Outro mês passou. Ainda estava frio, mas a neve estava começando a derreter e dava para ver trechos do solo aqui e ali.
Certa manhã, levantei da cama o mais silenciosamente possível, tentando não acordar Sylphie. Ela gostava de usar meu braço como travesseiro, por isso sempre exigia um pouco de delicadeza para eu me soltar. Indo para outro cômodo, coloquei minha roupa de treino, uma roupa forrada que parecia um pouco com um moletom. Foi Sylphie quem escolheu para mim. Era um pouco leve para o inverno, mas quando estivesse se exercitando, cairia quase bem.
Depois de me vestir, peguei uma espada de pedra que deixei em um canto do cômodo.
Era uma coisa grossa e de aparência tosca. Eu mesmo a fiz com minha magia de terra. A lâmina não tinha fio, mas era excepcionalmente pesada. Essa era uma boa forma de praticar com a força da minha nova mão esquerda artificial.
Na verdade, eu estava começando a me apegar um pouco à coisa. Talvez algum dia desses lhe desse um nome. Algo tipo “Atum” ou “Peixe-Espada”.
Pensando bem, eu não comi nada parecido com sashimi desde que cheguei a este mundo. Ninguém comia peixe cru ou o quê?
— …
Quando fiquei pronto, suavemente afaguei a cabeça de minha esposa adormecida, murmurando as palavras:
— Te vejo mais tarde.
— Hee hee…
Com os olhos ainda fechados, Sylphie sorriu e esfregou a cabeça em minha mão. Acho que ela estava meio acordada. Era tão adorável, preciso nem dizer.
Olhando para baixo, percebi que as cobertas estavam um pouco emaranhadas, deixando sua parte de baixo com a calcinha exposta. Também a acariciei gentilmente. Ninguém pensaria que essa garota já era mãe. Mas, bem, Elinalise também continuava tendo um bom corpo. Isso podia ser genético.
Após um momento de hesitação, puxei os lençóis de volta sobre o corpo de Sylphie.
Estávamos aos poucos retomando nossas atividades noturnas normais, mas parecia um pouco cedo para tentar um segundo filho, então eu estava tentando ser um pouco mais contido. Ainda que não houvesse garantia de que isso não fosse acontecer.
Assim que eu estava saindo do quarto, Sylphie me chamou, ainda sonolenta.
— Nn… Até depois…
Volte logo.
Em seguida, fui para o quarto de Norn.
Atualmente, ela se juntava a mim em meu treino matinal. Quando ela estava em casa, fazíamos isso no quintal; quando estava no dormitório, nos encontrávamos no pátio. Este era um de seus dias em casa.
— Está pronta, Norn?
Bati na porta e comecei a abri-la.
— Gah! Rud…
— Opa. Lamento.
Ela ainda estava se vestindo, então fechei de novo na mesma hora.
O corpo de Norn ainda não tinha se desenvolvido muito. Eu gostava de garotas magras e pequenas, é claro, mas minhas irmãzinhas simplesmente não tinham apelo sobre mim. Eu às vezes achava isso meio lamentável, mas assim era melhor. Era bom poder ser carinhoso com elas sem me sentir sujo por isso.
Ainda assim, o pensamento de que Norn algum dia se casaria inspirava uma sensação desconfortável na boca do meu estômago. Será que era isso que um pai sentia ao ver sua filha crescer?
Não era tão ruim. Eu teria que tomar o lugar de Paul e repreender o primeiro namorado dela. Não vou entregar a Norn para um vadio feito você! Suma!
— Sinceramente. De que adianta bater se você não espera por uma resposta?
Enquanto eu pensava nessas coisas, Norn saiu de seu quarto com suas roupas de exercícios, carregando uma espada de madeira em uma das mãos. Sua roupa era simples e funcional, com mangas compridas e longa. Era o equipamento de exercícios padrão da Universidade; comprei alguns pares para ela na loja da escola.
Olhando rapidamente para além de Norn, para seu quarto, vi a espada de Paul colocada no alto da parede. No meu velho mundo, ela provavelmente teria montado um altar com uma foto do rosto dele, mas não existiam câmeras neste. Era possível que alguém tivesse criado uma ferramenta mágica capaz de capturar uma imagem, mas, se fosse assim, não tinha uso facilitado. Sem fotos, as pessoas tendem a usar lembranças para recordar do que perderam.
— Norn, se importaria se eu entrasse em seu quarto por um segundo?
— Hã? Uh, acho que tudo bem…
Eu entrei. O quarto tinha o cheiro de sua ocupante, do jeito que as coisas ficam pela manhã. Se eu tivesse pulado na cama e pressionado meu rosto contra seus lençóis amassados, poderia ter preenchido meus pulmões com o cheiro de Norn. Não que eu fosse fazer isso.
Parando bem diante da espada de Paul, juntei as mãos.
— Pai, Norn e eu vamos treinar novamente nesta manhã. Pode ficar de olho em nós para que não nos machuquemos muito?
Assim que terminei minha breve prece, inclinei ligeiramente a cabeça para o lado.
De qualquer forma, como Paul responderia a isso? Poderia ser algo como “Você nunca vai melhorar sem se machucar um pouco, sabe.” Ou apenas “Caramba, é melhor não deixar Norn se machucar.”
De relance, vi Norn ajoelhada ao meu lado com as mãos juntas, ao estilo Millis.
Tive uma boa visão de seu belo coque de cabelo em sua cabeça.
— …
Sério, não importava o que Paul teria dito. Ele não estava mais presente. Agora eu tinha que desempenhar seu papel. Eu tinha a responsabilidade de cuidar da Norn com o melhor de minhas habilidades. Afinal, ela não tinha mais ninguém a quem recorrer.
— Então tá bom. Quer ir?
— Sim. Estou pronta, Rudeus.
Nós dois saímos para iniciar outra sessão.
O regime era bem simples: alongamento, corrida e prática de balanços.
Eu chamava isso de “treinamento de espada”, mas, no momento, estávamos trabalhando apenas nos fundamentos. Nos últimos meses, eu estava guiando Norn rigidamente para moldar sua resistência básica.
Quando digo rigidamente, não quero dizer que ela seguia a mesma rotina que eu. Isso seria demais para lidar. Comecei com um quinto do meu regime de treinamento. Norn tinha apenas onze anos e nunca foi muito fisicamente ativa, então não havia muito que eu pudesse esperar que ela suportasse.
Enquanto ela praticava balanços no quintal, eu terminava meus próprios exercícios para a parte superior do corpo.
— Vinte e cinco… vinte e seis…!
Balançar a espada contra nada é um exercício bem simples, mas é parte da razão pela qual é necessária alguma força de vontade verdadeira para continuar treinando. Mas Norn nunca deixou isso pela metade.
Eu estava orgulhoso dela por isso. A garota era mais forte do que parecia.
— Cinquenta…!
— Certo, está bom. Bom trabalho.
— Haa… haa… Obrigada, Rudeus!
— Então vamos nos lavar e voltar.
Após o treinamento, nós dois íamos juntos para o banho.
Norn tinha a infeliz tendência de tropeçar e cair durante nossas sessões de corrida, o que às vezes a enchia de arranhões ou hematomas nos joelhos. Criei o hábito de examiná-la e depois usar magia de cura nela. Meio parecido com beijar para melhorar, só que funcionando de verdade.
A propósito, Norn se opôs muito a me deixar vê-la nua, então tomava esses banhos usando calcinha e uma camisa fina. Acho que ela estava chegando a uma idade sensível. Era uma pena que não dividisse essa modéstia com Aisha. Claro, eu também sempre usava roupas íntimas, tudo para deixar Norn um pouco mais confortável.
Ainda assim… às vezes me pergunto como ela reagiria se eu contasse que alguns caras por aí ficam mais excitados ao ver uma mulher com uma camiseta molhada. Podia ser divertido de se ver, mas resolvi manter isso só para mim. Eu não queria que ela me banisse de nossos banhos conjuntos.
Um irmão mais velho também precisa manter sua dignidade.
Enquanto eu refletia sobre isso, Norn me lançou um olhar e fez beicinho.
— Hoje só corri e pratiquei balanços de novo. Quando você vai me ensinar a usar a espada?
— Já estou.
— Não estou falando de só balançar. Quero dizer, sabe… as posturas, as técnicas.
Até o momento, eu estava instruindo Norn a respeito de como correr e brandir sua espada. Correr aumentaria sua resistência, e a prática de balanços aumentaria sua força. Até que ela tivesse trabalhando em ambos os aspectos por um tempo, não faria sentido aprender “técnicas”. Ao menos era assim que eu imaginava.
— Hmm, vejamos…
Mas a garota já estava nisso há meses. Ela provavelmente tinha feito algum progresso.
Dei uma olhada em Norn. Ela tinha o corpo esguio de uma criança em crescimento, mas em comparação com quando estávamos no começo, os músculos de seus braços e pernas estavam um pouco mais definidos. Era difícil dizer que ela estava “em forma” neste momento, mas um pouco de esforço provavelmente não acabaria lhe machucando. Talvez fosse hora de começar a ensinar as posturas mais básicas.
— Acho que você está certa. Vamos começar a coisa de verdade depois das aulas de hoje, pode ser?
— S-Sério? Certo!
Depois de lavar nosso suor, nós dois saímos do banheiro juntos.
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Naquela noite, encontrei Norn no terceiro campo de treinamento externo da Universidade de Magia – um campo de exercícios localizado perto dos limites do campus. Já tinha trocado minha roupa para a de treino.
Minha irmã também estava com seu equipamento de exercícios e já estava com sua espada de madeira em mãos. Seu rosto estava mortalmente sério.
Não tínhamos a área só para nós. Alguns alunos com robes estavam treinando nas proximidades e outros pareciam ter saído para caminhar um pouco. Também atraímos alguns espectadores, que estavam obviamente curiosos para saber o porquê de estarmos usando nossas roupas de treinamento naquele horário.
Mas não importa se tivéssemos reunido uma multidão.
— Norn, hoje vamos começar seu verdadeiro treinamento como espadachim.
— Sim senhor!
O rosto da garota brilhava de energia e entusiasmo. Era óbvio o quanto estava ansiosa para aprender “técnicas” reais. Fazia apenas alguns meses desde que começamos, mas acho que a natureza repetitiva de nosso treinamento básico a estava desgastando um pouco.
Ainda assim, brandir uma espada em uma batalha não era um jogo. Primeiro era necessário aprender os fundamentos.
— Só para você saber, estou planejando ser bem rigoroso com você.
— Tudo bem — disse Norn, balançando a cabeça seriamente.
— Se continuarmos assim, você pode acabar ficando chateada comigo. Você pode até começar a pensar que te odeio. É a esse ponto que vou ser rigoroso com você.
— Certo.
— Para ser sincero, não quero fazer você me odiar. Mas um instrutor indiferente acaba machucando seus alunos. Se eu pegasse leve com você no treinamento e você acabasse morrendo em sua primeira luta real, eu jamais seria capaz de encarar nosso pai no céu.
Norn não tinha nenhum talento com a espada. Ao menos não quando comparada a Eris na mesma idade. Eu não diria que ela era pior do que a média de onze anos de idade, mas a “força” só pode ser medida por termos relativos.
Quando se está lutando contra alguém, o combatente mais forte vence e o mais fraco morre. Perder não é uma opção válida.
Para que Norn seja capaz de superar qualquer ameaça, precisaria se esforçar muito. Eu precisava treiná-la duro. E ela também precisava aprender alguns truques.
— Em algum ponto, isso pode começar a deixá-la infeliz. Você pode ficar frustrada com a falta de progresso. Pode ver alguém com mais talento te superando rapidamente. Chegará o dia em que sentirá vontade de desistir.
— …
— Só para você saber, eu sei como é isso. E não poderia te culpar, ou qualquer outra pessoa, por desistir diante das adversidades.
— …
Norn fez uma carranca após dizer isso.
Nada surpreendente, sério. Do ponto de vista dela, provavelmente parecia que eu era bem talentoso em qualquer coisa que tentasse fazer. E neste corpo, eu realmente era muito capaz em todos os tipos de coisas. Mesmo assim, perdi muitas batalhas. Mais de uma vez, quase morri. Paul, de certa forma, morreu porque eu não era forte o suficiente.
Mais do que qualquer coisa, eu queria manter Norn a salvo de qualquer perigo.
— Dito isso, não quero que você desista da espada, não importa o que aconteça. Se fizer isso, nunca mais vou te ensinar, e jamais deixarei você usar a espada do Papai.
— …
— Mas, contanto que você continue assim, também não vou desistir de você.
Um discurso meio cafona, eu sei. Pensando bem, eu estava mesmo demonstrando alguma determinação?
Bem… desisti de melhorar com a espada, mas continuei com meu treinamento diário. Queria acreditar que não era um completo hipócrita.
— Norn, você entende?
— Sim senhor! Entendo perfeitamente!
A resposta de Norn foi rápida e enérgica. Ela estava olhando para mim com as bochechas coradas e determinação no olhar. Me vi imaginando se, quando pequeno, também parecia algo assim para Paul.
Norn talvez acabasse seguindo um caminho parecido… me deixando para trás e encontrando outro mestre para treiná-la. Depois de colocá-la no nível Iniciante, eu poderia muito bem chamar Ghislaine ou algo assim. Supondo que descobrisse onde a mulher estava.
Havia também aquele Santuário da Espada ao oeste. Se eu pagasse o suficiente, talvez pudesse atrair um Santo da Espada para ensiná-la por um tempo.
— Fico feliz em ouvir isso. Então vamos começar correndo.
— Hã?! Esta noite não vamos treinar com a espada?
— Sim, é claro. Desta vez você correrá com a espada em mãos. Afinal, terá que carregá-la por toda parte no campo de batalha.
— …
— Estou esperando uma resposta!
— Senhor! Sim, senhor!
Desta vez, nosso regime consistiria em corrida, uma revisão das três formas básicas e uma breve sessão de treino. Minha intenção era dificultar bastante a vida dela. Ela precisava entender que isso poderia ser doloroso e assustador. Não acho que a dor seja uma parte essencial do processo de aprendizagem nem qualquer bobeira dessas, mas achei que seria melhor que ela percebesse logo de cara o quanto isso poderia ser difícil.
Existia a chance de eu acabar a fazendo chorar. Havia uma chance de ela começar a me odiar após esta noite.
Mas, ainda assim, eu precisava transformar meu coração em pedra. Esgrima não era o tipo de coisa que se fazia por ser divertido. Essa era uma forma infalível de acabar morto diante da primeira ameaça real.
— Certo, Norn! Siga-me!
— Sim senhor!
Ainda me sentindo um pouco ansioso, apesar de tudo, comecei a correr.
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— Certo! Isso está bom para hoje!
— O-Obrigada, senhor…
Enquanto o sol poente brilhava sobre nós, Norn desabou no chão, sentindo falta de ar.
— Quero que você pratique as três formas básicas que te ensinei assim que tiver tempo! De manhã, na hora do almoço, a qualquer hora! Mesmo quando não estou por perto!
— S-Sim senhor!
Para nossa primeira sessão de treinamento real, foi bem decente.
Depois que terminamos de correr, comecei a revisar as “formas” ou movimentos básicos. Depois disso, a joguei direto em uma luta contra mim, usando espadas de madeira. À medida que avançávamos, corrigi sua postura e movimento de pés. Provavelmente não foi tão complexo quanto o tipo de treinamento que receberia de um instrutor de kendo no Japão, mas este mundo não tinha muitas “regras” para que seus espadachins aprendessem.
Na verdade,, aprender a lutar com uma espada consiste principalmente em prática. Paul tinha começado a me bater logo no início de nossas sessões, e Ghislaine também passava muito tempo treinando com Eris. Senti que tinha a ideia geral do que fazer.
Norn parecia bem relutante em realmente golpear alguém com uma espada de madeira, então comecei deixando-a balançar livremente para que superasse isso. Nem me defendi, só movi meu corpo para que não me machucasse. Ela fazia uma careta toda vez que sentia a espada atingindo o alvo, mas tentei de tudo para manter um olhar calmo e composto no rosto. Eu queria que ela acreditasse que eu poderia suportar seus golpes sem problemas.
Acho que funcionou. Provavelmente. Desde que ela passou os últimos meses fazendo muitos balanços de prática, seus golpes tinham uma força decente por trás deles. Eu provavelmente ficaria com alguns hematomas feios.
Depois disso, chegamos ao treino real. Bati em Norn com minha espada por algum tempo e, depois, encerrei a sessão. Peguei leve com ela, é claro, mas seus braços e pernas definitivamente ficariam pretos ou azulados em pouco tempo.
Em outras palavras, judiei de minha doce irmãzinha. Uma parte de mim já estava se perguntando se fiz a escolha certa. Ainda assim, Norn continuou me atacando até o amargo fim. Ela não se rendeu nem reclamou, tampouco desatou a chorar.
Enquanto ela mantivesse esse nível de motivação, praticamente qualquer tipo de treinamento seria produtivo.
— O que acha, Norn? Isso machucou, não?
— Sim…
— Foi muito para suportar? Você quer desistir?
— Não. Amanhã… amanhã quero treinar de novo.
— Certo.
Para ser sincero, eu não estava muito confiante em minha própria habilidade como professor.
Mas se magia podia ser comparada a um assunto acadêmico, então a esgrima poderia ser considerada um esporte. Caso quisesse melhorar, não existia uma resposta correta, só precisava persistir.
— Venha aqui, Norn. Vou te curar.
Eu pretendia colocar Norn no chão e usar minha magia para aliviar sua dor. Se ela tivesse algum hematoma sob as roupas, eu teria que pedir para Sylphie fazer as honras depois.
Então, de novo, Norn voltaria para casa para passar a noite conosco, então talvez eu pudesse fazer isso enquanto tomássemos banho juntos.
Me aproximei de minha irmã e tirei sua jaqueta para ver melhor os seus braços. Mas então, senti que estávamos sendo observados.
— Hm?
Virando, vi um grupo de alunos olhando para nós, iluminados pelo sol poente.
Há quanto tempo aqueles caras estão lá? Hmm… será que desde o início?
Presumi que eram apenas espectadores curiosos, mas se tinham ficado por tanto tempo, então provavelmente tinham algum motivo para toda essa vadiagem. Talvez quisessem algo de mim.
— Norn, vista-se e me espere, tá? Hoje vou para casa com você.
— Huh? Uh, certo. Tá, Rudeus.
Lancei alguns feitiços de cura em Norn e a mandei para o vestiário.
Assim que ela chegou em segurança, fui até o grupo de garotos. Ao me aproximar, descobri que deviam ser mais de dez. Nenhum deles parecia ser o tipo de criança popular. Isso era bom – talvez pudéssemos nos entender.
Porém, estavam me encarando com hostilidade clara no olhar. Quando os encarei de volta, alguns acabaram desviando o olhar, sem jeito.
A essa altura, eu era um “normie” com duas esposas e uma criança. Mas isso não significa que senti desprezo por esses caras. Afinal, não fui muito diferente deles em minha vida. Não que isso os impedisse de se sentirem intimidados.
— Pessoal, precisam de alguma coisa? — perguntei.
Eles se encararam por um momento, então começaram a sussurrar e empurrar as costas uns dos outros. Eventualmente, um membro do grupo deu um passo à frente.
O garoto parecia ter uns dezoito anos. Ele era quase tão alto quanto eu, mas parecia desengonçado e fora de forma. Suas bochechas eram ossudas e seus olhos meio astutos. O “mago” clássico, acho. Se colocasse um par de óculos em sua cara, poderia parecer um pouco com Zanoba.
Mas, claro, Zanoba era cheio daquela confiança bizarra. Esse cara estava mais para o tipo auto-aversivo e ressentido.
— Por que você está intimidando a Norn? — ele cuspiu, olhando para mim.
— Hm…?
Intimidando?
Pude sentir minha testa franzindo ao som dessa palavra.
O jovem mago estremeceu perante minha reação, mas continuou de pé.
— Olha, sei que Norn é desajeitada e pode complicar um pouco as coisas. Talvez ela tenha acidentalmente te irritado de alguma forma. Mas ela dá o melhor de si em tudo que faz, sabe? Precisava mesmo descontar nela assim?
Atrás dele, o grupo todo murmurou palavras de concordância.
— Em primeiro lugar, Norn nunca segurou uma espada. Ela não sabe nem como se defender! Não sei o que ela fez, mas obrigá-la a lutar contra você foi maldade.
O grupo voltou a concordar, com um pouco mais de entusiasmo desta vez.
— Hrm.
Pelo rumo das coisas, pareciam acreditar que eu tinha forçado aquela espada nas mãos de Norn, então batido nela por puro prazer sob o pretexto de “treiná-la”. Era basicamente o oposto da verdade, mas era possível entender a razão de chegarem a essa conclusão. Para começo de conversa, eu não era um instrutor muito habilidoso.
De qualquer forma, precisava esclarecer esse mal-entendido.
— Bem, sabe…
— Sei que você é o mago mais poderoso de toda a escola. Mas se for maltratar a Norn assim, vamos lutar contra você pelo bem dela.
Este cara estava completamente louco. Havia clara determinação em sua voz. Mas o coro de aprovação de seus amigos dessa vez foi muito mais fraco.
Na verdade, ouvi alguém da parte de trás murmurando algo como “Acho que não concordei com isso.”
É triste, mas caras como nós também são problemáticos quando estão em grupo.
Ah, certo… Antes de me explicar, havia uma coisa que eu precisava entender.
— Certo. Quem são vocês?
— Huh?!
Com a voz embargada, o jovem mago voltou a olhar para seus amigos em busca de orientação. Um momento depois, virou para mim de novo, agora com um olhar estranho.
— Uh… o que você quer dizer?
— Estou perguntando como conhecem minha irmãzinha. São amigos dela ou algo assim?
— E-Er, não, só… notamos ela no ano passado, quando era uma caloura… Ela sempre, uh, dá o seu melhor em tudo, então… acho que estamos meio que torcendo por ela…
O cara começou a gaguejar, mas assim que ele disse essas palavras, seus amigos também começaram a concordar.
— A notei no campus há cerca de seis meses…
— Estou no mesmo ano que Norn. Tínhamos aulas práticas juntos, e ela sempre errava o feitiço, mas…
— A vi ficando com os olhos marejados enquanto o instrutor a repreendia durante o treinamento de magia, então só…
Eles falavam sem jeito e nunca pareciam terminar suas frases. Mas consegui ter uma ideia geral. Esses caras tinham visto Norn em suas aulas ou sessões de treinamento. A viram chorar enquanto falhava várias vezes, mas ainda assim continuava lutando. E isso aqueceu seus corações.
Em algum momento, se uniram para tentar oferecer um apoio sutil a ela. Em outras palavras…
Norn tinha um fã-clube.
Pensando bem, senti como se Sylphie já tivesse mencionado algo do tipo para mim. Isso era compreensível. Afinal, Norn era adorável. Eu podia entender o ponto de vista deles. Como irmão de Norn, queria encorajar seus esforços.
— Acho que agora entendo a situação. Todos vocês, obrigado por cuidar de Norn. Me chamo Rudeus Greyrat, sou o irmão mais velho dela.
Quando abaixei a cabeça em agradecimento, um murmúrio de surpresa percorreu o pequeno grupo.
Esses caras estavam do lado de Norn. Alguns deles podiam ser capazes de levar as coisas longe demais, mas, como grupo, pareciam ter apenas boas intenções. O correto seria tratá-los com respeito.
Dito isso, eu ainda precisava esclarecer esse mal-entendido.
— Quanto à nossa sessão de treinamento de agora… Sei que parecia que eu estava a tratando com severidade. Porém, aprender a usar uma espada não é brincadeira. Pode ser uma questão de vida ou morte.
A seguir repassei toda a situação em detalhes.
Primeiro, expliquei que foi tudo ideia de Norn. Depois, disse a eles que aprender esgrima era perigoso, a menos que levasse isso muito a sério. E, por fim, enfatizei que Norn precisava se esforçar muito mais nisso do que a maioria das pessoas precisaria.
No começo o fã-clube ficou um pouco surpreso, mas, algum tempo depois, pareceram entender meu ponto de vista. Ainda assim, ouvi alguém murmurando:
— Você tinha mesmo que bater nela com tanta força?
Era uma pergunta justa. Eu também não tinha certeza se meus métodos estavam corretos. Tudo o que eu queria era que entendessem que eu não estava judiando de Norn.
Continuei com uma longa explicação, tentando transmitir minhas motivações. Os rostos dos membros do fã-clube lentamente ficaram mais sérios enquanto ouviam, e no final estavam relutantemente concordando. Esses caras ainda eram jovens, mas pelos padrões deste mundo, eram todos adultos. Eram capazes de entender como uma batalha real era mortalmente séria.
— Rudeus? Algum problema?
Quando estávamos chegando a um acordo, Norn retornou. Ela estava usando algo parecido com um poncho sobre o uniforme escolar padrão.
— Oh! É a Norn!
— Olá, Norn! Hoje você está tão fofa! Como sempre!
— Bom trabalho, Norn!
No instante em que minha irmã chegou, todos de seu fã-clube ficaram incrivelmente esquisitos.
Eu conseguia entender muito bem os seus sentimentos. Ela estava adorável com aquela roupa. Tão adorável que me vi imaginando ela carregando um guarda-chuva folha.
— Ah, o-olá, pessoal… O-Obrigada.
Norn se encolheu de surpresa diante da súbita enxurrada de encorajamentos, então respeitosamente baixou a cabeça. Mas percebi que ela não estava se aproximando muito deles. Acho que também estava captando algumas vibrações estranhas.
— H-Hm, Rudeus, acho que esqueci algo no meu quarto. Vou lá pegar, então me espere nos portões da escola, tá?
Assim sendo, Norn se virou e correu em direção aos dormitórios. Antes que ela chegasse longe demais, porém, tropeçou e caiu.
— Guh…
Ela demorou um pouco para se levantar. E uma vez que ficou de pé, olhou para mim por um momento. Seus olhos estavam brilhando.
Suprimi um suspiro. Criança, você talvez não devesse correr logo depois de se exercitar…
Quando voltássemos para casa, eu teria que fazer uma massagem para ajudar a controlar as dores musculares. Ela também precisaria de um banho longo e relaxante.
— Aw, ela é tão adorável…
— Não corra tão rápido, Norn… Você está de saia, lembra?
— No começo pensei no uniforme escolar como uma ideia estúpida, mas acho que agora entendo o apelo…
— Mas ela é uma corredora terrivelmente lenta.
— Sim… Se um sequestrador tentasse levá-la, ela não poderia escapar…
— Se Norn acabasse no mercado de escravos, eu a compraria em um instante. Heh heh.
— Aah… imagine morar com ela… Hee hee…
Hmm… sim, eu também compraria a Norn. Então a levaria de volta para casa e comeria algo bom com ela. A daria uma boa comida e insistiria para que limpasse o prato… Ah, posso vê-la sofrendo para comer tudo…
Gah. Espera, não!
Norn era minha irmã mais nova. Eu não deixaria ninguém comprá-la no maldito mercado de escravos. Se alguém ousasse sequestrá-la, eu caçaria essa pessoa e a mataria dolorosamente.
Parece bom, Papai?! Não fique com raiva de mim!
— Ahem!
— Gah!
Limpei minha garganta fazendo barulho, isso fez com que os membros do fã-clube abandonassem suas fantasias perturbadoras.
— Gente, preciso que não falem sobre escravizar minha irmãzinha, obrigado.
— S-Sinto muito…
— Está tudo bem, eu sei que ela é adorável. Ao menos alguns devaneios vocês podem ter. Contanto que mantenham uma distância segura dela.
— Ah. Sério?
Todos pareceram relaxar um pouco com isso.
— Sim. Mas se tocarem um dedo nela, irão se arrepender amargamente.
— Eek!
Ser claro a respeito dessas coisas não machucava. Não achei que algum dos presentes fosse capaz de fazer alguma travessura, e grupos como este tendiam a ter um efeito moderador sobre seus membros… mas nunca se sabe o que alguém pode acabar fazendo por impulso. A última coisa que eu precisava era de um deles passando dos limites e tentando agarrar Norn no meio da rua.
— Por outro lado, quais regras seu clube segue até agora?
— Huh? Nosso clube…?
— Sim. Este é o fã-clube da Norn, certo? Qual é a política de interação com ela?
Era muito importante ter um conjunto bem claro de diretrizes. Geralmente, os fãs concordavam em não abordar a idol de forma direta, mas ouvi falar de alguns casos em que as pessoas permitiam apertos de mão e autógrafos. Mas a coisa do aperto de mão era um território perigoso. Às vezes, os caras passavam coisas estranhas nas mãos. Como chicletes… ou espinhos. Eu queria ter certeza de que esse tipo de coisa era oficialmente proibido.
— O que da Norn…?
— O que é um fã-clube?
— Hã…?
Para minha surpresa, porém, os caras pareciam não entender do que eu estava falando. Era quase como se nunca tivessem ouvido falar desses conceitos. Que estranho.
— Espera aí, rapazes. Quem é o responsável por este grupo?
— Responsável…? Uh, na verdade não temos ninguém no comando…
— Sério? Preciso que vocês expliquem tudo em detalhes, por favor.
Estranhamente, descobri que o grupo não tinha sido formado por ninguém em particular. Eles foram naturalmente atraídos pela apreciação compartilhada pela fofura de Norn. Muitos deles nem sabiam os nomes uns dos outros.
— Entendo…
Esta era uma situação muito perigosa.
O que tínhamos aqui era uma multidão desorganizada de tamanho incerto, unida apenas pelo interesse em minha irmãzinha. Nesses grupos, as pessoas eram capazes de fazer coisas que não teriam coragem de fazer por conta própria. Por exemplo, sequestrar minha adorável irmãzinha e culpá-la por ser fofa demais para se resistir.
Inaceitável! Ultrajante! Escandaloso!
— Caras, nada bom. Nesse ritmo, vocês vão se transformar em um bando de criminosos.
— Criminosos? Não, não, nós só…
— Sinto muito, mas sei que estou certo sobre isso — falei categoricamente. — Um de vocês vai acabar cruzando a linha.
Não surpreendentemente, isso inspirou uma tempestade de negações e protestos.
— Não seja ridículo!
— Nenhum de nós jamais tocaria em Norn!
— Digo, gostamos muito dela, mas é mais como se fosse nossa irmãzinha ou algo assim…
O que você disse, seu punk? Ela é minha irmã, e não vou dividir com ninguém!
Espera, espera. Vamos tentar seguir no assunto.
— Acredito que vocês têm boas intenções, mas acho que precisamos deixar algumas regras bem claras.
Quando alguém quer evitar que um grupo de pessoas fique fora de controle, é necessário estabelecer alguns regulamentos básicos. Depois de estabelecidas as regras, os membros do grupo começariam a ficar de olho uns nos outros. Após dar às pessoas um conjunto de regras, até aquelas tão sem sentido como usar as mesmas roupas e o mesmo lenço enquanto esperava para ver a idol começaria a fazer sentido.
Regras surgem o tempo todo com naturalidade. Passam a existir quando são necessárias e desaparecem quando não são. Esse fã-clube ainda não tinha muita história. Não teve tempo suficiente para que suas regras se desenvolvessem organicamente.
Mas até que criassem algumas, Norn estaria em perigo. Eu precisava acelerar o processo artificialmente. Não iria esperar até que a machucassem.
Alguém precisava tomar algumas decisões fundamentais, o quanto antes. Felizmente, os problemas em si eram bastante claros e simples. Eles só precisavam prometer que não assustariam ou colocariam Norn em risco. O problema era encontrar alguém que realmente propusesse essas regras. Normalmente seria o líder do grupo, mas essas pessoas não tinham um.
O cara que deu um passo a frente para me encarar devia ser o mais obstinado. Eu poderia nomeá-lo como chefe e deixar que definisse as regras?
Definitivamente não.
O líder precisava entender a responsabilidade que estava assumindo e aceitá-la de boa vontade. Deixar o poder cair aleatoriamente no colo de alguém jamais seria uma boa ideia.
Então, quem é que mais entendia a gravidade da situação? Quem mais se preocupava com o bem-estar de Norn?
Eu. Óbvio.
— Então tá bom.
Norn também era minha irmãzinha. Minha carne e sangue.
Em outras palavras… era eu quem mandava.
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No ano 425 da Era do Dragão Blindado, uma certa organização foi fundada na Universidade de Magia de Ranoa.
Seu nome: O Fã-Clube Oficial de Norn Greyrat.
Este grupo, com cerca de trinta membros, deixaria uma marca inapagável na história da Universidade.
O nome de seu primeiro presidente, no entanto, se perdeu na história.
Lendas da Universidade #3: O Chefe pode convocar trinta lacaios com uma única palavra.
Tradução: Taipan
Revisão: Guilherme
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