia entre as árvores.

Bati na porta e entrei.

Como imaginei, o homem estava sozinho com uma grande panela. Ele me deu um breve olhar antes de me chamar para dentro.

À nossa volta havia carnes preservadas no sal, alguns frascos com especiarias, algumas sacas de batatas e grãos, e o fogão a lenha onde preparava algo que pelo cheiro provavelmente seria chá.

— Precisando de algo, Thorian?

— Na verdade gostaria de fazer uma pergunta.

— Mas é claro. — Acenou com a cabeça, como se estivesse em sua frente. — Qualquer coisa que eu possa responder.

— Por que eu não vejo nenhuma criança que parece ter mais de 12 anos?

Ele parou de mexer na panela por um instante, então voltou.

— É triste dizer isso, mas as crianças que eu trago para cá são aquelas que tem alguma condição que as torna incapazes de viver por muito tempo. Eu tento fazer com que elas vivam o máximo possível, mas até hoje, a única que foi capaz de passar dos 14 foi Seley.

— Não é minha intenção ser rude, mas por que motivos uma criança cega morreria tão cedo?

Ele retirou a panela do fogo, apoiando-a em uma pedra e servindo duas xícaras, oferecendo uma a mim.

— As condições de algumas dessas crianças não são tão simples quanto podem parecer. Muitas delas, assim como Richard, têm suas deficiências provindas de maldições.

— Maldição? Quem colocaria maldições em crianças?

— Quanto você sabe sobre Aldoria?

— Não muito. — Admiti.

— Há muito tempo, um grupo de Elfos tentou tomar o poder. Eles tinham poderosos bruxos ao seu lado, muitos deles fizeram pactos com entidades de outros planos.

— Outros planos… — Repeti.

— Sim, é semelhante à sua relação com Solarith, mas muito mais vil. Continuando, esses Elfos sucumbiram à magia maligna e forçaram uma ação definitiva do rei élfico. Foi nesse período que a aliança Elfo-Humana surgiu. Hoje não há mais Elfos Negros, como foram chamados. Todos foram exterminados, mas não antes de lançarem maldições em diversas linhagens élficas e humanas.

— Entendi. Eu nunca tinha ouvido sobre isso. Tem mais uma coisa. Eu e meus companheiros vamos ficar por um tempo e tentar ajudá-los com os caçadores de recompensas.

Falco acenou lentamente com a cabeça, terminou seu chá e se levantou.

— Então me ajude com isso, as crianças devem estar esperando pelo chá.

 

 


 

Autor: Halt

Revisão: Bravo

 


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