Pode-se dizer que a Nova Alzheimer deu origem à profissão de “Engenheiro de Mimories“. Comparando a doença com a pré-existente Alzheimer, a diferença mais notável seria a maneira como as memórias eram perdidas.
Se a perda de memórias causada pela Alzheimer pudesse ser considerada como míope[1], a nova versão seria hipermetrope[2]. Com a Alzheimer, os danos às memórias recentes ficariam evidentes desde o começo, mas as mais antigas só começariam a ser afetadas conforme a doença progredisse. Enquanto isso, com a Nova Alzheimer acontecia o completo oposto, a perda de memória de longo prazo se manifestaria como um dos primeiros sintomas, e as recentes só seriam afetadas em estágios finais. A Alzheimer tornava o indivíduo incapaz de “ver” coisas “próximas”, enquanto a Nova Alzheimer atrapalharia no tocante às “distantes” – claro, isso não passa de uma enorme simplificação. Mas seria uma maneira simples de explicar rapidamente a natureza da Nova Alzheimer.
Da mesma forma que a hipermetropia não é algo incomum entre os jovens, a Nova Alzheimer poderia ser contraída ainda mais cedo que a Alzheimer de início precoce[3]. Houve certo número de casos relatados mesmo na adolescência (na verdade, eu estava entre esses números). A Alzheimer continua sendo uma doença bem misteriosa, mas uma névoa ainda mais densa paira sobre a Nova Alzheimer. Como com a Alzheimer comum, supunha-se que a Nova Alzheimer também fosse algo hereditário com várias causas genéticas e ambientais, mas surgiram boatos de que os nanobots feitos com propósitos desonestos eram os verdadeiros responsáveis por ela. Alguns pesquisadores até mesmo criaram teorias sobre isso ser causado por um novo tipo de doença infecciosa. Muitas opiniões apareceram, mas nenhuma teoria foi definida. Simplificando, mal se sabia qualquer coisa. Seria desnecessário mencionar que ainda não havia uma cura.
Comparada à antiga Alzheimer, a perda de memória acontecia de forma muito mais sistemática. Como se fosse um arquivo de logs sobrecarregado, começaria a automaticamente eliminar os dados a partir dos mais velhos, assim sendo, as memórias seriam descartadas começando pelas mais antigas. O indivíduo esqueceria a infância, a adolescência, o início da idade adulta, a meia-idade. Eventualmente poderia lembrar apenas dos dias mais recentes.
Claro, a linha de chegada da nova forma era a mesma da antiga. Quando a perda de memórias chegasse ao presente, o paciente iria adquirir a Síndrome de Apallic[4] e morrer logo depois. A parte sobre perda de memória acaba recebendo toda a atenção, mas são doenças diretamente relacionadas à morte e, quando alguém as contraía, não haveria qualquer esperança de salvação. A taxa de fatalidade era de cem por cento. A vida útil estimada de um paciente após contrair Alzheimer seria entre sete a oito anos[5], mas para aqueles com Nova Alzheimer não chegava à metade disso.
Os pacientes com Alzheimer perderiam até mesmo a capacidade de autorreconhecimento e, no final, entrariam em um tipo de estado de transe, mas os com Nova Alzheimer não mostravam nenhum dano além da perda de memória, até chegar ao momento da morte. Nenhum dano à função cerebral de alto nível seria identificado, os processos de pensamento continuariam normais e não haveria um efeito notável na personalidade. (Algumas descobertas chegaram a afirmar até que as memórias a curto prazo seriam reforçadas, mas isso provavelmente devia ocorrer porque a perda de memórias a longo prazo reduzia o número de memórias competindo entre si.) Isso não chegava a atrapalhar a vida cotidiana, e não serviria como impedimento para a maioria dos empregos. E não haveria qualquer alucinação ou ilusão – isso deixava todos que conviviam com os doentes muito gratos.
Mas para aqueles que sofriam com a doença, não era como se não fosse nada, era um inferno. Enquanto seus sentidos continuariam perfeitamente claros, seriam forçados a apenas assistir enquanto seu eu desapareceria. Se a doença de Alzheimer era uma que se alimentava de dentro para fora de modo doloroso, poderia ser dito que a Nova Alzheimer arrancaria lentamente cada um de seus membros sem o uso de qualquer anestesia. Eram diferentes tipos de medo, mas a maioria das pessoas provavelmente concordaria que o segundo era o mais angustiante.
Por esse motivo, há um número razoável de pacientes com Nova Alzheimer que preferem suicidar-se quando os sintomas começam a progredir. Queriam simplesmente acabar com tudo enquanto podiam ser eles mesmos, era o que diziam em suas cartas.
A medicina poderia retardar a progressão dos sintomas até certo ponto, mas a Nova Alzheimer normalmente era descoberta já muito tarde. Qualquer um poderia falar na mesma hora quando sua memória a curto prazo estivesse sendo afetada, mas ninguém iria fazer uma conexão imediata de que a incapacidade de lembrar da infância seria movida por uma doença. A menos que houvesse alguém com quem conversar periodicamente sobre o passado, seria difícil ficar ciente da Nova Alzheimer em um estágio inicial. A maioria das pessoas iria correr desesperada para o hospital quando começasse a perder as memórias do final da adolescência.
Assim, a maioria dos pacientes não tinha mais qualquer lembrança da infância. Isso poderia ser considerado uma tragédia ainda maior do que esquecer todos aqueles que ama. Um paciente chegou a descrever seu estado mental como “Constantemente perdido em uma cidade desconhecida”. Acontece que as memórias mais importantes dos indivíduos são focadas na infância e, entre elas, talvez exista um verdadeiro senso de segurança que só possa ser desfrutado enquanto criança. Verdadeiro senso de segurança – uma paz de espírito perfeita e sem qualquer falha, algo que Charlie Brown[6] chegou a chamar de “dormir no banco de trás do carro enquanto os pais dirigem”. Não era como se eu tivesse recebido algo assim, de qualquer forma.
No meu caso, a descoberta da doença foi um completo acaso. Minha mão dominante estava dormente, então fui ao hospital e fiz uma tomografia computadorizada do cérebro, e encontraram sintomas da doença de Nova Alzheimer. (Aliás, a causa do entorpecimento era só cansaço.)
No caminho para casa, após descobrir sobre a doença, minha mente estava em completa paz. Eu sabia que tipo de doença era a Nova Alzheimer. Também sabia, claro, que muitas pessoas que tinham isso cometiam suicídio. E também estava ciente de que isso só acabaria em morte. Independentemente de qualquer coisa, não fiquei desesperada ou lamentei meu destino. Não deixei uma única lágrima cair e não podia me dar ao luxo de sentir que meu estômago estava sendo revirado.
Dito isso, suspeitei que acabaria tendo uma piora na ansiedade, então decidi tirar um mês de folga do serviço. Por ter trabalhado com tanto afinco até então, prontamente aceitaram minha solicitação.
Passei os primeiros dez dias à toa, mas não senti um pingo de medo ou arrependimento. A única coisa que tinha era preocupação. Por que estava tão calma quanto a isso? Estava interpretando algo errado? Ou talvez apenas ainda não estivesse preparada para aceitar a realidade.
Fiquei trancada no meu quarto e assisti variados programas de televisão, e nem me importava em assistir esse tipo de coisa. Sendo uma viciada em trabalho que só pensava em seu trabalho durante vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, mesmo enquanto sonhava, não fazia ideia de como deveria gastar meu tempo livre. Nestes poucos anos, passei todos meus dias de folga procurando sugestões para melhorias em minhas Mimories. Livros, filmes, músicas e férias não eram nada mais do que pesquisa para criação de Mimories. Remover esses atos do meu dia a dia instantaneamente me deixou sem saber o que fazer. Realmente nunca pensei em nada além de trabalho, pensei comigo mesma.
Mais três dias se passaram, e minha preocupação virou um sentimento incômodo. Deitei-me na cama e pensei nas coisas, buscando colocar meus sentimentos em palavras. E finalmente percebi.
Parando para pensar, estava tendo muito menos flashbacks[7] nos últimos dias. Enquanto tomava banho ou esperava para adormecer enquanto deitada, muitas vezes costumava lembrar de algo do passado e ficava infeliz, mas isso não estava mais acontecendo. A razão para isso não era nenhum segredo. Era porque minhas traumáticas memórias de infância estavam sendo apagadas pela doença. Essa era a realidade dessa sensação contínua. Como perdi as memórias, não sentia medo – isso tornava a vida ainda mais fácil de viver.
Um olhar cuidadoso ao longo da minha vida revelou que não havia nada que eu não quisesse esquecer. Nenhuma pessoa, momento ou lugar, nada.
Fiquei pasma com esse fato. Afinal, se uma pessoa normal soubesse que perderia suas memórias, antes de qualquer outra coisa, tomaria notas de tudo que não quisesse esquecer. Iria ler essas coisas várias vezes, buscando esculpir isso em seu cérebro. Mas eu não fiz algo assim. Não precisava. Se removesse todas minhas lembranças amargas, que gostaria de esquecer tantas quanto possível, apenas as inúteis permaneceriam.
Deveria estar feliz por não ter medo de perder minha vida? Ou devia lamentar por não ter conseguido nada a se perder? Não conseguia me decidir. O que poderia dizer era que algum tipo de anseio estava lentamente surgindo em mim. Eu ficava assistindo televisão sem me preocupar com o conteúdo, simplesmente porque queria escutar a voz de alguém.
Estava solitária. Agora poderia honestamente reconhecer esse sentimento. Ou melhor; antes de saber sobre minha doença, não tive tempo para reconhecer minha solidão. A remoção de meu sofrimento emocional abriu um espaço no meu coração e, pela primeira vez, pude aceitar a realidade: não escolhi a solidão, foi ela que me escolheu. Poderia dizer que não havia mais motivo para considerar meus sentimentos futuros, então também não havia motivo para continuar agindo como se fosse emocionalmente frígida.
Parecia inútil continuar assim. Conforme recomendado pelo meu médico, fiz inscrição em um encontro organizado por um centro de atendimento a Nova Alzheimer. A ideia era que outros pacientes compartilhassem suas preocupações e ansiedades, para que assim pudessem conhecer muitas outras pessoas em situação semelhante.
O sofrimento é algo pessoal, não importa o quanto tente dispersá-lo, portanto, mesmo as pessoas com a mesma doença seriam incapazes de entender; aprendi isso com a asma. Quanto à doença, não tinha expectativa de que isso me deixaria mais positiva, afastasse minhas preocupações ou qualquer coisa do tipo. Mas não me importava. Simplesmente queria tentar preencher essa solidão, que pela primeira vez fui capaz de sentir em minha vida, com algum programa saudável. Não com algo doentio, como deitar na cama e ficar fantasiando.
Os engenheiros de Mimories não tomam atalhos. Ao contrário dos leitores de romances ou dos amantes de filmes, aqueles com Mimories apenas diferenciam o que existe ou não. Não interpretam quebra-cabeças, como “Será que esse cenário é alguma referência?” ou “Será que esse evento é para indicar alguma coisa?”. Não procuram muito significado extra para a história que recebem, apenas aceitam as Mimories como são e as tomam para a vida. Portanto, também não temos uma mentalidade artística, simplesmente empilhamos episódios agradáveis e nada mais. Por isso, os engenheiros de Mimories passaram a ser considerados um tipo de fast food de histórias.
Isso está bem, acho. Sempre gostei do sobá e sushi que preparei. Ficaria triste se perdesse isso.
Dito isto, obviamente não estava tirando sarro de atalhos. Às vezes eles poderiam tirar algo do fundo do coração, algo que de alguma maneira vai além da intenção do contador de histórias. As palavras que usamos são muito mais inteligentes do que nós mesmos.
Por exemplo, quando entrei em um cômodo do tamanho de uma sala de aula e vi dez cadeiras dispostas em círculo com noves pacientes ansiosos sentados, pensei: Parece que podemos contar até mesmo histórias de terror. Não deveria ser muito parecido com isso, mas no final minha previsão provou-se correta. As histórias que estavam prestes a contar fizeram eu sentir um arrepio na espinha e até mesmo fiquei enjoada com o medo. E quando a décima pessoa fosse falar, definitivamente seria algo que não deveria existir neste mundo.
Os participantes eram de idades e sexos variados e, como esperado, eu era a mais nova. Estava um pouco tímida, mas respirei fundo e me sentei. E então dei uma olhada melhor em todos, um de cada vez. Todos tinham expressões melancólicas. Eu não tinha dúvidas de que seus olhares eram os mais infelizes do mundo. Vi algo assim em um filme, lembrei. Pensei por cerca de vinte segundos, depois recordei que o filme chamava Clube da Luta. Eu tinha dezessete anos quando o assisti. Isso indicava que ao menos as minhas memórias dos dezessete anos ainda existiam.
O chá foi distribuído a todos, mas ninguém bebeu. Os outros, trocando olhares frequentes, provavelmente não estavam participando disso pela primeira vez. Talvez eu fosse a única desconhecida.
Todo mundo estava bem vestido, e só então percebi a minha aparência. Comprei minhas roupas e calçados há mais de três anos e não usava qualquer acessório. Praticamente não usava maquiagem, minha pele estava áspera graças à falta de sono e falta de cuidados, e meu cabelo preto, que nunca foi tingido, estava tão despenteado quanto o de um fantasma. Eu não estava nada apresentável.
Vou cortar o cabelo quando sair daqui, pensei.
Ouvi alguém limpando a garganta.
— Bem, então, que tal começarmos? — Um homem na casa dos quarenta, sentado à minha esquerda, fez a bola rolar. — Quem começa?
Algumas pessoas se entreolharam e sacudiram a cabeça bem vagamente.
— Tudo bem, então eu começo de novo… — O homem sorriu ironicamente e começou a contar, sua voz tinha um tom que indicava que já estava acostumado a isso. — Não lembro nem metade das coisas sobre minha esposa…
Minha sincera opinião era de que se tratava de uma história de família. Ele se formou da faculdade e logo depois casou, pegou um empréstimo para abrir uma loja, passou por momentos financeiramente ruins com sua esposa e, logo depois, teve um progresso com os negócios, teve um filho e, assim que pensou que sua vida estava começando a se encaminhar, descobriu a doença. Ele temia a morte, mas mais do que isso, temia esquecer-se da esposa e sua criança. Lembrava de sua tia, que não conseguia mais reconhecer o rosto de ninguém devido a um distúrbio cognitivo. Pensar em acabar daquele mesmo jeito fazia querer que tudo acabasse antes de chegar ao mesmo ponto. E assim por diante.
Depois que a história do homem terminou, houve um ou outro aplauso. Aplaudi em silêncio também, mas estava pensando: Parece que você viveu uma vida muito feliz. Senti vergonha de mim mesma por sentir inveja no lugar de compaixão, então comecei a bater palmas com mais força.
Depois disso, todos seguiram em sentido horário quanto à vez para falar, e desabafaram sobre suas preocupações. Talvez pensando em mim, intencionalmente certificaram-se de que eu seria a última, como a novata. Nem todos falaram tão bem quanto o primeiro homem; alguns começaram a gaguejar, tendo problemas para continuar falando, e eu fiquei silenciosamente aliviada.
A história da quarta a falar, uma bibliotecária, tinha algumas partes que me impressionaram. Enquanto ouvia sua história, peguei-me subconscientemente pensando: Com alguns ajustes, poderia usar isso em algumas Mimories, e corri para deixar esses pensamentos rudes de lado. Eu estava pensando em trabalho em um momento como este? Nada poderia ser mais rude do que usar as confissões francas de estranhos como material. Tentei fechar os circuitos de uma engenheira de Mimories no meu cérebro e aceitar as histórias da mesma forma que as pessoas costumam aceitar sua Mimories.
Após a história da sexta pessoa, houve uma pequena pausa. O homem à minha esquerda perguntou sobre minhas impressões sobre o encontro. Querendo responder com palavras cuidadosamente escolhidas, pensei nas seis histórias que já tinha escutado. E então, de repente, percebi algo com um arrepio.
Todos estavam falando apenas sobre família, amigos e amantes.
As histórias de terror voltaram. O sétimo falou sobre familiares e amigos. O oitavo mencionou um amor e mais amigos. A nona pessoa falou da família, amigos e um gato. Fiquei convencida. Somente o processo mudava, mas todos, exceto eu, chegaram à mesma conclusão: “Minha última linha de defesa são os laços que tenho com aqueles próximos a mim.”
A senhora à minha direita estava terminando de contar sua história. Sobre o que devia falar? Estava em dúvida. No começo, planejei falar sobre o vazio de não ter medo de perder as memórias. Mas se eu, a encarregada por concluir a reunião, dissesse algo assim, não mereceria o desprezo de todos? Não apenas acabaria com a atmosfera cuidadosamente criada que estavam moldando?
Será que meu desespero soaria como cinismo em relação ao desespero das outras nove pessoas?
Reativei os circuitos que fechei. Mudei minha cabeça para o modo de escrita e criei uma nova história.
Vou fazer uma história adequada para este lugar, pensei.
Fechei os olhos e me concentrei. Examinei as nove histórias até fazer uma bagunça com seus conteúdos e extraí a essência disso tudo. Depois, adicionei algo que fosse uma extensão de meus fatos pessoais – ou talvez desejos que fossem uma extensão de meus fatos pessoais – para fazer tudo parecer original e, após tudo isso, injetei um pouco de ruído para esconder as mentiras e tornar tudo em realidade.
Designei “ele”, que criei em minhas fantasias desde pequena, para o papel de um príncipe montado em um cavalo branco.
Concluí todo esse processo em menos de trinta segundos. Tive tempo de sobra, então até mesmo dei um título à história.
Desde que descobri a Nova Alzheimer, minhas habilidades como contadora de histórias não tinham enfraquecido, na verdade até amadureceram. Não sei o motivo. Talvez seguisse a mesma lógica do motivo pelo qual beber e fumar poderia ter efeitos positivos na escrita, apesar de ser ruim para a pessoa. Quando se esquecia as coisas desnecessárias, parecia que o excesso de informação inútil era removido do cérebro.
A história da mulher parecia ter acabado. Quando os aplausos cessaram, os nove voltaram a atenção para mim, dizendo “sua vez”. Coloquei minha mão esquerda no pulmão direito, respirei fundo e comecei a contar sobre um passado fictício que acabara de inventar – mas, de certo modo, vinha construindo isso desde que era muito jovem.
— Eu tenho um amigo de infância.
Quando parei de falar, metade das pessoas estava chorando. Alguns até pegaram lenços para secarem as lágrimas. Minhas mentiras soaram mais reais do que as histórias dos outros, e abalaram o coração de todos.
Quando os aplausos cessaram, um dos membros – a mulher que mencionou seu gato – falou:
— Estou feliz por você ter vindo hoje. — Ela tirou os óculos de leitura, esfregou os olhos e depois voltou a colocá-los cuidadosamente. — Obrigada por contar sua história maravilhosa. Você pode estar muito infeliz, mas foi uma garota muito feliz. Foi abençoada com o parceiro perfeito.
Eu não sabia como responder, então abaixei a cabeça. E todos pensaram na minha história, um após o outro. Toda vez que soltavam palavras calorosas em minha direção, a culpa se escondia atrás de meu sorriso amarelo.
Parecia que eu acabei indo longe demais. Pensando bem, foi a primeira vez que escutei uma resposta direta para uma de minhas histórias. Não achava que elas desencadeariam uma reação tão grande. E pensar que eu seria lembrada pela história mágica que contei.
— É uma pena para alguém tão jovem.
— Que tal você trazê-lo aqui algum dia? Vamos todos recebê-lo muito bem.
— É reconfortante saber que você tem alguém que te entende por perto. Se eu não tivesse minha esposa, acho que ficaria desesperado.
— Ouvir sua história também me fez sentir falta do meu namorado.
Acenei para as palavras deles com um sorriso seco nos lábios. E quanto mais acenava, mais infeliz ficava. Até me perguntei: e se essas pessoas descobrissem que minha história era falsa, não pensariam que estava tirando sarro delas? E então cansei de sentir esse complexo de perseguição após enganar tantas pessoas de bom coração.
Inventei razões para recusar a troca de informações de contato com alguém e deixei o local logo depois. Estava totalmente distraída no metrô para casa. Meu reflexo no vidro da janela parecia horrível, como se fosse uma concha que ninguém quis. Parecia que tinha desgastado até o final do verão, estava desmanchando.
Nunca mais vou a um encontro desses, pensei.
Desde o começo até o final do verão, fiquei sozinha.
Sequer voltei a ligar a televisão ou o rádio. Parei de olhar para a caderneta de poupança que uma vez me serviu como apoio mental. Não conseguia encontrar mais nenhum conforto nela. Ficaria satisfeita com dinheiro suficiente para despesas de subsistência e algumas moedas para me levarem à vida após a morte, então tudo não passava de excesso.
Os números de minha caderneta demonstraram como eu poderia fazer qualquer coisa e, ao mesmo tempo, nada. Se uma pessoa normal tivesse tanto tempo e dinheiro de sobra, provavelmente sairia com os amigos, passaria algum tempo com a família ou sairia para namorar. Para aproveitar ao máximo seus poucos anos restantes, tirariam férias extravagantes, fariam festas chamativas ou realizariam um casamento fantástico.
Eu não tinha absolutamente nenhum modo de usar meu dinheiro. Pensei em me mudar para um lugar que permitisse animais de estimação e em criar um gato, mas logo repensei nisso enquanto navegava por catálogos. Uma pessoa que talvez nem vivesse mais três anos não deveria arrumar um animal de estimação. Alguém que não conseguiria cuidar de si mesma não poderia assumir uma função tão importante.
Além disso, era tão grosseiro motivar-me a ter um gato porque não conseguia me dar bem com humanos. Eu me sentiria mal pelo animal que teria que se dar bem comigo. Gatos são criaturas livres que transmitem a sensação de que devem ser criados por aqueles que poderiam viver sem eles. Ter uma dona como eu, que acabaria se tornando dependente do mascote, tornaria o animal infeliz.
Quando me sentia sozinha, ia à varanda do meu apartamento e via as pessoas passando. Era como voltar no tempo, aos dias em que ficava presa no meu quarto e olhava pela janela da sacada. Parecia que não tinha mudado nada desde então.
Passei o verão pensando principalmente em como realizar meus desejos mais básicos.
Debrucei-me no canto da parede do meu quarto enquanto ouvia discos antigos o dia todo, frequentemente virando-os para escutar seu outro lado ou trocando-os para matar o tempo. Depois de começar a tomar consciência do tempo que ainda teria viva, passei a gostar ainda mais das músicas que já gostava. Em particular, comecei a ver mais charme mesmo nas músicas antigas que antes achava tediosas. Quanto mais simples era a melodia, mais firmemente eu podia sentir cada acorde, e elas afundavam profundamente em meu coração seco. Quando terminava de cozinhar, servia o prato perfeitamente, mesmo sem pretender mostrar a ninguém, e o inspecionava de vários ângulos. Então sentava à mesa e comia, saboreando o prato e buscando satisfazer meu apetite.
Depois de comer, tomava um longo banho para me lavar por completo. Não era necessariamente para me sentir limpa, mas para poder dormir com mais conforto. Depois de sair do banho, deitava antes que a noite caísse; incluindo algumas horas de sono pela manhã, dormia dez horas diárias para satisfazer minha necessidade.
Havia mais um desejo no qual escolhi não pensar muito. Felizmente, vivendo uma tranquila vida solitária, eu era capaz de esquecer a existência desse desejo.
Tomava meu remédio só às vezes, quando lembrava, então os sintomas da minha Nova Alzheimer progrediam sem parar. Logo, já tinha esquecido totalmente dos dias de minha infância e da asma que me fizeram sofrer tanto. Não tinha mais nenhum sentimento em relação àquilo.
Meu último dia estava chegando. Apesar disso, continuava seguindo adiante de bom grado. Talvez isso pudesse ser considerado um suicídio lento e passivo.
Ao ouvir discos, cozinhar, tomar banho e deitar na cama, quanto mais tentava não pensar em nada, mais ativo meu cérebro ficava.
A história sobre “ele” que eu havia criado no encontro de pacientes ainda continuava viva em minha cabeça.
Graças a alguns detalhes que adicionei à história para torná-la mais realista, a existência “dele” começou a parecer mais real. Acho que grande parte disso foi por ter falado sobre “ele” para outras pessoas pela primeira vez. Talvez a melhor maneira de dizer isso, seria que também ouvi a história através das bocas dos outros presentes. Esse feedback[8] rendeu a “ele” uma espécie de presença objetiva e social, amadurecendo-o até tornar-se uma entidade mais tátil. “Ele” chegou mais perto de um ser vivo.
À medida que minha solidão e desespero aumentavam, a história “dele” brilhava mais e mais. Eu repetidamente traçava a história do começo ao fim, fazendo pequenas alterações nos detalhes, revisando e revendo tudo de novo, e depois a lia desde o início, olhando para o vazio e sorrindo.
Era um tipo de automutilação emocional. As fantasias eram um remédio mortal; em troca de um pouco de alegria, um veneno transparente passou a se acumular em meu corpo.
Um dia, várias coisas coincidiram e eu consegui cozinhar algo bem complicado de se fazer. Acabou ficando tão bom que me fez querer tirar uma foto, e o sabor também era fantástico. Eu subconscientemente pensei que “ele” provavelmente ficaria feliz em comer aquilo. Naquele momento, esqueci completamente de que “ele” era uma pessoa fictícia.
Logo depois, lembrei-me da verdade de que “ele” não existia, e minha mente ficou em branco.
Alguns segundos depois, algo dentro de mim pareceu quebrar.
A colher escorregou dos meus dedos, bateu no chão e soltou um som desagradável. Inclinei-me para pegá-la, mas de repente meu corpo ficou mole e caí no chão.
Cheguei ao ponto crítico do vazio e já não suportava mais.
Antes que percebesse, estava aos prantos.
Não quero morrer assim, pensei. É muito cruel que alguém acabe assim. Ainda não conquistei nada real.
Antes de morrer, queria que alguém me elogiasse ao menos uma vez. Queria que me agradecessem. Queria que sentissem pena de mim. Como alguém cuidando de uma criança, queria ser incondicionalmente aceita e gentilmente abraçada. Queria que o garoto completamente perfeito, que entendesse minha solidão por completo, me banhasse com todo seu amor. E depois que eu morresse, queria que ele lamentasse minha morte e tivesse uma enorme ferida em seu coração, uma que nunca seria curada. Queria que odiasse a doença que me matou, detestasse as pessoas que não foram gentis comigo e amaldiçoasse o mundo em que eu não existisse.
Claro que não poderia me satisfazer com simples fantasias. O eu dentro de mim continuou chorando como sempre. O meu eu recém-nascido, de um ano, de dois anos, de três anos, de quatro anos, de cinco anos, de seis anos, de sete anos, de oito anos, de nove anos, de dez anos, de onze anos, de doze anos, de treze anos, de catorze anos, de quinze anos, de dezesseis anos, de dezessete anos, de dezoito anos, todas nós estávamos segurando os joelhos e gritando de dor junto com meu eu atual. Mesmo se minhas memórias desaparecessem, esses gritos continuariam ecoando. Eu precisava de uma salvação realista para todas elas, mas não conseguia encontrar nenhuma, onde quer que buscasse.
— Não tenho medo, não tenho nada a perder. — Tentei mentir para mim. Estava com medo de morrer sem nada. Tanto que sequer conseguia parar de tremer.
Mas o que poderia fazer sobre isso? Nunca tinha feito um amigo, desde que nasci, então o que poderia fazer? Não importava tanto se não fosse o garoto ideal, será que não conseguiria ao menos um mais ou menos?
Poderia conversar com meus colegas de trabalho? Devia entrar em contato com alguém com a mesma profissão e falar a verdade? Mesmo se fizesse isso, tudo o que conseguiria seria um pouco da usual simpatia. De fato, se não tivesse sorte, isso poderia até agradar as pessoas com quem conversasse. Sabia que meus colegas de trabalho e outras pessoas com a mesma profissão tinham inveja de mim. Ouvi insultos deles por todos os cantos. Mesmo se tivesse a sorte de escolher alguém que não me odiasse, apenas me preocupar com o fato de que “podem me ver como uma inimiga” tornava impossível estabelecer um verdadeiro relacionamento de confiança. Para ser sincera, eu tinha pavor dessas pessoas.
Então deveria apenas conversar com algum estranho? Procurar amigos nas redes sociais? Sem chances. Como se eu pudesse encontrar pessoas que realmente fossem me entender assim. Seria como procurar uma gota d’água no deserto. E falando em coisas arriscadas; isso poderia ser uma experiência muito desagradável.
Se trinta por cento de simpatia, quarenta por cento de compreensão e cinquenta por cento de amor fossem suficientes, talvez encontrasse algo depois de procurar muito. Mas não faria isso. Para me salvar, para nos salvar, seria absolutamente necessário que fosse um garoto ideal.
As pessoas poderiam chamar isso de expectativa irracional. Repreenderiam-me, diriam que uma pessoa que negligenciou o ato de socializar pela vida inteira de repente recebendo todo o amor do mundo seria algo bom demais para ser verdade. Poderiam dizer até mesmo que “cinquenta por cento de consideração já seria demais” para alguém como eu. Mas minha intuição como engenheira de Mimories estava dizendo algo. Apenas conseguir o apoio do garoto ideal poderia me salvar. Certamente não havia outra maneira de resolver toda a solidão firmemente atada a mim, que ficou formada por tanto tempo.
Passei os dias seguintes chorando, mas, mesmo assim, não tentei parar de pensar “nele”. Se eu cheguei tão longe, pensei que seria melhor continuar até conseguir.
Esqueci por completo de tomar meu remédio, então meus sintomas continuaram avançando rapidamente. Perdi as lembranças até dos quinze anos e esqueci a opressão sofrida quando recebi educação obrigatória. Três quartos da minha vida estavam obscurecidos pelo nada, e isso realmente parecia vazio.
Continuei pensando “nele”.
Parei de ouvir discos e também de cozinhar. Até chorar de pé tornou-se difícil, então abracei meu travesseiro e me arrastei pelo quarto como se fosse uma lagarta, deitada na cama, no chão, na cozinha, na entrada de casa, no banheiro, na varanda. Mesmo assim, a lentidão que tomou meu corpo não acabava.
Continuei pensando “nele”.
Senti aversão até à criação de Mimories, de que tanto gostava, e senti um pouco de náusea quando olhei para o registro pessoal de uma pessoa. O que quer que olhasse, só podia sentir inveja e desprezava as pessoas que viviam vidas sem defeitos, mas ainda assim queriam Mimories felizes.
Continuei pensando “nele”.
E então, um dia, uma loucura inocente tomou conta de mim.
Enquanto mastigava minhas memórias sobre “ele”, como sempre, pensei naquilo.
As pessoas poderiam amar alguém que nunca conheceram pessoalmente?
As pessoas poderiam amar alguém que nunca conheceram de coração?
Havia algo de errado em colocar isso em uma entidade fictícia?
Será que estaria cometendo um erro?
Perguntei-me essas coisas.
Provavelmente sim.
Seria possível?
“Ele” poderia não ser uma pessoa fictícia, mas sim real?
Será que a doença simplesmente não apagara as partes importantes sobre um amigo de infância que me convenci de que era uma fantasia?
Essa foi uma ideia realmente vergonhosa. Se alguém tivesse mencionado algo assim antes da minha doença, responderia com risadas.
Mas naquele momento, vi isso como uma revelação divina. Há muito tempo perdi a sanidade. Apeguei-me a essa teoria. Agora, minha esperança final residia nas lembranças apagadas deixadas pela minha doença.
Eu estava em casa novamente após um ano e meio.
Apegada à ideia de que “ele” realmente existia, não consegui ficar parada e peguei o primeiro trem com destino a minha cidade natal.
Para reunir-me com “ele”, claro.
Coloquei meu anuário do ensino médio em minha bolsa e continuei revendo-o várias vezes pelo caminho. A visão de uma garota de dezenove anos lendo um anuário sozinha no trem era bizarra, mas o trem da manhã estava vazio, então ninguém parou para olhar.
Perfurei cada rosto e nome do anuário em minha memória. O rosto de nenhum de meus colegas de classe parecia familiar, como se eu tivesse pegado o anuário de uma escola totalmente desconhecida por algum engano.
Procurei por garotos que se aproximavam da minha impressão “dele”, mas isso foi difícil de encontrar em fotos onde todos tinham expressões sorridentes semelhantes. “Ele” não tinha uma forma definida em minhas memórias, apenas havia uma impressão. Para discernir qualquer coisa, precisaria de mais informações, como seu comportamento ou alguma mudança de expressão.
Entre as fotos das salas de aula e dos eventos escolares, não consegui me encontrar em nenhuma. Sempre abaixei minha cabeça com um olhar irritado, então não devia ter apelo em assuntos como fotografias. Os alunos do ensino médio no anuário pareciam sempre animados, e notei algo neles que parecia não ter. Em menos de um ano, completaria vinte anos, contanto que vivesse tanto tempo assim.
O trem chegou à minha cidade antes do meio-dia. Era uma cidade rural sem graça nos arredores de Chiba. Quando saí dela, aos dezoito anos, estava terrivelmente incerta sobre ir tão para longe, mas retornando, percebi que o lugar nem ficava tão distante. Atravessei o portão de entrada e saí da estação cheia.
Parecia que era minha primeira vez em minha cidade natal. O céu, a vegetação, o mar, tudo parecia desconhecido para mim. Então, naturalmente, também não senti qualquer nostalgia. Embora sentisse certo déjà vu[9] quando olhei para algumas cafeterias e lojas fechadas, a sensação era mais próxima a estar vendo algo na vida real que até então só tinha visto na televisão ou livros, já que não conseguia fazer qualquer conexão com meu próprio passado.
Depois de verificar minha localização com um mapa no telefone e planejar uma rota a seguir, coloquei a mão esquerda no pulmão, respirei fundo e comecei a andar. Eu estava fora de mim, preocupada, imaginando o que faria se topasse com meus pais, mas também senti algo parecido com alegria por ter um objetivo em mente pela primeira vez em algum tempo.
A escola primária, a de ensino médio, o distrito comercial, o parque, o centro comunitário, a biblioteca, a pista de caminhada, o hospital e o supermercado. Segui o mapa para andar por aqui e por ali. Embora fosse domingo, não passei por quase ninguém. A população provavelmente era pequena, e talvez as pessoas não quisessem estar andando por aí. Agora já estava acostumada com a cidade, parecia até que estava andando após o toque de recolher. Também me parecia uma cidade artificial que em breve seria povoada por nada mais que pessoas artificiais.
O céu estava azul e eu podia ver enormes nuvens cumulonimbus[10] à distância. Andando por esse lugar nostálgico borrado pela luz do sol do verão, me vi fantasiando a respeito de uma história ambientada nesta cidade.
Se ao menos não tivesse que me separar “dele” e pudesse continuar vivendo neste lugar…
Eu certamente não me tornaria uma engenheira de Mimories e ainda estaria aproveitando a vida como uma estudante normal. Receberia uma bolsa de estudos e trabalharia em meio período, além de morar perto “dele”, a meio caminho de começarmos a viver juntos, e comeríamos juntos, ajudaríamos um ao outro nas tarefas domésticas e eu estaria cumprindo com o papel de uma jovem esposa.
Logo, comecei a ver sombras minhas de potenciais mundos diferentes por toda a cidade. Naqueles mundos, eu era feliz. Minhas coisas de escola estariam todas na traseira da bicicleta “dele”, comigo agarrada às suas costas e rindo. A eu do ensino médio estaria usando uma yukata e ficaria as mãos dadas com “ele” enquanto assistíssemos aos fogos de artifício. Meu eu do ensino médio, a caminho de casa, daria um beijinho “nele” enquanto estaríamos na sombra do ponto de ônibus. Minha eu da faculdade estaria indo ao supermercado com “ele”, carregando metade das compras e andando ao seu lado como se fôssemos um casal.
Talvez não fossem fantasias, mas sim flashbacks. Como julgando o resultado de um experimento, eu poderia imaginar que tudo isso era plausível.
Em um estado mental bastante perturbado. Parecia que estava possuída por um monstro imaginário que habitava esta terra.
A cidade era pequena, então poderia passar por todos os prédios e instalações notáveis em meio dia. Seria desnecessário mencionar que não fiz nada disso. A única coisa que fiz foi conversar com uma pessoa de idade. Ela pediu por orientações para chegar à delegacia, mas respondi que não era do local, logo, não sabia. E isso era tudo que poderia responder.
O pôr do sol tinha uma cor que me fez pensar em girassóis murchos. Sentada em um barranco ainda quente graças ao calor do dia, olhei para o mar. Tirei os calçados e os coloquei de lado, resolvi arejar meus pés que estavam doendo de tanto andar. Tomei meia garrafa de água mineral que peguei em uma máquina de vendas automática e depois derramei o que sobrou nos pés. A água fria penetrou pelas feridas. Depois de seco, apliquei um curativo que comprei na farmácia.
Quase não tinha jovens na cidade. Vi duas crianças do ensino fundamental, mas não vi sequer uma pessoa da minha idade. O lugar parecia meio morto, sem qualquer esperança de recuperação. Tudo o que faltava era que as coisas acabassem. Claro, eu provavelmente teria ainda menos tempo de vida do que a cidade.
Todo o meu corpo doía e minha cabeça estava pesada. Mas não podia ficar sentada para sempre. Coloquei os sapatos, apoiei as mãos nos joelhos e cambaleei ao ficar de pé. Peguei minha bolsa contendo o anuário e pendurei-a sobre o ombro.
Nesse momento, ouvi as vozes de jovens na trilha e me virei por reflexo. Um garoto e uma garota com cerca de catorze anos estavam caminhando juntos. O garoto estava vestido como se para um passeio casual, mas a garota usava uma linda yukata. Era de um azul-escuro com uma estampa simples de fogos de artifício, e usava crisântemos vermelhos nos cabelos. Eu olhei para a garota por algum tempo. Estava com um pouco de inveja; queria usar uma yukata igual e passear com meu amante.
Provavelmente havia um festival acontecendo em algum lugar da cidade. Deveria passar pelo distrito comercial e virar à direita, seguir pelo caminho dos arrozais, atravessar os trilhos da ferrovia e, no final, um santuário que não era grande nem pequeno demais seria encontrado. Ouvi os sons e o cheiro de um festival.
Isso é o que chamam de encontro predestinado, pensei.
Este não era o palco mais adequado para um?
Andei pela área como se fosse uma sonâmbula, procurando qualquer sinal “dele”. Claro, não conhecia seu rosto. Não conhecia sua voz. Ainda assim, estava convencida de que o reconheceria com um simples olhar. Talvez “ele” não acreditasse de imediato em algo como um reencontro coincidente e continuasse andando. Mas depois de alguns passos, tenho certeza de que voltaria até mim.
Movi-me em meio à multidão e continuei andando, procurando pelo amante de minhas fantasias que explodira como uma bolha de sabão.
Quando as barracas começaram a fechar, meu coração estava começando a ceder. Os sons do festival acabaram como se tivessem ficado cansados, os cheiros foram levados pelo vento e as luzes foram engolidas pela escuridão. Sentei nos degraus de pedra e deixei o santuário para trás.
Mesmo tendo ficado pelas barracas por tanto tempo, não tinha comido nada. Andei a procura de um restaurante e encontrei apenas um lugar ainda aberto, próximo da estação. Atraída pelo aroma de peixe grelhado, entrei no estabelecimento.
Quando me sentei à mesa, o cansaço do dia caiu sobre mim de uma só vez. Sentia que não conseguiria dar outro passo. Realmente não olhei para o menu[11], só pedi um especial de peixe grelhado, depois olhei na direção da televisão, estava passando um jogo de beisebol, e tomei a água gelada que o garçom trouxe.
Ouvi uma cliente sentada ao balcão, então pensei em tomar algum álcool. Sempre evitei isso porque tinha a impressão de que algo assim deveria ser tomado com um grupo grande, mas se pudesse esquecer as coisas ruins por um momento, talvez não fosse ruim tentar. Certamente não precisava mais me preocupar com minha saúde neste momento.
Torci meu corpo em direção ao balcão e chamei por um garçom. Pedi o mesmo saquê que a outra garota havia pedido, então o garçom repetiu mecanicamente as ações, anotou meu pedido e se retirou. Senti um pouco de alívio por não pedirem uma confirmação de minha idade, e também um pouco de tristeza ao mesmo tempo. Eu parecia ter idade para que não houvesse problemas em beber?
Saí do lugar onde estava e fui ver meu rosto no espelho do banheiro. Por quantos anos passei sem quase nenhuma necessidade de mudar a expressão? Não sentia vivacidade ou vitalidade, já não sabia mais. Como se fosse uma mãe solteira e exausta, com quase vinte anos. Embora minha mente estivesse parada na idade de catorze anos.
Quando voltei ao meu lugar, um pouco de saquê e um copo para saquê estavam colocados aleatoriamente sobre a mesa. Timidamente tomei um gole; tinha um gosto ruim que não conseguiria descrever. Peguei o copo com água gelada e lavei aquele sabor. Era tão amargo, fedorento e doce, que fez eu suspeitar que isso era extremamente difícil de se beber. Não conseguia imaginar por que as pessoas gostavam tanto de algo assim.
Mesmo assim, forcei-me a tomar ao menos metade do que tinha pedido, e meu corpo começou a esquentar. Acho que ficar bêbada é assim, pensei enquanto observava o girar no fundo do copo de saquê.
Algo ficou preso em um canto da minha mente, mas eu não tinha ideia sobre o que estava causando isso. Voltei a virar em direção ao balcão, mas para pedir um chá quente. Coloquei minha mão esquerda na boca para chamar o garçom, mas congelei nessa posição.
A garota sentada ao balcão tinha um rosto familiar.
Comparei seu rosto com todos que estavam nas fotos do anuário que fiquei olhando no trem. Exceto os efeitos de quatro anos de envelhecimento, combinava perfeitamente com uma de minhas colegas de classe do terceiro ano. Seu penteado e aparência estavam um pouco diferentes, mas não havia qualquer dúvida. A garota tinha sido a representante de classe.
Finalmente encontrei alguém que conhecia.
Meu corpo se moveu antes que eu pudesse pensar. Aproximei-me e disse:
— Hum… Você lembra de mim?
A ex-representante de classe piscou, o saquê continuava em sua mão. Seu rosto parecia estar avaliando qual de nós estava bêbada. Fiquei brevemente preocupada sobre ter confundido a pessoa, mas depois percebi que isso não fazia sentido. É só que eu tinha deixado impressões muito superficiais no ensino médio.
Ela riu sem jeito.
— Err, foi mal. Tem alguma dica?
— Estávamos na mesma classe no ensino médio, no terceiro ano.
Ela pareceu pensativa por um breve momento e deu um tapa no joelho. Mas meu nome não apareceu em sua mente, então ela parou após murmurar algo como:
— Err, a asmática…
Eu sorri ironicamente e disse meu nome.
— Sim, sou Touka Matsunagi, a asmática.
— Sim, sim, Senhorita Matsunagi. — Ela balançou a cabeça, parecia estar se lembrando.
— Posso sentar com você? — perguntei. Seria difícil imaginar-me fazendo isso em situações normais, mas estava desesperada.
— Hã? Ah, claro.
Mandei o garçom transferir meu lugar e sentei-me ao lado dela. A causa agora estava começando a ficar evidente. Tentei exagerar em minha alegria por me reunir com uma colega de classe que só conhecia pelas fotos do anuário, e ela certamente fez o mesmo, já que era só uma reunião com uma colega de classe que deixou uma impressão tão simples que até esqueceu o nome. Nós nos provamos péssimas em manter uma conversa, mas fiquei feliz em encontrar alguém que se lembrava de mim, ainda que só vagamente.
— Senhorita Matsunagi, o que você anda fazendo agora? Está na faculdade?
Eu disse que ela estava correta. Minha segunda mentira desde que cheguei à cidade. Provavelmente não acreditaria que eu era uma engenheira de Mimories, e também não queria deixar uma impressão muito estranha para a primeira colega de classe que finalmente encontrei. Dizer que era uma estudante universitária visitando a casa durante as férias de verão parecia ser a melhor opção.
— Fazendo faculdade em Tóquio, hein. Que inveja — disse, mas não parecia com muita inveja.
— E o que você anda fazendo?
— Eu? Eu estou…
Então ela falou por um tempo sobre como as coisas estavam nos últimos tempos. (Sei que isso é rude, mas como as histórias contadas por pessoas que se tornam inúteis ao continuar em cidades rurais, foi algo horrivelmente chato e entediante.) Depois de ouvir os detalhes sobre como conseguiu seu atual emprego, começou a tocar Firefly’s Light no restaurante, indicando que já era a hora de fechar.
— Hmm, já é essa hora — disse a ex-representante, olhando para o relógio.
Esperando atrás dela, enquanto ela pagava a conta, eu não tinha nenhum motivo em particular para tentar lembrar a letra de Firefly’s Light. Mas não conseguia lembrar nada fora o título.
Talvez nunca tivesse aprendido isso, ou talvez fosse resultado da Nova Alzheimer.
A letra claramente equivocada era “Tão fugaz e tão sem sentido, assim como meu coração ansioso“, e isso não deixava a minha cabeça, como se fosse a cativante música de um comercial.
Quando nos separamos, a ex-representante parecia ter lembrado algo.
— Cerca de um ano atrás, nós, colegas de classe que ainda estávamos por aqui, nos encontramos para beber alguma coisa. Foi mais ou menos como uma mini reunião de classe. Quer participar da próxima, Senhorita Matsunagi?
Senti-me meio mal em ir embora após isso, então fiquei mais do que agradecida por ela ter pensado em uma despedida. Foi tão ideal, meu rosto rapidamente voltou a ficar com uma expressão séria. Corri para recriar meu sorriso e disse que ficaria feliz em participar.
Ela me disse qual seria a hora e o lugar, agradeci e nos separamos. (Pelo visto a ex-representante tinha negócios a fazer e estaria ausente na próxima reunião de classe). Peguei o último trem de volta para minha casa, tomei um banho e coloquei um curativo novo no pé. Então fiquei em frente ao espelho do banheiro e olhei para o meu rosto.
Agora estava dolorosamente consciente do quanto negligenciei minha idade.
Quase nunca me preocupei com minha aparência. Não pensava na aparência de um humano como algo além da forma de um recipiente. Como se fosse a capa de um livro ou de um disco, considerava isso irrelevante diante da real natureza das coisas.
Mas quando meu interior ficou próximo ao vazio, fiquei mais preocupada com a forma do recipiente. Era verdade que isso poderia não ser a essência de uma pessoa. Mas não poderia dizer que nunca comprei um livro julgando pela capa. Não poderia dizer que nunca comprei um disco pela capa também. Se quisesse que as pessoas soubessem o conteúdo, era preciso primeiro cuidar do elemento visual – isso era um fato inegável. Meu interior não era algo para se gabar para os outros, para começo de conversa. E o mais importante, a aparência era um fator determinante para o nascimento do amor.
Vou me arrumar, pensei. Estava pouco menos que vinte anos atrasada, mas precisava compensar ao menos um pouco disso.
A reunião de classe seria em duas semanas. Nelas, iria me concentrar para ajustar minha aparência.
No dia seguinte, tomei um café da manhã básico, depois procurei por salões de beleza, aulas de maquiagem online, e fiz tantas reservas quanto possível. Depois fui à livraria e, sim, comprei toneladas de revistas de moda e beleza também, que li durante os dois dias seguintes, como se fosse uma estudante desesperada antes de um exame. Depois de ter uma breve noção de como pentear meu cabelo e cuidar de meu rosto, visitei uma boutique e conversei com uma funcionária, pensando em comprar roupas e sapatos novos.
Tudo isso teve um custo bastante ultrajante, mas fiquei aliviada por finalmente ter algo com que gastar meu dinheiro. De qualquer forma, não poderia levar isso para a próxima vida.
Resumindo, tentei tudo o que consegui pensar. Não me preocupei com o dinheiro, abandonei a vergonha e deixei a reputação de lado e tentei ficar bonita. Para conquistar o carinho de alguém que possivelmente lembraria de mim. Para não decepcionar “ele”, que possivelmente existiria.
Devia ter deixado algo passar.
Passei por uma transformação dramática em duas semanas. Parte disso era por eu parecer horrível, mas pelo menos não ficaria ofendida se de repente me visse no espelho enquanto andava pela cidade. Talvez não fosse exatamente “bonita”, mas decerto parecia estar mais próxima da minha idade.
Sempre fui estudiosa e proficiente em encontrar a melhor solução para as minhas condições. Então, quando peguei o jeito, até a maquiagem e escolha de roupas pararam de ser um problema. Tratei a maquiagem como pintura a óleo e o rosto como se fosse uma tela, e interpretei a escolha de roupas como uma atividade semelhante a evocar as estações do ano em um haiku[12]. Uma vez feito isso, os temores que tinha quanto a isso desapareceram. E depois que abandonei esses sentimentos, refinar minha aparência virou algo simples e divertido. Finalmente pude entender por que as pessoas gastavam quase todo seu dinheiro em coisas relacionadas à beleza.
Fiquei na frente de um espelho e ensaiei um sorriso. Sempre odiei o meu. Tinha a preocupação infundada de que meu sorriso fazia as outras pessoas sentirem algo desagradável.
Aquele mal-estar finalmente desapareceu. Consegui mostrar um sorriso despreocupado na frente do espelho.
Agora poderia encontrá-lo sem medo, pressenti.
E então, o dia chegou.
Vou poupar os detalhes e pular direto para a conclusão.
Não havia um único colega de classe do qual lembrava.
Desde o início até o final do encontro, sentei-me em um canto, tomando cerveja, algo estranho para mim.
No caminho para casa, fiquei enjoada e vomitei na estrada.
Isso trouxe um pouco da minha ansiedade de volta.
Vou me dedicar ao trabalho, pensei. Já que essa é a única coisa que me resta.
Notas:
1 – Miopia é um distúrbio de visão em que os objetos próximos são vistos com clareza, enquanto os distantes não. ⇧
2 – Hipermetropia é um distúrbio de visão em que os objetos distantes são vistos com clareza, enquanto os próximos não. ⇧
3 – A Alzheimer de início precoce é a referente a casos em que o paciente possui menos de sessenta e cinco anos. ⇧
4 – É uma síndrome demencial que afeta o lobo frontal do cérebro. ⇧
5 – A média de tempo que o paciente vive após contrair Alzheimer é de quatro a oito anos, entretanto, em determinados casos o indivíduo pode viver por mais de vinte anos, mesmo doente. ⇧
6 – Charlie Brown dos quadrinhos. ⇧
7 – Ato ou efeito de trazer à memória pensamento, imagem, sensação do passado; lembrança, recordação. ⇧
8 – Informação que o emissor obtém através da reação do receptor à mensagem. ⇧
9 – É quando tudo parece estar se repetindo, mas nunca aconteceu de verdade. ⇧
10 – É uma nuvem caracterizada por ser enorme. É conhecida por ser a nuvem dos temporais. ⇧
11 – Cardápio. ⇧
12 – Um tipo de poesia japonesa curta, geralmente caracterizada em três versos. ⇧
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