Em algum momento, a disputa passou de uma batalha para uma questão de o portador da foice completamente pressionando-a. Então, uma voz soou:
— Eu não te disse? Homens gostam de se aproveitar de mulheres fracas.
— …!! Você…!!
A voz por trás da máscara, perto o suficiente a ponto de tocá-la, fez com que arregalasse os olhos por instinto.
— Nng…! Lâmina Voadora Divina!
Um clarão de luz branca percorreu a sua espada.
O movimento servia para afastar os inimigos com um corte. Em uma distância tão curta, era bem provável que Emi também fosse atingida pela onda de choque.
Entretanto, não havia outra forma de escapar dessa. Justo quando estava prestes a liberar sua explosão potencialmente autodestrutiva, outro raio roxo brilhou diante dela.
— Nem pensar. Não permito nada que possa fazer uma mulher se ferir!
O raio violeta foi disparado junto com as palavras alegres e despreocupadas, atingindo sua espada brilhante, então:
— O qu…!!
O grito de Emi não foi capaz de mostrar sua verdadeira aflição. Logo antes de conseguir usar, a Lâmina Voadora Divina foi completamente anulada. Na realidade, a energia sagrada dentro da espada, que transbordava com a sua força corpórea, desaparecia depressa.
Ela gemeu quando sentiu que seu inimigo ficou mais forte.
— Este é o meu poder. O Olho Maligno do Caído. O poder para oprimir todos os portadores de magia sagrada não pertence a mais ninguém a não ser a mim.
— O Caído…?! Não me diga que você é…!
— Oh, sou. Estou aqui para libertá-la das crueldades da nossa missão. Durma bem.
À medida que a voz sedosa continuava, uma luz violeta começou a se acumular no centro da máscara.
— Estarei levando essa espada sagrada comigo agora.
— O que está…!
Naquele momento, um tipo completamente diferente de luz passou pela linha de visão de Emi.
— Yusa!! — O grito de aviso de Chiho foi tardio demais.
Um gigantesco raio de cor dourada avançou sobre Emi, vindo de um lugar desconhecido, e fez com que ela voasse com a força de uma enorme onda de choque.
— Gahh!
O seu corpo estava preparado para um ataque, mas foi atingida por um ainda mais devastador de outra direção. Ela gemia enquanto voava.
Disparada como uma bala de canhão, passando direto por Chiho, que estava congelada de medo e tremendo, chocou-se contra a parede de um prédio e logo perdeu a consciência.
A espada sagrada caiu da sua mão neste instante.
O maníaco portador da foice observava a cena.
— …!
Entretanto, a espada de aparência metálica caiu suave como uma pena no chão, transformando-se em milhares de partículas de luz.
Como uma gigantesca onda de vaga-lumes, as partículas dispararam na direção do corpo caído do seu mestre, emitindo um brilho suave enquanto a cobriam por completo e sumindo de vista logo depois.
O maníaco portador da foice apreciou a cena com um estalo de língua, irritado.
— Yusa! Yusa!!
Chiho, enquanto isso, balançava o corpo de Emi, frenética.
Emi estava deitada de bruços e não respondia. Chiho não era capaz de levantar o seu corpo flácido, solto e mole com seus braços fracos, sendo apenas capaz de agarrá-la enquanto olhava para o agressor, aquele que segurava a luz dourada.
— Por quê? Por que teve que fazer isso?! — gritava Chiho. — Suzuno! Por quê?!
O cabelo de Suzuno, normalmente preso por um prendedor de cabelo, estava, por algum motivo, solto até a cintura, e ela carregava um enorme martelo de guerra.
— Você estava com eles esse tempo todo, Suzuno, não é?! Yusa não passava de um obstáculo no seu caminho, assim como Olba era!
— …
Suzuno olhou de cima para Chiho com uma expressão dolorosa no rosto.
— Isso… não é justo! Se Maou é um demônio, o que são vocês, que atacam a Yusa pelas costas enquanto está lutando por todos nós?!
Suzuno fechou os olhos, incapaz de aguentar o ataque verbal de Chiho, e gritou:
— Cale-se!
Chiho congelou devido ao choque e medo, deixando Suzuno avançar sobre ela em um instante. Então sentiu o toque do dedo dela em sua testa.
— Maou… s… socorro…
Sua consciência foi caindo na escuridão.
O celular cor-de-rosa em sua mão fez um barulho alto ao cair no chão.
— Ooh, e lá vai a polícia. — Maou notou as sirenes dos veículos de emergência enquanto estes passavam rápido pela Rua Koshu-Kaido. A noite enfim estava começando a tomar conta e, à medida que analisava o recibo da caixa registradora, esperava que, ainda que o fluxo de clientes voltasse ao normal no horário do jantar, não seria o suficiente para compensar os danos sofridos de manhã e tarde.
A despromoção para a Groenlândia era uma brincadeira, muito provavelmente, mas Maou sabia que existia uma grande chance de Kisaki diminuir o seu salário. Sua única escolha era tentar compensar amanhã.
O artifício de decorar a árvore fez maravilhas, no entanto. Atraiu mais famílias e maiores grupos do que o normal e, ainda mais inesperadamente, uma boa quantia de casais e mulheres interessadas em colocar desejos na árvore, não sendo apenas crianças, que era aquilo que Maou antecipara.
Graças a isso, a árvore de bambu agora estava toda coberta por tiras coloridas de papel dobrado.
As decorações do Festival das Estrelas para o qual Maou organizou sua equipe para realizar era parte de tudo o que aprendera com suas investigações sobre o folclore oculto e mágico do planeta Terra.
Ele conduziu uma ampla pesquisa em áreas como cerimônias religiosas, fontes alegadas de magia, filosofia espiritual e espíritos ancestrais. A decoração de bambu certamente foi um resultado autêntico.
O que também agradou Maou foi ter uma professora, a qual dizia trabalhar em uma escola infantil nas proximidades, que lhe pediu para mostrar como fazer as decorações do Festival das Estrelas. Esse tipo de elogio profissional foi uma verdadeira fonte de orgulho para ele — ela devia já saber como fazer origamis simples para o currículo da escola, afinal.
Maou prometeu pegar uma árvore nova da residência Watanabe o quanto antes, talvez até amanhã. Montou uma agenda rápida para a manhã seguinte em sua mente enquanto comandava a equipe para fazer os procedimentos de fechamento entre os pedidos.
Foi então que o telefone tocou.
Mas não o de Maou, e sim o telefone do escritório do MgRonald.
Ele olhou para o relógio, confuso, mas pegou e o atendeu antes de continuar pensando mais. O manual de serviço ao consumidor dizia que não se podia deixar o telefone tocar mais de duas vezes e, se dizia isso no manual, era lei para Maou.
— Obrigado por ligar para o MgRonald da estação de trem de Hatagaya. Aqui quem fala é Maou. Como posso ajudá-lo?
— Alô? Oh, Maou, meu querido! — Parecia ser uma mulher de meia-idade, a qual aparentava estar alegre pelo fato de alguém ter atendido. — É Sadao Maou, talvez? O supervisor de turno e gerente assistente?
Quem é essa estranha que sabe o meu cargo completo? As sobrancelhas dele formaram um arco, parecendo incrédulo, mas não deixou isso ficar aparente em sua voz.
— Sim, aqui é Maou, supervisor do turno da noite… Quem está falando?
— Oh! Sim, meu deus, sinto muito mesmo! Só fiquei surpresa… Não pensei que você acabaria atendendo ao telefone! Hehehehehe!
Maou implorava em silêncio para que a mulher parasse de rir e apenas fizesse o seu pedido.
— Aqui é a mãe da Chiho Sasaki. Obrigada por cuidar tão bem dela aí!
— Uh… — Ele sentiu os músculos em suas costas se contorcendo como uma mola pesada enquanto dava um leve gemido.
— B-bem, muito obrigado. Você é a mãe da Chi… quero dizer, a mãe da Senhorita Sasaki, então? Fico feliz em falar com você!
Ele curvou o corpo enquanto falava, mesmo que ela não estivesse realmente lá. Esse gesto quase fez com que batesse a cabeça no suporte de bebidas.
Não tinha motivos para ficar tenso. Era apenas a família de um dos seus funcionários ligando.
Não era como se tivesse algum tipo de relação especialmente próxima com Chiho. Bem, beleza, eles eram bastante íntimos um com o outro, mas com certeza não eram um casal ou algo do tipo… Entretanto, se considerasse que a comida caseira de Chiho foi aprovada pelos pais, Maou viu-se incapaz de saber como falar com a mãe dela, ou até mesmo como deveria chamá-la.
O ligeiro tremor na voz dele enquanto todo o seu corpo começava a suar frio, devia ter ficado claro pelo telefone.
— Mas eu preciso me desculpar. Entendo que a Chiho vem causando alguns problemas para você, não é? Deixe-me te dizer, foi uma grande surpresa nesta manhã, quando chegou com uma bicicleta que nunca vi antes!
Ela parecia estar achando graça daquilo.
— N-Não, não é problema algum. Chiho é um membro maravilhosamente talentoso na equipe, e… bem, não querendo ser muito pessoal aqui, mas não estou com um orçamento dos melhores no momento, então fico mais do que grato pelo grande café da manhã que ela preparou hoje cedo.
— Ah, então, Chiho, você sabe… Não é que como se nunca tivesse ajudado em casa, mas certamente nunca preparou aquele tanto de comida sozinha antes, então, sabeeee, se algo pareceu mal cozido ou com gosto estranho, não tenha medo de dizer, entendeu? Eu ensinei tudo o que pude pensar na hora, mas sempre que oferecia ajuda, ela ficava toda vermelha e dizia que não precisava de mim por perto, por isso eu meio que a deixei se virar!
— Ah… sim… Bem, fico imensamente grato. Foi uma refeição saborosa, mesmo.
— Oh, minha nossa, minha nossa! Peço perdão se te fiz se sentir, sabe, estranho! Sei que não é uma, ééé, relação séria ou nada perto disso, mas aquela garota, sabe, sempre foi apegada ao pai, e não é como se nunca tivesse sido amiga de outro garoto antes. Mas vou contar, nunca tinha visto trabalhar tão duro em algo, por isso… bem, me faz uma mãe orgulhosa, sabe? Ver isso e tal. Oh, mas sinto muito, você ainda está trabalhando, não é?
— Não, é… me desculpe.
Foi o melhor que Maou conseguiu pensar. Ele não tinha feito nada de errado, mas a ansiedade estava fazendo todo o seu corpo estremecer.
Entretanto, quando a mãe de Chiho desligou o seu comportamento de “mãe de uma garota em seu auge” e voltou aos negócios, a ansiedade desapareceu, sendo substituída por algo ainda mais desagradável.
— A Chiho ainda está trabalhando aí?
— Hã? — Maou olhou para o relógio. Recém tinha passado das dez da noite, uma hora desde que Emi e Suzuno a acompanharam até em casa.
— Ela… ainda não chegou?
— Então, eu disse a ela para comprar um pouco de leite na loja de conveniência quando viesse, mas ainda não voltou, por isso achei que estivesse, sabe, dando um tempo aí depois do trabalho.
Maou pôde sentir sua mente congelar.
Ele não havia visitando a casa de Chiho antes, é claro, mas sabia que não era tão longe assim.
Parecia que ela tinha uma boa relação com Emi e que estava se abrindo com Suzuno também. Talvez as três tivessem ido dar uma volta em algum outro lugar.
Porém, Maou não se sentia otimista o bastante para acreditar nisso.
Um pensamento que girava ao redor de sua cabeça desde que Suzuno se mudou começou a soar um alarme.
Se Emi estava com elas, duvidava que, por estarem juntas, qualquer tipo de mal-entendido estranhou ou descontrolado aconteceria. Mas talvez fosse apenas um pensamento egoísta.
Ugh. Aquela Heroína é tão inútil.
— Hm, Senhora Sasaki?
— Oh, meu querido, não precisa ser tão formal assim! Ooh, nunca vi um garoto amigo da minha filha me chamar assim antes!
Suportando a vontade de perguntar à mãe de Chiho o que era tão engraçado nisso, Maou respirou fundo e inclinou-se para frente.
— Eu gostaria que você relaxasse e ficasse em casa até que a sua filha retorne.
O som da sua voz transformou-se em sinais digitas e percorreram até o ouvido dela, que foi ficando quieta, deixando a insinuação de antes no passado, então desligou, sem dizer mais nada.
Maou se deu um tapinha nas costas mentalmente. Hipnose de longa distância sempre foi um tanto complicada.
Um membro da equipe o chamou assim que ele desligou o telefone.
— O que foi? A Chi ainda não chegou em casa?
— Não me parece isso. Talvez só esteja em algum outro lugar, eu aposto.
— Sim. Aquelas amigas estavam com ela também, não é?
Isso foi o suficiente para deixar o funcionário tranquilo quando entrava na área da cozinha com desinfetante de álcool e esfregão preparados.
Maou correu para a sala dos funcionários, pegou o celular de dentro dos seus pertences pessoais e suspirou dolorosamente quando a tela se acendeu. Uma chamada de quase uma hora atrás aparecia ali.
Era de Chiho.
O celular tocou por noventa e nove segundos, o maior tempo que o seu provedor permitia. Ele era miserável demais para assinar uma caixa postal, e o seu celular não permitia que gravasse automaticamente chamadas para a função de anotação de voz interna.
Se ficasse claro que não iria atender, Chiho sempre era educada o bastante para deixar uma mensagem de texto ou ligar de volta outro dia. E caso alguém como ela deixasse o telefone tocando por um minuto e meio, algo com certeza estava erado.
Ele tentou ligar de volta, mas caiu na caixa postal dela em questão de trinta segundos. A mesma coisa aconteceu com as duas seguintes tentativas.
Tomado pelo nervosismo, tentou ligar para Emi depois, a mulher que, na teoria, era para estar junto.
Após várias tentativas e encontros banais com a caixa postal, Maou esmurrou o botão “FINALIZAR CHAMADA” com uma represália:
— Droga…!
A falta de resposta de Emi serviu apenas para aumentar o seu temor.
Talvez não fosse nada mais sério do que apenas a Heroína ignorando sua ligação.
— Maou? Oh, Maou?
O funcionário de antes estava na sala dos funcionários, aparentemente procurando por ele. O telefone sem fio do escritório estava em sua mão.
— É uma ligação para você.
— Da Chi?!
A resposta súbita e urgente fez o funcionário balançar a cabeça, alarmado.
— N-Não, hã, é de Urushihara.
— Quê?! — Não conseguiu conter sua surpresa. Dentre todas as pessoas que estariam ligando para ele agora… — Alô?
— Oh, Maou? E aí, sou eu!
Mas lá estava ele, o antigo anjo caído e atual parasita do Castelo Demoníaco, do outro lado da linha.
— Por que diabos você está ligando para o número do escritório?! E de onde é que está ligando?
Urushihara estava sob estritas instruções para não se aventurar para fora de casa a não ser que fosse de grande urgência. Não havia telefones públicos que ficavam perto do Castelo Demoníaco. Então, como Maou estava falando com seu zumbido nasal e choroso naquele exato momento?
— É… como? Eu sei que você nunca atende o celular durante o trabalho. E estou ligando de casa, qual é o grande problema nisso?
— De casa?! Quando foi que comprou um celular?! Você tinha todo esse dinheiro?!
— Mano, não tenho um celular. Você acha que sou burguês? Estou usando o SkyPhone. Sabe o que é o SkyPhone?
— O que é isso?
— Basicamente, é um telefone que você pode usar pela internet. É quase gratuito, e pode até mesmo fazer ligação para residências com ele. Tipo, contratar uma empresa telefônica é bem fora de moda, sabia?
Maou ficou internamente maravilhado com o quanto Urushihara achava que sabia de tudo depois de passar apenas dois meses com a vida de um recluso japonês.
— Tudo bem. Ótimo. Contanto que não mexa com as nossas finanças. E o que você quer?
— Credo, não precisa ser tão maldoso assim. Ashiya me pediu para procurar por informações sobre o Sentucky Fried Chicken, então eu achei. Feliz agora?
A própria atitude de Urushihara não era grande coisa. Para o impaciente Maou, essa ligação não parecia ser de tanta importância assim.
— Sim, sim, foi mal. Mas eu meio que estou ocupado agora. Vou ver isso contigo em casa.
Tentou desligar, mas Urushihara gritou antes que pudesse.
— Espere! Tem certeza? Sabe, esse Sentucky… Tem algo bem ferrado nisso tudo.
— Hã?
Maou podia ouvir alguém clicando com um mouse do outro lado. A qualidade do áudio era melhor do que esperava.
— O lugar é administrado por um cara chamado Mitsuki Sarue. A que fica em Hatagaya, no caso. É essa, certo?
— Sim, eu suponho.
— Bem, o perfil de funcionário no site diz que Sarue tem um metro e oitenta e costumava jogar rúgbi na faculdade. É assim que ele se parece para você?
— Como é que é… — Maou estava ainda mais inclinado a desligar na cara dele. — Deve ser o perfil de outro. Ele era um tampinha, mano, acho que tem sua altura. Parecia estar mais confortável tentando dar em cima das garotas em um bar tranquilo de Kabukicho do que os caras bombados em um campo de rúgbi.
— Oh, então está me chamando de tampinha agora? Valeu mesmo. De qualquer forma, Sarue é um sobrenome bem raro, então, quando chequei os históricos de colaboradores do site do RH do Sentucky fora de Shibuya, esse foi o único Sarue em toda a lista.
— Uh… uau, que tipos de sites você anda acessando?
— E isso não é tudo. De acordo com os históricos do RH, Sarue deveria estar trabalhando no departamento de propaganda. Aqueles históricos citam alguém totalmente diferente como gerente em Hatagaya. Alguém com o nome de Tanaka. Uma garota!
— Eita…
Se Maou não estivesse focado em outras crises no momento, pensaria que fosse apenas uma inconsistência com o armazenamento de registros do SFC. Entretanto, considerando os eventos de agora, era mesmo seguro deixar esse tal de Mitsuki Sarue, gerente no Sentucky Fried Chicken de Hatagaya, ser ignorado enquanto sua própria existência estava sendo motivo de dúvidas?
E ainda tinha Chiho, que fora perdida em ação; a incomumente quieta Emi… e a garota que estava com elas.
— Ei, hã, tem alguma forma, tipo assim, de você ver onde alguém está neste exato momento se você tiver o número do celular dessa pessoa? Alguma coisa útil assim?
— Por que está perguntando? Eu acho que sim, mas tenho que ver ainda.
— Tem mesmo?!
O século vinte e um ainda era novo para Maou de diversas formas.
— Mas não tenho agora, e achar essa coisa provavelmente vai levar um tempão. Não sei nem se esse lixo de PC vai aguentar…
— Tudo bem! Sinto muito se é um lixo! Credo!
Era um pedaço de lixo que Urushihara não precisou gastar um centavo para comprar. Maou sentia que era justo ser ofensivo.
— Mas, tipo, como é, você quer saber onde alguém está?
— Siiiiiim, tipo isso…
— Pois, se for Emília, talvez eu possa te dizer.
Maou parou de respirar por um momento.
— Como é?!
— Bem, pois é. Eu meio que coloquei um rastreador na bolsa dela. Um transmissor de GPS secreto.
— Um GP… secreto… o quê?
Toda essa alta cadência de vocabulário era demais para ele.
— Hã… bem, imagine um daqueles aparelhinhos minúsculos que você vê nos filmes. Eles são usados para rastrear animais selvagens, aves migratórias e coisas do tipo, sabe? Servem para mostrar que tipo de caminho aquele que o carrega está tomando e quanto tempo levou para isso.
Não havia dúvidas de que Emi era uma presença muito mais assustadora na vida dos demônios que um lobo ou urso com coleira. Rastreá-la foi uma ideia brilhante.
— Quando você fez isso?
— Alguns dias atrás. Coloquei debaixo de uma camada da bolsa dela, onde não seria notado logo de cara.
Fazia sentido. Maou lembrou que Urushihara tinha juntado todas as coisas que se espalharam no chão depois que Emi saiu voando pela escada.
— Além disso, você já deve ter notado agora, né, Maou? Tipo, como Suzuno não é uma mulher japonesa normal, certo? — Urushihara fez soar como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Como não tinha dito nada, achei que seria melhor seguir o fluxo, mas, sabe, por qual outro motivo alguém se mudaria para um apartamento desses a não ser por estar sem dinheiro algum? Tipo assim, não existe.
— Você… é mais observador do que eu imaginava.
— Não sei se Emília notou, e é por isso que está sendo amigável com ela. Mas a nossa senhoria também não é das mais normais, concorda? Um ser humano normal que assina um contrato com aquela senhoria e se muda para perto de nós… tem que ser louco para pensar que é apenas uma inquilina normal.
Quando Suzuno se mudou, Maou não estava preocupado com as coisas que Ashiya mencionou — agindo como um vizinho decente, ser parte da comunidade, blá blá blá. Sua única reação foi de que qualquer um disposto a assinar com aquela senhoria podia muito bem ser de Ente Isla.
— Então… o macarrão udon e as outras coisas que Suzuno fez para nós…
— Dã, sou meio-anjo, lembra? Poder sagrado não vai fazer mal pro meu corpo. Comi tudo o que vocês me deram. Não doeu nem um pouco para você, Maou?
Devia ter sido isso que deixou Ashiya de cama… o tipo de comida que Suzuno trouxe para dentro do Castelo Demoníaco.
Tanto na Terra quanto em Ente Isla, a comida desempenhava um papel primordial nas cerimônias sagradas, geralmente conhecidas como “consagrações”.
Na Terra, a comida envolvida quase sempre era pão ou vinho, colocada em recipientes sagrados para ser usada em rituais religiosos.
Ente Isla, enquanto isso, frequentemente usava ingredientes especiais, cultivados nos domínios da Igreja, regados com a ajuda de água sagrada e infundidos com o poder dos deuses.
Toda a comida que Suzuno trouxe consigo devia ter sido consagrada em Ente Isla.
E era fácil imaginar por que foi tão generosa ao compartilhá-la com Maou e seus comparsas. Ela era uma assassina, cuja abordagem diferia principalmente da de Emi em seu ritmo mais lento.
Consumir comida cultivada e consagrada poderia mesmo ser perigoso para a saúde de demônios inferiores. Mas…
— Ei, quanto pior para você, melhor o sabor, certo?
— É isso que tem a dizer?
A total indiferença de Maou irritou Urushihara.
Para um demônio de alto nível, comer comida consagrada era o mesmo que colocar força sagrada dentro do próprio corpo. Machucaria a longo prazo, mas apenas da mesma forma que gorduras trans e colesterol “ruim” machucariam uma pessoa comum. Não era algo que drenaria sua força e acabaria com as funções corporais em um estalar de dedos.
No caso de Ashiya, parte da culpa estava no fato de ter usado seu poder demoníaco em batalha dois meses atrás, assim como a culinária de Suzuno não estar de acordo com o seu estômago.
— Não é como se ela estivesse querendo nos derrubar da forma que Olba fez. Não sou idiota o suficiente para reclamar sempre que alguém me alimente e, ei, isso me ajudou a economizar um pouco de dinheiro. Eu achei que a usaríamos até conseguirmos sair dessa.
— Pois é, mas isso não é tipo aquele documentário sobre o cara que comia hambúrgueres todos os dias só para ver o que acontecia?
— Sabe, Ashiya costumava citar aquele filme sempre que estava me repreendendo. Acho que deve ser um grande fã. — Maou riu para si mesmo.
— O que ele está fazendo agora, a propósito?
Ashiya não ficaria parado se descobrisse que a sua vizinha ao lado era sua inimiga mortal.
— Bem, ele chegou em casa, comeu um pouco de udon e agora está grunhindo e gemendo no banheiro.
— Oh…
A imagem mental do seu amado general e gênio tático enfrentando uma indigestão quase fez com que lágrimas escorressem pelos olhos de Maou.
— Também acho que ele estava ficando bastante desconfiado de Suzuno. Mas, como você nunca disse nada, suponho que tenha ficado quieto porque estava ajudando a manter as contas em dia.
— Eu… fico feliz que ele tenha fé em mim, mas, cara, não precisava arruinar a própria saúde por causa de alguns ienes.
— Sim, aham. Foi por isso que coloquei o transmissor de GPS lá, mas Emília não fez nada de suspeito, sério mesmo, por isso desliguei o transmissor há algum tempo.
— Hã… Tudo bem, entendi. Então você pode usar isso para saber onde ela está agora?
— Talvez. A bateria vai acabar logo, eu acho…
Maou ouviu Urushihara digitar no teclado por um momento.
— Uou. — Alguma virada de eventos surpreendente fez com que seus dedos parassem.
— Uou, o quê?
— Ela estava no cruzamento entre o MgRonald e a nossa casa, então, do nada, começou a se mover em linha reta. Tipo, pelos prédios e tudo, como se estivesse voando.
— Para onde está indo?
A resposta de Urushihara foi curta e direta:
— Prefeitura de Tóquio, pelo que parece. O sinal do GPS está pairando sobre o prédio número um, o principal, já faz um tempo.
— Ótimo… Isso era tudo o que eu precisava saber. Foi algo bem fora do normal, na verdade.
— “Fora do normal” é maldoso demais, sabia.
Maou assentiu antes de falar sobre outra coisa que lhe veio à mente:
— A propósito, quanto que custou esse seu rastreia dor aí?
No momento em que fez a pergunta, um som de descarga foi ouvido pelo telefone, seguido pelo ranger da porta de correr antiga. Ashiya tinha saído do trono.
— É um rastreador, cara. Ashiya acabou de sair agora, então não quero mesmo dizer, mas…
— Eu estou do seu lado nessa, prometo, então pode me dizer. — Maou conseguia sentir a hesitação do outro lado da linha.
— Comprei em uma loja online de Akihabara… hã, quarenta mil… no seu cartão.
O som de algo pesado caindo ecoou pelo telefone.
Pelo áudio, Maou facilmente supôs que Ashiya desmaiara de choque por causa do hábito extravagante de Urushihara.
— Então, pelo menos você é honesto. Não faço ideia do que Ashiya vai dizer, também não tenho certeza se quero saber por que você comprou essa coisa, mas tem a minha permissão. Me ajudou muito esta noite.
— Eu meio que apreciaria se pudesse vir para casa o quanto antes e dizer isso pro Ashiya. Estou um pouco assustado…
— Não vai rolar. Não terminei com o meu trabalho ainda. Mas agradeço. Até depois.
— Ei, espere, Mao-
Ignorando as súplicas de Urushihara, Maou desligou o telefone.
— Não quero que vocês me sigam também. Não com toda a energia demoníaca drenada. Só ficariam feridos. Um bom supervisor precisa observar a condição da sua equipe.
Depois de sussurrar para si mesmo, respirou fundo, quase afogando-se com a imensa quantidade de odores que tomavam conta da sala da equipe, então bateu nas bochechas para despertar.
— Se for apenas Emi pegando um atalho, ela vai ter que me explicar muito bem.
Ele olhou pela sala e parou quando viu o armário de utensílios de limpeza.
— Hã? Já vai limpar o piso, Maou? — Um dos membros da equipe percebeu que Maou saía da sala dos funcionários com um esfregão.
— Bem, uh… sim. Preciso dar uma saída rápida.
— O quê? Com um esfregão? Onde?
Maou teve dificuldade para responder por um momento, mas fez o rosto mais estoico que conseguiu.
— Tem algo me incomodando e preciso limpar.
— Hm, não entendi muito bem o que você… Ah! Maou, espere um pouco!
Ignorando os gritos do funcionário, Maou atravessou a área de refeição correndo.
— Maou!
— Não se preocupe! Prometo que vou voltar!
— Não me importo com isso! Só não nos deixe aqui!
O grito do funcionário soava como um chifre de batalha para os ouvidos de Maou enquanto ele montava em sua fiel Dullahan de duas rodas e disparava.
A buzina da Dullahan tocava diante da aprovação do espírito ardente do seu mestre, com suas vibrações soando como o rugido de uma besta.
Semelhante a um cavaleiro das antigas, Maou, lorde do reino dos demônios, segurava seu esfregão firmemente enquanto galopava rua abaixo a partir da Koshu-Kaido para não chamar a atenção da polícia, indo direto até o centro da cidade em Hatsudai-Shinjuku.
— Hmm… Então o anjo se recusa a cair tão facilmente.
Uma cruz flutuava no céu, emitindo uma luz roxa misteriosa. O estranho maníaco portador da foice olhava para ela, e o corpo de Emi estava crucificado nela, enquanto ele dizia com tranquilidade. Suzuno, perto dele, tinha os olhos virados para baixo.
Emi, com o cabelo voando ao vento, encarava os dois, mesmo enquanto seu corpo continuava flácido.
Sobre eles, uma enorme luz crescente, muito maior do que a vista na Terra, banhava o seu brilho branco sobre Emi e todo o prédio principal da prefeitura de Tóquio logo abaixo.
O heliporto no topo do prédio alto, o ponto de Shinjuku que estava mais próximo da lua do que qualquer outro lugar, parecia completamente separado do agito da cidade abaixo. Estava silencioso, com apenas os ventos uivantes presentes para testemunhar essa cena transcendental e seus cidadãos.
— Simplesmente… desista de uma vez.
Como um guerreiro sagrado que esperava seu julgamento, Emi estava sendo banhada por aquela luz roxa sem parar, e o seu corpo agora estava quase desprovido de energia sagrada.
A luz que o maníaco portador da foice empunhava tinha mesmo o poder para drenar a força dela, afinal.
Ele estava, aparentemente, em busca da espada sagrada, Cara-Metade, dentro do corpo dela, mas não importava quantas vezes a luz passava por ela, a Prata Sagrada que ressoava dentro de sua força interna para formar a espada recusava-se a ceder.
— Não estou resistindo, é você que não pode fazer isso. Então, poderia tentar novamente outra hora?
Emi foi reconhecida pela Igreja como a Heroína com o poder para matar o Rei Demônio. Eles a presentearam com a Prata Sagrada, a qual aceitou de bom grado em seu corpo com a ajuda da energia sagrada da Igreja. Mas nunca tinha parado para pensar em como aquilo foi armazenado dentro dela.
A própria Cara-Metade parecia se apresentar como uma arma física, forjada em alguma fundição celestial, mas o Tecido do Dissipador que a protegia era composto apenas por luz, não tendo presença física alguma.
O que significava, agora que se perguntava em sua mente, que o Tecido não era energizado pela Prata Sagrada, talvez.
Desprovida das habilidades que aproveitou habilmente na guerra contra os demônios, o seu estado atual fez com que percebesse pela primeira vez o quão pouco sabia sobre seus poderes.
— Desista… de uma vez. Solte a mim e a Chiho.
As palavras saíam com dificuldade da boca de Emi.
Chiho ainda estava inconsciente, jogada no chão atrás do maníaco com a foice e com as mãos amarradas nas costas.
— Temo que isso não vai acontecer. Na realidade, planejo fazer com que essa jovem mocinha me ajude de mais algumas formas. — Os ombros do ladrão de lojas, portador da foice e maníaco subiam e desciam enquanto ria.
— Você… trabalhava na frente do MgRonald para que pudesse dar em cima das mulheres, Sarue?
Emi usou todo o sarcasmo que conseguia, e os ombros dele pararam de repente.
— Ah. Você notou.
— Mulheres são muito mais sensíveis a homens estúpidos e a seus hábitos exibicionistas do que você pensa.
Mesmo capturada e sem forças, Emi não tinha se calado em momento algum. O portador da foice riu novamente:
— Faz sentido. Eu me chamei de Sarue, mas… — Ergueu a mão para remover sua máscara de esqui. — Meu nome verdadeiro é Sariel. O arcanjo Sariel.
Agora que se revelara, seu corpo de garoto, seus olhos roxos e…
— Eu não sabia que sombra laranja era a nova moda no paraíso agora.
A tinta laranja nos olhos do anjo ficou clara agora que havia se apresentado.
— Hmm… Provou-se ser bem difícil de sair. — O anjo chamado Sariel deu de ombros e riu para si mesmo, como se reclamasse melancolicamente sobre o tempo ruim do lado de fora.
A máscara tinha sido removida, mas a capa de chuva e calças camufladas ainda estavam lá. As características bem definidas do seu rosto, enfeitadas pelo alaranjado claro, quase fazia parecer a cara de um palhaço.
Um inimigo antes desconhecido revelando-se deveria ser, normalmente, uma situação dramática. Entretanto, para Emi, foi necessário um pouco de esforço para não rir.
— Não seria algo usado para evitar crimes se saísse tão fácil, sabia?
— Hmph. Não é de grande preocupação para mim. Eu precisava daqueles óculos para esconder os meus olhos roxos mesmo.
— Eu diria que você tem muito mais problemas para lidar do que isso.
A colônia forte que usava era, sem dúvidas, para esconder o cheiro das bolas de tinta anti-roubo. Mas a sua abordagem excessiva para falar com mulheres era, provavelmente, uma parte da sua personalidade.
Emi também conhecia o nome de Sariel.
Era um nome que aparecia com frequência nos textos sagrados da Igreja. Vários departamentos dela, incluindo o próprio Conselho de Inquisidores, o veneravam como um anjo simbólico para sua causa.
Ele estava entre o alto escalão dos residentes celestiais, importante o suficiente para portar o título de arcanjo.
A luz roxa era o Olho Maligno do Caído, uma força que o permitia derrotar até mesmo anjos de alto nível, fazendo-os caírem no mundo mortal.
Uma história até colocava a culpa em Sariel pela queda de Lucífer.
— Sabe, você realmente me preocupou. Uma arma tão poderosa sendo jogada em outro mundo. E, agora, estou fedendo e o meu rosto bonito parece o de um panda laranja. Eu até mesmo considerei tirar a minha própria vida em certo momento.
Emi lamentou a inabilidade dele de superar isso. Não tinha ideia do motivo para Sariel ser um arcanjo tão imaturo, narcisista e fedido.
— Eu falhei em derrotá-la, deixei que se juntasse com o Rei Demônio e quase tive que faltar ao trabalho no dia de abertura. Uma grande provação, devo dizer, mas! — Sariel, o panda laranja, sorriu, então virou-se para Suzuno. — Graças a você, consegui capturá-la sem precisar me esforçar muito. E veja só que adorável prêmio bônus eu consegui!
Emi seguiu os olhos de Sariel. Suzuno estava de cabeça baixa e de dentes cerrados.
— Chiho Sasaki. Uma amostra deveras valiosa, sabia? Uma garota de outro mundo que sabe sobre o Rei Demônio e, ainda assim, não deseja nada a não ser ficar mais próxima dele. Ela irá nos fornecer uma pesquisa inédita sobre como os poderes do Rei Demônio afetam a mente humana!
Emi revirou os olhos.
A maneira de falar e quase cartunesca era uma coisa, mas seu ato atual não era nem um pouco inacreditável.
— Estava nos ouvindo naquele cruzamento?! — Ela não tinha notado nada de suspeito por perto naquela hora.
— Psh. Pelo menos podia ter sido gentil o suficiente para chamar de “espionando”.
Sariel estava mais do que animado para confessar suas tendências de perseguidor. Emi enrugou o nariz em resposta, aparentemente com mérito o suficiente para levar outra explosão do Olho Maligno do Caído de Sariel.
— Nngh! — gemeu ela.
Não tinha doído fisicamente, mas sempre que ficava exposta a ele, o desconforto fazia parecer como se o seu estômago estivesse virando do avesso.
— A espada sagrada não é algo feito para ser empunhada por um humano. Antes que volte para o povo de Ente Isla, devemos tirar de você com nossas próprias mãos. Este é o consenso de todo o paraíso, sabe?
— Aaaaaahhh!
Uma explosão de luz particularmente forte quase fez com que Emi perdesse a consciência.
— Hmm. Não vai ceder então? Oh…?
Sariel parou com o ataque para pensar por um momento, então caminhou na direção da beirada do heliporto.
Ao olhar para baixo, a cerca de oitocentos pés de altura do chão, encontrou algo, o que o fez rir.
— Ora, ora! Vejam, aquele inseto rastejou até aqui.
A cabeça de Suzuno virou-se para cima. Emi também ergueu uma polegada ou duas.
— Ma… ou…
Chiho, ainda inconsciente, chamava o seu nome enquanto se debatia em seu sono.
— Não sei dizer como penetrou a minha barreira, mas nós precisamos lhe dar as boas-vindas inapropriadas. Não acha, Bell?
O corpo de Suzuno convulsionou ao ouvir o seu nome.
— Ele não tem nenhum dos seus capangas pútridos consigo. Até mesmo você pode derrotar o Rei Demônio com facilidade agora.
— …!
Ela mostrou um olhar inquieto para Emi, mas sua cabeça pendida e o cabelo esvoaçando ao seu redor fez com que fosse impossível ver sua expressão.
— Não há nada a temer. O prédio está coberto pelo brilho do meu luar. Não há nem um pouco daquela energia negativa nojenta para o Rei Demônio se aproveitar. Vá.
Mesmo enquanto o seu rosto permanecia pálido, Suzuno seguiu suas palavras, desmotivada, caminhando até a beira do telhado.
Como um membro da Igreja, não tinha como desafiar a ordem de um anjo, daquele que era alvo da adoração em sua terra. Tanto para o Conselho de Inquisidores quanto para o novo Júri de Reconciliação, Sariel era, inegavelmente, um objeto de veneração.
O peso da sua determinação gemia pesadamente em suas costas. A voz que a seguiu deixou tudo mais pesado.
— É… isso o que quer?
— …!
Suzuno ofegou enquanto continuava imóvel.
— Quer que a Heroína com a Espada Sagrada e o Rei Demônio encontrem o fim em um mundo diferente? Que Ente Isla seja igual ao que era antes de você ter vindo para cá? Que a paz reine como se nada tivesse acontecido? Isso funciona para você?
Foi o vento forte que fez com que suas pernas tremessem. Suzuno forçou-se a acreditar naquilo. Se não o fizesse, teria que admitir o contrário.
Teria que admitir que era uma agente do mal no fim, um dos muitos tentáculos que se contorciam na escuridão que espreitava no núcleo da Igreja.
— O que pode estar lhe incomodando? O que está fazendo é o correto. É justo. Eu, o líder simbólico do Júri de Reconciliação, posso garantir. Agora, vá. Uma palavra minha e ninguém na Igreja jamais colocará um dedo em você. Não tem nada a temer.
Sarial permanecia desafiadoramente atrás de Suzuno.
— Além disso, este era o plano desde o começo, não é? Só estamos um pouco atrasados, isso é tudo. Ente Isla irá gozar de uma era de paz. Livre da presença iminente do Rei Demônio. Onde o mito da Heroína com a espada sagrada deverá ser contado por gerações. Você e eu, Bell… Nós viemos para cá apenas arrumar as pontas soltas. Não há necessidade para que a audiência veja todo o furor e confusão por trás dos panos.
O seu tom era casual, como se estivessem discutindo aonde ir para almoçar.
É verdade. Sei que estou certa. Qual poderia ser o problema em derrotar o Rei Demônio? Não é como se Sariel estivesse aqui para matar Emília. Paz mundial e meus próprios objetivos… podemos conseguir ambos sem uma única perda.
— Suzuno…
A fortaleza de papel machê que Suzuno tentou construir em seu coração desmoronou instantaneamente ao som da voz dela.
— Chiho…
Chiho, amarrada e jogada ao lado, observava Suzuno com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Por… por quê…?
Suzuno não tinha forças para olhar. Os seus olhos desviaram-se para o céu noturno. O quimono esvoaçava freneticamente na ventania crescente. Ao erguer a mão direita, removeu o prendedor de cabelo em formato de cruz da cabeça.
O seu cabelo soltou-se como um par de asas negras ao vento, e o prendedor começou a brilhar.
— Luz… de Ferro.
Um martelo de guerra dourado foi materializado com a sua voz; o “Martelo da Justiça” que servia como símbolo mais notório da Foice da Morte durante inúmeras inquisições cruéis e impiedosas.
Com o martelo em mãos, Suzuno disparou na direção do chão como um cometa dourado.
— Por favor… me ajude… logo… — Gotas prateadas, que saíam dos seus olhos, voavam no céu noturno. — Não quero sacrificar mais ninguém!!
— Whooaaarrghh!!
O homem no local de pouso de Suzuno ficou surpreso ao notar a garota acima dele.
Mirando direto no homem que estava prestes a estacionar sua bicicleta, Suzuno moveu o martelo para baixo. A calçada se estilhaçou com um rugido, e o homem foi reduzido a pedaços… o que era para parecer no começo.
— Mas que droga! Essa foi quase! Mas que diabos! Quer que eu morra aqui?!
Sadao Maou caiu sentado a meras polegadas do martelo, queixando-se. Então:
— Ah. — Olhou para o objeto esmagado debaixo do martelo, esticado como se um rolo compressor tivesse passado por cima, e o seu rosto ficou rígido. — Du…
— Du?
— Duuuuuuuuullahaaaaaaaaannnnnnn!!!!
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