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O Começo Depois do Fim – Cap. 493 – Nós, os menores

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POV ARTHUR LEYWIN

 

Mil preocupações — algumas pequenas, outras tão grandes quanto o mar entre Dicathen e Alacrya — disputavam minha atenção enquanto Windsom ativava o artefato de teleporte. Não pude evitar questionar minha decisão de voltar à terra natal dos asuras. Será que deveria ter adiado ou planejado ficar mais tempo em Dicathen? O que era mais importante: a luta pelo poder que se desenrolava em Epheotus ou a crescente tensão que ameaçava explodir entre os povos da minha terra?

Fiz o que pude para garantir alguma estabilidade antes de partir, mas simplesmente não houve tempo suficiente para resolver todos os problemas potenciais, nem para visitar todas as pessoas que mereciam minha atenção. As consequências do ataque dos manifestantes aos refugiados alacryanos foram um caos para organizar. Lorde Silvershale quase fora morto por um dos seus próprios homens; os lordes anões clamavam por uma tomada hostil do projeto das Armaduras Quimera, alegando que o projeto havia sido baseado em recursos anões e concluído em terras anãs, o que tornava a ideia propriedade intelectual deles; toda Darv parecia prestes a entrar em mais um conflito civil.

Enquanto isso, eu nem sequer tive tempo de visitar os Glayders em Etistin ou Chul no Santuário. Só me restava esperar que o restante da cura tivesse sido bem-sucedida e que ele já estivesse acordado. Parte de mim esperava que ele me procurasse antes de partirmos de Dicathen novamente, mas eu sabia que não podia levá-lo comigo para Epheotus. Não havia como prever como Kezess ou Novis, o senhor do clã Avignis e da raça fênix, reagiriam.

Tive que manter o Gambito do Rei parcialmente ativado só para me impedir de desabar sob o peso de todos esses pensamentos conflitantes. Embora preferisse ativar a runa divina completamente, o que me daria a capacidade de compartimentalizar e desenvolver cada um desses pensamentos individualmente, não queria criar essa barreira entre mim e os outros. 

Windsom se afastou e fez um gesto para que eu atravessasse o portal que ele havia criado, um oval dourado que pairava sobre seu artefato. Encarei rapidamente os olhos de Ellie, Sylvie e minha mãe, avaliando se estavam prontas. Minha atenção também se voltou para dentro, para Regis, que aguardava ansiosamente para chegarmos ao nosso destino.

Com uma piscadela para minha irmã, que expressava uma leveza que não estava realmente sentindo, atravessei o portal.

O cheiro de terra e umidade se transformou em sal e maresia. O silêncio dos apartamentos nas profundezas do Instituto Earthborn foi substituído pelo som das ondas, o gritar das aves marinhas distantes e os gritos de crianças brincando. O sol de Epheotus aquecia minha pele, e uma brisa vinda da água a refrescava novamente.

Aparecemos em uma praça de arenito liso. Arcos ornamentados de jade davam acesso às ruas ao redor, que se estendiam entre construções exóticas que pareciam ter sido moldadas de coral, esculpidas em arenito ou até mesmo formadas de pura e reluzente pérola. Logo à minha frente, a praça se abria para uma praia de areia prateada, mas minha atenção foi atraída para além da praia. Cada camada da minha mente se focou na visão.

Sem perceber, dei um passo em direção à praia. Tudo mais desapareceu enquanto eu observava uma vasta extensão de água, que se estendia infinitamente à esquerda e à direita, e além do alcance da minha visão à frente. Já havia visto oceanos antes, mas…

A água azul e morna era interrompida por ondas rasas e consistentemente espaçadas, que se curvavam e se quebravam não com espuma branca, mas roxa. O éter preenchia o oceano e a atmosfera acima dele. Além do oceano, bem no horizonte, no limite da minha visão, o céu azul dava lugar a um céu roxo-escuro, como se eu estivesse olhando para o reino etéreo.

Eu achava que a fonte de éter em Chama Eterna havia sido impressionante, mas esse oceano era superado apenas pelo próprio reino etéreo em densidade. De repente, me virei para perguntar a Windsom sobre aquilo, mas ele já havia desaparecido sem dizer uma palavra.

Não muito longe na praia, um grupo de crianças leviatãs brincava sob o olhar atento de uma anciã. As crianças corriam umas atrás das outras pela areia prateada, e quem estava sendo perseguido tinha que transformar seu corpo antes de ser pego, cobrindo um membro com escamas aquáticas ou crescendo barbatanas, garras ou até uma cauda para evitar ser “pego”.

Um menino em particular, que parecia ter não mais que sete anos humanos, havia parado de correr e estava nos encarando com grandes olhos magenta. Ele tinha uma coloração azul-clara e tranças lisas de cabelo verde que desciam pelos ombros como algas marinhas, e uma de suas mãos estava coberta de escamas azuis com membranas e garras afiadas. Com a boca aberta, ele gritou:

— Olhem, são os menores!

— Não seja indelicado, pequeno. — A anciã o repreendeu pacientemente. — Este é Lorde Arthur do Clã Leywin.

As crianças imediatamente abandonaram o jogo e correram para nos cumprimentar. Regis se manifestou ao meu lado, mas, em vez de assustar as crianças, sua aparição apenas aumentou ainda mais o interesse delas.

— Eu nunca vi um menor antes! — disse animadamente uma menina pequena, com as cristas ao longo de suas têmporas tremulando e seu cabelo branco flutuando na brisa suave. — É verdade que alguns de vocês não conseguem usar mana?

O menino que havia gritado primeiro olhou para ela com uma expressão de decepção.

— Sério, Lorde Leywin é um arconte. Obviamente ele pode usar magia! — Ele mordeu o lábio e olhou para mim, notando pela primeira vez a ausência de uma assinatura de mana. Então ele se animou e apontou para Regis. — Quero dizer, basta olhar para sua besta guardiã!

— Isso não é uma besta guardiã — disse uma das outras crianças, cruzando os braços que ainda tinham barbatanas. — É uma invocação. Provavelmente.

— Ah, por favor, perdoe o comportamento deles, Lorde Leywin — disse a anciã, bagunçando carinhosamente o cabelo verde do menino. — Eles estão apenas curiosos e, na empolgação, esqueceram seus modos. Agora, crianças, vocês acham que o Clã Leywin está aqui para ficarem na praia sendo cutucados e examinados — ela gentilmente afastou a mão de uma menina que estava puxando o cabelo e as roupas da minha mãe enquanto a inspecionava — ou para visitar o Lorde Eccleiah?

— Nós sabemos o caminho! — anunciou o primeiro menino, estendendo a mão para pegar a minha. 

Um propósito coletivo passou pelo grupo de crianças, que imediatamente começaram a falar umas sobre as outras na tentativa de nos assegurar que seriam os melhores guias, enquanto afirmavam que os outros nos perderiam ou nos afogariam. Antes que a situação se transformasse em algo mais sério do que alguns empurrões infantis, nossos dedos foram agarrados por pequenas mãos azuis, verdes, rosas e peroladas, e fomos puxados ao longo da praia.

Varandas, caminhos, passarelas e arcos se abriam para a praia a partir da cidade, e, à medida que avançávamos, víamos cada vez mais leviatãs. Eles vestiam roupas leves e fluídas de cores vibrantes, e a maioria tinha pele semelhante à das crianças, embora em uma variedade maior de tons. Muitos não tinham cabelo algum, mas aqueles que tinham exibiam cortes de cabelo estranhos em uma variedade de cores inumanas, flutuando como grama marinha ou presos em cachos apertados, como musgo.

À nossa esquerda, no oceano, um par de leviatãs transformados seguia nosso progresso. Seus longos corpos se elevavam sobre as ondas do oceano, apenas para desaparecer nelas novamente, revelando vislumbres de escamas brilhantes de safira e turquesa. Eles eram longos, finos e brilhantes, com cristas e barbatanas descendo por suas espinhas e laterais.

Embora não fosse maior ou mais impressionante que as outras casas ao longo da praia, era de alguma forma óbvio quando chegamos à residência de Veruhn. Paredes peroladas curvavam-se para cima, interrompidas por janelas redondas e abertas. Telhas verde-escuras, como escamas, cobriam o telhado e formavam beirais sobre as janelas e varandas. Todo tipo de planta colorida crescia ao redor da casa, balançando suavemente com a brisa do mar.

Nosso grupo de escolta parou enquanto nos aproximávamos do alpendre de frente para a praia, e Zelyna saiu de trás de uma parede de arenito coberta de hera. Seus braços estavam cruzados sobre o peito, e ela vestia couro escuro em vez das roupas leves e coloridas preferidas pelos outros leviatãs que vimos. Seus olhos azul-tempestade estavam intensos enquanto nos observava, mas eu não conseguia ler sua expressão.

— Bem-vindos à Ecclesia — disse ela, com uma saudação que estava longe de ser calorosa. — Lorde Eccleiah tem aguardado sua chegada e os convida para entrar em sua casa. — Ela gesticulou em direção a um alpendre aberto, que levava a uma entrada em arco, sem porta, nem mesmo uma cortina, como era comum nas casas da cidade de Chama Eterna.

— Obrigada por nos guiar — disse Ellie, acenando para as crianças.

Elas acenaram de volta felizes, e logo explodiram em um grito de alegria quando Regis repentinamente se envolveu em chamas ametistas e soltou um uivo exagerado. Minha mãe soltou uma leve e inocente risada quando as crianças saíram correndo, perseguidas por seus próprios gritos de excitação. Senti uma pontada agridoce, imaginando quando foi a última vez que ouvi minha mãe parecer tão despreocupada.

Ellie me olhou e me deu um sorriso cúmplice, claramente pensando a mesma coisa.

Sorrindo de volta, segui na direção do gesto de Zelyna, cruzando um alpendre coberto feito de tijolos de arenito esculpido, tingidos com uma leve coloração vermelha. Por dentro, o domicílio era iluminado, arejado e tinha um aroma doce. Azulejos coloridos formavam padrões ondulantes no chão e nas paredes, que também eram cobertas, em alguns lugares, por corais vivos. A luz emanava de artefatos luminosos efervescentes e de chamas prateadas que pairavam sobre velas coloridas.

A sala estava disposta como um salão, cheia de móveis de madeira flutuante, com portas levando a outros cômodos. Eu mal tinha cruzado a soleira quando ouvimos passos apressados, como pés batendo rapidamente no chão de azulejo. Uma criatura apareceu de repente, fazendo uma curva e deslizando até parar. Eu olhei boquiaberto para ela.

Seu corpo era longo e largo, sua cabeça achatada, triangular, e aberta em um sorriso cheio de dentes. Parecia um pouco com um jacaré da Terra, exceto que, em vez de uma pele de couro, parecia coberta de pequenas pedras preciosas. Suas pernas ainda eram reptilianas, mas mais longas, e asas brilhantes estavam dobradas em suas costas. Suas mandíbulas se fecharam rapidamente, emitindo um som estalado, como um aviso ou saudação.

— Oh, mas é tão bonita — disse Sylvie, aproximando-se cautelosamente e estendendo a mão para que a criatura cheirasse, ignorando os muitos dentes largos.

— Ah, vejo que já conheceu a Passo de Pluma. — A voz familiar de Veruhn entrou na sala antes que ele próprio aparecesse. Seus olhos leitosos se enrugaram nas bordas enquanto olhava para a criatura. Ela girou em um círculo, perseguindo sua própria cauda longa, e depois saiu rapidamente do salão. — Windsom não veio com vocês? — Ele perguntou, voltando sua atenção para mim. — Uma pena. Eu gosto tanto da companhia dele.

Embora as palavras fossem ditas de maneira simples, sem sarcasmo, não pude deixar de suspeitar que ele as tinha dito com essa intenção, de qualquer forma.

— Está sendo rude, pai — disse Zelyna friamente, enquanto se movia ao redor da minha família e entrava na casa. — Esta é a primeira visita real de Lorde Leywin à Ecclesia.

Veruhn acenou, afastando as palavras dela.

— Arthur e eu já somos velhos amigos. Não há necessidade de títulos pomposos ou cerimônia entre nós, tenho certeza. Por favor, entrem. Puxem uma cadeira, como acredito que a expressão humana diz.

Uma mulher leviatã entrou no salão atrás dele, vinda de uma sala de jantar aconchegante, com várias bandejas flutuando ao redor dela em pequenas nuvens brancas.

— Ah, obrigado, Cora — disse Veruhn rapidamente, saindo do caminho dela enquanto ela dispunha as bandejas nas pequenas mesas pela sala.

— Eu não tinha certeza do que os meno… ah, quero dizer, o Clã Leywin gostaria — disse Cora. A reverência profunda que ela fez não conseguiu esconder o rubor púrpura de suas cristas verde-azuladas.

— Tenho certeza de que o que quer que tenha preparado será excelente — disse minha mãe rapidamente, acomodando-se um tanto desconfortável em um sofá emoldurado com madeira flutuante e coberto com almofadas tecidas que pareciam grama marinha.

A mulher leviatã fez uma nova reverência e saiu da sala de costas. Zelyna observou-a partir com uma sobrancelha levemente arqueada, um sorriso divertido erguendo um canto de sua boca.

— Vocês deixam as pessoas nervosas — disse ela, e eu não tinha certeza se ela estava falando comigo, com minha família ou com Sylvie.

Regis pegou o que parecia ser patas de caranguejo de uma bandeja antes de ir em direção à porta por onde a criatura, Passo de Pluma, tinha desaparecido mais cedo. Ele parou como se tivesse congelado, mastigou lentamente e então voltou em direção à comida.

— Ah, cara. Isso é tipo, a melhor coisa que já comi. — Seus olhos brilhantes saltaram para minha mãe. — Ah, sem ofensa, Alice.

Minha mãe tinha pegado um pastel com um toque esverdeado de outra bandeja e estava cheirando-o com desconfiança.

— Ah, não se preocupe, Regis. Eu sei no que sou boa, e cozinhar certamente nunca foi uma dessas coisas.

— Bem, Cora é a melhor cozinheira de Ecclesia, talvez de toda Epheotus — disse Veruhn, rindo. — Ela também é uma caçadora habilidosa; o caranguejo de dez mil patas não é um adversário fácil.

— Ora, imagina — disse Cora da outra sala, claramente constrangida, com suas palavras quase escorrendo de vergonha.

— Você tem uma cozinheira? —  Ellie perguntou enquanto pegava uma pilha de finas bolachas verdes. E mais baixinho para minha mãe, acrescentou: — Isso é tão estranho.

— E por que não deveríamos ter uma cozinheira? — perguntou Zelyna, com um tom ríspido.

Ellie congelou com uma bolacha de algas marinhas a meio caminho da boca.

— Ah, eu só… hum…

Zelyna torceu o nariz.

— Você pensou, talvez, que simplesmente conjurássemos nossa comida do ar?

Houve um momento de tensão. Ellie olhou para mim em busca de ajuda, mas eu estava observando Veruhn. Se houvesse algo a temer na atitude de Zelyna, eu tinha certeza de que a expressão de Veruhn me diria, mas ele estava brincando de tio velhinho de novo, enfeitiçado pelas chamas cintilantes da juba de Regis.

— Bem, quero dizer, talvez? — Ellie disse após uma longa pausa.

Zelyna bufou e sentou-se em uma cadeira vazia perto de Ellie.

— Você tem muito a aprender sobre os modos dos asura, garota.

Veruhn deu uma tosse muito leve, mas nada sutil.

— Eleanor, quero dizer. — Zelyna rapidamente se corrigiu, sem olhar para o pai. Quando continuou, seu tom era didático, mas não insultante. — Por exemplo, os alimentos que comemos são ricos em mana, e uma cozinheira asura habilidosa é hábil não apenas em preparar uma culinária palatável, mas também em manter ou até mesmo melhorar o equilíbrio natural de mana dentro dela.

A conversa mudou de rumo, e Sylvie e eu passamos algum tempo conversando com Veruhn enquanto Zelyna começava a instruir minha mãe e Ellie sobre a cultura e etiqueta asura. 

Eu me senti surpreso com o quanto aquilo tudo parecia acolhedor; estava preocupado em trazer minha mãe e Ellie para o meio dessa política, mas também sabia que não poderia fazer o que precisava ser feito sem elas. Os Leywin precisavam ser um clã, não apenas eu. Eles precisavam disso. Eu precisava disso.

Uma hora ou mais se passou enquanto todos ficávamos mais confortáveis e à vontade. Eu estava em pé, diante da porta aberta que dava para a praia, ouvindo Sylvie explicar a diferença entre clã, raça e família para minha mãe, quando percebi que Veruhn estava ao meu lado, tão próximo que nossos ombros quase se tocavam.

— Eu estava esperando que pudéssemos ter uma conversa em particular — disse ele, sua voz baixa, ausente de sua usual jovialidade.

— Tão cedo? — perguntei, olhando primeiro para minha família e depois para ele. — Eu imaginei que teríamos mais tempo para nos acomodar, tratar das formalidades, antes de chegarmos aos negócios.

O velho leviatã emitiu um som entre uma risada e um resmungo.

— Quando você ocupa um assento nos Oito Grandes…

— Nove Formidáveis. — Regis interrompeu de perto, onde ele e Passo de Pluma estavam tendo uma competição de olhares.

— Poucas coisas ou palavras não estão relacionadas a “negócios”, como você disse — continuou Veruhn. — Venha.

Ele passou por mim, guiando-me para fora da varanda. Em vez de me levar à praia, demos a volta na casa, passamos por um tipo de jardim de piscinas naturais e sob um arco de jade esculpido na forma de um leviatã transformado. A praia além dele estava silenciosa e vazia. Um caminho de pedras turquesa cortava a areia até um…

Precisei olhar duas vezes. Era como um cais, mas feito na forma, ou talvez até feito de ossos. Não apenas ossos, mas o esqueleto quase completo de uma criatura marinha gigante. Não era reto, mas serpenteava em direção ao oceano como uma cobra. Tinha pelo menos trinta metros de comprimento, talvez mais.

Apesar de seus olhos leitosos, Veruhn não hesitou em pisar nas costelas do esqueleto. Ele andou levemente de uma para outra, avançando cerca de três metros antes de se virar e ver que eu estava parado na margem.

— Ah. Não se preocupe. Sem parentesco. Você não vai ofender ao pisar sobre os mortos.

— Esse não é o esqueleto de um dos seus? — perguntei, cauteloso, enquanto começava a segui-lo.

Ele soltou uma gargalhada.

— Não, embora eu suponha que entenda sua confusão. Você, claro, já ouviu falar da Montanha Caminhante, Geolus? — Ele esperou que eu confirmasse antes de continuar. — Isto era algo parecido: uma força da natureza, um ato vivo de criação. Aquinas, a Serpente do Mundo.

— Parece um pouco pequena em comparação com a montanha de Kezess — comentei.

Veruhn ficou em silêncio até chegarmos ao fim, os ossos ficando menores até o cais se estreitar e terminar. Ele então se virou e fez um gesto em direção à praia prateada. Franzindo a testa, segui o olhar dele, sem ver nada. Por algum truque do design ou magia dos leviatãs, a vila não era visível. Só se via a praia, estendendo-se em ambas as direções até onde a vista alcançava, ondulando suavemente de um lado para o outro, com elevações ocasionais na areia prateada.

— Entendi — falei, percebendo a verdade: o cais era feito apenas da ponta da cauda do esqueleto. — Esse monstro… Aquinas? …tem algo a ver com o motivo pelo qual seu oceano é tão rico em éter?

Veruhn entrelaçou as mãos atrás das costas e olhou em direção ao horizonte distante, onde o céu se tornava negro e roxo.

— Não, apenas os pensamentos errantes de um homem velho. O oceano é a fronteira, Arthur. O lugar onde nosso mundo termina e aquele que está além começa. O éter e a mana vêm e vão com as marés. Sempre pensei nisso como a respiração de Epheotus.

— Eu pensava que Epheotus era contido dentro de uma… bem, como uma bolha — concluí, sem saber como descrever de outra forma.

— Ah, mas é. De certa forma. — Ele ficou em silêncio por um momento. O vento aumentou, soprando mais forte, e ele fechou os olhos e sorriu enquanto se virava na direção dele. — No mínimo, é uma metáfora conveniente. A verdade é mais complexa.

Enquanto tentava entender, meus pensamentos se voltaram para o Destino. No negro-roxo do horizonte, vi a pressão crescente do reino etéreo. Todo aquele éter, liberado ao longo de milênios à medida que as pessoas viviam e morriam, contido e comprimido em uma cisto antinatural em vez de ser usado e espalhado pelo mundo, pelo universo. Um cisto que eventualmente explodiria, rasgando o mundo como uma bomba e exterminando toda a vida até onde a visão do Destino me permitira enxergar. 

Eu havia mostrado ao Destino uma alternativa, mas mesmo dentro da pedra-chave, explorando os infinitos fios possíveis de potencial para ver como ação e reação se desdobrariam no futuro… eu não tinha conseguido ver cada ondulação no espaço e no tempo que minhas ações causariam.

— Eu preciso esvaziar o reino etéreo — falei. Dizer isso em voz alta foi como liberar uma pressão que estava se acumulando dentro de mim, exatamente como o éter. — A força que passei a entender como Destino, uma espécie de… manifestação consciente da vontade etérea, eu acho, enxerga o vazio etéreo como uma restrição. Como… água em um odre. Sem problemas sob uma quantidade normal de pressão, mas se você continuar empurrando água para dentro dele…

— Eventualmente, irá explodir. — Veruhn abriu os olhos e virou as costas para o horizonte. — Eu vi isso. Nas ondas…

Eu me abaixei e coloquei a mão entre duas costelas enormes, deixando a água fresca passar pelos meus dedos.

— Suspeitei de algo assim. Você tem o dom da previsão?

— Não exatamente — disse Veruhn, esfregando o queixo em reflexão. — Nós vemos… sentimos… ecos, trazidos de volta até nós pelas ondas do oceano. Acredito que você poderia chamar isso de uma arte spatium, mas não influenciamos o éter da mesma forma que os dragões. Ainda assim, isso fala a alguns de nós. Aqueles que aprendem a ouvir. Mas isso não vem ao caso. Eu o interrompi. Por favor, continue.

— O éter precisa ter permissão para se expandir, para se estabelecer. Para… preencher as rachaduras e fendas, como sedimento no fundo do oceano. Caso contrário, ele explodirá. O Destino tem me manipulado desde o começo, até mesmo ao me trazer a este mundo. Ele estava determinado a me manter na última das pedras-chave djinn até que pudesse me fazer ver as coisas à sua maneira.

Veruhn passou a mão pensativamente pela crista em sua têmpora.

— Exceto que… você foi quem convenceu esse Destino do caminho correto? — Embora tenha sido dito como uma pergunta, havia uma confiança em suas palavras que me surpreendeu.

— Sim.

— Como, então, você fará isso, Arthur Leywin?

Levantando-me novamente, olhei para a água do oceano rica em éter pingando dos meus dedos.

— Da única maneira que posso. Veruhn, tenho que ensinar aos outros o que aprendi. Ao extrair éter do vazio, usando-o em uma escala ainda maior do que a dos djinn, posso perfurar o cisto que é o reino etéreo. Foi isso que prometi ao Destino. É a única maneira de salvar meu mundo. Talvez muitos mundos.

Uma expressão de profunda tristeza tomou conta de Veruhn, mas ele não falou imediatamente. Eu lhe dei tempo; afinal, já sabia o que ele estava começando a compreender.

Após um minuto inteiro de silêncio, cercados pelas ondas que lentamente se aproximavam, ele disse:

— Ao salvar seu mundo, Arthur, você destruirá o meu.

— Eu sei.

Minhas memórias daqueles últimos momentos na pedra-chave estavam turvas pela natureza da experiência. Eu tinha visto o futuro do qual falava, onde ensinava outras pessoas a utilizar o éter como eu, e a pressão era lentamente liberada à medida que mais e mais éter era atraído de volta para nossa dimensão, se espalhando primeiro pelo mundo e depois para além dele, irradiando-se no tempo e no espaço.

Eu havia visto isso e muitos, muitos outros futuros potenciais. Epheotus foi destruído em todos eles.

— Se eu não fizer nada, a pressão crescente inevitavelmente explodirá e Epheotus será destruído — falei. — Não pode ser salvo, Veruhn.

Veruhn assentiu, sua expressão distante. Quando falou, soou como se estivesse conversando consigo mesmo.

— Epheotus não está dentro desse “reino etéreo”, como você o chamou, mas ele empodera nosso mundo, permitindo que as amarras se mantenham no lugar. Voltando à metáfora da bolha, é uma fina camada desse lugar que funciona para separar Epheotus em si da dimensão além. Talvez se alguém… não. Isso não seria suficiente. Ainda assim, essa “inevitabilidade” poderia ser de eras, certo? Se nós, ao invés disso… ah, mas não, é claro que não. Hm. Preciso considerar essa informação, Arthur.

Ele encontrou meus olhos.

— Você não deve falar sobre isso com mais ninguém. Quaisquer planos que Kezess tenha para você, ele não permitirá que você viva se entender o que você pretende, independentemente da eventual inevitabilidade. O Destino em si, pelo sol e pelo mar. — Ele soltou um suspiro trêmulo. — Kezess é mais perigoso quando está assustado, e esta é uma ideia que o aterrorizaria.

— Sim, eu meio que já imaginava isso. — Andei ao longo das costelas por alguns metros, então voltei em direção a Veruhn. — É por isso que estou te contando. Eu vi o que pude antes por causa do Destino e da pedra-chave trabalhando com minhas próprias habilidades. Você, porém, com seu senso de previsão…

Veruhn me lançou um olhar penetrante.

— Antes de responder, Arthur, diga-me: qual é seu propósito aqui, em Epheotus? Em Ecclesia?

— Você me convidou para cá — respondi cuidadosamente. 

— Então você veio apenas porque os outros senhores e eu pedimos? — Veruhn perguntou de forma incisiva.

— Não — admiti. — É essencial que eu me familiarize com os outros clãs asura, você certamente pode ver isso. — Deixei que uma carranca acentuasse minhas feições e franzisse a testa. — Nós dois sabemos o que busco, mas o caminho até lá ainda precisa ser decidido. Minha esperança é encontrar mais do que uma terra de divindades distantes e amargas se deliciando com suas patas de caranguejo e olhando para baixo se entretendo com o trágico destino de nós, os menores.

— Nós, os menores? — Veruhn ponderou, seu foco voltando-se para dentro. Antes que eu pudesse responder, ele acenou com a mão, silenciando-me.

Enquanto o silêncio se estendia, no entanto, eu falei novamente.

— Preciso saber se você está comigo, Veruhn. Acredito que Kezess está no centro de tudo. Seja o que for que ele esteja fazendo em meu mundo, independente da razão que ele tenha para destruir civilizações após civilizações, está ligado à pressão crescente.

Veruhn não deu nenhuma indicação de surpresa com minhas palavras.

— O que vejo é turvo. Desde que você chegou, raramente consigo entender os ecos que as ondas trazem para mim.

— Então por que você me deu as pérolas de luto? — perguntei.

Seus olhos se fecharam novamente, e ele falou como se recitasse uma escritura, energia fervendo dentro de cada sílaba.

— Três partes do seu ser. Três limites para sua transcendência. Três vidas ligadas a você em obrigação. — Seus olhos se abriram e se encheram de uma cor perolada. — Você é o coração do redemoinho. Ao seu redor, o caos. Em seu rastro, destruição.

Franzi profundamente a testa, buscando seu rosto em busca de compreensão.

— Se você acredita nisso, por que me ajudar?

A energia dissipou-se tão rapidamente quanto havia aparecido. Ele piscou, e seus olhos estavam novamente brancos e leitosos.

— Porque, após a tempestade, há reconstrução. Estou com você, Arthur, seja o que for… — Ele limpou a garganta e se endireitou. — Olá, Lorde Indrath.

Girei sobre meus calcanhares, tomando cuidado para não escorregar das costelas e cair na água. Kezess estava de pé perto do meio do píer. O sol brilhava em seu cabelo loiro, e o vento marinho fazia seu manto branco balançar, fazendo os bordados dourados piscassem ludicamente. Seus olhos de ametista brilhavam com luz interna.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: Crytteck

 

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