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Sua História – Cap. 10 – Garoto Encontra Garota

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Mergulhei no trabalho pelos próximos seis meses.

 

As Mimories que fiz nesse período foram tão bem feitas que até eu tive que ficar admirada. Talvez por ter perdido a paciência com a realidade (ou foi ela que perdeu comigo), isso não acabou aumentando meu apego à ficção? Não, não exatamente. Também não era como se estivesse sentindo o pouco tempo que me restava, fazendo-me querer deixar o mundo com uma prova de que eu existi. O motivo para o desempenho era o esquecimento causado pela Nova Alzheimer.

 

Qualquer um pensaria que, quando perdesse as memórias, suas habilidades criativas decairiam, mas na verdade acontecia o exato contrário. O esquecimento demonstrava efeitos benéficos na criação de Mimories. Como a Nova Alzheimer não apagava o conhecimento, apenas experiências, servia como inspiração para alguém como eu. Os sintomas seriam devastadores para um engenheiro de Mimories que usava suas próprias experiências como referência, mas para uma engenheira que criava Mimories do nada, esquecer as próprias experiências realmente não era um problema. Na verdade, até demonstrou benefícios: servia como fuga para uma mente fechada, servia para destruir noções fixas, criar novas perspectivas e objetivos, disponibilizava maior velocidade no processamento de ideias, liberou memória de trabalho, e assim por diante.

 

Gostaria de saber se era por isso que os artistas tendiam a gostar de fumar e beber. Estritamente em profissões onde os momentos de iluminação eram fundamentais, o esquecimento surgiria como uma arma poderosa. Com isso, poderíamos escrever cem ou mil linhas como se fossem apenas uma. Poderíamos ter a liberdade de um adulto e, ao mesmo tempo, a de uma criança.

 

Se um dos fundamentos da identidade é uma memória consistente, então eu me tornava, dia após dia, alguém que não era ninguém. No começo do inverno, passei a me enxergar como um dispositivo de filtragem disposto entre os clientes e suas Mimories. Era o mais próximo de um perfeito estado de “desinteresse” que alguns criadores consideravam ideal. O que tornava o meu caso diferente do desinteresse obtido com treinamentos era que eu estava literalmente perdida como pessoa, transformando-me em uma simples representação bidimensional. Dentro de um ano, perdi as memórias até dos meus dezoito anos. Menos de dez por cento de mim permanecia intacto.

 

Desde que me tornei uma engenheira de Mimories, aos dezesseis anos, trabalhei sempre em casa, mas no outono de quando tinha dezenove anos, comecei a mostrar minha cara no escritório de vez em quando. Eu sentia que estava ficando louca com a solidão domiciliar. Não havia um único colega de trabalho com quem pudesse conversar, graças à minha indiferença fingida, mas a simples sensação de estar perto de outras pessoas já era o suficiente. Queria provar até mesmo a menor sensação de que fazia parte de algo.

 

Mantive minha doença em segredo. Meu maior medo era não conseguir mais trabalhar. Se perdesse até isso, perderia minha razão de existir. Não teria mais um lugar no mundo. Os sintomas da Nova Alzheimer nunca seriam notados se eu ficasse quieta. Ao me ver retornando com tudo ao serviço após as férias, meus colegas de trabalho simplesmente pareceram pensar que eu “devia ter descansado pela primeira vez na vida”.

 

Certa vez, fui convidada para sair e beber. Isso foi alguns dias antes do Natal. Enquanto silenciosamente encarava meu computador ao usar fones de ouvido, alguém tocou em meu ombro. Virei-me e uma das minhas colegas – uma mulher de quase vinte anos, cujo nome esqueci – disse algo com relativa modéstia. Não entendi direito o que ela disse, mas com base no movimento de sua boca, achei que perguntou: “Desculpe, estou atrapalhando?”, então tirei meus fones de ouvido e a encarei.

 

— Um pessoal vai sair para beber, quer vir junto? — perguntou.

 

Eu a encarei, distraída, por um tempo. Olhei em volta, perguntando-me se não estava convidando a pessoa errada. Mas nós éramos as duas únicas pessoas que ainda estavam no escritório, e seus olhos estavam claramente focados em mim.

 

Eu mentiria se dissesse que não fiquei feliz. Mas instintivamente respondi:

 

— Muito obrigada, mas ainda tenho que terminar alguns trabalhos antes do final do ano.

 

Coloquei meu melhor sorriso de negócios (ou, talvez, fosse só um sorriso natural) e recusei seu convite. Ela sorriu um pouco decepcionada, e gentilmente disse:

 

— Certifique-se de cuidar de si mesma.

 

Quando ela saiu do escritório, acenou. Enquanto eu hesitava em acenar de volta, a porta foi fechada e fiquei sozinha.

 

Abaixei meu braço meio levantado e coloquei os cotovelos na minha mesa. Olhei cautelosamente para a janela e descobri que estava nevando. Ao menos até onde lembrava, era a primeira neve da temporada.

 

As últimas palavras que me disse continuaram ecoando em meus ouvidos, vibrando confortavelmente em meus tímpanos. “Certifique-se de cuidar de si mesma.” Fiquei incrivelmente feliz com aquelas simples palavras, e também extremamente triste por ficar tão grata por tão pouco.

 

Do mesmo modo que uma pessoa morrendo de fome não teria capacidade de digerir a comida, talvez eu não tivesse mais energia para aceitar a boa vontade alheia. Esse simples convite podia ter sido minha última chance na vida. Mas, mesmo que fosse, também não teria como aproveitar. Então, aconteceu o mesmo de sempre.

 

Meu último cliente solicitou um encontro para conversarmos pessoalmente.

 

Isso não era nada incomum. Muitos clientes achavam que apenas as informações do registro pessoal seriam insuficientes e solicitavam entrevistas diretas com os engenheiros de Mimories. A maioria das pessoas estava convencida de que ninguém entenderia melhor seus desejos do que elas mesmas, então anexavam todos os tipos de comentários; entretanto, se um engenheiro criasse as Mimories seguindo tudo fielmente, poucos ficariam satisfeitos. Ficariam irritados, falando: “Sim, vejo que meus pedidos foram atendidos, mas falta alguma coisa”, e então finalmente perceberiam que seria preciso habilidade e experiência para captar com precisão os seus desejos. Estávamos acostumados a suprimir nossos desejos, já que vivíamos criando vidas seguindo caminhos alheios, por isso era preciso um treinamento especializado para buscar os sentimentos nas profundezas do coração, onde estariam adormecidos. Portanto, não havia muito a ganhar com uma entrevista pessoal envolvendo o cliente e o engenheiro de Mimories. Afinal, isso faria muito mais mal do que bem.

 

Sempre me opus aos engenheiros de Mimories tendo encontros com seus clientes, mas por um bom motivo. Isso poderia simplesmente criar impurezas nas Mimories. Se o cliente soubesse algo sobre mim, a criadora de suas Mimories, como pessoa, sempre que se lembrasse das Mimories, incidentalmente lembraria de mim. Isso decerto lançaria minha sombra por trás de cada palavra e ação contida nas Mimories. E toda vez que isso acontecesse, certamente aprofundaria a sensação de que as Mimories não passavam de algo artificial.

 

Não era isso o que eu buscava. O papel de engenheiros de Mimories deveria ser estritamente semelhante ao de um ajudante de palco. Deveriam mostrar seu rosto e fazer o mínimo de declarações possível e, se aparecessem na frente dos outros, não seriam separados daquilo que seria retratado nas Mimories. E também era necessário se comportar da melhor maneira possível. Nós fornecíamos certo tipo de sonho aos clientes, e os guias da terra dos sonhos não deviam ser humanos normais ou comuns.

 

De acordo com essa crença, sempre me recusei a me encontrar com meus clientes. Entretanto, uma carta que recebi no final de abril abalou bastante essa minha crença. Algo nela me cativou tanto que me fez sentir que gostaria de conhecer essa pessoa e conversar com ela cara a cara. Cada palavra foi cuidadosamente escolhida, e foram organizadas em perfeita ordem. E, apesar disso, escondeu de maneira bem inteligente a sensação de ser “uma carta bem pensada”, transmitindo a sensação simples e alegre que apenas alguém que não ganha a vida escrevendo teria, era algo “fácil de ler”. Já havia recebido diversas cartas de clientes, mas nenhuma me deixou uma impressão tão forte.

 

A cliente era uma mulher idosa, mas compreendeu precisamente o trabalho da engenharia de Mimories e criou grande respeito por isso. Seu hobby era escutar as histórias de pessoas que receberam Mimories (como escreveu em sua carta: “Tenho profundo interesse não no que ‘realmente aconteceu’, mas no que ‘deveria ter acontecido'”), e meu nome aparentemente apareceu em meio a suas buscas.

 

Ela escreveu algumas opiniões sobre determinadas Mimories que criei, e foram bem pontuais. Ela colocou na cabeça que realmente me esforcei para criar tudo aquilo, e nem mesmo os próprios clientes costumavam dar opinião detalhada sobre o que recebiam.

 

Pensei em me encontrar com a remetente da carta. Se alguém que conheceu meu trabalho tão intimamente queria se encontrar pessoalmente comigo, decerto não seria nada de demais. Enviei uma resposta ao e-mail escrito na carta e planejei o encontro para cinco dias após isso.

 

A cliente escreveu em sua carta: “É um pedido muito estranho; portanto, se não houver qualquer problema, gostaria que o encontro fosse fora da clínica”. Ela não explicou o que seria estranho, mas eu consenti sem pensar muito no assunto. Afinal, falar sobre as Mimories que queria deveria ser ao menos um pouco estranho.

 

Cheguei ao hotel combinado e esperei pela cliente na cafeteria. Chamei de “hotel”, mas tinha uma espécie de atmosfera rústica, e tudo que havia no edifício estava surrado e sujo.

 

O tapete estava totalmente desbotado, as cadeiras rangiam quando alguém sentava nelas, as toalhas de mesa também tinham manchas visíveis. Entretanto, o café tinha um ótimo gosto e bom preço. Por alguma razão, este lugar me lembrava do hospital que frequentemente visitava quando criança. “Que lugar calmo”, murmurei bem baixinho quando fechei os olhos.

 

A cliente apareceu dez minutos antes do combinado. Ouvi dizer que ela tinha setenta anos, mas parecia ser ainda mais velha. Seu corpo era magro, e todas suas ações pareciam incertas e até mesmo trabalhosas, então fiquei silenciosamente preocupada sobre não conseguirmos manter uma conversa decente. Mas esse foi um medo desnecessário; uma vez que ela abriu a boca, falou com uma voz clara e nítida.

 

Primeiramente, pedi desculpas educadas por fazê-la andar para me encontrar. Pelo visto, suas pernas estavam péssimas e ela não tinha confiança para andar por lugares desconhecidos. “Este hotel é maravilhoso”, falei, e a cliente concordou alegremente, como se fosse um de seus parentes quem estava sendo elogiado. Depois disso, a senhora mais uma vez recitou o que achava do meu trabalho. Suas palavras estavam ainda mais corteses e apaixonadas do que na carta, e tudo que eu podia fazer era abaixar a cabeça e agradecer pelos elogios. Eu não tinha imunidade a eles.

 

Depois de pensar um pouco, ela reajustou a postura e limpou a garganta. Então começou com os verdadeiros negócios.

 

Pegou alguns envelopes de sua bolsa e os colocou sobre a mesa. Havia dois.

 

— Um é o meu e o outro é o registro pessoal do meu marido — informou a cliente.

 

Olhei para os dois envelopes.

 

— Quer dizer que você quer Mimories para os dois? — perguntei hesitante, e ela balançou a cabeça sem pressa.

 

— Não, não é isso. Meu marido partiu deste mundo há quatro anos.

 

Corri para pedir desculpas pela minha grosseria, mas ela falou antes disso.

 

— Gostaria que você criasse Mimories de mim e do meu marido.

 

Tive que pensar por um segundo sobre qual seria a diferença do normal. Parecia que eu estaria trabalhando com um quebra-cabeça.

 

A cliente colocou a mão em um dos envelopes e começou a falar:

 

— Meu marido e eu nos conhecemos nesta cidade há seis anos, nos apaixonamos em um piscar de olhos. Embora essa seja uma expressão bem comum, acho que foi algo inevitável. Como nos encontros mais fatídicos de todos, nosso amor era algo comum e chato aos olhos de qualquer pessoa, menos para nós mesmos, mas sinto que os dois anos que passamos juntos tiveram muito mais valor do que os sessenta que vivi antes de nosso encontro.

 

E ela continuou após uma longa pausa enquanto procurava pelas coisas em sua memória.

 

— Conversávamos sobre tudo. Qualquer coisa que pudéssemos lembrar, desde o momento em que nascemos até os dias mais recentes. Quando esgotamos completamente todos os assuntos, reconfirmamos que o nosso encontro foi fatídico e, ao mesmo tempo, afundamos em um abismo de desespero. Sabe o motivo? Porque já era tarde demais para o nosso encontro.

 

Ela baixou os olhos e apertou as mãos com força, como se estivesse pressionando algo.

 

— Não porque estávamos velhos. Houve um momento oportuno para nosso encontro casual, mas foi só uma chance, e deixamos passar. Para ser específica, meu marido e eu poderíamos ter nos conhecido quando tínhamos sete anos. Tendo perdido uma chance assim, o mesmo poderia ter acontecido quando éramos adolescentes ou quando tínhamos vinte. Não tinha mais como voltar atrás. Talvez tenha sido por sorte que, apesar de termos desistido de tudo, acabamos conseguindo nos encontrar depois de velhos.

 

E então, por fim, fez seu pedido:

 

— E se pudéssemos ter nos encontrado quando tínhamos sete anos? Gostaria que você replicasse esse passado. Estou ciente de que a incorporação de pessoas vivas nas Mimories viola o código de ética dos engenheiros de Mimories. Mas, mesmo assim, simplesmente preciso perguntar se você aceitaria algo do tipo.

 

Eu podia sentir a força de vontade em sua voz. Quando parei, estupefata, segurando a xícara na mão, a cliente olhou para os dois envelopes sobre a mesa.

 

— Acredito que uma engenheira de Mimories do seu nível pode entender o que estou querendo com esses registros pessoais.

 

Concordei sem falar nada, peguei os envelopes com bastante nervosismo e os coloquei na bolsa.

 

— Vou pedir para você fingir que nunca ouviu isso. Se aceitar, pagarei cinco vezes mais do que o normal. — Depois desse adendo, ela piscou um olho para mim e sorriu. — Se você simplesmente fizer o seu trabalho de sempre, já será perfeito o suficiente.

 

Depois que a cliente partiu, tirei seus registros pessoais de minha bolsa e iniciei minha leitura no hotel mesmo. Normalmente, não gostaria de ler esse tipo de coisa em um lugar onde as outras pessoas poderiam dar espiadas, mas esse não era um pedido oficial e, mais importante, não pude conter a minha curiosidade sobre o que ela quis dizer com “Se você ler isso entenderá o que estou dizendo”.

 

Sua vida, assim como a escrita, era educada, gentil e confortável. Embora dificilmente pudesse chamar isso de “o melhor”, certamente poderia ser dito que ela tentou o seu melhor. Havia beleza em uma derrota que só chega após alcançar os limites das possibilidades. Seu modo de vida era calmo e independente antes de conhecer o marido, e me pareceu infinitamente semelhante ao meu modo de vida ideal, o qual levava antes de ficar doente. Seu registro pessoal aparentemente foi criado logo após os dois se conhecerem, então, infelizmente, eu não sabia por quais tipos de transformações sua vida passou.

 

Depois de terminar rapidamente a leitura do registro pessoal da cliente, pedi mais um café e também um bolo de chocolate, consumi isso rapidamente e logo comecei a leitura do registro do marido. A um terço do fim entendi do que a senhora estava falando.

 

Era como ela disse. Os dois deveriam ter se conhecido quando tinham sete anos.

 

Nem mais cedo, nem mais tarde. Tinha que ser exatamente aos sete.

 

Se tivessem se conhecido naquele momento, provavelmente poderiam ser as crianças mais felizes do mundo. Nesse curto período de tempo, a garota tinha a chave que se encaixaria perfeitamente no coração do garoto, e o garoto tinha a chave ideal para o coração da garota. Deveriam ter usado essas chaves um no outro e alcançado a perfeita harmonia.

 

Mas, na verdade, não puderam se encontrar quando tinham sete anos. Quando finalmente se encontraram, mais de meio século depois, suas chaves já estavam completamente enferrujadas. Tinham experimentado elas em várias fechaduras, então perderam o brilho. Ainda assim, ambos sabiam que as chaves ainda seriam capazes de destrancar as fechaduras corretas.

 

Podia ser algo feliz, dependendo da perspectiva. Sempre houve a possibilidade de suas vidas terem acabado antes de se encontrarem.

 

Independentemente, para mim, a reunião tardia do casal pareceu a maior tragédia do mundo.

 

Decidi aceitar o pedido. Como a cliente havia dito, a modelagem de Substitutos baseados em pessoas reais iria contra o código de ética usado pelos engenheiros de Mimories. Se isso viesse à tona, minha posição ficaria em perigo. Mas eu nem me importei. Não me restava muito tempo mesmo. E as chances de um serviço mais incrível aparecer no meu curto espaço de tempo restante eram quase nulas. Além do mais, senti um tipo de conexão íntima com o casal de velhinhos, queria fazer tudo o que pudesse por ela.

 

Tendo recebido o primeiro pedido pelo qual me apaixonei em algum tempo, fiquei estimulada. Para os dois que deveriam ter se encontrado, mas não conseguiram, inventei um passado em que se conheceram. De certa forma, foi um protesto sobre como o mundo deveria ser. Além disso, também foi vingança. Uma solução alternativa mostrando como os dois realmente deveriam ter vivido. Uma observação retrospectiva de que, se dependesse de mim, poderia fazer que tudo fosse melhor para ambos. Resumindo, queria apontar as falhas do mundo. Com essa ação, poderia indireta e satisfatoriamente condenar este mundo que não foi bom para mim.

 

De repente, tive uma ideia: talvez essa cliente pudesse ser uma imagem de meu futuro eu, de um mundo em que não virei uma engenheira de Mimories e nem tive Nova Alzheimer. E então ri dessa ideia.

 

A fronteira entre mim e os outros estava ficando mais vaga conforme o tempo passava. Meu cérebro devia estar começando a ficar desgastado.

 

O trabalho era divertido. Partindo de um encontro predestinado, encontrei as melhores soluções e possibilidades que poderiam ter acontecido na realidade e invoquei a alma de minha cliente de um universo paralelo. Como se estivesse invadindo o passado com uma viagem temporal e reescrevendo a história.

 

Um mês depois, as Mimories ficaram prontas. Mesmo que tenha sido minha primeira tentativa de “mesclar” duas histórias pessoais em um conjunto de Mimories – ou talvez por isso –, foi o melhor trabalho de toda minha carreira como engenheira de Mimories. Secretamente nomeei isso de “Garoto Encontra Garota”.

 

Mandei configurarem as Mimories prontas nos nanobots sem a presença de meu editor, enviá-las para a cliente pelo correio (nesse momento, ela estava morrendo devido a um acidente vascular cerebral, mas eu não tinha como saber disso), e depois fui para a cidade e tomei um monte de cerveja. Embora estivesse bêbada, de alguma forma cheguei em casa sem vomitar e, enquanto tropeçava na cama para me deitar, esbarrei na mesa e caí. Bati o joelho com força, então fiquei gemendo por algum tempo. Não consegui reunir energias para me levantar, então fechei os olhos e fiquei ali mesmo, no chão.

 

Foi uma inquestionável obra-prima. Mesmo supondo que uma pessoa qualquer recebesse o mesmo tempo de vida, tinha certeza de que seria impossível criar Mimories melhores. Eu criei um milagre único. Se tivesse um pouco de talento, também poderia ter criado outros. Mas agora estava completamente livre de qualquer desejo de continuar trabalhando.

 

Já devo estar morrendo, pensei. Perdendo a vida logo após concluir a maior de todas as obras-primas. A maneira ideal de um criador morrer é quando a cortina fecha no auge de sua carreira, apenas no final. Mesmo um chef de fast food tem o orgulho de um chef de fast food. Independentemente do que quer que qualquer pessoa dissesse, eu poderia ficar orgulhosa.

 

Mas como eu deveria morrer? Queria evitar enforcamentos, afogamentos ou gasolina, se possível. Embora tenha perdido as lembranças de minha asma há algum tempo, meu corpo ainda deixava claro: “Não quero sentir falta de ar mesmo enquanto morrendo”. Nesse caso, talvez devesse pular de um prédio. Jogar-me na frente de um trem também não seria má ideia. Iria me importar em causar problemas às pessoas? A zombaria dos vivos não é capaz de alcançar os mortos.

 

Quando me sentei de olhos fechados, pensando nisso, de repente, senti aquela sensação horrível, era como se insetos estivessem rastejando pelo meu corpo. Abri os olhos e olhei para os lados. As paredes e teto brancos machucaram meus olhos com sua clareza e varreram aquele mal-estar sombrio para longe. Ultimamente, estava sentindo medo do escuro. Acho que estava fisiologicamente temendo algo relacionado à morte. Disse a mim mesma que já estava ciente disso, mas meu corpo continuava resistindo. O medo da morte me perseguiria até o fim.

 

Quando me virei para limpar minha mente, vi um envelope com um registro pessoal jogado no chão. Pelo visto, caiu da mesa quando tropecei nela mais cedo.

 

A foto ao lado do perfil estranhamente atraiu minha atenção.

 

Era um jovem. Da mesma idade que eu, até seu aniversário era próximo ao meu. Era raro pessoas jovens comprando Verde Verde. Ele estudava em uma faculdade decente o bastante e sua aparência também não era de todo ruim; então, o que poderia estar deixando-o insatisfeito com a realidade?

 

Estendi a mão e peguei o registro pessoal, virei meu corpo com o rosto para cima e comecei a ler. E depois de apenas algumas linhas, senti como se tivesse sido atingida por um raio.

 

Finalmente o encontrei.

 

Alguém com o mesmo desespero que eu.

 

Alguém atormentado pelo mesmo vazio que eu.

 

Alguém possuído pelas mesmas fantasias que eu.

 

Alguém que eu devia ter conhecido quando tinha sete anos.

 

Chihiro Amagai. Para mim, ele era o garoto ideal.

 

Naquele dia decidi criar o Garoto Encontra Garota para mim.

 

Não seria como criar uma história. Consegui escrever como se estivesse relembrando o passado. Todos meus dez dedos das mãos batiam no teclado como se fossem uma máquina de escrever automatizada. Naturalmente. Estive trabalhando nessa ficção desde quando era muito nova. Uma colcha de retalhos com todas as peças que mais gostava dentre todas as histórias, poemas e músicas que vi e escutei. Mesmo se os pensamentos mais superficiais tivessem desaparecido, essas coisas continuaram gravadas em meu âmago na forma de preferências. Poderia apenas olhar para isso e transcrever.

 

As Mimories que criei dessa maneira foram, entretanto, muito mais desajeitadas que as anteriores. Não porque a Nova Alzheimer finalmente destruíra minhas habilidades como engenheira de Mimories. A simples razão era que estas eram Mimories para ninguém menos do que eu.

 

Parando para pensar nisso, um elemento crucial para a criação de Mimories excelentes era ter uma perspectiva equilibrada do ser do cliente. Seria desnecessário mencionar que simpatizar com o cliente era importante, mas, por outro lado, ele, que seria o protagonista das Mimories, tinha que ser alguém sem qualquer conexão comigo. Por quê? Porque as pessoas não conseguem pensar calmamente em si mesmas. Se um engenheiro de Mimories fosse o cliente, a força de sua imaginação desapareceria em um instante, e o mundo criado assumiria uma harmonia entediante e previsível. Assim sendo, a empatia teria que vir de outro lugar. Mas quebrei todos esses tabus.

 

Independentemente disso, completei a Garoto Encontra Garota. Embora a forma fosse imperfeita, essas Mimories continham uma prece pura. Se este trabalho fosse amplamente divulgado, tenho certeza de que ninguém elogiaria. Com desejos em excesso e vaidoso, infantil demais, todos reclamariam. Mas isso, pensei, também serve. Não me importaria se os outros não reconhecessem o trabalho. Afinal, esta era “uma história para mim”.

 

Eu não fiz apenas uma dose de Garoto Encontra Garota. Não havia apenas a perspectiva de Chihiro Amagai, mas também uma para Touka Natsunagi (com uma consoante diferente do meu nome real, “Matsunagi” – na verdade, a alusão a “verão[1]” passava o ar de uma heroína), tudo foi feito em conjunto, para que fosse implantado no cérebro de cada um de nós.

 

Dizia-se que as Mimories tinham certo grau de resistência contra o esquecimento causado pela Nova Alzheimer. Então, fazendo isso, mesmo nos estágios finais de minha doença, quando todas minhas memórias tivessem sido apagadas, as Mimories de “Touka Natsunagi” ainda permaneceriam.

 

Então eu me tornaria a verdadeira Touka Natsunagi.

 

No começo, eu não pretendia fazer nada além de secretamente polvilhar meu traço no Verde Verde que Chihiro Amagai havia pedido. Mesmo se não tivéssemos uma conexão real, queria que alguém neste mundo pensasse em mim. Provavelmente poderia morrer pacificamente com apenas isso.

 

Entretanto, a ganância humana não tem fim. Enquanto pensava nele oferecendo preces a mim mesmo de longe, uma pequena chama acendeu em meu coração já morto. Assim como eu procurava por ele, ele não poderia estar procurando por mim? E não apenas nas Mimories; talvez estivesse procurando por um relacionamento comigo na vida real? Essas esperanças foram gradualmente crescendo no meu peito.

 

E assim, no final de maio, em uma noite estrelada e fresca, elaborei o Plano Amigos de Infância.

 

Transformaria todas as mentiras em verdades.

 

Conheceria Chihiro Amagai como Touka Natsunagi e realizaria anos de sonhos.

 

Dedicaria tudo que me restava e morreria como uma garota amada.

 

É nisso que colocaria meu coração.

 

Claro, haveria uma enorme dificuldade na execução disso. Chihiro Amagai saberia que seus dias com Touka Natsunagi não passariam de ficção. Se eu quisesse criar a ilusão de que suas Mimories eram reais, teria que desempenhar perfeitamente o papel da Substituta Touka Natsunagi. Teria que fazê-lo desejar a existência de Touka Natsunagi o suficiente para reescrever suas memórias por si só. Minhas chances de sucesso eram extremamente baixas.

 

Mesmo assim, achei que valeria a pena tentar. Achei que tinha direito a isso. Então resolvi apostar nesse milagre.

 

O Plano Amigos de Infância que engoliu a vida de um completo estranho começou assim, unilateral. A primeira coisa que decidi foi que nossa reunião seria no verão. Realmente queria criar a fatídica reunião que imaginei quando voltei à minha cidade natal. Também considerei estabelecer um “período de preparação”, em que faria que Touka Natsunagi passasse a ter uma enorme presença dentro de Chihiro Amagai.

 

Ainda faltavam meses para o verão. Não poderia perder um único segundo do tempo que me restava. Contei à clínica sobre a minha doença e pedi demissão, e assim que terminei de preencher toda a papelada, retomei minha iniciativa. Mais meticulosa do que antes, e com uma intenção mais clara também. Chegando um pouco mais perto do ideal dele. Para que me visse como uma “heroína”. Para que, antes de morrer, mesmo que só por um momento, pudesse viver um amor maravilhoso.

 

No início do planejamento, considerei uma reunião no final da estação chuvosa, mas queria que tudo ficasse perfeito antes de encontrá-lo, então adiei os planos por mais uma ou duas semanas. Sabia que tudo seria inútil se morresse antes do evento principal, mas talvez graças ao meu entusiasmo renovado, a progressão da Nova Alzheimer tinha diminuído por algum tempo.

 

Pouco tempo depois de eu pedir demissão, fiquei sabendo que a clínica faliu. Pelo visto, houve algum problema envolvendo investimentos de capital fracassados ou coisa do tipo. Involuntariamente, pareceu que eu pulei fora de um navio a ponto de naufragar (mas a clínica sempre pareceu estar indo bem para mim, então não seria errado afirmar que o golpe final foi minha saída). Isso foi mais uma vantagem para mim. Agora, se Chihiro Amagai tivesse alguma curiosidade a respeito de suas Mimories, o lugar para buscar informações estaria fechado. Os registros médicos seriam obrigatoriamente mantidos por vários anos, por isso não seria impossível solicitá-los, mas teria que passar por um processo bem problemático para conseguir. Pelo menos isso o atrasaria na busca pela verdade. Senti uma ligeira preocupação pela colega de trabalho que uma vez me convidou para sair e beber.

 

No final de julho, minha mente e meu corpo chegaram ao ponto que eu queria. Pensando bem, na adolescência, estava tão focada no trabalho que negligenciei a alimentação, exercícios e o sono, por isso parecia mais velha do que deveria. Meus olhos estavam vermelhos, meus lábios secos, meus membros pareciam os de um esqueleto. Aqueles foram momentos divertidos ao seu modo, então não me importei em rejeitar o modo como vivia na época. Tinha pensado em como seria se tivesse nascido com essa aparência, se poderia ter uma vida mais feliz. Mas se as coisas fossem assim, provavelmente não teria me tornado uma engenheira de Mimories e não seria capaz de encontrar o único garoto ideal em todo o mundo.

 

Então, não amaldiçoaria o destino.

 

No dia seguinte à conclusão de minha mudança, enquanto Chihiro Amagai estava trabalhando, coloquei uma yukata e saí pela cidade. Até os vinte anos nunca vesti uma yukata, então queria me acostumar logo com isso.

 

Escolhi a yukata e os enfeites de cabelo iguais aos da garota que vi quando estive em minha cidade natal. Um azul profundo com uma estampa simples de fogos de artifício e pequenos crisântemos vermelhos no cabelo. Não estava saindo com ninguém, mas arrumei até o meu cabelo. Porque é isso que senti que “Touka Natsunagi” faria. Tendo em vista que ela era uma garota que sempre tinha a companhia de um garoto, a quem permitiu revelar-se por completo.

 

Algum tempo após pegar o trem, percebi que havia várias outras mulheres vestindo yukatas idênticas ao meu redor. Então, evidentemente, havia um festival acontecendo por perto. Desci do trem na mesma parada que elas e segui o grupo trajando yukatas. Enquanto lutava para andar com minhas sandálias de geta, observei como isso era exatamente igual à repetição daquele dia. Mas havia uma diferença crucial desta vez. A pessoa que eu esperava encontrar não era uma ilusão.

 

Foi um festival enorme. A cidade inteira estava transbordando energia, esbanjando um calor febril. Lanternas coloridas e faixas espalhavam-se pela rua e as multidões se agitavam como se fossem uma enorme forma de vida com vontade própria. Incontáveis tambores de taiko rugiam como se fossem trovões, sobrepondo-se até mesmo ao zumbido das cigarras. Um santuário portátil estava sendo levado ao longo da rua, tremendo junto com os gritos dos que o carregavam, vestidos com casacos e bandanas happi[2].

 

O calor vertiginoso me forçou a parar e ficar ali. Esse tipo de atividade contínua era um pouco estimulante demais para a atual eu.

 

Mesmo assim, não dei as costas a essa loucura de verão. Afastei-me do congestionamento e segui em frente sem diminuir o ritmo. Como se alguém certamente estivesse me esperando mais além.

 

Logo, como se algo tivesse me levado até lá, cheguei ao santuário. Sabia que faria isso desde o início.

 

Se existem encontros predestinados, pensei, este não seria o palco mais adequado para um?

 

Muito semelhante àquele dia, passei pelas instalações locais. Em busca de Chihiro Amagai, que certamente seria guiado por suas Mimories e chegaria ao santuário assim como eu.

 

E nós dois, que nunca nos vimos, nos reunimos. A princípio só passamos um pelo outro, mas depois de alguns passos, viramos e claramente nos reconhecemos.

 

Naquela noite, as engrenagens de meu mundo finalmente começaram a girar.

 

Meu maior erro de cálculo foi a aversão avassaladora de Chihiro Amagai ao que é fictício. Criado por uma família disfuncional, desprezava veementemente as Mimories, como em uma relação de causa e consequência. Esse ódio era sempre um pouco maior do que o seu desejo por procurar a garota ideal que espreitava dentro dele. Por mais que lhe fosse apresentada uma situação favorável, se contivesse uma dose que fosse de ficção, ele rejeitaria tudo.

 

Eu deveria ter conseguido determinar isso com facilidade ao ler seu registro pessoal. Entretanto, ignorei algo tão básico. Embora tenha lido sobre a vida de Chihiro Amagai vezes o bastante para recitá-la de cabeça, fechei os olhos para aquilo que era mais fundamental. Vi apenas as semelhanças entre a sua e a minha vida e me comportei como se aquilo que eu mais precisava compreender fosse algo inexistente.

 

Mas talvez não pudesse me culpar por isso. Com o fim mais próximo a cada segundo, seria absurdo pensar que poderia fazer qualquer julgamento calmo. Não tive tempo para pensar em fatos inconvenientes. Além disso, o amor costuma cegar as pessoas.

 

Se soubesse que o pedido de Verde Verde dele foi um equívoco do conselheiro, e que o que realmente queria era Lethe, os eventos certamente teriam acontecido de forma bem diferente. Mas quando a clínica recebeu essas informações, eu já tinha pedido demissão e abandonado o local de trabalho. E, claro, não consideraria que o tipo de pessoa que pediria Verde Verde também seria capaz de odiar ficção. Decidi que ele devia ser como eu, um zumbi que queria recuperar os anos que havia perdido.

 

Apesar de tudo, mesmo que Chihiro Amagai fosse apenas uma pessoa que odiava mentiras, talvez ainda houvesse uma maneira de lidar com isso. O que complicava ainda mais a questão era que ele também era do tipo que ficava mais desconfiado conforme a situação fosse ficando mais ideal. Uma pessoa normal interpreta as coisas mais ou menos da forma que seria mais conveniente para elas, mas ele era o completo oposto disso. O que quer que fosse colocado em sua frente, assumiria imediatamente que o pior aconteceria e se recusaria a olhar adiante. (Essa também era uma tendência que eu deveria ter notado em seu registro pessoal.)

 

Chihiro Amagai me amou no meu papel de “Touka Natsunagi”. Não havia qualquer erro nesse ponto. Mas, ao mesmo tempo, recusou-se teimosamente a admitir qualquer um desses sentimentos. Ou talvez, embora admitisse, os descartou como se fosse apenas uma ilusão temporária. Para ele, a esperança não passava de um tipo de desespero, então a erradicou por completo para preservar seu equilíbrio mental. Antes que se tratasse de acreditar ou não em minha história, desconfiava até da própria felicidade. Do mesmo modo que eu não sentia a solidão antes de adoecer, ele não era capaz de ter sonhos felizes.

 

Pensando bem, eu sentia que responderia da mesma forma no lugar dele. Algo tão conveniente não poderia acabar acontecendo assim. Eu não deveria ser tão feliz. Ou seja, devia ter algo por trás de tudo. Tenho certeza de que essa pessoa, após me mostrar seus sonhos por um breve momento, aproveitaria a oportunidade para me empurrar em direção a um abismo. Definitivamente não iria baixar a guarda.

 

Quando voltava ao meu quarto todas as noites, segurava minha cabeça com ambas as mãos. Como poderia acabar com essa problemática defesa de duas camadas? Como poderia fazê-lo acreditar nas minhas mentiras e na felicidade? Teria que dedicar um enorme tempo para ganhar confiança, afinal. Mas não tinha tanto tempo. A julgar pela progressão de minha doença nos últimos meses, provavelmente ficaria sem nada de memória até o final do verão. Não apenas sem memórias, como também sem vida.

 

Talvez tivesse exagerado um pouco. A partir do momento em que concebi meu plano, talvez não devesse ter aplicado tanto esforço para virar uma garota bonita e ter simplesmente saído para encontrá-lo, mesmo com aquela aparência vergonhosa de costume. Talvez devesse ter decepcionado ele desde o começo, com uma “Touka Natsunagi” que havia se deteriorado nos últimos cinco anos. Então, ao menos, certamente não haveria tanta cautela. Em vez disso, talvez acabasse ganhando uma sensação de proximidade e talvez até garantisse mais dois meses para criar alguma confiança.

 

Eu tive a simples concepção de que, agindo como a amiga de infância tão desejada, ele acabaria se tornando aquele que eu queria. Entretanto… Demorei muito para perceber que, em termos da história do vento do norte e do sol, estava servindo como referência para a estratégia do vento do norte.

 

Mas não poderia voltar atrás. Não é possível voltar no tempo.

 

Então, o que deveria fazer?

 

Quando ele jogou a comida que preparei no lixo, bem na minha frente, por incrível que pareça não senti raiva. Deve ser o meu castigo, pensei. Eu desejava uma felicidade que estava além de mim, usei minha posição como engenheira de Mimories para me enfiar nas memórias de um estranho e destruir sua paz, então isso era algo merecido.

 

Eu estive errada a respeito de tudo desde o início. Não deveria ter aparecido em lugar algum além da ficção. Não deveria ter procurado conexões com outras pessoas. Deveria ficar contente por estar sozinha como a governante de uma autossuficiência pessoal. Se tivesse feito isso, não incomodaria ou machucaria ninguém.

 

Pude facilmente perceber pela expressão dele que não foram os sentimentos profundos cravados em seu coração que fizeram Chihiro Amagai fazer aquelas coisas. Ele só teve que superar a ideia da existência de “Touka Natsunagi” para conseguir proteger seu mundo. Sua voz tremia com uma profunda inquietação quando ele descartou minha refeição e empurrou o prato em minha direção. Parecia que a espada que usou para me machucar também acabou machucando-o.

 

Mas, de qualquer forma, era hora de recuar. Seu tratamento causou danos irrecuperáveis ao meu coração. Eu não conseguia mais reunir a vontade para continuar atuando. Não sentia como se fosse suportar mais um segundo de sua animosidade por mim.

 

Ainda assim, usei o resto de minha energia para continuar me portando como “Touka Natsunagi” até deixar o quarto. E uma vez de volta ao meu, enterrei meu rosto no travesseiro e chorei em silêncio.

 

No final, nada em mim é satisfatório, pensei. Tudo o que recebi pelo meu sangue, suor e lágrimas foi a tristeza da rejeição por quem eu mais amava. E, claro, isso era algo que eu preferia morrer sem conhecer.

 

Desisti de me encontrar com ele novamente, não daria nenhum passo para fora de meu quarto. Não fantasiei mais, e nenhum plano passou pela minha mente. Ouvi discos em um volume baixo e apenas assisti à chuva caindo. Depois que a última gota de esperança foi arrancada de mim, fiquei estranhamente em paz. Não tinha mais nada a esperar dos meus dias finais, então nada mais poderia perturbar meu coração. Com um tipo de cansaço confortável, como pegar o trem para casa após uma longa viagem, esperaria pelo dia do julgamento.

 

Minha jornada terminaria em breve.

 

Encontrei uma cigarra morta na minha varanda uma semana após isso.

 

O som do vento me acordou naquele dia. Um tufão parecia estar passando bem perto. Fiquei na janela e observei a cidade, que foi devastada pela tempestade. Os ventos fortes sacudiram as árvores à beira da estrada até o ponto de estalarem. Placas do lado de fora das lojas foram lançadas pelo vento, canteiros de flores destruídos, latas de lixo foram parar atravessando máquinas de vendas automáticas. Quase parecia que alguém estava tentando reorganizar o mundo com esses atos de destruição. Olhei por cima de cada centímetro do cenário e descobri uma cigarra morta no chão da varanda.

 

A mensageira do final do verão morreu bem no meio da minha varanda. Ela propositalmente saltara de algum matagal e escolheu este lugar para morrer? Ou foi apanhada pelo vento forte, perdeu o controle e fez um pouso de emergência malsucedido? E enquanto esperava pela calmaria, sua vida útil acabou antes de seu objetivo ser realizado?

 

Tentando interpretar a mensagem transmitida, olhei para o cadáver. Já estava na metade de agosto. O tufão provavelmente matou várias cigarras. O que seria extinto primeiro, o choro delas ou a minha vida? Eu queria morrer enquanto ouvia aquele zumbido irritante, se possível. Isso ao menos tiraria um pouco do foco de minha solidão.

 

E então percebi.

 

Não havia necessidade de esperar pacientemente até que a morte me fosse entregue.

 

Se não suportasse esperar, podia ir ao encontro dela.

 

De fato, já havia tomado a mesma decisão há alguns meses. Resolvendo acabar com minha vida após concluir minha maior obra-prima, mas passando por uma súbita mudança de planos após encontrar o registro pessoal de Chihiro Amagai. Se não tivesse achado aquilo, pode ser que teria me suicidado naquele momento.

 

Voltei a considerar a opção. Mesmo se continuasse vivendo, não havia mais nada para eu fazer. Tudo que fiz foi dar um tiro pela culatra, de qualquer forma, por isso seria inútil tentar aproveitar o resto de minha vida. Era melhor dar um fim em tudo o quanto antes. Antes que perdesse essa calma em meu coração.

 

Saí do meu quarto pela primeira vez em uma semana. Quando abri a porta e senti o vento com tudo, um aviso foi silenciosamente emitido em algum lugar de meu corpo. O fundo da minha garganta começou a doer de leve. Prováveis sequelas da minha asma. Meu corpo ainda lembrava daquelas crises sempre que um tufão passava.

 

Peguei um guarda-chuva e fui para baixo da tempestade. Os ventos fortes poderiam quebrá-lo em pouco tempo, mas não me importava se isso acontecesse. Não precisava mais me preocupar com o retorno para casa.

 

Meu destino já estava definido desde o começo. Para começar, havia apenas alguns lugares por perto dos quais alguém poderia pular. E diante da escolha, senti que era mais adequado pular e cair de um lugar alto do que se jogar na frente de um trem. Ouvi dizer que, se quisesse ter certeza de que morreria, precisaria no mínimo de uma altura superior a quarenta metros. Inevitavelmente, o enorme complexo de apartamentos à beira da estrada, a cerca de meia hora de distância do meu, seria o único local capaz de satisfazer as condições.

 

Fui para lá.

 

Era um antigo complexo de apartamentos, então havia ao menos uma desculpa ruim para existir uma cerca rodeando a escada de emergência ali, uma que pude facilmente pular, apesar de meu corpo relativamente fraco. Não vi nenhuma câmera de segurança e, mesmo se visse, não levaria mais de cinco minutos para fazer o que queria. Quase ninguém estaria andando nas ruas por causa do tufão, então ninguém me viu pulando a cerca.

 

Subi as escadas de concreto, colocando os pés com firmeza em cada degrau. Eles não deviam ter sido limpos há muito tempo, já que musgo estava por todos os cantos, e ficaram escorregadios com a chuva. Eu teria preferido pular em um dia ensolarado, mas minha determinação poderia acabar vacilando se fosse esperar o clima melhorar. E se visse o primeiro céu azul em uma semana, a resignação silenciosa, resultado da chuva contínua, poderia ser soprada para longe. Então era o dia ideal.

 

Depois de subir até o décimo quinto andar, me inclinei e recuperei o fôlego. Comparado aos degraus dos andares inferiores, os que estavam mais acima pareciam mais limpos e livres de musgo ou bolor. Quando minha respiração desacelerou e a sensação de calor deixou meu corpo, agarrei a grade das escadas de emergência. Enquanto colocava força nos braços para tentar erguer meu corpo, vi algo aos meus pés.

 

Inclinei-me e peguei aquilo. Era um foguete de artifício. Um único foguete que poderia ser pego e acendido com as mãos, como aqueles que são vendidos em lojas de conveniência e supermercados. Provavelmente foi deixado para trás por alguma criança, moradora do complexo de apartamentos, que estava brincando escondida.

 

Apoiei-me na parede e aproximei meu rosto do foguete, cheirando a pólvora assim como faria com uma flor.

 

Touka. Esse era o meu nome. Um nome adequado para mim, que nasceu em julho; significando “flor luminosa” em japonês, combinava com os fogos de artifício florescendo no céu.

 

Entretanto, ninguém nunca me chamou adequadamente pelo nome. Meus pais sempre me chamaram de “você”, e meus colegas de classe e trabalho me chamavam pelo sobrenome. Sempre que alguém falava meu primeiro nome, era acompanhado pelo nome de minha família: “Matsunagi”. É por isso que “ele” frequentemente me chamava pelo nome, em minhas Mimories, claro. Ainda assim, o verdadeiro Chihiro Amagai só falou esse nome uma única vez. Na primeira vez que trocamos palavras, sussurrou ele com uma voz repleta de dúvidas. Foi tudo. Nem devia contar como um acontecimento.

 

Talvez esse nome simplesmente indicasse meu destino. Como os fogos de artifício, minha vida teria apenas um momento de brilho, depois queimaria e se transformaria em cinzas. Um fogo de artifício lançado bem para cima, que explodiria como uma flor vermelha no céu noturno; no entanto, assim como meu nome era uma inversão de “fogo de artifício”, eu, no final de minha queda, explodiria deixando uma flor vermelha no chão.

 

Percebi que estava até rindo de forma irônica. Fazia muito tempo desde que ri pela última vez sem ser graças a uma atuação. Então isso fez eu me sentir um pouco melhor.

 

Notei que o vento estava começando a diminuir. Apoiei-me no corrimão, peguei o foguete de artifício com uma mão e o soltei. Ele seguiu a lei da gravidade e caiu, aterrissando silenciosamente no asfalto.

 

Agora era a vez da Touka.

 

Tirei os calçados e deixei-os um ao lado do outro, bem organizados, e fiquei descalça, depois fechei os olhos, coloquei a mão esquerda no peito e respirei fundo. Por fim, pedi desculpas a Chihiro Amagai, foram do fundo de meu coração. Sinto muito por envolvê-lo em meu plano egocêntrico.

 

Não demorou mais do que dez segundos enquanto eu olhava para o foguete caído e pensava. No longo período de uma vida humana, dez segundos seriam como uma margem irrisória de erro. Nunca ouvi falar sobre tudo mudar em apenas dez segundos.

 

Independentemente disso, desta vez, os dez segundos mudaram em muito o meu destino.

 

Talvez aquele foguete de artifício tenha acabado caindo no meu lugar, comprando-me simples dez segundos. Como se fosse um favor para uma camarada.

 

Foi isso que comecei a pensar algum tempo após o ocorrido.

 

Quando estava tentando subir no corrimão, um ruído eletrônico soou.

 

No começo, achei que fosse algum alarme. Talvez eu tivesse acionado algum alarme para invasores, ou alguém me viu e tocou algum. Mas o som estava saindo do meu bolso.

 

Peguei meu telefone e, quando vi o nome na tela, minha mente ficou em branco.

 

Chihiro Amagai.

 

Limpei meus olhos encharcados pela chuva e olhei novamente. Chihiro Amagai.

 

Com certeza. Era uma ligação dele.

 

Caí em uma profunda confusão. Por que ele estava me ligando? Não me diga que, neste momento, está disposto a acreditar em minhas mentiras? Ou finalmente descobriu quem eu sou e preparou tudo para me condenar? Ambas as ideias pareciam inconcebíveis. Quer ele acreditasse ou não em minhas mentiras, não era o tipo de pessoa que me telefonaria. Era do tipo mais passivo possível, por isso, desde que eu não fizesse nada, ele se contentaria com sua verdade pessoal. Pedir desculpas ou me questionar não se encaixava em sua personalidade.

 

Depois de alguns segundos pensando, voltei aos meus sentidos. De qualquer forma, teria que atender a chamada. Tentei pressionar o botão de aceitar chamada com meu dedo trêmulo. Nesse momento, o telefone escorregou de minha mão, molhada pela chuva e pelo suor, e dançou pelo ar. Quase consegui agarrá-lo, mas saltou da palma de minha mão e, embora parecesse congelar no ar por um instante, imediatamente caiu da cruel distância de quinze metros. Coloquei meus sapatos novamente e corri escada abaixo, praticamente pulando os degraus, depois pulei a cerca de segurança e peguei meu telefone, ofegante. A tela estragou e o botão de liga/desliga naturalmente não estava funcionando.

 

Preciso ter certeza, pensei. Até saber por que ele tentou falar comigo, não posso morrer.

 

Tive a sorte de conseguir um táxi bem rápido, mesmo com o temporal. Disse meu destino ao motorista, e ele dirigiu sem falar nada. As estradas estavam vazias e cheguei ao apartamento em questão de minutos. Recusei-me a aceitar o troco e saí do carro, depois subi as escadas correndo em direção ao segundo andar.

 

E então, testemunhei algo inacreditável.

 

Chihiro Amagai estava de pé na frente de meu apartamento, batendo na porta, gritando pelo meu nome.

 

Ele não estava usando sapatos, e pude perceber que saiu de seu quarto às pressas.

 

Já devia estar ali há bastante tempo, pois estava ensopado pela chuva.

 

Depois de alguns instantes, entendi o que estava acontecendo.

 

Ele se equivocou e pensou que eu estava tendo uma crise de asma por causa do tufão.

 

Estava convencido de que estaria caída no meu quarto, incapaz até mesmo de me mover.

 

E queria me salvar.

 

Que tolo…

 

Uma risada escapou naturalmente.

 

Sentei-me na escada, fora de sua vista, e ouvi enquanto ele batia em minha porta gritando meu nome.

 

Então, refleti a respeito do som dessa palavra que estava escutando.

 

Mergulhei meu corpo na reverberação de uma ilusão feliz.

 

Algo quente brotou em meu peito e fez com que lágrimas escorressem pelo meu rosto antes mesmo que percebesse.

 

Minha visão ficou turva e o cenário de um lindo verão transpareceu.

 

Ele me chamou pelo primeiro nome.

 

Isso já era o bastante.

 

O som das batidas parou. Eu discretamente dei uma espiada em Chihiro.

 

Ele estava encostado na parede, bem ao lado da porta, fumando um cigarro e parecendo distraído.

 

O vento parou e um raio de luz brilhou através das nuvens e iluminou seu rosto.

 

Limpei meu ranho, enxuguei as lágrimas e me levantei.

 

Então coloquei um sorriso especial no rosto e me aproximei dele, bem furtivamente.

 

Vou tentar mais um pouco, pensei.

 


Notas:

1 – Verão, em japonês, Natsu.

2 – Happi são aqueles jogos de roupas japoneses com o logotipo de lojas ou organizações, antigamente representavam determinadas famílias e tinham um logotipo impresso/desenhado neles.

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