— Ugh!
O ar lhe escapou dos pulmões quando suas costas bateram no chão.
Ronie arrancou o lençol que lhe cobria o rosto e se debateu na escuridão por alguns instantes antes de perceber que estava em seu próprio quarto. Havia caído da cama durante o sono.
Lá fora, apenas escuridão. Ronie juntou seus cobertores e voltou para a cama.
Já era final de fevereiro e, embora a luz do sol estivesse esquentando, a madrugada ainda era gelada. Se ao menos a Catedral Central tivesse o mesmo sistema de aquecimento de água natural que o Palácio de Obsidia, lá no Território das Trevas, desejou ela com um suspiro, encolhendo-se sob as cobertas.
Ronie não costumava ter um sono agitado — pelo menos, não que soubesse —, mas era óbvio que o sonho sobre aquele dia terrível a fizera se debater o suficiente para cair da cama. Geralmente, ela esquecia o sonho assim que acordava, mas, desta vez, o pesadelo continuava vívido em sua mente.
Seu retorno a Centoria, após a Guerra do Outromundo, ocorrera em meados de novembro do ano 380 da Era Humana. O Conselho de Unificação Humana fora convocado em dezembro, e a Rebelião dos Quatro Impérios acontecera em fevereiro de 381, o que significava que fazia exatamente um ano que Ronie e Tiese haviam cruzado espadas com o Imperador Cruiga Norlangarth.
Talvez fosse por isso que tivera o sonho. Por que as pessoas sonham, afinal?, ponderou, esperando que a fada do sono a visitasse, mas suas pálpebras não pesaram novamente. Depois de três minutos sem conseguir dormir, os sinos das cinco horas soaram suavemente lá fora, então ela se rendeu e sentou-se.
Desta vez, Ronie pousou os pés firmemente no chão, enrolou um pesado xale sobre os ombros e alcançou a luminária na mesa. Girou um grande parafuso no meio do corpo do objeto, fazendo a água que preenchia o recipiente de vidro fluir para um compartimento inferior. Isso expôs uma rocha mineral do tamanho de um ovo grande dentro da lâmpada, que, por sua vez, começou a brilhar com sua própria luz natural, um amarelo suave.
Quando voltaram das terras escuras há dois dias, Kirito tinha cerca de dez das famosas lâmpadas de minério de Obsidia guardadas no compartimento de carga de seu dragoncraft, as quais ele distribuiu, incluindo uma para Ronie e outra para Tiese. Não só era simples de acender — bastava drenar a água para acendê-la e virá-la para a água retornar e apagá-la —, as lâmpadas de minério também eram mais fáceis de usar do que as tradicionais lamparinas a óleo e até mesmo as lâmpadas de elemento de luz da catedral, porque não exigiam a geração de elementos.
Claro, as pedras — chamavam-nas de luminores, aparentemente — não queimavam por um período eterno. Se as deixasse expostas, elas acabariam se apagando em cerca de quatro dias. Então, mesmo que fosse muito cuidadosa ao apagar a lâmpada, ela duraria, no máximo, um mês. Isso a fazia se sentir culpada por usá-la assim, mas Kirito parecia estar considerando uma importação muito maior das pedras do Território das Trevas.
Como elas queimavam sozinhas se não estivessem submersas em água, era necessário um cuidado especial para transportá-las por longas distâncias, mas uma vez que esse processo fosse estabilizado, as noites de Centoria seriam muito mais brilhantes. Isso também poderia trazer algum alívio para Obsidia, que estava se tornando superpovoada com refugiados que não conseguiam encontrar trabalho por lá.
Ainda assim, o status de uma pedra brilhante não iria mudar a sorte do Reino Sombrio. Kirito estava ocupado procurando soluções para a falta fundamental de recursos solares e do solo — e, portanto, a falta de agricultura adequada para sustentar sua população. Mas até agora, sua pesquisa não havia dado resultados.
Ele depositava suas maiores esperanças na terra do outro lado da Muralha no Fim do Mundo, o obstáculo que cercava todo o Underworld, mas isso também trazia muitos desafios. A muralha infinita e inescalável impedia a passagem de todos os seres vivos. Então, seria possível cruzá-la com um dragoncraft? E se chegasse lá, encontraria outra vasta terra diante de si — ou simplesmente o nada?
— …Mesmo assim… — murmurou Ronie. Mas não completou o pensamento.
Em vez disso, ela foi até sua cômoda e ao suporte de espada sobre ela. Silenciosamente, ergueu uma espada longa em uma bainha de couro preta — e também removeu uma pequena caixa de madeira de uma gaveta — antes de voltar para a mesa.
A espada, que tinha um cabo de couro preto como a bainha e um pomo de platina esculpido para parecer uma lua crescente, era uma espada especial que lhe fora dada pela Subdelegada Espadachim Asuna apenas cinco dias antes. Seu nível de prioridade era 39 — não chegava ao nível de um Objeto Divino, mas era fina demais para uma mera aprendiz de cavaleiro.
A lâmina brilhou deslumbrantemente sob a luz da lâmpada de minério quando ela a desembainhou, mas havia um pequeno arranhão em sua superfície. Era daquele momento em que ela cortara o braço esquerdo do homem de manto preto que estava sequestrando Leazetta, a filha do Comandante Iskahn e da Embaixadora Sheyta, no último andar do Palácio de Obsidia, nas terras escuras.
A vida real da espada havia sido restaurada após dois dias inteiros em sua bainha protetora, mas quaisquer manchas ou arranhões teriam que ser polidos à mão.
Ela colocou a arma sobre a mesa e abriu a caixa de madeira. Primeiro, usou um pano de algodão para limpar a lâmina, o pomo e o cabo. Em seguida, pingou um pouco de óleo de polimento em um pedaço de couro de veado com verso prateado do império do sul e, com cuidado e minúcia, poliu a lâmina.
Na Academia de Esgrima, Kirito e Eugeo costumavam conversar sobre uma coisa e outra enquanto poliam suas respectivas Lâmina do Céu Noturno e Espada da Rosa Azul. Ronie gostava muito de estar na companhia deles enquanto faziam isso. O mês e meio que ela e Tiese serviram como suas pajens foi o período mais agradável e vívido de seus dezessete anos de vida.
Claro, agora que a Guerra do Outromundo e a Rebelião dos Quatro Impérios haviam acabado e a paz retornara, a vida na catedral era agradável. Embora o treinamento em esgrima, artes sagradas e Encarnação fosse difícil, ela desejava poder continuá-lo para sempre. Mas aqueles vislumbres momentâneos de uma sombra cruzando os rostos de Tiese ou Kirito eram sempre um lembrete de que Eugeo se fora… e sua ausência deixava um grande vazio em suas vidas.
Kirito e Eugeo, Ronie e Tiese. Quão precioso fora o tempo para os quatro! Quão insubstituível! Mas se fora para sempre, para nunca mais voltar.
E ainda assim…
Talvez esse sentimento não fosse apenas por causa da ausência de Eugeo.
Talvez fosse porque, como os sentimentos românticos fugazes de Tiese, Ronie também sabia que seus próprios sentimentos nunca seriam correspondidos, de novo e de novo…
— Ah…!
Sua mão escorregou de repente, raspando a pele de seu polegar na borda da lâmina. Ronie pousou a espada e olhou para o dedo. Quase não havia dor alguma, mas gotas de sangue surgiam ao longo de um corte muito fino.
Ela ergueu a mão esquerda para gerar elementos de luz, mas se deteve e a abaixou. Em vez disso, levou o polegar à boca e lambeu a ferida. O sangramento parou imediatamente, mas levaria algum tempo para cicatrizar. Este era seu castigo por deixar a mente vagar enquanto manuseava sua arma.
O processo de polimento com o couro oleado estava feito. Então, por último, ela usou um pano macio para deixá-la impecável e clara, e então guardou a espada na bainha.
Era através de atos como este que ela formaria firmemente uma conexão com sua arma, a recém-nomeada Espada Raio de Luar. No momento em que dominasse completamente seu controle, todos esses sentimentos sem lugar para ir estariam resolvidos de uma vez por todas.
Ronie se levantou, guardou a espada e seus suprimentos na cômoda e jogou o xale sobre a cama. Em seguida, despiu o pijama, o que a fez espirrar brevemente com o frio que atingiu sua pele.
Por que as pessoas espirram? Vou ter que perguntar ao Kirito quando perguntar por que as pessoas sonham, pensou, apressando-se em direção ao guarda-roupa onde guardava seu uniforme de cavaleiro.
23 de fevereiro do ano 382 da Era Humana.
Uma chuva fria que começou antes do amanhecer batia nas grandes janelas de vidro que revestiam o Grande Salão da Luz Fantasmagórica, no quinquagésimo andar da Catedral Central.
Um passadiço extra com corrimãos, localizado no alto, ao longo das paredes, equipava o grande salão, e era aqui que Ronie e Tiese estavam, observando a reunião do conselho abaixo.
Quanto ao motivo de estarem no grande salão e não na mesa redonda, era porque estavam cuidando do bebê de Fanatio, Berche, e ele geralmente ficava mais feliz quando estava mais alto. Claro, o quinquagésimo andar em si estava a mais de duzentos mels acima do solo, mas um bebê de um ano não conseguia distinguir quando estava isolado por paredes grossas e vidros resistentes.
— Ronie, você viu o bebê da Sheyta em Obsidia, certo? — sussurrou Tiese enquanto embalava o sonolento Berche em seus braços.
— Sim, e eu dei leite para ela também.
— Ahhh, que sorte! Ela tem apenas três meses, certo? Deve ser tão pequena e fofa!
— Oh, ela tinha o cabelo mais macio e delicado, e olhos grandes e curiosos!
De repente, Tiese ficou com um olhar distante.
— Ah… Berche é fofo quando está dormindo, mas meninos e meninas são simplesmente diferentes. Espero que a Sheyta a traga na próxima vez que fizer uma visita.
Ronie estava prestes a tranquilizar Tiese, dizendo que ela o faria, mas se conteve.
Ela ainda não contara à sua amiga que Leazetta, a dita filha de Sheyta e Iskahn, havia sido sequestrada, mesmo que por apenas meio dia. Kirito pedira para ela não dizer nada até que ele pudesse anunciar a notícia na reunião do conselho de hoje. Na verdade, todas as suas apreensões e preocupações sobre aquele incidente só haviam crescido nos últimos dias, em vez de desaparecerem.
Ela conseguia entender por que o sequestrador fora atrás de Leazetta. Se ele queria ameaçar Kirito, não poderia haver uma refém mais eficaz do que a bebê Lea. Talvez a Subdelegada Espadachim Asuna, mas não havia um vilão capaz de sequestrar e aprisionar ela em todo o Underworld agora.
O mistério eram os meios.
O sequestrador se infiltrara perto do último andar do fortemente guardado Palácio de Obsidia, que ainda tinha 150 mels de altura, se não fosse quase tão alto quanto a catedral. Após sequestrar Leazetta, ele abrira a janela do supostamente selado quinquagésimo andar e se escondera na sala do trono. Felizmente, Kirito o descobrira, e embora Ronie tivesse acertado um bom golpe em seu braço esquerdo enquanto ele pulava pela janela, o corpo nunca fora encontrado.
Quando a janela do quinquagésimo andar se abriu, Ronie vira uma joia vermelha brilhante no pescoço do sequestrador. Quando contou ao Comandante Iskahn sobre isso, ele disse que havia uma pedra semelhante na coroa que o Imperador Vecta usava antes de sua morte na guerra.
Iskahn ainda suspeitava que o sequestrador estivesse envolvido na guilda dos assassinos, mas essa organização já havia sido desfeita, aparentemente. E as formas de vida artificiais conhecidas como lacaios, que o sequestrador usara para semear o caos dentro do castelo, só podiam ser produzidas pela guilda dos magos sombrios, agora vastamente enfraquecida.
O que estava acontecendo no Território das Trevas… e em Centoria? Quem estava fazendo isso — e por quê…?
— …E isso é basicamente tudo o que aconteceu no Palácio de Obsidia. — Ronie ouviu Kirito dizer lá embaixo, trazendo-a de volta a seus sentidos.
Quase no mesmo instante, Tiese exclamou:
— O quê?! Você passou por tudo isso, lá?!
Aparentemente, Kirito estivera explicando o que acontecera em Obsidia ao mesmo tempo em que Ronie refazia todos os seus passos em sua mente. Ela olhou para sua melhor amiga e deu um encolher de ombros constrangido.
— S-sim… mas eu não corri nenhum perigo em particular.
— Você atacou alguém que estava sequestrando um bebê; isso parece perigoso o suficiente para mim! Meu Deus… Suponho que os pajens realmente se parecem com seus tutores.
— Não me lembro desse ditado na escola. — argumentou Ronie.
Enquanto isso, a reunião abaixo prosseguia:
— Não tenho desejo de remoer o que já aconteceu, Delegado Espadachim, mas eu certamente o avisei sobre isso outro dia! Para cada trabalho no mundo, há pelo menos uma pessoa que faz dele sua vocação! — disse uma voz profunda como uma corda de arco de aço.
A voz pertencia ao Cavaleiro da Integridade Deusolbert Synthesis Seven. Ele estava vestido com um quimono em vez de sua habitual armadura vermelho-bronze, por causa da hora matutina, mas o horário claramente não tinha efeito sobre sua severidade.
— Tenho certeza de que há muitos guardas estacionados ao redor do Palácio de Obsidia — continuou ele.
— Deveria ter deixado que eles lidassem com o malfeitor! Você agora é a pedra angular do Reino Humano — de todo o Underworld! Tenho certeza de que você deve saber as consequências para nosso mundo caso você se machucasse!
Quando Deusolbert terminou, a próxima a falar foi a nova comandante dos Cavaleiros da Integridade, Fanatio Synthesis Two, que geralmente era responsável por acalmá-lo.
— Na verdade, concordo com Deusolbert desta vez, garoto – quero dizer, Delegado Espadachim –, a era em que você é quem empunha sua espada para lutar com o inimigo acabou. Espero que entenda isso.
Renly Synthesis Twenty-Seven e os outros chefes de agência da catedral assentiram vigorosamente a essa avaliação. A extremidade norte da mesa redonda estava se transformando em uma sessão de broncas em vez de uma reunião, onde o delegado espadachim vestido de preto parecia sombrio, mas tentava defender seu caso de uma maneira menos grave.
— O-olhem, eu entendo o que todos vocês estão tentando dizer… mas até mesmo o Comandante Bercouli costumava vagar sozinho para as Montanhas do Fim para arrumar briga com os cavaleiros sombrios, não é? É como, você pode colocar seus líderes e representantes e tal em um lugar seguro onde eles não se machucarão, mas, sabe, como você constrói confiança dessa forma…?
Suponho que é bem a cara do Kirito ter uma razão perfeitamente boa, mas ainda assim conseguir apresentá-la de uma forma que soa como a desculpa de uma criança, pensou Ronie, do passadiço acima.
— Você e o Comandante Bercouli tinham posições muito diferentes! – A voz encheu o grande salão com toda a acidez de uma lâmina afiada.
Ela pertencia a um cavaleiro muito magro que não estivera presente na reunião anterior do conselho.
Sua armadura extravagante e fluida era verde-clara. Seu cabelo verde-escuro, um tom muito raro, era tão longo que ameaçava tocar o chão quando ele se sentava em uma cadeira, mas definitivamente era homem. Atrás dele, uma longa lança com a ponta protegida por uma bainha de couro especial estava de pé sozinha no chão, perfeitamente equilibrada.
O cavaleiro fixou Kirito com um olhar penetrante.
— O Comandante Bercouli continuou sua batalha para proteger o reino e a Igreja Axiom sob os desejos da poderosa Administradora por anos e anos! Mas você não está sob as ordens de ninguém, Delegado Espadachim… o que significa que é seu dever que o compele a se comportar adequadamente!
Kirito deu um passo para trás, intimidado pelo discurso eloquente do cavaleiro, mas ainda assim protestou.
— B-bem, por essa lógica, eu poderia simplesmente me ordenar a fazer o que eu quisesse…
O cavaleiro fez um barulho alto, levantando-se com as mãos na mesa. Mas a atual comandante, Fanatio, interveio suavemente antes que mais repreensões fervorosas pudessem voar.
— Acalme-se, pequeno Negi!
— Eu não sou uma cebolinha! Meu nome é Nergius! — Ele respondeu, indignado, mas sentou-se obedientemente mesmo assim.
O nome do cavaleiro era Nergius Synthesis Sixteen. Ele era um Cavaleiro da Integridade Superior, um daqueles que serviram à Igreja Axiom por mais de cem anos.
De acordo com o processo de dar nomes no mundo humano, o nome Nergius vinha de um desejo para que ele fosse abençoado com nobreza, ousadia e inteligência. Mas desde que Ronie ouvira a história de fundo de sua arma divina, a Lança da Tempestade Brotante, ela imaginava de forma brincalhona um significado diferente para seu nome.
Em uma aldeia agrícola em uma região mais remota de Wesdarath, havia um vegetal premiado conhecido como a cebola-rico. Era duas vezes mais longa e três vezes mais grossa que o tipo comum de cebolinha, também conhecida como negi, e quatro vezes mais doce — pelo menos, de acordo com o discurso de vendas. De qualquer forma, um dia, muitos anos no passado, um agricultor notou que uma cebola-rico especialmente alta estava crescendo no canto de um de seus campos.
Encantado, o agricultor começou a cuidar muito bem dela, na esperança de incentivá-la a crescer ainda mais. A cebolinha cresceu e cresceu, até ter mais de um mel de comprimento, depois dois mels.
Eventualmente, contos da cebola-monstro se espalharam pelo campo, de tal forma que visitantes vinham das cidades e vilas vizinhas para se maravilharem com ela. Sentindo-se ganancioso, o agricultor optou por não colher a planta, mas disse aos visitantes que orar a ela traria boa sorte, e cobrava para que pudessem vê-la. A planta continuou a crescer para além de três mels, depois quatro, e seu talo tinha mais de cinquenta cens de espessura. As raízes, onde deveria ser branco, assumiram um brilho prateado e metálico, e o verde de seu talo ficava mais vívido a cada dia.
Após vários meses, o agricultor notou que algo estava errado com seu campo. Nenhuma das novas cebolas-rico que ele estava plantando brotava. A falha no crescimento se espalhou para os campos de outros agricultores, até que toda a aldeia se convenceu de que a causa do problema era aquela cebola-monstro que o agricultor estava guardando.
Por fim, o ancião da aldeia foi forçado a tomar uma decisão: o agricultor tinha que se livrar de sua recompensa monstruosa, que tinha mais de sete mels de altura até então. Ele tentou usar gado para arrancá-la, mas a planta não se moveu. Em seguida, tentou cortá-la com seu machado, mas a lâmina não conseguiu atravessá-la. Ele não teve outra escolha senão desenterrá-la pelas raízes, mas quando começou, o céu ficou nublado e uma tempestade feroz varreu a aldeia.
Após um dia inteiro de vento e chuva ferozes, todos os campos de cebola foram reduzidos a pântanos lamacentos, deixando apenas o monstro de pé, alto e saudável em meio a eles.
A Lança da Tempestade Brotante de Nergius era supostamente o que restou quando a Administradora converteu aquela cebola-monstro em uma lança para ele. Seu nível de prioridade estava na faixa dos Objetos Divinos, mas tinha propriedades físicas muito estranhas; ficava em pé quando colocada sozinha no chão ou no piso, e nunca caía, não importava o ângulo.
Seu dono era igualmente íntegro e direto, e embora ele fosse, sem dúvida, um cavaleiro orgulhoso e régio que servira à Igreja por muitos anos, ele não deixou uma impressão muito boa em Ronie. Para começar, Nergius fora o mais forte proponente de acusar Kirito de heresia e condená-lo à morte quando ele se tornara, em grande parte, insensível, após sua derrota da Administradora.
Graças ao argumento ponderado do Comandante Bercouli, os linha-dura decidiram contra uma execução imediata, mas pelo que ela ouvira, Alice teve que levar Kirito para longe de Centoria para protegê-lo. Além disso, os membros da facção de Nergius foram os que ficaram para trás durante a Guerra do Outromundo para proteger a catedral e as Montanhas do Fim, então ela não podia deixar de sentir uma distância mental deles.
Para se acalmar, Nergius pegou a xícara de chá na mesa à sua frente e a bebeu de um só gole. No momento de tensão liberada que se seguiu, uma nova — mas extremamente lânguida — voz preencheu o silêncio.
— Bem, eu suponho que o que eu diria é: já que o Mestre Kirito se encarrega de fazer tudo e qualquer coisa, nos sentimos tristes por não haver muita confiança em nós. Não é mesmo, Negio?
Ainda segurando a xícara vazia, Nergius olhou para o assento à sua direita.
— Eu nunca disse que me sentia triste! — Ele rosnou, embora não tenha comentado sobre o apelido estranho. Parecia menos que ele o aceitava e mais que estava resignado a isso a essa altura.
O outro orador era um jovem cavaleiro que tinha a mesma idade — visualmente falando, pelo menos — que Nergius. Ele era um pouco mais alto e mais robusto que Nergius, com o cabelo cortado em apenas dois ou três cens de comprimento, e usava uma armadura roxo-azulada. Ele usava uma espada longa tradicional, que estava pendurada em seu lado esquerdo, em vez de ficar em pé sem ajuda no chão.
Seu nome era Entokia Synthesis Eighteen. Ele também era um Cavaleiro da Integridade mais velho e não havia participado da luta direta durante a guerra. Como Nergius, ele estivera ausente nos últimos meses com negócios no Império do Sul. Aparentemente, eles estavam investigando se seria possível reabrir o túnel que fora preenchido eras atrás através das Montanhas do Fim.
Depois de Renly, Kirito parecia a pessoa mais jovem na reunião. Ele afastou seu cabelo preto nervosamente e disse:
— Ah, bem… eu entendo o que vocês estão dizendo, Nergius e Entokia, mas simplesmente não sou sou o tipo de pessoa que senta em uma torre e dá ordens. E não é como se eu estivesse fazendo tudo sozinho. Eu tinha vocês dois realizando uma missão muito difícil e crucial no sul…
— Aí! Esse é o problema! — gritou Entokia de repente, fazendo Kirito se encolher e se afastar.
— O-o que é?
— Você não precisa ser tão formal conosco assim. Apenas me chame de Enki e chame o Negio de Negio, e isso realmente diminuirá a distância entre nós…
— Pare com isso! — estalou Nergius com grande alarme. — Ele pode te chamar do que você quiser, mas não me arraste para isso!
Ao lado de Ronie, Tiese riu, embora se sentisse culpada por isso. Mas mesmo os Cavaleiros da Integridade não conseguiam ouvir o som de sussurros do distante passadiço.
— Eles não são pessoas más… eu acho — Ela murmurou.
Ronie assentiu levemente.
— Lady Fanatio disse que a razão pela qual eles não podem acreditar tão firmemente em Kirito é porque nunca lutaram contra ele antes. Acho que Deusolbert… e até mesmo Alice sentem o mesmo. Sir Nergius e Sir Entokia não estavam na catedral quando Kirito e Eugeo invadiram, porque estavam ocupados guardando as Montanhas.
— Ah, certo… A propósito, por que Sir Entokia o chama de Mestre Kirito?
— Eu não sei…
Enquanto ponderavam sobre esse mistério, Deusolbert bateu as mãos com força para trazer a discussão de volta ao tópico.
— Vocês dois podem se concentrar em aprofundar sua amizade com o Delegado Espadachim o quanto quiserem depois que a reunião terminar. Temos assuntos mais urgentes para discutir no momento.
Nergius endireitou-se, indicando que estava ouvindo, e Entokia levantou as mãos em sinal de compreensão.
— Agora… pelo que o Delegado nos diz, está claro que há alguma força que busca fazer o Reino Humano e o Reino Sombrio entrarem em guerra novamente. Se a trama daquele homem de manto tivesse se concretizado, e o Delegado Espadachim fosse executado publicamente em Obsidia, nosso movimento em direção a um maior comércio teria sido cancelado… e certamente poderíamos ter mergulhado de volta em hostilidades.
O mais jovem dos cavaleiros, Renly Synthesis Twenty-Seven, assentiu vigorosamente.
— Desde a reforma do sistema de nobreza e a liberação de todas as terras particulares, Kirito tem sido extremamente popular na capital. Já bastava ele ser o herói que parou o Imperador Vecta, mas agora também se provou capaz de medidas políticas populares.
Ronie não se surpreendeu ao ver Kirito reagir a este elogio encolhendo os ombros desconfortavelmente.
— Na verdade, foram os chefes de agência da Igreja Axiom que fizeram o trabalho real de reformar o sistema de classes, e tivemos a ajuda de Sorti… er, da General Serlut e do Instrutor Levantein e de outros nobres de alta estirpe. Tenho certeza de que as propriedades teriam sido liberadas eventualmente, mesmo que eu não tivesse dito nada. Além disso… — Ele parou, hesitante, e depois retomou em um volume mais baixo. — As pessoas da cidade… de todo o reino… não sabem que eu matei a pontífice e o primeiro senador. O apoio ao Conselho de Unificação Humana é sinônimo de sua crença e confiança na Igreja Axiom. Eles ainda pensam que a Administradora está em uma longa hibernação no último andar da catedral. Se descobrirem que isso é mentira e que eu a matei, qualquer popularidade que eu tenha desaparecerá em um piscar de olhos.
Isso fez a expressão de Nergius endurecer novamente. Depois que a Administradora morreu, aparentemente o Comandante Bercouli reuniu todos os cavaleiros restantes na Catedral Central aqui no Grande Salão da Luz Fantasmagórica e revelou os segredos da Igreja Axiom que Alice lhe contara.
Incluindo que o Pontífice, em preparação para uma guerra futura com o Território das Trevas, estava criando criaturas monstruosas com espadas dispostas como esqueletos. E que, para construir esses monstros, ela usaria a maioria da população, convertendo-os em espadas para seus próprios propósitos.
Além disso, o corpo que presidia os Cavaleiros da Integridade, o Senado, era na verdade composto por apenas um membro: o Primeiro Senador Chudelkin. Quando os Cavaleiros da Integridade desapareciam sem aviso, era porque a arte de Congelamento Profundo de Chudelkin os forçava a um longo, longo sono.
Os linha-dura como Nergius relutantemente retiraram sua ideia de execução de Kirito apenas depois de terem visto por si mesmos sete Cavaleiros da Integridade que o Senado havia colocado no gelo. Até hoje, eles ainda não terminaram de analisar o comando para o Congelamento Profundo, e então os cavaleiros continuavam dormindo, em algum lugar alto no edifício da catedral.
E havia uma última coisa: a morte do mais novo e último Cavaleiro da Integridade, Eldrie Synthesis Thirty-One, que via Kirito como um traidor antes de perecer na batalha para defender o Portão Oriental, teve um efeito poderoso na atitude dos linha-dura, de acordo com o que Deusolbert lhes contara entre os treinamentos.
Ronie e Tiese haviam passado por Eldrie na área de preparação para o Portão Oriental várias vezes, mas nunca trocaram palavras com ele. Elas se lembravam vividamente do belo cavaleiro com cachos lilases, andando suavemente, mas com o rosto marcado por um luto oculto.
O Comandante Bercouli revelou a maioria dos segredos do Pontífice aos cavaleiros, mas havia uma coisa que ele não disse — ou talvez que ele não pudesse dizer.
Esse era o maior segredo dos Cavaleiros da Integridade: o Ritual de Síntese.
Os Cavaleiros da Integridade, com sua força estonteante, eram supostamente habitantes do mundo celestial que foram convocados ao plano mortal pelas orações da Administradora e retornavam para lá quando perdiam suas vidas em serviço. Mas apenas os próprios cavaleiros realmente acreditavam nessa história.
Na verdade, eram duelistas com habilidade suficiente para vencer o Torneio de Unificação dos Quatro Impérios ou aqueles com força de vontade suficiente para violar o Índice de Tabus que eram capturados e levados para a catedral, onde suas memórias seriam bloqueadas e substituídas por falsas memórias do Reino Celestial, tornando-os assim Cavaleiros da Integridade.
A razão pela qual esse frágil artifício funcionou por centenas de anos foi porque, como regra geral, os Cavaleiros da Integridade não interagiam com o povo comum de forma alguma. Eles só falavam com pessoas comuns quando ocorria uma infração à lei. E tais incidentes aconteciam apenas uma vez em décadas.
Então, as famílias dos Cavaleiros da Integridade acreditavam que seus filhos e filhas haviam alcançado a maior honra possível, enquanto, tragicamente, os próprios cavaleiros haviam perdido todas as memórias dessas famílias.
Essa situação estava mudando, no entanto. Desde a Guerra do Outromundo e a Rebelião dos Quatro Impérios, um pequeno número de cavaleiros começara a oferecer treinamento aos soldados do Exército de Guardiões Humanos, e uma vez que se sentiam à vontade para conversar sobre si mesmos, o tópico das identidades deles surgia. O tempo logo chegaria em que uma conversa muito difícil precisaria acontecer, onde Kirito informaria aos cavaleiros que todos eles nasceram humanos — e que não havia Reino Celestial algum, ou assim ele afirmava.
Mesmo agora, Kirito enfrentava problemas além dos meios de uma única pessoa.
Se eu não fosse uma aprendiz, mas uma cavaleira de pleno direito com o direito de sentar à mesa, eu não deixaria nem mesmo os cavaleiros mais velhos, com mais de cem anos que eu, falarem tal absurdo, imaginou Ronie enquanto os ouvia discutir.
O comentário perigoso de Kirito sobre como ele matara a Pontífice deixou Fanatio e Deusolbert sem resposta. Foi Nergius quem quebrou o pesado silêncio que se seguiu, mas após suas explosões anteriores, ele estava surpreendentemente calmo.
— …Não tenho interesse em reaquecer o debate sobre suas ações passadas, Delegado Espadachim. Se é isso que criará uma paz duradoura com as terras sombrias, então acho que é para o bem de todos.
Acrescentando ao comentário de seu parceiro, Entokia disse:
— Não tenho problemas com essa parte. E em nenhum lugar no Índice de Tabus diz que você não pode lutar com a Pontífice.
Isso provocou suspiros irritados dos dois cavaleiros mais velhos.
Pode não haver uma entrada específica no Índice de Tabus que diga isso, mas o Livro Um, Capítulo Um, Versículo Um afirma: “Não te rebelarás contra a Igreja Axiom”, claro como o dia. Escapar da prisão, subir correndo pela catedral enquanto derrota cavaleiro após cavaleiro, e depois atacar o primeiro Senador e a Pontífice foi claramente um ato massivo de rebelião contra a Igreja, Ronie sabia. Mesmo agora que era uma aprendiz de cavaleiro e livre da obrigação de obedecer ao Índice de Tabus e à Lei Imperial Básica, ela não achava que poderia fazer algo assim.
Por outro lado, Kirito e Eugeo tiveram a ajuda da outra pontífice, aquela que existia no mesmo nível da Administradora, a Cardeal. Foi a Cardeal quem curou Fanatio quando ela estava à beira da morte após lutar contra Kirito — e a Cardeal que supostamente pereceu na batalha contra a Administradora.
Isso levava a uma questão de interpretação legal: o que exatamente era a Igreja Axiom, conforme definido pelo Índice de Tabus, então? No passado, quaisquer dúvidas sobre o texto do Índice de Tabus poderiam ser resolvidas simplesmente deferindo à Pontífice ou ao primeiro senador, mas eles agora se foram. E aos Cavaleiros da Integridade não fora dado nenhum privilégio especial para realizar suas próprias interpretações individuais do Índice de Tabus.
Em outras palavras, como o próprio Kirito disse, o título de Delegado Espadachim do Conselho de Unificação não carregava seu próprio peso inabalável, seja dentro do Reino Humano ou dentro da própria Igreja Axiom.
— Suponho que teremos que deixar a investigação do homem de manto para Sheyta e o Comandante Iskahn — finalizou Fanatio, fazendo uma torre com os dedos sobre a mesa. — Seja ele da guilda dos assassinos ou da guilda dos magos sombrios de lá, não podemos ter nenhum efeito no assunto. Ou seja, não podemos enviar espiões para Obsidia.
— Concordo que seria uma má ideia, e eu temeria que o inimigo os capturasse e os usasse contra nós. Se eu fosse enviar alguém…
O resto da mesa pôde sentir unanimemente que o restante de sua declaração seria eu mesmo iria, então não foi surpresa que ele se deteve e balançou a cabeça.
— …Não, esqueça. De qualquer forma, teremos apenas que esperar por um relatório do Território das Trevas sobre o assassinato de Yazen… E suponho que isso significa que não poderemos liberar Oroi, o goblin da montanha, do cativeiro aqui por um tempo. — Kirito murmurou pensativo.
Pela primeira vez na reunião, sua parceira, a Subdelegada Asuna, abriu a boca para falar. Conhecendo-a, ela ficara em silêncio até agora para não explodir com Nergius.
— Estamos fazendo tudo o que podemos por Oroi e mostrando a ele os pontos notáveis da catedral todos os dias, então ele não está reclamando de sua prisão domiciliar. Mas ele está com um pouco de saudade de casa… er, quero dizer…
Ela olhou para Kirito em busca de ajuda, mas qualquer que fosse o termo na língua sagrada que ela tentara usar, ele também não sabia uma tradução adequada para a língua comum.
— Hum… como se chama aqui quando você está viajando e se sente para baixo porque está pensando em sua casa e família? — perguntou Asuna. Os cavaleiros e chefes de agência pareceram perplexos.
— Bem… eu entendo o sentimento que você descreve, mas não temos famílias, e a catedral é nosso lar… então se você queria um único termo… — Deusolbert cantarolou. Ronie e Tiese se entreolharam. Não era durante viagens, mas havia momentos em que se sentiam assim nos dormitórios da academia, e elas sabiam como chamar. Tiese deu uma cotovelada nela, então Ronie se inclinou sobre o corrimão do passadiço.
— Hum, acho que se chamaria “melancolia nostálgica”!
Todos na reunião olharam para Ronie e assentiram em reconhecimento. Ela se afastou apressadamente e viu que o pequeno Berche agora se contorcia nos braços de Tiese, provavelmente pelo som do grito. Mas Tiese o balançou ainda mais vigorosamente, e o bebê estalou os lábios e voltou a dormir.
— Melancolia nostálgica? Isso é muito interessante, Ronie. Obrigada — disse Asuna, acenando para a garota. — Bem, sinto como se Oroi estivesse sofrendo um pouco dessa melancolia agora, então em dois ou três dias, espero que ele peça para ir para casa. Confio que possamos resolver este caso antes disso…
— Três dias é pedir muito, eu acho. Até mesmo um mensageiro a cavalo de Obsidia vai levar duas semanas para uma viagem de ida — apontou Fanatio.
— E você adicionará quantos dias forem necessários para eles terminarem a investigação — acrescentou Kirito. — Acho que deveríamos investigar o que pudermos aqui, em vez de esperar que Sheyta nos retorne.
— Mas a adaga usada para matar Yazen desapareceu, não é? Não houve testemunhas e nenhuma razão para a vítima ter sido morta. Não há pistas a seguir — interveio Entokia, um comentário grave, embora seu tom de voz fosse leve. O grupo ficou em silêncio.
Depois de um tempo, outra figura que estivera em silêncio como Asuna levantou hesitantemente a mão. Ela usava um manto branco impecável e tinha cabelo castanho amarrado em uma grande trança. Seu nome era Ayuha Furia, uma jovem muito talentosa que fora escolhida para liderar a Brigada de Artífices Sagrados da Igreja Axiom.
A Brigada de Artífices Sagrados era anteriormente conhecida como o sacerdócio: o corpo que administrava todas as igrejas locais em todo o Império Humano. Havia uma igreja em cada cidade e vila do reino, com usuários de artes sagradas conhecidos pelos termos sagrados irmão e irmã. Em alguns lugares, essas pessoas tinham ainda mais influência do que os anciãos da aldeia ou prefeitos. Gerenciar essas pessoas significava naturalmente possuir uma grande quantidade de influência oculta.
E os quatro bispos que controlavam o sacerdócio exerciam mais poder do que até mesmo os altos nobres, em certo sentido. Mas quando o Comandante Bercouli pediu sua ajuda e presença na batalha para defender o Portão Oriental, todos os quatro recusaram. Dos cerca de trezentos membros que se juntaram ao Exército de Guardiões Humanos durante a guerra, a maioria eram membros inferiores ou intermediários, e apenas cerca de cem mestres de artes de ataque participaram. Praticamente todos os altos sacerdotes e acima permaneceram dentro da catedral.
Após o fim da guerra e a fundação do Conselho de Unificação, foi revelado que todos os quatro bispos estavam acumulando riquezas em seus aposentos particulares, e foram exilados da Catedral Central. O próprio sacerdócio foi reformado na Brigada de artífices Sagrados, e a nobre de quinta categoria Ayuha Furia foi escolhida para ser sua primeira líder.
Ayuha não apenas compareceu à batalha no portão, mas também participou da força de distração, lutando ferozmente até o fim da guerra e exibindo grande liderança sobre os sacerdotes em batalha. Ronie estivera na mesma unidade e se lembrava vividamente da visão dela correndo para realizar artes de cura, seu manto branco manchado de vermelho com o sangue dos feridos. Seu poder de artes sagradas não estava no nível dos Cavaleiros da Integridade seniores, mas seu conhecimento das artes e reagentes era vasto. E, acima de tudo, ela era séria e gentil.
Se Ronie fosse aprender artes sagradas, ela gostaria de ter aulas com Ayuha. Infelizmente, a professora das duas meninas era a irmã mais nova de Ayuha, Soness Furia, uma bibliotecária na recém-organizada Grande Biblioteca, e ela era muito rigorosa. Dava para ver o quão ruim era porque a Subdelegada Espadachim Asuna também tinha aulas, e embora ela fosse tão inabalável quanto uma grande árvore, até ela reclamava de Soness de vez em quando.
Soness também tinha o direito de comparecer às reuniões, mas a menos que fosse uma emergência de algum tipo, ela quase nunca saía de sua biblioteca. Ela afirmava que, se não decifrasse as artes colocadas na biblioteca pelo bibliotecário anterior, não se sabia o que poderia acontecer, mas Ronie não entendia o que isso significava.
Fanatio acenou para Ayuha em reconhecimento. A jovem respirou fundo e falou lenta e calmamente.
— Quanto a esse assunto, a Brigada de Artífices Sagrados pode ser capaz de oferecer alguma assistência.
— Oh…? O que você quer dizer?
— Temos feito progressos na decifração do comando usado para vincular o senado automatizado que foi projetado para detectar violadores do Índice de Tabus… e parece que aqueles senadores dignos de pena não apenas podiam detectar instantaneamente violadores do Índice de Tabus, mas podiam até mesmo olhar para o passado, até certo ponto, para observá-los.
— Para o passado?! — murmurou Fanatio. Os outros cavaleiros e chefes de agência pareceram igualmente perplexos.
Mas Kirito se inclinou para frente tão vigorosamente que sua cadeira balançou.
— E-espere um segundo — gaguejou ele. — Isso significa que eles podem ver o registro do servidor… er, quero dizer, eles podem visualizar eventos passados? Não pode ser… mas acho que é possível… Se o sistema detectasse uma violação do Índice de Tabus, no momento em que você abrisse uma janela, a violação em si já teria acontecido. A menos que você pudesse olhar para o passado, não seria capaz de confirmar o que realmente ocorreu. Quantos dias no passado essa arte pode cobrir?
— No momento, é difícil abranger algo medido em dias, Delegado Espadachim. Eu mesma tentei a arte, mas o esforço foi tão grande que trinta minutos foi o mais longe em que consegui chegar. Se eu pudesse ter usado essa vidência do passado logo após o incidente ocorrer, teria sido o melhor, mas só descobrimos os documentos ontem — admitiu Ayuha com frustração.
Kirito franziu a testa e cruzou os braços.
Enquanto o Delegado pensava nisso, mergulhado em profunda concentração, a Subdelegada assumiu.
— Ayuha, você mencionou que o esforço foi grande. O que exatamente você quer dizer com isso?
— Bem, é difícil descrever em palavras… É como uma onda incontrolável de som e luz fluindo pela minha mente. Manter minha concentração apenas nas visões que estou procurando é extremamente difícil. E um único uso da arte de vidência do passado é totalmente exaustivo. Deve ser possível reescrever a fórmula para ser mais eficiente, mas isso também levará tempo.
— Entendo — disse Asuna, ponderando. — Obrigada, Ayuha.
A Líder dos Artífices assentiu, parecendo um pouco tímida. Diferente dos Cavaleiros da Integridade, os Artífices Sagrados não tinham uma vida congelada. Então, Ayuha tinha exatamente a idade que aparentava — provavelmente vinte e dois ou vinte e três anos. E nas raras ocasiões em que demonstrava emoção, parecia ainda mais jovem que sua irmã.
Talvez seja apenas porque Soness nunca muda de expressão, pensou Ronie, estando congelada em sua feição.
Independentemente disso, o Delegado Espadachim continuou.
— Líder da Brigada Furia, gostaria de pedir que você continue decifrando a arte de vidência do passado, mas apenas até um ponto que seja seguro. No que diz respeito ao cuidado de Oroi, quero trazer seus companheiros de viagem que estamos mantendo naquela estalagem em Centoria do Sul para cá, para a catedral. E falarei com o chefe de cozinha para ver se podemos cozinhar algo que o lembre um pouco mais de casa.
Ronie e Tiese, como os outros no conselho, estavam começando a entender intuitivamente muitas das palavras sagradas estranhas e desconhecidas que Kirito e Asuna usavam de vez em quando. Quando ele disse cuidado, não era uma palavra da língua comum, mas elas tiveram a sensação de que se referia a algum tipo de preocupação, um esforço para fazer alguém se sentir melhor. Expressar essas coisas em apenas uma sílaba assim era mais conveniente.
— Eu cuidarei dessas tarefas… — interrompeu um homem de quarenta e poucos anos com óculos quadrados, o chefe da agência de gerenciamento de materiais da catedral, mas Kirito balançou a cabeça.
— Não, eu estive lá e comi muitas de suas refeições… Vai demorar muito se você tiver que descobrir tudo isso do zero.
Nesse aspecto, o chefe da agência, sem experiência fora do Reino Humano, só pôde retirar sua reivindicação.
A comida dos goblins da montanha consistia em qualquer trigo magro que pudessem cultivar nas encostas áridas da montanha e nozes e gramíneas selvagens colhidas ao redor do deserto. Se você tivesse sorte o suficiente para pegar um dos rápidos ratos da rocha ou pescar uma truta blindada dos rios do cânion, isso era um banquete. Seria difícil recriar essa comida em Centoria, mas tudo se resumiria à habilidade do chefe de cozinha.
Com isso, os tópicos relacionados ao incidente foram encerrados. Ayuha, então, levantou a mão novamente.
— A seguir, tenho um relatório sobre a reposição dos números da Brigada de Artífices Sagrados.
— Então o processo de seleção finalmente está completo? Parabéns por terminar — disse Fanatio, gesticulando para que ela continuasse. A Líder da Brigada curvou-se e apresentou uma pilha de papéis de cânhamo branco.
— Incluindo aprendizes, a Brigada de Artífices Sagrados atualmente conta com trezentos e cinquenta e dois membros, ainda muito aquém dos quinhentos que eram antes da Guerra do Outromundo. Gostaria de aumentar esse número rapidamente, para concretizar o plano de expandir a cobertura das clínicas. Os planos atuais são de trazer mais trinta aprendizes antes do final de fevereiro…
— Só um momento — interrompeu Entokia, que estava devorando os petiscos arranjados na mesa. O lanche de hoje era uma guloseima do outro mundo que a própria Subdelegada Espadachim Asuna preparara na cozinha, algo chamado macaron. Apenas Ronie e Tiese sabiam disso, porque a ajudaram a fazê-los, mas Entokia parecia gostar bastante deles. O cavaleiro de cabelo curto colocou a outra metade de um macaron rosa-claro assado com néctar de ameixa na boca. — Não tenho problemas em trazer mais aprendizes, mas leva anos para um deles se tornar um mestre de pleno direito, certo? Não deveríamos estar pensando em chamar de volta aqueles que deixaram a catedral primeiro? Eles já devem ter se acalmado.
A sugestão de Entokia fez com que todos os membros do conselho — e até mesmo Ronie e Tiese — trocassem olhares significativos. Após a excomunhão dos quatro bispos, quase cem artífices deixaram a catedral para se juntar a eles. A maioria deles eram aqueles que se recusaram a se juntar ao Exército de Guardiões Humanos, então a resposta não dita de Ronie para eles era já vai tarde. Mas em termos de habilidade, se não de personalidade, eles eram claramente os melhores mestres de artes sagradas do mundo. Se aqueles cem membros desaparecidos retornassem, a brigada resolveria instantaneamente a questão da falta de números… mas…
— Hmm… — murmurou Kirito. Ele olhou para alguém sentado no canto da mesa redonda. Na verdade, uma mesa redonda, por definição, não teria cantos, e ainda assim, por algum motivo, a área onde aquela pessoa se sentava era sempre um pouco mais escura que as outras. Não se podia deixar de sentir que era o canto.
— Xiao, você sabe o que as pessoas que deixaram a Igreja Axiom têm feito desde então? — perguntou o Delegado a uma pequena mulher vestindo roupas simples marrons e cinzas. Ela era Xiao Choucas, a Chefe da Agência de Inteligência da Catedral.
A Agência de Inteligência era um novo departamento criado após o Conselho de Unificação Humana, e foi projetada principalmente para coletar informações que o Senado antes controlava. Mas ainda tinha poucos membros, e Ronie não tinha ideia de quem era Xiao ou de onde ela viera.
Xiao tinha cabelo castanho-escuro cortado tão curto quanto qualquer mulher ousaria, e embora mal falasse acima de um sussurro, ela tinha uma voz misteriosa que também era perfeitamente audível para as garotas que estavam no passadiço acima.
— Não conseguimos rastrear todos os artífices, mas a maioria procurou trabalho nas igrejas locais por todo o país. Outros se tornaram professores em escolas de cidades maiores, e em alguns casos raros, encontraram colaboradores ricos, abriram locais de oração, e assim por diante.
Seu estilo de fala monótono não tinha nada do poder dos cavaleiros, mas pelo que Ronie ouvira, os jovens cavaleiros Linel e Fizel voavam por toda parte sob as ordens de Xiao. Ela não conseguia nem começar a adivinhar em que tipo de cadeia de autoridade eles trabalhavam.
— Hmm… Então parece que eles encontraram, em grande parte, meios pacíficos e diretos de viver… — observou Kirito.
Xiao considerou esse comentário com ceticismo.
— Mas foi cerca de setenta por cento daqueles que deixaram a catedral que pudemos confirmar. O paradeiro dos outros trinta por cento é desconhecido, e atualmente não conseguimos rastrear suas ações ou locais.
— Entendo… Obrigado. Pensaremos em como aumentar seus números de pessoal mais tarde também. Quanto à ideia de Entokia, acho que ainda é muito cedo para entrarmos em contato. Eles provavelmente ainda têm seus próprios sentimentos sobre isso… mas os que trabalham para as igrejas e escolas podem estar dispostos a ajudar em nosso plano de expandir as clínicas, então vou investigar isso. Sinto muito por interrompê-la, Líder da Brigada Furia. Por favor, continue.
— N-nesse caso — disse Ayuha, apressadamente guardando o resto do macaron que estava comendo enquanto Xiao falava. Ela olhou para o papel novamente. — Uh, temos trinta aprendizes programados para se juntar à catedral até o final do mês, vinte e nove dos quais são de Centoria e um de fora da cidade. Vou lê-los agora.
Ayuha pigarreou, e então leu a lista de nomes pertencentes àqueles jovens que logo passariam pelos portões da catedral, sua voz clara e bela.
Quando a Administradora ainda governava, a única maneira de viver dentro da grande torre branca, fosse nobre ou plebeu, era triunfar em muitos eventos de luta e então se tornar campeão do Torneio de Unificação dos Quatro Impérios. E mesmo com essa honra, suas memórias seriam apagadas pelo Ritual de Síntese.
Então, e os sacerdotes e sacerdotisas? A maioria nascia e era criada dentro da Igreja, e diferente dos pais normais, que tinham filhos por amor, sacerdotes e sacerdotisas selecionados pela Administradora por suas características desejadas eram ordenados a criar filhos.
Em outras palavras, a maioria dos homens e mulheres santos nascia e era criada na torre da catedral. Ronie ficou estranhamente impressionada que tantos deles conseguissem ganhar a vida do lado de fora, mas, por outro lado, diferente dos Cavaleiros da Integridade, os sacerdotes podiam supervisionar igrejas locais, fazer recados e, de outra forma, aprender sobre a vida das pessoas comuns.
Após a morte da pontífice, no entanto, não nasceram mais crianças por ordem dela. Assim, uma vez que todas as crianças criadas dentro da catedral atingissem a idade de doze anos e se tornassem aprendizes, o número de pessoas na Brigada de Artífices Sagrados não aumentaria mais. E como as crianças podiam escolher sua vocação, talvez nem quisessem ficar.
Então o número de usuários de Artes Sagradas teria que ser reabastecido de fora. E parecia que talvez a escolha de Ayuha Furia como a nova líder estivesse relacionada a essa crise, porque ela fora convidada — não que fosse realmente uma escolha — para a catedral durante a era da Administradora devido à sua notável habilidade com Artes Sagradas.
Esses pensamentos passaram pela mente de Ronie enquanto ela deixava a lista de nomes recitados passar por ela.
— …e esses foram os seis de Centoria Oeste. A seguir, cinco escolhidos de Centoria Norte. Escolhidos da igreja local de Centoria Norte: Aprendiz Irmão Ihal Dahlik, treze anos; Aprendiz Irmão Matheom Torzell, quatorze anos; Aprendiz Irmã Renon Simky, treze anos; Aprendiz Irmã…
— Então quase todos eles são filhos da Igreja — sussurrou Tiese. Ronie ia responder “Bem, claro que são”, mas o quinto nome a ser lido na lista a fez esquecer completamente o que estava prestes a dizer.
— …e da Academia Imperial de Esgrima de Centoria do Norte, a Discípula de Elite Frenica Cesky, dezessete anos.
— — O… o quêêêêêê?! — —
As duas gritaram juntas, e os olhos de Berche se abriram com o som. Os grandes orbes azul-escuros se encheram de grandes lágrimas, e ele engasgou antes de começar a chorar.
As meninas se curvaram repetidamente para o conselho abaixo e fizeram o possível para acalmar o bebê; no entanto, não conseguiram deixar de se encarar em choque. Eventualmente, ambas estavam sorrindo. Ronie queria conversar com Tiese sobre tudo agora mesmo, mas teriam que esperar até o fim da reunião.
Ayuha pigarreou novamente para restabelecer a ordem após a interrupção e retomou a leitura.
— Esses foram os cinco de Centoria Norte. Por último, mais um de fora da capital… das terras do norte de Norlangarth, uma aprendiz de irmã na igreja de Rulid, Selka Zuberg, quinze anos.
— O… o quêêêêêê?! — gritou uma voz que não pertencia nem a Ronie nem a Tiese.
Vinha do assento de honra na mesa redonda, onde apenas um momento atrás o Delegado Espadachim de aparência sonolenta estava sentado.

Tradução: Gabriella
Revisão: Fábio_Reis
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