CAPÍTULO 4
De repente, Muoru sentiu uma mudança na atmosfera. Ele forçou os olhos e observou com atenção o cemitério escuro, mas não pôde ver mudança alguma. Depois, olhou para o mar de lápides, então para as árvores na floresta sombria, mas, novamente, não viu o monstro estranho de rosto gigante nem viu o saco de carne com várias pernas, ou algo que pudesse ser considerado da espécie deles.
“Estou tirando conclusões precipitas ou apenas estou nervoso?”
Muoru olhou para a cova que abrira aos seus pés. Era tão grande que qualquer pessoa normal provavelmente não cogitaria a ideia de ser uma cova. Ela parecia mais um local de escavação de ruína ou uma trincheira subterrânea de grande escala. E ele sentia que, caso o monstro fosse mesmo grande o suficiente para caber neste buraco, qualquer um poderia reconhecê-lo, não importava a distância.
“Mas este tipo de coisa realmente existe neste mundo?”
Naquele momento, Muoru não conseguia pensar em nada engraçado.
— Senhor Prisioneiro — disse uma voz rouca.
O rosto do velho sem nariz estava pálido, como se tivesse perdido todo seu sangue. Ele estava segurando uma pistola preta em sua mão direita trêmula, com um dedo que parecia um galho seco no gatilho.
— Responda-me! Onde escondestes a guarda sepulcral?
Ainda que o cano estivesse apontado para ele, Muoru não deu muita atenção para onde o velho estava.
— Não a encontrou? Isso é muito ruim. — O garoto mostrou um pequeno sorriso desafiador. — Quero dizer, quantos lugares poderiam existir para se esconder aqui?
— Não é hora para brincadeiras de mau gosto. Aquela coisa está prestes a chegar! Ela irá…
— Então é isso? Bom… saber — interrompeu Muoru, virando-se para encarar Daribedor de frente. — Bem, neste caso, por que você não vai se esconder? Não creio que o monstro diferencie entre guardas sepulcrais, prisioneiros ou velhotes teimosos.
— Vossa… vossa coleira! — repreendeu Daribedor, percebendo que a coleira de Muoru havia sido tirada.
Ainda que as pernas de Muoru estivessem extremamente pesadas, ele deu um longo passo em direção ao velho. Então, um disparo seco ocorreu.
Daribedor disparou dois tiros, o primeiro atingiu à direita do umbigo de Muoru e o segundo penetrou diretamente no centro de seu estômago.
Quando isso aconteceu, ele teve uma sensação de cólica, como se alicates muito fortes estivessem o torcendo por dentro. Grunhindo por causa da dor, agarrou o pescoço de Daribedor e, da mesma forma que fez com Corvo há vários dias, jogou o homem baixinho em um buraco profundo.
Daribedor gritou. Talvez fosse por causa de seu ódio pelo homem, mas Muoru parecia hediondo. “Pode ser que a queda quebre uma de suas pernas ou algo do tipo.”
Muoru ficou de joelhos, agarrando seu estômago aberto com um sorriso no rosto.
— Sinto muito… você não está ferido, está?
Uma espuma ensanguentada subiu-lhe pela garganta e borbulhou para fora de sua boca. A dor parecia estar vindo das rupturas de dentro de seu corpo. Talvez, do lado de dentro da pequena abertura em seu torso, o estômago tenha sido aberto, fazendo com que os ácidos digestivos vazassem e queimassem seus órgãos.
Muoru pôde ouvir o velho gritando algumas profanidades do fundo do buraco e desejava ter algo para escalar. Porém, já que o fez com um poço de água em mente, Daribedor não seria capaz de sair dali sem algumas ferramentas para apoiá-lo.
— Ergh. — Muoru deitou-se no chão, gemendo de dor.
Provavelmente esta era a primeira vez que experimentou uma dor dessas em sua vida.
Sob circunstâncias normais, algo como uma bala teria sido o suficiente para matá-lo. Mas logo em seguida, foi capaz de se levantar e assim que suas pernas ficaram fortes o bastante para apoiá-lo, deixou o buraco para trás e partiu.
Mais uma vez o vento parecia ter ficado mais forte. E Muoru sentiu um calafrio, conforme a ventania atingia suas roupas encharcadas de sangue. As nuvens moviam-se terrivelmente depressa. O vento soprava pelas árvores, agitando os galhos e fazendo as folhas uivarem em coro.
Embora seu tempo fosse limitado, não podia fazer nada mais do que esperar.
“Não me esqueci de nada, né?” Pensou Muoru.
Em algum lugar distante, ouviu Dephen uivar. Corvo levou aquele maldito cachorro para algum lugar durante o dia. Ele não sabia o que Corvo usou nele, mas quando suas mãos infantis acariciaram o animal, o mesmo se tornou dócil como se tivesse sido castrado. De alguma forma, aquelas pupilas negras pareciam estar mais brilhantes que o normal.
Surpreso, Muoru perguntou ao Corvo como ele havia o domado, mas apenas riu e pulou nas costas do cachorro. Se Muoru tivesse feito isso, era muito provável que Dephen tivesse mordido sua virilha.
“O que será que ele está fazendo agora…”
No fim, sentiu que Corvo havia conseguido manter sua identidade em segredo. Se pensasse sobre isso racionalmente, algo tão absurdo como “A associação de vítimas” era quase outra invenção na tentativa de enganá-lo.
Porém, para conseguir roubar o poder de Mélia — e para que ela não fosse capaz de resistir —, era necessário evitar que Dephen interferisse.
Tudo para que pudesse fazer isso… por Mélia.
O vento estava ficando cada vez mais forte.
Muoru virou a cabeça e olhou para os arredores. De repente, o mundo estremeceu, como se um terremoto acontecesse.
Mesmo tendo pensado no início que era apenas sua imaginação, de repente, a sensação aumentou de tamanho, como um gêiser prestes a entrar em erupção. Era uma sensação avassaladora, assim como a da noite em que sua pele sentiu arrepios após ver o monstro com uma infinidade de pernas pela primeira vez. Porém, independente de quando ou de onde o vento viria atacá-lo, ele estava preparado.
Então, um guincho metálico rapidamente alcançou seus ouvidos. Não era claro e parecia repetir sem parar, como o ranger de uma engrenagem ou roda emperrada. Mas era com certeza um som terrivelmente desagradável.
O vento forte atormentou Muoru. E, enquanto seus pés cambaleavam, por um instante, sua sombra pareceu ficar borrada. Então, olhou para cima e viu algo escuro cercar a lua como se fosse um eclipse.
Muito acima, no céu estrelado, uma fenda fina nas nuvens, semelhante a uma fumaça, descia. De dentro daquela brecha nas nuvens, algo contorcia seu corpo aterrorizantemente longo de um lado para o outro enquanto voava, sem asas, pelo ar.
O vento era tão forte que Muoru sentia estar prestes a sair voando, porém, resistindo, agarrou-se em seus joelhos e encarou a existência que precisaria confrontar.
A criatura no céu era uma serpente gigante, composta por milhares de espadas.
Talvez fosse por causa da longa distância entre ele e seu oponente, mas, da perspectiva de Muoru, observar a criatura flutuar no ar parecia mais elegante do que desagradável. Seu corpo estranho parecia cobrir toda a lua. Mas então, sua descida mudou e ele se aproximava com a velocidade de uma flecha em queda livre. E à medida que a distância entre os dois diminuía, a sombra da criatura, projetada no chão, parecia crescer sem limites.
Seu corpo era como um imã largado em uma infinidade de agulhas de costura — não, não era bem isso — era mais como se fosse feito de espadas de dois gumes, brilhantes, pretas e sem cabo. Ainda que, à primeira vista, se parecessem realmente com agulhas de longe, à medida em que se aproximavam, ele viu que eram lâminas tão largas que não poderia segurá-las com facilidade, mesmo se usasse as duas mãos.
Além disso, elas vibravam com algum tipo de alta velocidade, como uma motosserra, dando a impressão de se parecerem com densos cabelos humanos cobrindo um longo e gigante corpo estreito.
Enquanto o corpo do monstro deslizava de um lado para o outro no ar, de vez em quando, algumas espadas raspavam-se umas nas outras e emitiam um chiado muito agudo. Ao mesmo tempo, as violentas faíscas azuis, que pareciam eletricidade, saltavam e ficavam logo atrás da serpente gigante enquanto subiam no ar e cortavam a noite.
A visão dela descendo de cabeça em direção ao chão era como um julgamento estrondoso caindo diretamente dos céus.
E Muoru estava logo abaixo dela.
Ele era como uma toupeira pega por um tornado. E, no momento em que aquilo fez contato, todo o seu corpo ficou desorganizado, como se tivesse sido jogado em um liquidificador gigante, despedaçando sua consciência. Porém, antes que perdesse todos os sentidos de onde estava, ainda conseguiu sentir que estava sorrindo.
Era uma dor enlouquecedora.
Mas já que era a mesma que Mélia sentira antes, Muoru não pôde deixar de sorrir.
Ele a amava.
E se os dois vivessem em mundos diferentes, ele iria até o mundo dela, mesmo que isso significasse deixar o mundo de luz, o mundo no qual viveu toda sua vida. Nada disso lhe importava… apenas ela.
Apesar de toda a decepção que teve, ele e a garota estavam destinados a ficarem juntos e não havia como escapar disso. Mas ele tinha certeza de uma coisa: depois disso, não haveria mais truques e decepção.
Muoru estava realmente sorrindo, mesmo que parecesse que todos os seus métodos, objetivos e, basicamente, toda sua lista de prioridades tivessem se invertido de forma notável. A única razão para se aproximar dela no início era para conseguir fugir deste lugar. E agora escolheu permanecer, para que assim pudessem ficar próximos.
As partes de seu corpo que foram arremessadas e espalhadas estavam lentamente se reunindo. Sem ser capaz de desviar o olhar do ataque, Muoru assistiu o monstro serpente sem rosto usar seu corpo, composto por inúmeras lâminas, para transformá-lo em pedacinhos.
As vibrantes espadas de dois gumes eram terrivelmente afiadas e facilmente conseguiam cortar não apenas seus músculos, mas também seus ossos como se fossem fios. E em apenas dez segundos, Muoru foi cortado em mil pedaços. Então, seu corpo voltou ao normal depois de um tempo, para logo em seguida ser cortado de novo. E isso aconteceu de novo. E de novo…
Ele viu suas entranhas caírem sob o solo. Viu a cor de seus órgãos e a cor do sangue à distância. Viu sua espinha dorsal, seu líquido cerebrospinal e a meninge que protegiam o cérebro. Também ficou feliz por ter tirado o capacete antes da provação.
Quando seu cérebro foi aberto, por um momento, sentiu-se preso dentro de uma escuridão profunda e puramente vermelha, enquanto o tempo parecia passar de forma lenta. Mas logo após isso, a dor aterrorizante forçou-o a voltar à realidade. Era como se todos os seus dentes do siso estivessem deixando seu crânio em um ato de protesto.
No entanto, havia uma utilidade em ter essa experiência.
Muoru sorria enquanto gritava. A maioria das pessoas que experimentasse este tipo de dor jamais voltariam dela, mas Mélia com certeza passou pela mesma coisa. E por isso, talvez, esta poderia ser uma maneira de se aproximar dela. Ele sorria enquanto aqueles pensamentos bizarros passavam pela sua mente.
Então, gritava por causa do choque de ter seu corpo estraçalhado e espalhado por todo o lugar. Se ainda tivesse os pulmões ou boca para gritar, com certeza o faria, e se tivesse membros para se contorcerem, se agarraria ao chão como um louco. E se mantivesse sua consciência, pensaria em Mélia. Lembrou da cor de seus cabelos, seus sinceros olhos azuis, o gosto de quando beijou o capacete na cabeça dela, o calor de quando ela pressionou a bochecha contra ele e o som de seu coração em suas costas. Estes pensamentos o ajudaram a manter a sanidade através das feridas fatais e sofrimentos.
No instante em que seu rosto foi cortado ao meio como uma maçã, viu que algumas das lâminas do corpo da serpente haviam parado de se mover, como se estivessem mortas. Era um sinal de que, talvez, este inferno não duraria para sempre. Conforme sua consciência retornava, Muoru manteve essa esperança no coração. Ele estendeu seu braço direito totalmente recuperado e tentou parar uma das espadas que o atacavam. Quando agarrou a lâmina vibratória, seus dedos estouraram como pipoca, e a dor escorreu na diagonal de seu ombro direito até seu torso.
“Preciso acelerar as coisas um pouco…”, pensou Muoru enquanto vomitava espumas de sangue e cambaleava no chão. Ainda restavam inúmeras espadas da serpente gigante.
“Isso precisa estar terminado até o amanhecer.” O sangue perdido estava fazendo sua consciência esvanecer-se. Era como se estivesse começando a adormecer. “Acho que está tudo bem por enquanto”, pensou Muoru. Até que a parte de baixo de seu corpo não voltasse, não poderia se mover mesmo.
Ele abriu os olhos e olhou para cima. As nuvens desapareceram sem que notasse.
E o céu estrelado estava bonito.
Tradução: Taiyo
Revisão: Bravo, Guilherme e Taipan
QC: Milady
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