— Ma… Mas o que é isto?!
— É exatamente o que parece ser. Vamos, de pé.
O que Asuna me forçou a vestir era o meu novo uniforme. Embora o modelo fosse o mesmo do velho casaco, este era tão branco que fazia os olhos doerem. Havia uma pequena cruz no punho de cada manga e uma maior nas costas, todas tingidas de vermelho. Era, sem dúvida alguma, um uniforme da KoB.
— …M-Mas eu pedi um uniforme discreto…
— Esse é discreto o suficiente. É, combinou com você!
Eu me deixei cair na cadeira de balanço, enquanto perdia toda a força do corpo. Nós estávamos no segundo andar da loja de Agil. Acabei transformando o lugar no meu abrigo de emergência, o que fez com que o pobre comerciante tivesse que dormir em uma simples cama no primeiro andar. A única razão para não ter me expulsado ainda era porque Asuna aparecia dia sim, dia não, e ajudava na loja. Era o melhor tipo de propaganda que ele podia ter.
Enquanto eu suspirava no meu assento, Asuna veio e se sentou no braço da cadeira, que havia praticamente se tornado seu lugar. Ela balançou a cadeira com um sorriso, como se meu sofrimento a divertisse, então bateu palmas, tinha acabado de ter uma ideia.
— Ah, nós precisamos nos cumprimentar direito. Como membros da guilda, espero que possamos nos dar bem de agora em diante.
Ela fez uma pequena reverência e eu me apressei para endireitar minhas costas.
— E-Eu digo o mesmo… Mas considerando que sou só um membro comum e você é a vice-comandante…
Estendi o braço direito e, com o dedo indicador, tracei uma linha pela sua espinha.
— Não vou mais poder fazer isso—
— Hyaah!
Com um grito, minha superior pulou e deu um tapa na cabeça deste subordinado. Então, ela foi até a cadeira oposta a mim e sentou-se nela, seu rosto contorcido em um biquinho.
Tarde de final de outono. Banhados por um sol preguiçoso, caímos em um silêncio confortável.
Minha derrota na luta contra Heathcliff acontecera dois dias antes. Como eu não era do tipo que voltava atrás na própria palavra, entrei para a Knights of the Blood, como havia combinado com ele. A guilda me deu dois dias para me preparar, então, a partir do dia seguinte, seguiria suas ordens para explorar a área do labirinto do 75° andar.
Entrar para uma guilda…
Asuna olhou para mim como se tivesse ouvido meu suspiro silencioso.
— …Você acabou mesmo envolvido nisso tudo…
— Não, não é nada demais, é uma boa oportunidade pra mim. Eu tava começando a sentir os limites de um jogador solo mesmo…
— É um alívio ouvir isso de você… Sabe, Kirito.
Os olhos castanhos de Asuna se fixaram diretamente para mim.
— Eu queria que você me contasse. Por que você evita… guildas, pessoas… Não acho que seja porque você é um beta tester ou porque tem uma habilidade única. Você é tão gentil.
Olhei para baixo e comecei a balançar a cadeira lentamente.
— …Há muito tempo… Há pouco mais de um ano, na verdade, eu entrei numa guilda…
As palavras saíram com tanta facilidade que me surpreendi. Talvez fosse porque o olhar de Asuna parecia derreter as pontadas de dor que surgiam toda vez que eu pensava no assunto.
— Eu os ajudei por acaso, em um labirinto, e eles me convidaram… Era uma guilda pequena, com seis pessoas, contando comigo. O nome era o melhor: “Gatos Pretos da Noite Enluarada 1Nome da guilda: Moonlit Black Cats“.
Asuna abriu um leve sorriso.
— O líder era um bom sujeito. Ele sempre colocava os membros em primeiro lugar e tinha a confiança de todos. Ele se chamava Keita e usava um bastão. Ele me explicou que, como a maioria dos membros usava armas de longo alcance, precisavam de alguém pra vanguarda.
Para ser sincero, o nível deles era bem inferior ao meu. Não, o certo é dizer que eu que tinha subido de nível demais.
Se tivesse contado meu nível para ele, Keita teria pensado duas vezes antes de me convidar. Mas eu estava ficando cansado de ir sozinho para os labirintos, dia após dia, e o ambiente familiar dos Black Cats me fez sentir inveja. Parecia que eles eram amigos na vida real, as conversas deles não tinham aquela falta de jeito e distância que normalmente havia em conversas online entre jogadores, e isso também serviu para me atrair.
Francamente, eu não tinha o direito de desejar a afeição de outras pessoas. Perdera esse direito quando decidi ser um jogador solo egoísta, que só focava em subir de nível para proveito próprio. Mas calei as vozes que sussurravam dentro da minha cabeça e entrei para a guilda, escondendo meu nível e meu passado como beta tester.
Keita me perguntou se eu poderia treinar dois lanceiros da guilda para serem capazes de usar escudo e espada, pois aí seriam três jogadores na vanguarda, contando comigo, e então o grupo ficaria mais balanceado.
Um dos lanceiros que ficou sob minha responsabilidade era uma garota quieta, com cabelo na altura do ombro, chamada Sachi. Quando fomos apresentados um ao outro, ela disse, com um sorriso acanhado, que apesar de ser uma gamer há bastante tempo, não tinha conseguido fazer muitos amigos por conta da sua personalidade. Sempre que não tínhamos nenhuma atividade relacionada à guilda, eu passava meu tempo com ela e a ensinava a manejar a espada de uma mão.
Sachi e eu éramos parecidos em várias maneiras. Nós dois éramos socialmente desajeitados, tínhamos o costume de nos isolarmos, mas, ainda assim, tínhamos medo da solidão.
Então, um dia, do nada, ela me confessou um medo seu. Medo de morrer. Ela tinha um medo irracional do jogo. Ela, na verdade, não queria sair a campo.
Diante de sua confissão, só pude dizer: “Você não vai morrer”. Eu não podia dizer mais nada porque ainda estava tentando esconder o meu nível. Depois de ouvir minha resposta, ela chorou um pouquinho, antes de forçar um sorriso.
Um tempo depois, cinco de nós, todos os membros da guilda, menos Keita, entramos em um labirinto. Keita não foi conosco porque tinha ido negociar uma casa para usar como nossa base com o dinheiro que tínhamos juntado.
Apesar do labirinto que estávamos já ter sido zerado, ainda havia áreas dentro dele que não haviam sido exploradas. Um dos membros encontrou um baú de tesouro quando estávamos prestes a sair. Recomendei deixar o baú de lado, já que estávamos perto da linha de frente e os monstros dali tinham nível alto. Além do mais, eu não confiava nas habilidades de desmontar armadilhas dos membros. Mas já que apenas eu e Sachi nos opusemos à ideia de abrir o baú, perdemos por três a dois na votação.
A armadilha ativava um alarme, um dos piores tipos existentes. Assim que abrimos o baú, um barulho de fazer sangrar o ouvido soou e inúmeros monstros começaram a brotar de todas as entradas. Nós imediatamente tentamos escapar usando teleporte.
Mas a armadilha era dupla. Era uma área que anulava cristais. Nossos cristais não funcionavam.
O número de monstros era alto demais para conseguirmos dar conta deles. Os outros membros entraram em pânico e ficaram correndo de um lado para o outro. Eu tentei abrir caminho usando uma skill de alto nível que havia escondido até então, mas o resto não conseguiu fugir a tempo. Um a um, seus HPs chegaram a zero, e eles soltaram um grito antes de se desfazerem em milhares de fragmentos. Pensei que poderia ao menos salvar Sachi e brandi minha espada a esmo.
Mas já era tarde demais. Eu vi Sachi estender o braço em minha direção enquanto um monstro a atacava sem dó. Mesmo no momento em que ela se partia em milhares de pedaços, como uma estátua de vidro, seus olhos ainda estavam repletos de fé e confiança em mim. Ela confiou e acreditou em mim até o fim. Ela acreditou nas minhas palavras, que eram fracas, superficiais, promessas vazias sem um real significado por trás, ou seja, mentiras.
Keita estava esperando por nós na estalagem que servia de base temporária da nossa guilda com as chaves da nova base em mãos. Depois de retornar sozinho para lá, expliquei a Keita o que havia acontecido. Ele ouviu tudo sem dizer uma palavra até eu terminar meu relato e então perguntou:
— Como foi que só você sobreviveu?
Então eu lhe revelei meu verdadeiro nível e que havia sido um beta tester.
Keita me olhou como se eu fosse algo repugnante e disse apenas uma coisa:
— Um beater como você não tinha o direito de se juntar a nós.
Essas palavras me apunhalaram como se fossem uma espada de aço.
— …E o que… Aconteceu com ele…?
— Ele se matou.
O corpo de Asuna estremeceu na cadeira.
— Ele pulou da beira do andar. Talvez me amaldiçoando até o fim…
Senti minha garganta se contrair. Aquelas eram memórias que eu havia enterrado bem no fundo do peito, mas assim que comecei a narrá-las pela primeira vez, a dor que sentira daquela vez retornou com toda a clareza. Cerrei os dentes. Apesar de querer estender a mão para Asuna e pedir por ajuda, uma voz dentro de mim gritava: “Você não tem esse direito”, então apenas me restava fechar os punhos com força.
— Fui eu quem matou todos eles. Se não tivesse escondido o fato de que era um beater, poderia ter conseguido convencê-los do perigo de ter uma armadilha naquela hora. Fui eu… Fui eu quem matou Keita… E Sachi…
Com os olhos bem abertos, forcei as palavras a saírem entre os dentes cerrados.
Asuna se levantou de repente, deu dois passos até mim e acariciou meu rosto com as duas mãos. Ela aproximou seu belo rosto do meu, mostrando-me um sorriso caloroso.
— Eu não vou morrer.
Ela murmurou, mas sua voz era bem clara. Toda a força se dissipou do meu corpo tenso.
— Afinal, sou eu… Sou eu quem vou te proteger.
Depois de dizer isso, Asuna colocou minha cabeça no peito e me abraçou. Senti uma escuridão calorosa e suave me envolver.
Quando fechei os olhos, por trás do véu sombrio da minha memória, consegui ver o rosto dos membros da Black Cats, sentados no balcão da estalagem e iluminados por uma luz alaranjada.
O dia em que serei perdoado nunca vai chegar. Nunca vou poder me redimir pelos meus crimes.
Mas, mesmo assim, os rostos deles que permaneciam na minha memória pareciam estar sorrindo.
No dia seguinte, depois que vesti meu casaco branco super chamativo, parti com Asuna para Granzam, no 55° andar.
A partir daquele dia, eu começaria meu trabalho como membro da KoB. Mas, diferente dos costumeiros grupos de cinco pessoas, Asuna tomou proveito dos seus poderes dentro da guilda e conseguiu que formássemos uma dupla. Ou seja, não havia mudado muita coisa em comparação com o dia anterior.
Porém, as ordens que nos aguardavam na base de operações da guilda eram completamente imprevistas.
— Treinamento…?
— Isso mesmo. Formaremos um grupo de quatro jogadores, contando comigo. Vamos atravessar o labirinto do 55° andar até chegar à cidade do 56° andar.
O homem que tinha dito aquilo era um dos quatro que estavam sentados à mesa quando fui falar com Heathcliff. Ele era enorme, possuía grossos cachos desarrumados e parecia usar um machado.
— Espera aí, Godfrey! O Kirito e eu vamos…
Assim que Asuna começou a tentar argumentar, ele ergueu a sobrancelha e respondeu com uma voz cheia de confiança, ou melhor, presunção.
— Mesmo a vice-comandante não pode ignorar as regras desse jeito. Num ataque real, podem fazer como quiserem. Mas como responsável pela vanguarda, preciso conhecer a verdadeira força do novo recruta. Ter uma habilidade única não significa nada se não souber usá-la de forma eficiente.
— O… O Kirito é forte o bastante para não te dar nenhum problema.
Eu primeiro acalmei Asuna, que estava prestes a perder a cabeça, e então falei:
— Se você quiser ver, eu mostro. Mas me poupe de perder tempo no labirinto de um andar tão baixo. Não vai conseguir me avaliar se eu matar tudo com um só golpe.
Godfrey fechou a boca com uma expressão de desagrado. Ele então se foi, depois de dizer:
— Nos vemos em trinta minutos no portão da cidade.
— Qual é a dele?!
Asuna chutou o pilar de aço de tamanha indignação.
— Desculpa, Kirito. Teria sido melhor se tivéssemos fugido…
— Se fizéssemos isso, os membros da guilda me amaldiçoariam até a morte.
Sorri e dei um tapinha de brincadeira na cabeça de Asuna.
— Ugh, achei que ficaríamos juntos hoje… Será que eu deveria ir junto com você…?
— Volto logo. Me espere aqui.
— Está bem… Tome cuidado…
Asuna assentiu, relutante. Depois de acenar em sua direção, eu deixei a base.
Mas quando cheguei ao local combinado — o portão oeste de Granzam —, vi algo ainda mais chocante.
Ao lado de Godfrey estava a pessoa que eu menos queria ver neste mundo: Kuradeel.
Tradução: Axios
Revisão: Alice
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