Logo, um verão típico estava em pleno andamento. A temperatura subiu e me sentei com a Senhorita Messalina, tomando sorvete e banhando-me ao vento de um ventilador elétrico.
— É estranho, quando a brisa do ventilador bate, o sorvete sempre parece derreter mais rápido.
— Isso porque, quando o vento sopra, ele envia todo o ar quente para ele.
— Mesmo essa brisa fresca?
— A mais fresca que você consegue imaginar. Mas ainda está mais quente do que o sorvete, não é?
Fiquei tão emocionada ao ponto de pensar que meus olhos fossem cair das órbitas. A Senhorita Messalina realmente era muito mais esperta do que eu. No entanto, nem mesmo ela sabia porque Minami tinha desaparecido. Era mesmo um mistério.
— A vida é como uma melancia.
— E o que isso quer dizer?
— Você pode mastigar a maior parte — disse —, mas há algumas partes pequenininhas que ainda não consegue comer.
— Aha ha, isso é verdade. Mas mesmo que não possa comê-las, ainda pode enterrá-las em algum lugar para que germinem em algo novo.
— Uau.
— Diga, mocinha, você já está cheia?
— De forma alguma. A Professora Hitomi disse que o apetite vai embora no verão, mas isso é apenas outro mistério para mim, porque quando está calor lá fora, eu uso toda a minha energia, então tenho que comer muito!
— Então eu tenho um favor para te pedir. Você poderia ir ao supermercado e comprar um pedaço de melancia para nós?
— Sem problemas!
Eu orgulhosamente peguei o dinheiro da Senhorita Messalina e coloquei minhas meias amarelas de volta. Ela ficaria para trás, se preparando para o trabalho. Eu adorava sorvete, é claro, mas melancia era uma das minhas outras coisas favoritas. Era maravilhoso saber que a Senhorita Messalina gostava das mesmas coisas que eu.
— Talvez ela fosse um fantasma. — disse a Senhorita Messalina.
Ela esfregava loção no rosto enquanto eu bebia um pouco de chá de cevada antes de sair para o sol da tarde.
— Como assim? — perguntei.
— A Minami.
Eu nem tinha considerado que Minami pudesse ser um fantasma. Tentei lembrar seu rosto.
— Mas ela não era transparente nem nada. Tinha pernas e outras coisas. Acho que se parece mais com um Totoro do que com um fantasma.
— Ha ha, entendo. Nesse caso, provavelmente você a verá novamente, enquanto ainda é uma criança.
Isso pode ser verdade, pensei. Eu mal podia esperar pelo dia em que a veria novamente.
— Estou indo agora!
Calcei meus sapatos, enfiei o dinheiro no bolso e fui ao supermercado próximo com minha amiguinha, que estava caminhando nas sombras.
Foi uma sorte ter bebido aquele chá antes de sair, pensei. Lá fora estava sufocante, o calor irradiando do sol, do solo e das paredes dos prédios também. Sem aquele chá, eu poderia ter murchado e virado uma múmia minúscula antes de chegar ao mercado.
Minha amiga de pelo escuro, não acostumada com o sol de verão, procurava as sombras. Isso faz sentido, pensei, já que ela não usava sapatos nem meias nos seus quatro pezinhos. Claro, eu tive que carregá-la através dos pontos onde não havia sombras. Enquanto eu a carregava, ela cantava o tempo todo.
— Miau miau!
Eu cantava junto:
— A felicidade não vai viiiiiir na minha direçãããão…
— Miau miau!
Quando chegamos ao supermercado, havia toneladas de pessoas entrando e saindo pelas portas automáticas. Não pude deixar de imaginar a própria loja comendo melancia e cuspindo as sementes. Eu me tornei um obstáculo enquanto estava parada na frente das portas, curtindo a brisa fresca que vinha de dentro, como uma exalação.
— Ok, você espera bem aqui agora.
— Miau.
O belo local de sombra que encontrei para ela já tinha um ocupante: um grande cachorro amarelo com uma coleira em volta do pescoço, muitas vezes maior que ela. Sem demonstrar o menor sinal de medo, ela se sentou ao lado dele. De repente, ciente de sua presença, ele olhou para ela e ela olhou para ele, e por algum tempo continuaram assim. Oh, minha nossa, este é o início de um novo romance?
Embora eu me preocupasse se uma garota perversa como ela poderia realmente trazer felicidade a um sujeito honesto como ele, decidi não interferir. Eu os deixei para trás e silenciosamente entrei pelas portas automáticas.
Cumprimentei o segurança como sempre. O guarda, que estava perto da porta como um vigia de um conto de fadas, respeitosamente retribuiu minha saudação. Inicialmente, presumi que os seguranças fossem policiais em uma missão, mas o guarda idoso me lembrava um feiticeiro e explicou uma vez que os guardas eram aliados da justiça, guardando os portões deste mercado.
Quando entrei, uma miríade de cheiros flutuou até meu minúsculo nariz.
Eu adorava ir a supermercados maiores. Não importa quantas vezes eu visitasse, sempre encontrava coisas que nunca tinha visto antes, nunca comido antes, e todas as minhas coisas favoritas enterradas entre elas. Isso me trazia a mesma alegria que sentia ao procurar um livro maravilhoso.
Encontrei as melancias rapidamente. Havia umas redondas e inteiras; e outras cortadas em fatias triangulares. Encontrei uma fatia que era grande o suficiente para mim e para a Senhorita Messalina e coloquei na minha cesta de compras. Também havia algumas em forma quadrangular. Nunca tendo visto tal coisa antes, fiquei chocada. Ao ver quanto dinheiro seria necessário para comprar uma delas, percebi rapidamente que, mesmo quando se tratava de melancias, as coisas diferentes eram mais caras.
Embora já tivesse encontrado o que vim buscar aqui, decidi dar uma olhada um pouco mais. Não tinha intenção de interferir nas buscas românticas da minha amiga e queria ficar dentro deste lugar legal só mais um pouco.
Eu vi peixes e vegetais, e, quando olhei para os cartões de receitas ao lado dos suprimentos de panificação, pensei em como queria ser como a Vovó um dia, então uma voz de repente me chamou.
— K-Koyanagi!
Eu me virei com a voz familiar. Me pergunto se meu rosto estava tão brilhante quanto o sol daquele dia.
— Oh, ei, Ogiwara! Está aqui para fazer compras?
— Sim, minha mãe me pediu. E você?
— Vim comprar melancia. Está quente lá fora.
— Sim, está muito quente hoje. Eu quero ir para algum planeta frio, como o Pequeno Príncipe.
Uma resposta muito a cara do Ogiwara, pensei. Pelo que eu sabia, ele e eu éramos os únicos em nossa turma que lemos aquele livro. Não falava com ele desde a época em que lhe contei a história do baobá. Na escola, ele estava sempre conversando com outra pessoa, então fiquei emocionada com a chance de conversarmos novamente.
Conversamos um pouco sobre Memórias de um Elefante Branco, que ele tinha acabado de ler. Foram cinco minutos? Dez? Rapidamente esqueci que tinha vindo para fazer algo que a Senhorita Messalina me pediu.
Só me lembrei do meu objetivo quando olhei para a melancia em minhas mãos. Enquanto a ideia de partir me atormentava, não conseguia deixar minha adorada Senhorita Messalina esperando. Era hora de ir.
Ogiwara e eu não éramos amigos. Só conversávamos de vez em quando. Nunca tínhamos almoçado juntos, nem mesmo um lanche. Além disso, eu não era a única com quem Ogiwara conversava. Ele era assim com todos na turma, até Kiriyuu. Mesmo assim, eu era capaz de conversar com ele tão facilmente quanto com a Senhorita Messalina ou a Minami. Ele era o único em nossa turma que era tão inteligente quanto eu.
Minha fatia de melancia estava ficando morna e troquei por outra. Então finalmente peguei meu lugar na fila do caixa. Depois de algum tempo na fila, entreguei minha melancia à moça da caixa registradora e paguei.
— Realizando alguma tarefa? — ela disse. — Isso é impressionante, jovenzinha.
Eu não achava nem um pouco.
— Obrigada, mas não acho que seja verdade.
Peguei uma sacola de compras branca e enfiei a melancia nela. Depois, de volta à casa da Senhorita Messalina… ou assim pensei.
Eu congelei quando ouvi uma voz alta.
Não conseguia acreditar.
Era como uma cena de um dos romances de mistério que eu tinha lido.
O som vinha da entrada do supermercado, uma cacofonia de vozes altas. Assustada, olhei para a comoção e vi dois guardas segurando alguém. Perto, vi outro guarda, pressionando o próprio rosto como se para verificar se havia algum ferimento. As vozes altas vinham das três pessoas no chão.
—Não se mexa! — gritou um dos guardas, enquanto berros incoerentes ecoavam pelo supermercado.
Eu não tinha ideia do porquê, mas a pessoa no chão parecia querer machucar alguém. Minhas pernas não queriam se mover.
O que estava acontecendo? Não entendi, mas estava bastante inquieta. Agitei as engrenagens dentro da minha cabecinha.
— Deve ser um ladrão de lojas. — disse um dos adultos próximos.
Um ladrão de lojas? Eu sabia o que era. Um ladrão, sim.
Aquele homem foi pego roubando? Isso eu entendia.
Mesmo que eu entendesse isso, ainda não conseguia me mover.
Foi só quando os guardas alertaram as pessoas que estavam por perto tirando fotos em seus celulares que minhas pernas decidiram se mover. Na época, ainda não tinha meu próprio telefone. Mesmo que tivesse, não tinha interesse em tirar fotos de pessoas más. Não pude ver seu rosto, mas não havia dúvida de que era assustador. O ladrão foi levado embora, mas o murmurinho na loja continuou.
As pessoas se espalharam como um enxame de formigas e aproveitei a abertura para fazer minha saída. Eu gostaria de ter deixado este lugar apenas um segundo antes, antes que uma coisa tão assustadora tivesse acontecido. Eu olhei ao sair, vendo pontos vermelhos onde a batalha ocorreu. Desviei meus olhos mais do que depressa e corri para fora, meu peito arfando com a respiração. Eu precisava desesperadamente abrir essa janela em meu coração. Esse ar quente embebeu amorosamente em meus pensamentos gelados.
— Miau.
Olhei para baixo e encontrei minha amiguinha olhando na minha direção, quase que furiosa. O cachorro amarelo já tinha partido.
— Qual é a desse olhar? Não esqueci de você. Muitas coisas aconteceram lá. Vamos voltar para a casa da Senhorita Messalina.
Tentei o meu melhor para esquecer o que tinha acontecido e caminhei com minha amiga descontente logo atrás. Cantei, carreguei-a mesmo quando não era necessário e perguntei-lhe sobre o cachorro amarelo. Ainda assim, uma névoa pairava sobre meu coração. Parecia muito com a vez em que ouvi minha mãe e meu pai gritando um com o outro.
Eu tinha a coragem e a retidão para advertir as pessoas quando estavam fazendo coisas erradas. Se eu tivesse visto aquela pessoa roubando, certamente teria dito algo. Então, por que meu coração estava tão confuso ao vê-lo apreendido? Eu não conseguia entender. Eu tinha testemunhado algo terrível. Foi tudo o que pude sentir.
Essa nebulosidade continuou mesmo depois que eu voltei para a casa da Senhorita Messalina. Eu deveria ter perguntado a ela sobre isso enquanto estava gelando a melancia para nós. No entanto, não tive interesse em falar. Eu não queria colocar em palavras e encontrar aquelas imagens e sons flutuando de volta à superfície da minha mente. Assim, decidi falar apenas de coisas agradáveis:
— Eu vi um menino da minha turma no mercado. Conversamos um pouco.
— Oh, você fez um amigo na turma? Fico feliz de ouvir isso. Eu estava preocupada porque você não tinha nenhum amigo na escola.
— Ele não é um amigo. Nunca conversamos sobre nada importante ou nos encontramos para sair. Além disso, eu já tenho você, esta pequenina, a Minami e a Vovó.
— Você deveria fazer amizade com as crianças da sua turma também, assim como eu, a Minami e a Vovó. Por que não tenta?
— Simples. Há muita distância entre nossos corações.
A Senhorita Messalina abriu a boca como se fosse dizer algo, mas se conteve.
— Entendo. — ela disse finalmente, com uma risada fina.
Por alguma razão, enquanto eu continuava a falar, o sorriso em seu rosto ficava cada vez mais largo.
— Aquele menino não é meu amigo, mas gosto de conversar com ele. É inteligente e sabe muito sobre livros. Gostaria de poder conversar mais com ele, mas ele é bom para todos. Gostaria que falasse mais comigo, em vez de com todos aqueles idiotas de cabeça vazia em nossa turma.
— Oh? — Ela parou de alinhar as sobrancelhas com um lápis e olhou para mim. A expressão em seu rosto não era o sorriso brilhante que normalmente usava, mas um sorriso malicioso. Quando os adultos fazem caretas assim, eles sempre pensam em algo diabólico. — Eu acho que você realmente gosta desse garoto.
— Sim, bem, acho que até eu posso gostar de um colega às vezes.
Havia mais um colega de turma de que eu poderia gostar, se ele conseguisse apenas criar mais coragem, mas não havia sinal de que tal coisa fosse acontecer. À parte o dia de observação de aula, ele sempre fugia de mim.
— Não foi isso que eu quis dizer. — ela disse.
— Não?
— Você está apaixonada por aquele menino, não é?
Tenho certeza de que estava apenas imaginando, mas podia sentir todo o meu rosto prestes a explodir.
— Sem chances. Eu não sei nada sobre ele.
— Isso na verdade não importa.
— Amor significa que você quer se casar com alguém, não é? Eu definitivamente não pensei nisso
— O casamento não é tudo o que existe no amor.
— O que é amor, então?
— Eu realmente não sei. Tenho certeza que você vai entender, com esse seu cérebro afiado, mocinha.
Não conseguia aceitar a ideia de haver algo que eu conheça que a Senhorita Messalina não saiba. Eu sabia que amor e casamento existiam. No entanto, eu não tinha interesse em fugir com Ogiwara como faziam os amantes das histórias, nem queria olhar profundamente em seus olhos. Eu só queria falar com ele!
Enquanto comíamos a melancia, decidi fazer uma pergunta à Senhorita Messalina:
— Existe alguém com quem você quer se casar?
— Não. Eu não acho que sou realmente o tipo de casar.
— Por que não?
Ela olhou para o teto e cantarolou para si mesma, pensando, antes de responder.
— É como um crème brûlée. É bom que você só possa ver as partes doces do amor quando se é criança. Na verdade, é absolutamente maravilhoso. Todo mundo sabe disso. Mas quando você é adulto, percebe que as partes amargas do pudim também estão lá e, mais cedo ou mais tarde, terá que comê-las. Mas não é como café e cerveja. Eu odeio as partes amargas do amor. Mas dá muito trabalho evitá-las, então, no fim, simplesmente parei de querer comer.
— Isso é complicado.
Muito mais do que matemática ou culinária, pensei.
— Quero dizer, há muitas pessoas que não se casam hoje em dia, de qualquer maneira.
— Eu também não acho que vou me casar quando crescer. A vida é como uma cama.
— O que quer dizer com isso?
— Uma só é o suficiente para dormir.
A Senhorita Messalina olhou para mim por um momento, e então deu a melhor risada que eu já tinha ouvido. Fiquei emocionada por ela ter gostado da minha piada; ela mastigou a melancia com alegria.
— Isso foi intencional? — ela perguntou.
Não entendendo a pergunta em si, apenas inclinei minha cabeça.
Naquela noite, como sempre, fiquei com sono por volta das dez horas, pensando em todo tipo de coisa. Eu me aconcheguei na minha cama quente e fui dormir.
No dia seguinte, quando cheguei à escola, um boato incompreensível circulava: o pai de Kiriyuu foi preso por roubo.
Não havia como um homem tão bom ter feito tal coisa, pensei. Eu queria forçar Kiriyuu a dizer que isso era uma mentira, mas acabou sendo impossível.
Kiriyuu não tinha vindo para a escola naquele dia, e quando perguntei à Professora Hitomi sobre isso, não consegui descobrir nada.
Nos dias seguintes, fiquei sem meu parceiro habitual. Enquanto Kiriyuu estava ausente, fiz dupla com a Professora Hitomi durante nossas discussões contínuas sobre felicidade. Eu não gostei desse novo arranjo. Na verdade, eu adorei, mas ainda não pude deixar de me preocupar com os rumores em torno de Kiriyuu. Eu estava particularmente preocupada, porque se os rumores fossem verdadeiros, havia uma chance de que estivessem relacionados à cena que testemunhei. E o pai gentil de Kiriyuu não parecia ser o tipo de pessoa que faria uma coisa tão ruim.
Passaram-se seis dias, com o fim de semana entre eles, antes que Kiriyuu aparecesse na escola novamente. Quando migrei da biblioteca para a sala de aula, pouco antes da chegada da Professora Hitomi, eu o vi subindo as escadas.
— Bom dia, Kiriyuu.
Esperei até que ele atingisse o mesmo nível que eu antes de cumprimentá-lo. Talvez não soubesse que eu estava ali, pois me olhou com os olhos arregalados e os ombros tremendo. Ele parecia que ia pular fora de sua pele ali mesmo.
— K-K-Koyanagi.
— Quanto tempo. Estava de férias?
Eu só podia ter esperança. No entanto, ele apenas baixou a cabeça e não respondeu.
— Eu entendo como você se sente. — disse, e quando ele não respondeu, continuei falando. — Está muito calor no Japão agora. Eu gostaria de poder ir para um lugar mais fresco.
Ele ergueu um pouco o rosto e olhou para mim, mas ainda não disse nada.
Quando entrei na sala de aula, ninguém me disse nada, como de costume, nem olharam na minha direção. No entanto, quando Kiriyuu entrou, toda a conversa parou e todos os olhos se voltaram para ele.
Deveria ter sido uma bênção ter a atenção de todos voltada para ele, mas em vez disso parecia um vento frio. Eu me perguntei se Kiriyuu poderia morrer congelado. Apesar das minhas preocupações, não havia chance de isso acontecer, pois a Professora Hitomi logo entrou. Isso era típico dela, sempre pontual. Quando ela entrou na sala de aula, nos cumprimentando em voz alta e chamando a atenção da turma, Kiriyuu e eu aproveitamos a oportunidade para deslizar para o fundo e irmos para nossos assentos.
Achei que a Professora Hitomi pudesse ter alguma explicação sobre o motivo do Kiriyuu ter faltado aula, mas ela não disse nada. Ela deu seus anúncios matinais como se Kiriyuu não tivesse perdido um único dia, então deixou a sala de aula novamente.
— Professora Hitomi!
Corri atrás dela quando partiu. Ela não demonstrou a mesma surpresa de Kiriyuu antes. Talvez soubesse que eu a estava seguindo e que queria fazer-lhe uma pergunta. Ela sorriu quando se virou, mas pude ver o tipo de expressão séria que os adultos faziam quando tinham algo desagradável para dizer.
— Qual é o problema, Koyanagi? Você está tendo dificuldade para revisar seu dever de matemática para o próximo período?
— Não, meu dever de casa está perfeito. Mas, professora, há algo que quero saber.
— O quê?
— É sobre o Kiriyuu.
Embora ainda estivesse sorrindo, ela mordeu o lábio e me levou a uma sala desocupada no final do corredor. Nunca me importei em ter uma conversa secreta.
Ela se agachou para encontrar meus olhos e sussurrou em uma voz muito mais suave do que o normal. Eu finalmente aprenderia algo. Eu escutei com atenção extasiada.
— Já houveram momentos em que você não queria vir para a escola? — ela perguntou.
— Todos os dias — respondi. — mas ainda venho, porque eu quero ficar mais inteligente. E porque gosto de ver você.
Ela deu um sorriso complicado.
— Bem, então tenho certeza de que há dias em que você absolutamente não quer vir, como o último dia das férias de verão e as segundas-feiras, certo?
Com certeza, havia muitas vezes no fim de semana e férias em que eu desejava poder usar magia, então concordei com a cabeça. Quando o fiz, ela acenou de volta.
— Né? Portanto, é preciso muita coragem e força de vontade para vir à escola nesses dias.
— E deliciosos doces.
— Sim, exatamente. Então, embora Kiriyuu tenha tido que tirar um tempo da escola para fazer algumas coisas importantes, foi preciso muita coragem e força de vontade para ele voltar hoje depois de todo aquele tempo longe, sabe?
— Entendi.
Ainda mais para um covarde como Kiriyuu, pensei.
Quando eu balancei a cabeça, ela sorriu feliz.
— Posso ser capaz de preparar alguns doces deliciosos para mais tarde, mas enquanto isso, Kiriyuu precisará de aliados na sala de aula para ajudá-lo a reunir essa coragem e força. Eu quero que você seja um desses aliados.
— Mas eu nunca fui inimiga dele.
— Isso é verdade. Então, eu quero que você continue assim. Basta falar com ele, sentar-se ao seu lado e almoçar juntos, como sempre faz. Você pode fazer isso?
— Ah, isso eu posso fazer. Não é como se tivesse brotado um chifre na cabeça dele.
Ela deu uma risadinha. Sua expressão era a mesma que tinha usado quando fiz minha apresentação no dia de observação.
— Estou feliz por poder contar com você. Se o Kiriyuu ainda parecer que está passando por momentos difíceis, mesmo com sua ajuda, venha e me diga, ok? Ele provavelmente não será capaz de me dizer pessoalmente.
— Porque ele é covarde.
— Não é isso. Ele não poderia ter vindo para a escola hoje se não fosse corajoso.
Kiriyuu? Corajoso? Eu não podia aceitar isso apenas pelas palavras dela, mas ainda assim balancei a cabeça e me despedi.
Qual era esse assunto importante que Kiriyuu precisava cuidar? Eu ponderei sobre isso enquanto voltava para a sala de aula. Decidi perguntar a ele sobre isso mais tarde. A Professora Hitomi me disse para agir normalmente perto dele, então tudo bem.
Quando entrei na sala de aula, pude sentir um ar frio circulando ao redor do Kiriyuu. Aproximei-me dele para romper aquele ciclone.
— Com licença — eu disse, empurrando para o lado a franja caída do Kiriyuu.
Ele parecia totalmente chocado, mas eu tinha repartido seu cabelo de maneira completa, o que me permitiu ter uma visão clara de sua testa. Como já esperava, não encontrei nada lá. Sentei-me e ele olhou para mim com surpresa e curiosidade.
— A Professora Hitomi estava fazendo uma cara tão séria que fiquei preocupada que tenha brotado um chifre em você. É bom que não tenha um. Desculpa a surpresa aí.
Mesmo enquanto eu dava uma explicação clara para meu comportamento, o choque e a curiosidade não sumiram de seus olhos. Ele era o mesmo Kiriyuu covarde de sempre.
Decidi que perguntaria a ele sobre seu importante assunto quando fosse a hora de voltar para casa. Eu sempre ficava sozinha no final do dia, e ele também. Tudo que tinha que fazer era puxar ele para um lado e perguntar. Ou assim pensei, mas a vida é como um pai.
Em outras palavras, você nunca consegue o que quer.
— Ei, seu pai é um ladrão, não é?
Aconteceu durante o intervalo da tarde. Normalmente depois do almoço, quando a Professora Hitomi estava fora e a sala de aula ficava barulhenta, a maioria das crianças iam brincar no pátio ou para a sala de música com o piano. Mas hoje, vários optaram por ficar e conversar com Kiriyuu. Claro, foram aqueles garotos idiotas.
Normalmente, eu partia logo para a briga, mas por enquanto escolhi assistir e deixar as coisas seguirem seu curso. Quer os rumores sobre o pai de Kiriyuu fossem verdadeiros ou não, eu sabia que as pessoas diriam coisas ruins sobre ele de agora em diante. Se ao menos ele tivesse coragem, pensei, seria capaz de evitar essas coisas terríveis por conta própria.
Desisti de começar uma briga para ver o que Kiriyuu diria, mas tudo o que ele fez foi baixar a cabeça, como sempre.
Isso não é bom, pensei. A idiotice desses meninos era tanta que, se o oponente não dissesse nada, eles interpretariam como um sinal de que estavam certos.
— Ouvi da minha mãe que seu pai foi pego roubando de um supermercado em Ni-chome.
Eu ponderei sobre isso enquanto observava o rosto do Kiriyuu. Com certeza, a cena que testemunhei no supermercado foi atribuída ao pai de Kiriyuu. Mesmo assim, não sabia se era verdade.
Kiriyuu não disse nada e não olhou para ninguém, ainda com a cabeça baixa.
Isso não agradou aos idiotas.
— Faz sentido que omaluco desenhista tenha um cara mau como pai.
Ainda assim, Kiriyuu não disse nada.
— Ah, sim, quando a régua de Takahashi sumiu, aposto que foi sua culpa, não foi? —
Nada ainda.
— O filho de um ladrão também deve ser um ladrão. Ainda bem que não nasci em uma família como a sua.
Ah, desculpe, não posso continuar esperando, Kiriyuu…
— Vocês são tão estúpidos assim? — falei.
Os olhos dos idiotas caíram em mim de uma vez.
— Oh? Não lembro de ter dito quem era o estúpido. Acho que todos vocês mesmos perceberam.
— Hein?
Os meninos — o principal idiota em particular — olharam para mim. Mas não tive medo. O que eu senti por Kiriyuu foi muito mais forte do que isso. Em vez disso, descontei naqueles meninos, mas aquele para quem eu realmente queria gritar era Kiriyuu.
Seu covarde!
— O filho de um ladrão é um ladrão? Que provas você tem? Você realmente achou que “ladrão” era o nome de um animal ou algo assim? Por essa lógica, isso deve significar que sua mãe e seu pai são idiotas, igual a você. Mas eles não são. Tenho certeza de que até um idiota como você teve uma educação adequada, o que significa que se tornou um idiota sozinho. Sinto muito por seus pais, por ter um filho que é um grande idiota.
O rosto do menino estava ficando cada vez mais vermelho. Ele estava irritado. Até suas reações foram idiotas. Ainda assim, preferi sua reação à de Kiriyuu. Ele nem conseguia ficar com raiva, mesmo quando as pessoas mais preciosas para ele estavam sendo ridicularizadas. Foi apenas minha promessa à Professora Hitomi que me impediu de dizer qualquer coisa para Kiriyuu.
Os garotos idiotas pareciam estar prontos para jogar algo em mim. Mas, ao contrário deles, eu era inteligente. Eu tinha muitas palavras para lançar de volta.
— De qualquer forma, é apenas um boato de que o pai do Kiriyuu roubou algo. Vocês todos são realmente idiotas se acreditam em qualquer rumor sem qualquer prova.
— Mas as pessoas o viram!
— Mas você não o viu, não é? Então, essas pessoas podem ter confundido o que viram.
— Isso não é da sua conta!
— Oh? Mas também não é da sua, é? Mesmo se fosse verdade…
Quando todas as palavras dentro de mim saíram…
— Parem com isso!
Uma voz alta ecoou pela sala de aula. No começo, eu não tinha ideia de onde veio. Não era minha voz. Não era a voz do garoto idiota. Era uma voz que eu nunca tinha ouvido antes.
Assim que percebi que a voz veio do Kiriyuu, também percebi que ele estava, por algum motivo, olhando para mim com aqueles olhos trágicos.
Ele estava me dizendo para parar.
Enquanto eu estava lá, sem entender porque ele teria dito tal coisa, Kiriyuu levantou-se violentamente, sua cadeira caindo no chão com um som ecoante.
Então, enquanto o som ainda estava no ar, ele deixou a sala de aula sem dizer uma palavra. Depois disso, todos ficaram em silêncio. Até mesmo o quadro-negro, as mesas e cadeiras estavam segurando suas línguas. Esse era o nível de silêncio que a sala alcançou.
Mesmo quando o quinto período começou, Kiriyuu não voltou. Mesmo quando os anúncios da tarde se aproximavam do fim, não havia sinal dele.
A Professora Hitomi me puxou para um lado, e eu contei a ela claramente o que aconteceu durante o intervalo. Eu também disse que, apesar de minha briga no lugar dele, era para mim que ele estava olhando quando saiu. Quando perguntei a ela o que deveria fazer, ela me disse que tentaria falar com Kiriyuu e me mandou para casa.
Kiriyuu não estava na escola no dia seguinte.
Nem no dia seguinte, nem no próximo.
Um dia, a Professora Hitomi me puxou de lado novamente e disse que Kiriyuu não voltaria por algum tempo.
— Não se preocupe, Koyanagi — ela me assegurou. — Não foi sua culpa.
Ainda assim, eu sabia. Sempre que um adulto falava com você dessa forma, ele realmente queria dizer:
— Você não estava totalmente errado, mas ainda foi o responsável.
Mesmo que tudo o que eu tivesse feito fosse agir em nome dele. Como sempre, ela estava um pouco errada.
Estava chovendo. Fui à casa da Senhorita Messalina e contei a ela tudo o que tinha acontecido. Pedi desculpas por não ter falado nada no dia em que fui comprar a melancia. Eu disse a ela, honestamente, que não queria colocar isso em palavras.
Ela não estava com raiva de mim por ter ficado quieta. Quando ouviu minha história, deu um aceno de cabeça que me disse que entendeu.
— Você deve ter percebido isso. — ela disse.
— Percebido o quê?
— Que os adultos são assustadores.
Provavelmente sim, pensei. Talvez tenha sido por isso que me senti da mesma maneira quando minha mãe e meu pai estavam brigando.
Eu também disse a ela que havia uma chance de a pessoa que foi pega ser o pai de um de meus colegas de turma. Embora eu tivesse dito “havia uma chance”, a julgar pela forma como Kiriyuu estava agindo em sala de aula, essa pergunta foi respondida.
Contei a ela que tipo de pessoa era o pai do Kiriyuu, sobre sua bondade e como o vi no parque. Ela deixou escapar um suspiro.
— Entendo. — murmurou.
— Por que ele estaria roubando? E de um supermercado? — Meu pai poderia comprar o que quisesse no supermercado. Afinal, o mais caro eram aquelas melancias quadradas. — Você sabe algo sobre isso, Senhorita Messalina? Por que ele teria feito algo assim?
Ultimamente, minha cabecinha tem estado totalmente ocupada com essa pergunta. Por quê, por quê? Essa palavra girava em torno do meu crânio. Por que ele faria isso? Por que Kiriyuu me olhou daquele jeito? Achei que se a Senhorita Messalina entendesse, ela poderia me explicar.
No entanto, ela balançou a cabeça.
— Hmm, por que será…
Se ela não entendia, não importa o quanto eu pensasse sobre isso, provavelmente também não entenderia. Fiquei um pouco decepcionada.
— Mas… — continuou. — Bem, isso é apenas uma teoria, mas…
— Hein?
— É apenas minha própria teoria; não é a verdade. Gostaria de ouvir?
— Diga-me, por favor.
— Aquele homem, o homem que estava roubando, provavelmente queria sair.
— Sair? Sair do quê?
— Da sua vida cotidiana. Nada mais importa para ele, então queria sair daqueles dias sem fim.
— Não entendi.
— Nem precisa. Está tudo bem não saber, mocinha.
— Você entendeu, Senhorita Messalina?
A Senhorita Messalina não respondeu. Em vez disso, ela me perguntou se eu gostaria de comer um sorvete. Felizmente aceitei o sorvete de laranja, mas havia algo estranho nele. O sabor parecia muito mais fraco do que antes.
Conversamos sobre meu colega de classe e minha única preocupação com o ladrão. Falei sobre o fato de Kiriyuu ter ficado bravo comigo, embora eu tivesse lutado por ele, porque era tão covarde. Falei a ela que não entendia porque isso aconteceu e que não sabia o que fazer por Kiriyuu, que nem mesmo estava indo para a escola. Mesmo eu tendo sido sua aliada, assim como a Professora Hitomi pediu.
Embora isso fosse uma preocupação séria para mim, por algum motivo a Senhorita Messalina riu. Inclinei minha cabeça, me perguntando se ela tinha confundido algo com uma piada.
— Desculpe, desculpe. — ela disse. — Sabe, quando eu era criança, era exatamente como você. Se eu estava infeliz com alguma coisa, começava a brigar pelas pessoas antes que elas mesmas pudessem fazer isso. Se posso falar a verdade, diria que eram as crianças que não conseguiam responder que mais me irritavam.
— É exatamente isso!
Fiquei emocionada ao saber que eu era como a Senhorita Messalina quando ela era pequena. Eu gostaria de poder ouvir mais sobre sua infância. Que tipo de família ela tinha? Que tipo de amigos? Ela tinha algum estranho hábito de falar que nem eu?
— Eu era do tipo que sempre fala o que pensa, assim como você. Eu realmente não sei o que Kiriyuu estava pensando. Posso imaginar, mas não sei se é verdade.
— Eu ainda gostaria de ouvir, se você não se importa.
— Hmm? — disse ela, inclinando a cabeça. — Não, não vou.
— Por que não?
— Você quer tentar fazer as pazes com ele, não é?
— Acho que sim. Quer dizer, nunca nos demos muito bem, em primeiro lugar.
Ela riu novamente.
— Você realmente é como eu. — ela disse calmamente. — Se você não se importa muito em fazer as pazes com ele, então não precisa pensar muito sobre os sentimentos dele.
Isso era verdade, eu suponho. Eu não tinha ideia do porquê estava pensando tanto nisso, então parecia uma resposta justa.
— Considerando o quanto você já pensou sobre isso, deve dar sua própria resposta e então decidir o que fazer. É por isso que não vou dizer o que estou pensando.
Ela me lançou um olhar diabólico e cruzou os lábios com o dedo, embora murmurasse baixinho por trás disso:
— Porque eu desisti. — ela disse, tão baixinho que eu não tinha certeza se tinha ouvido isto.
— Está bem. Vou pensar nisso sozinha. Mas, sabe, a vida é como um fantasma.
— E o que isso quer dizer?
— Sempre há uma dica.
Enquanto desenhava as letras com o dedo no ar, ela imediatamente decifrou o que eu estava tentando dizer.
— Uma assombração? Tão inteligente como sempre, pelo que vejo. — Ela me elogiou. — Então, uma dica? Bem, eu posso te dar uma dica. Não pela resposta, mas por como pensar sobre isso.
— Ok.
— Pronta?
Ela ergueu o dedo indicador e se aproximou de mim. Senti meu coração bater forte ao ver aqueles lábios elegantes e vermelhos se aproximando. Eu escutei atentamente.
— Todo mundo é diferente. Mas somos todos iguais.
— Hein?
Eu fiz uma cara estranha. Devo ter parecido muito boba, com os lábios e as sobrancelhas franzidos, pois ela riu. Tenho certeza de que se me visse no espelho também teria rido.
— Isso é estranho. — disse. — É como… algo sobre a lança mais forte contra o escudo mais forte.
— Uma contradição.
— Certo, isso. Diferente, mas igual…
O interior da minha cabecinha girava tão rápido que pensei que meus olhos iam girar.
— Sim, é estranho. É por isso que minha dica guiará seu pensamento. Vou dar um passo adiante e dar-lhe mais essa dica: você é uma criança e eu sou uma adulta, mas nós duas gostamos de Othello.
— Hmm, vou ter que pensar muito mais sobre isso.
— Sim, continue pensando sobre e venha com sua resposta. Levaria muito tempo para eu pensar nisso, mas você é gentil e inteligente, então tenho certeza de que se sairá bem.
— Será que eu realmente conseguiria algo que nem você realmente entende?
— Você vai se sair bem. Quer saber? Tenho certeza que a Vovó poderia lhe dar uma dica ainda melhor. Você deveria ir perguntar a ela sobre isso.
— Eu vou amanhã, então. Não vou à casa dela nos dias de chuva. Eu fico toda enlameada.
A Senhorita Messalina sorriu gentilmente, olhando para o céu fora da janela.
— Espero que esteja tudo claro amanhã.
— Eu também.
No dia seguinte, como se suas orações tivessem sido atendidas, o céu concedeu a luz do sol à Terra, clara e impassível. Até mesmo o solo encharcado tinha se firmado quando a escola terminou, e nem meus sapatos favoritos nem o casaco fino da Senhorita Bobtail acabaram sujos.
Pegamos a bifurcação certa no caminho que conduz à colina. Embora eu estivesse feliz com o tempo claro, estava ficando mais e mais quente a cada dia, e comecei a me preocupar com a possibilidade de secar de tanto suar. Tentei encurtar magicamente o caminho para a casa da Vovó, mas então me lembrei que não sabia fazer mágica.
As sombras caíam sobre o caminho da montanha, e minha amiguinha subiu a colina com muito mais entusiasmo do que quando caminhava pelas ruas de concreto da cidade.
Finalmente, pensei quando chegamos à casa e corri para bater na porta. Só então percebi que havia um pedaço de papel preso nela. Eu li as palavras em voz alta para o benefício da minha amiguinha enérgica.
— Nacchan, a porta está destrancada. Venha quando quiser.
Eu olhei para os olhos dourados da minha amiga, então envolvi minha mão em torno da maçaneta. Exatamente como dizia o bilhete, a porta se abriu facilmente.
— Olá! — cumprimentei quando entrei, mas me deparei com a casa em silêncio.
Normalmente, eu ouviria a Vovó e sentiria o cheiro do doce que ela estaria assando, mas hoje não senti nada disso.
— Será que saiu?
— Miau.
Limpei as patas da Senhorita Bobtail com o pano úmido que tinha sido colocado na porta da frente e entramos juntos, mas não ouvíamos nada além de nossos próprios passos.
Primeiro fui para a sala, onde o sol sempre brilhava fortemente. Eu costumava encontrar a Vovó lá, bebendo chá ou lendo um livro. No entanto, a sala estava vazia. Sem sua presença, o espaço parecia muito maior do que o normal. Eu geralmente gostava de espaços abertos, mas havia algo peculiar nisso. Tudo o que a sala fez foi provocar uma espécie de murmúrio em meu coração.
Não gostei dessa sensação, então decidi ir para a cozinha. Talvez ela estivesse cozinhando algo que não produzisse nenhum som ou cheiro. No entanto, também não houve nada disso. Não havia ninguém presente na cozinha organizada, e o vazio e a quietude desse lugar apenas irritaram meu coração ainda mais.
Parecia que ela não estava em casa. Talvez tivesse saído para fazer compras. Mais uma vez, olhei nos olhos da minha amiguinha e continuamos pelo corredor até a sala de estar, como se esse tivesse sido o plano o tempo todo.
Era difícil para o sol alcançar aquele corredor escuro, e por apenas um segundo eu desejei sair. No entanto, eu tinha lido muitas histórias e sabia que, se você corresse em um momento como este, qualquer coisa assustadora que estivesse atrás de você iria me pegar mais rápido. Então, desci o corredor passo a passo, gritando silenciosamente que não havia graça em me perseguir.
Passamos por vários quartos, mas a maioria deles estava vazia. Eles tinham armários e prateleiras, mas além disso, estavam desertos, sem vestígios de vida humana. Parecia que a família da Vovó poderia ter morado aqui uma vez. O que quer que estivesse dentro desses quartos, saiu junto com sua família. Agora havia apenas conchas vazias. O único cômodo que não estava vazio era o quarto da Vovó. Eu já tinha estado naquele cômodo muitas vezes. Havia a cama da Vovó e sua estante, de onde ela tirava livros para me mostrar.
Assim que passei pela porta do quarto dela, meus pés pararam de repente. Talvez ela esteja dormindo na cama, pensei. Chamei minha amiguinha, seu pelo se misturava com a escuridão do corredor, e bati na porta de vidro. Eu abri, mas descobri que ela também não estava lá.
Devíamos ter deixado o quarto imediatamente e voltado para a sala de estar quente e ensolarada. Em vez disso, eu apenas fiquei lá, imóvel.
Houve uma razão particular para isso. Por fim, entrei no quarto, abrindo as cortinas. Quando um pouco de luz entrou, eu pude distinguir os objetos ali. As cores do item que espiei pareciam ter vida própria.
Estava fixado na parede. Eu dei um passo mais perto e depois outro. Naqueles poucos segundos, esqueci tudo sobre minha amiguinha, e talvez até mesmo da Vovó também.
— É tão bonito.
Eu era muito jovem para saber como escrever os caracteres complexos da palavra kirei, “bonito”. Em vez disso, a palavra estava impregnada de todas as imagens rabiscadas invisivelmente em meu coração. Eu só tinha a intenção de pronunciá-la silenciosamente, mas meus sentimentos pareciam ter escapado.
Era uma pintura linda, com muitas camadas de cores. Transbordava de tanto poder. Eu senti que isso poderia me sugar por completo. Não conseguia desviar meus olhos. Talvez eu tivesse de fato entrado no mundo dessa pintura, ainda que brevemente. Só percebi que a Vovó tinha aparecido ao meu lado quando ouvi sua voz suave.
— Nacchan.
Normalmente, eu iria pular de surpresa, mas fui capaz de manter a calma enquanto lentamente me virava para olhar para ela.
— De onde veio esse quadro? — perguntei. Eu não tinha visto isso da última vez que estive aqui.
— Meu amigo fez isso para mim há algum tempo. Eu costumava pendurá-lo no escritório no segundo andar, mas não uso mais o escritório, então decidi trazê-lo para cá.
Agora que pensei sobre isso, nunca perguntei que tipo de trabalho ela tinha. Embora eu tenha pensado nisso agora, eu estava mais interessada na pintura.
— Como alguém poderia fazer um desenho como este?
Minha pergunta não era suspeita. Embora só descobrisse mais tarde que havia uma palavra para o que estava sentindo: admiração.
— Você tem alguns amigos realmente talentosos. — eu disse.
Eu realmente atribuí isso ao talento. Nunca seria capaz de fazer um desenho tão esplêndido, não importa quanto tempo eu praticasse. Poderia mais facilmente me imaginar uma princesa ou uma empresária. Somente uma pessoa com mãos especiais poderia criar uma imagem tão mágica.
Vovó, no entanto, balançou a cabeça.
— Não é só talento. Não existem tantas pessoas tão talentosas quanto o homem que pintou isto, mas existem outras.
— Sem chances.
Eu não podia acreditar. Havia várias pessoas neste mundo que poderiam fazer desenhos assim? Isso foi mais chocante do que se ela tivesse me dito que havia feiticeiros entre nós.
— Existem mais pessoas talentosas lá fora do que você pensa. No entanto, é preciso mais do que apenas talento para pintar um quadro como este.
— O que é preciso, então? Dedicação?
— Claro, mas há algo ainda mais importante do que isso. Nunca conheci ninguém que gostasse mais de desenhar do que o homem que pintou isso. Vivi muito mais tempo do que você e conheci muitas pessoas, mas nunca conheci alguém que tivesse a arte em mente mais do que ele.
— Então, é preciso amor para fazer um desenho assim?
— Sim. Só alguém que dá tudo de si pode fazer algo tão verdadeiramente incrível.
Embora não me lembre, deve ter sido por isso que fiquei tão comovida com a história da Minami, pensei. Então me ocorreu que havia alguém sobre quem eu gostaria de perguntar.
— Pessoas talentosas e que amam o que fazem não devem se envergonhar disso.
— Você tinha um amigo assim, não é?
— Ele não é meu amigo. Mas desenha. Ele parece muito envergonhado sobre isso, no entanto. Ei, Vovó, o que a pessoa que desenhou essa imagem está fazendo agora?
— Ele está morando em outro país com sua família.
— Entendo. Por alguma razão, pensei que poderia ter sido seu namorado.
Eu ainda não conseguia tirar os olhos da pintura, então não tinha ideia de como ela parecia naquela época, mas eu poderia dizer pelo seu tom que estava gostando de falar comigo.
— E por quê?
— Porque diz “love” bem aqui.
Apontei para o canto direito da imagem. Eu não sabia ler em inglês, mas ao menos poderia decifrar isso. A palavra em inglês que estava escrita lá era “amor”, eu tinha certeza.
No entanto…
— Hee, Nacchan, isso não quer dizer “love”. Love é soletrado L-O-V-E. Aqui está L-I-V-E. É pronunciado “live”.
Eu cheguei o mais perto que pude do quadro e, com certeza, Live estava escrito lá. Além disso, embora eu não soubesse o significado, estavam as letras M-E. “Viver …o quê?”
— Viver… o quê?
“Live Me. Me significa eu. Juntos, significam “Deixe-me viver”, embora na verdade a gramática esteja errada. É a assinatura do artista. Tipo uma brincadeira.
Por não saber inglês, não entendi a brincadeira. Eu só consegui inclinar minha cabeça.
— A vida realmente é como uma dieta.
— Você consegue resultados por meio do esforço?
— Não, as coisas não são divertidas quando você é muito denso. Não quando se trata de moda ou piadas.
— Entendi!
— Aham. Então eu preciso ficar mais esperta.
— Você vai. Então, vamos fazer algo que é tão importante quanto estudar. Posso te pedir para fazer um trabalho para mim?
— Trabalho? O que é? — perguntei.
Ela sorriu maldosamente para mim e ergueu algo. Meu rosto se iluminou de alegria, eu sabia exatamente para que era.
— Raspe um pouco de gelo para mim. No verão, comer raspadinha é tão importante quanto fazer lição de casa, não é?
— Com certeza!
Aparentemente, ela estava no segundo andar, procurando a máquina de raspadinha. Não era de admirar que eu não tivesse conseguido encontrá-la.
Com o cheiro daquele desenho maravilhoso ainda pairando em minhas narinas, decidimos ir para a fresca sala de estar e fazer nossa raspadinha lá. Recuperamos um bloco em forma de quadrado da prateleira de baixo do freezer da Vovó e o raspei com todas as minhas forças. A Vovó preparou a calda e as colheres, enquanto a Senhorita Bobtail circulava, alegre, como se nunca tivesse visto uma raspadinha antes. Finalmente, ela se jogou de costas, olhando ao redor.
Eu derramei calda vermelho-brilhante na montanha de gelo fresco e nevado. Adorava todos os sabores, mas hoje estava com vontade de comer o de morango. Vovó parecia ter a mesma opinião, e nós duas comemos juntas, tingindo nossas línguas de vermelho. Quanto à minha amiga de olhos dourados; embora eu tivesse me dado ao trabalho de servir calda para ela também, minha amiguinha parecia estar interessada apenas nas partes sem ela, então raspei mais um pouco do bloco em um prato. Logo, ela estava felizmente lambendo a pilha de gelo, perdida em sua própria satisfação. Talvez apenas quisesse evitar manchar sua pequena língua.
Enquanto comíamos nossa raspadinha, contei à Vovó tudo o que estava acontecendo, incluindo o que a Senhorita Messalina me contou. Achei que a Vovó pudesse me dar alguma resposta, mas ela apenas disse a mesma coisa que a Senhorita Messalina.
— Bem, vejamos. Eu acho que isso realmente é algo em que você tem que pensar por conta própria.
— Eu sei. É por isso que vim pedir uma dica.
— Uma dica, hm?
A Vovó tomou um gole do chá que preparou para acalmar o estômago. Eu pensei sobre isso, me perguntando que tipo de dica eu deveria pedir. Enquanto isso, minha amiga banhada no sol estava deitada ao meu lado, sem pensar em absolutamente nada.
— Diga, Vovó. Seu amigo, aquele que pintou aquele quadro, que tipo de pessoa ele era?
— Hm?
— Meu colega, aquele que não tem vindo à escola, ele também gosta de desenhar. Achei que você pudesse saber muito sobre as pessoas que desenham.
— Entendo. — Ela sorriu, ainda mais calorosamente do que a Senhorita Messalina. — Como outros artistas, esse meu amigo era uma pessoa incrivelmente delicada. Artistas se machucam facilmente e são mais fracos do que outros em muitos aspectos.
— Sei muito bem disso.
— Mas eles também são mais gentis e puros do que qualquer outra pessoa. As pessoas que fazem arte podem ver o mundo com clareza. As coisas boas e ruins chegam a eles mais diretamente do que a qualquer outra pessoa. As imagens que desenham não são como fotos. Quando olha para elas, você vê como o mundo parece para eles.
Tentei pensar nos desenhos que tinha visto em minha vida e nos desenhos de Kiriyuu. Eles eram como mágica. Certamente não via o mundo dessa forma. Ainda assim, se a pintura no quarto da Vovó refletisse a verdadeira forma do mundo, então o mundo poderia ser realmente um lugar lindo.
— Nunca poderia haver dor ou tristeza em um mundo tão bonito. — eu disse.
— Sim, isso é verdade. E ainda, há dor e tristeza neste mundo, não há? Na verdade, esses lugares nunca poderiam existir em nosso mundo. Os artistas sabem disso. É por isso que eles sentem dor, dor esta que é muito mais forte.
Pensei no rosto de Kiriyuu quando ele estava sendo ridicularizado.
De uma forma ou de outra, acho que entendi exatamente o que a Vovó estava dizendo.
— Mesmo que isso não fosse verdade, é apenas da natureza humana que as coisas ruins permaneçam em nossos corações por mais tempo do que as boas.
Na verdade, o que testemunhei no supermercado e a visão dos olhos de Kiriyuu ficaram gravados profundamente em meu coração, mais do que todas as coisas maravilhosas que aconteceram nos dias seguintes.
Então pensei nas lágrimas da Minami.
— É o mesmo para quem escreve histórias?
— Sim, provavelmente. No entanto, acho que as pessoas que desenham são ainda mais solitárias do que os escritores. Histórias são feitas de palavras, não são? Palavras são muito mais fáceis de transmitir do que imagens.
— Acho que vou pelas histórias, então. Eu quero ser capaz de compartilhar o que está em meu coração diretamente… Sim, não há outro caminho para mim.
Quando me levantei, segurando meu prato de raspadinha e cheia de determinação, a Vovó deu uma risada elegante.
— Descobriu alguma coisa?
— Sim. Prometi à Professora Hitomi que seria aliada daquele artista covarde. Em primeiro lugar, tenho que dizer isso a ele.
— Se essa for sua decisão, eu aprovo. No entanto, há uma chance de que o menino seja menos covarde do que você pensa.
— A Professora Hitomi disse a mesma coisa. Ele realmente é um covarde, no entanto. Medroso também. Ele nem consegue dizer como se sente.
E ainda, quando olhou para mim, eu senti como se seus olhos estivessem transmitindo suas verdadeiras emoções.
Naquela noite, depois que voltei da casa da Vovó, não consegui tirar o Kiriyuu da minha mente, mesmo enquanto jantava, escovava os dentes e subia na cama. Não há como saber tudo sobre outra pessoa, então você tem que pensar. Mas não importa o quanto eu pensasse, tudo em que conseguia pensar era em nossas diferenças. Não consegui encontrar uma única maneira de sermos iguais, como a Senhorita Messalina tinha subentendido.
Além disso, ainda havia uma coisa que eu precisava desesperadamente considerar: como devo dizer a ele que sou sua aliada? Por carta? Por telefone? Não podia mandar uma mensagem para ele, já que não tinha um celular.
E então…
Tradução: SoldSoul
Revisão: Guilherme
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