Nanahoshi Shizuka – cujos nomes em japonês significavam literalmente “sete estrelas ” e “silente” – não era como eu. Em vez de reencarnar neste mundo como um bebê, simplesmente apareceu nele com o seu corpo original.
Já que ela revelou tudo isso para mim, também lhe contei a minha história, explicando que renasci neste mundo ao invés de ser transportado. Contei que morri em um acidente repentino, mas optei por não dar todos os detalhes. Eu era muito feio na minha vida anterior. Se ela lembrasse de como eu era, isso definitivamente não ajudaria em nada quanto à sua opinião sobre mim. As aparências importam, sabe?
Além disso, havia uma chance de que, de alguma forma, ela tivesse acabado neste mundo por minha culpa. Eu não queria que ela fosse atrás de mim por causa disso.
Passei algum tempo conversando com Nanahoshi, falando em japonês novamente pela primeira vez em muito tempo. A essa altura ainda não nos conhecíamos muito bem, então pedimos que o Mestre Fitz ficasse conosco, como um observador, mas a conversa em si foi toda em japonês. Me senti um pouco mal com isso. Ele devia ter ficado bem entediado.
Bem no início da nossa conversa, Nanahoshi fez um tipo de declaração.
— Não estou interessada neste mundo tedioso. Não pretendo usar meu conhecimento para fazê-lo florescer, como em um ridículo mangá ou uma light novel. Estou agindo exclusivamente para meu próprio benefício, resumindo. Tudo que me importa é voltar para casa o mais rápido possível.
Em outras palavras, as prioridades dela eram exatamente opostas às minhas. Eu queria viver o resto da minha vida neste mundo.
Não gostei de ouvi-la falar sobre o quão “tedioso” e “ridículo” achava que isso era, mas podia entender como ela se sentia. Resumindo, ela simplesmente não se encaixava nisso. Nunca encontrou um lugar para pertencer neste mundo. Eu sabia como era estar nessa posição e entendia a tentação de encarar tudo ao seu redor como tedioso e desprezível. Eu não planejava tentar “corrigir” o seu ponto de vista.
Ainda assim, Nanahoshi já estava desconfiada de mim. Minha recusa precipitada em cooperar foi um erro. Eu poderia dizer que ela estava escondendo algumas coisas de mim, o que fazia todo o sentido, é claro. Seria estúpido colocar sua confiança em alguém que poderia vir a ser um inimigo. Para ser sincero, também continuava meio desconfiado quanto a ela.
Dito isso, parecia que eu poderia ter lidado com isso de um jeito melhor. Se não tivesse saído correndo e gritando logo de cara, e talvez tivesse lhe dito algo como “Vou ficar aqui, mas vou te ajudar a encontrar um caminho de volta para casa”, ela poderia ter baixado ao menos um pouco a guarda.
Ah, bem. Não adianta chorar pelo leite derramado.
Nanahoshi me disse que ela apareceu originalmente em algum lugar no Reino Asura. Chegou especificamente no meio de um campo vazio. Só depois que ela soube que estava em Asura. Não havia nada ao seu redor e ninguém à vista. Mas não sabia o que fazer. Só que, felizmente, Orsted apareceu e a tomou sob a sua proteção.
— Por que Orsted estava lá?
— Não sei, mas não parece que foi ele quem me trouxe aqui…
No Reino Asura, Nanahoshi aprendeu sobre este mundo – começando com a língua local, depois passando para o básico da magia, o sistema econômico e o estilo de vida do povo. Nesse aspecto ela era muito semelhante a mim.
Surpreendentemente, levou apenas um ano para dominar a Língua Humana. Orsted foi amaldiçoado a ser odiado por todos que o viam, então acho que ela precisava aprender a falar o mais rápido possível, mesmo sozinha. A necessidade pode ser uma grande motivação.
Nanahoshi passou, no total, dois anos em Asura. Naquela época, ganhou dinheiro com seu conhecimento da culinária e das roupas do nosso mundo, gastou esse dinheiro para obter poder e, em seguida, usou esse poder para garantir fontes confiáveis de renda contínua. Também garantiu que as pessoas soubessem que o Deus Dragão, uma das Sete Grandes Potências, estava a apoiando. Com alguma negociação hábeis da sua parte, foi o suficiente para convencer alguns mercadores Asuranos poderosos a arranjar rotas de distribuição estáveis para os seus produtos. Nesse ponto, já tinha dinheiro suficiente para viver o resto da sua vida no luxo.
Foi muito bom ela ter aprendido a língua e construído uma base financeira sólida. Mas esses foram apenas trampolins para seu verdadeiro objetivo: voltar ao mundo ao qual pertencia.
Ela deixou Asura para trás e acompanhou Orsted em suas viagens por um ano inteiro. Viajaram por todo o mundo em busca de informações sobre como ela poderia retornar, e em busca dos dois conhecidos que também poderiam ter sido enviados para cá.
Orsted tinha muitos inimigos, então aconteceram várias batalhas ao longo do caminho. Mas em quase todos os casos, derrotou os seus inimigos em um instante. Sua luta contra mim foi uma dessas, é claro. Mas ela percebeu que havia algo incomum em mim e, aparentemente, aconselhou Orsted a me reviver.
Ofereci meus sinceros agradecimentos por isso. No entanto, chegando a esse ponto, eu teria morrido se Nanahoshi não tivesse falado nada.
— Mas tenho que perguntar… qual é o problema de Orsted com o Deus Homem? Fiquei realmente surpreso quando ele simplesmente me atacou, sem mais nem menos.
— Não sei os detalhes, mas parece que eles possuem uma rixa. Além disso, ele disse que é melhor eliminar os apóstolos do Deus Homem rapidamente, porque causam todos os tipos de problemas se você os deixar à solta.
Eu poderia viver sem as pessoas me matando por rixas das quais nem fazia parte. E, para constar, também não era o “apóstolo” daquele cara. Eu basicamente estive seguindo as sugestões dele por algum tempo, claro, mas nós só nos víamos uma vez por ano ou até nem tanto assim. Nosso relacionamento não era nem tão próximo.
De qualquer forma… Nanahoshi viajou por todo o mundo, encontrando todo tipo de pessoa ao longo do caminho. Orsted era amplamente odiado, é claro, mas seu título era uma ferramenta valiosa quando usado da maneira correta. Uma única carta assinada pelo Deus Dragão era o suficiente para obter encontros pessoais com magos famosos, cavaleiros de alto escalão e até monarcas.
— Você deu a volta ao mundo em um ano…? — Essa parte da história me pareceu um pouco estranha. Afinal, levei três anos para conseguir fazer isso.
— Sim. No entanto, usamos um método especial para viajar.
— Que tipo de método?
— Dispositivos de distorcimento, basicamente. Neste mundo, eles os chamam de círculos de teletransporte. Já ouviu falar deles?
— Reconheço o nome, isso é tudo. — Onde eu já tinha ouvido falar deles? Quando estávamos atravessando o Continente Demônio, certo? Sim, foi Ruijerd quem me contou sobre eles. Isso me lembrou… — Mas espera aí. Essas coisas não foram todas destruídas há séculos?
— Alguns continuaram intactos. Estão escondidos em ruínas que datam da Guerra Demônio Humano.
— Sério mesmo? Onde posso encontrar essas ruínas?
— Não posso contar. Orsted me pediu para manter isso em segredo. O teletransporte é aparentemente uma forma proibida de magia, então ele não queria que eu falasse sobre isso de forma descuidada.
— Ah… Entendi.
— Em qualquer caso, eu estava apenas acompanhando ele. Não me lembro da localização exata da maioria.
Em vez de viajar ao redor do mundo, basicamente fizeram seu caminho de um círculo de teletransporte para o próximo algumas dezenas de vezes. Então ela devia estar dizendo a verdade sobre não saber a localização deles. Se alguém fosse teletransportado para alguma terra desconhecida sem um mapa, não teria como descobrir sua localização com precisão.
Ainda assim, seria bom rastrear pelo menos uma dessas coisas… elas pareciam incrivelmente convenientes. Afinal, nunca se sabia quando poderia precisar viajar meio mundo.
Enfim, de volta ao tópico principal:
Nanahoshi não encontrou as pessoas que procurava, mas conheceu muitos outros personagens interessantes ao longo da sua jornada. Eventualmente, um deles disse a ela: “Alguém pode muito bem ter convocado você para este mundo.”
— Exatamente quem te disse isso…?
— Não posso dizer. Me pediu para não contar a ninguém que o conheci.
— Por que isso?
— É para a minha própria segurança. Se as pessoas souberem que você me encontrou, você se verá atormentado por enxames de chacais gananciosos e famintos por poder. Seria sábio não mencionar meu nome a ninguém se “preferir evitar isso”, em suas palavras.
Aparentemente, este misterioso indivíduo sem nome era uma autoridade de classe mundial em magia de Invocação, mas mesmo ele não tinha nenhuma ideia de como uma pessoa viva de outro mundo poderia ser invocada para este. Mesmo deixando de lado a parte do “outro mundo”, era teoricamente impossível convocar um ser humano de qualquer outro lugar.
Ainda assim, Nanahoshi tinha finalmente encontrado algo para trabalhar. Ela decidiu estabelecer uma nova base de operações na Universidade de Magia de Ranoa, onde poderia pesquisar sobre Invocação como bem quisesse. Uma enorme doação de suas economias foi o suficiente para ganhar um título de membro de rank B na Guilda dos Magos e sua posição como uma estudante especial.
Uma vez no campus, usou suas conexões no Reino Asura para adotar os novos uniformes e várias outras melhorias. Ela até providenciou uma reforma há muito esperada do currículo geral e procedeu com atualizações nas ferramentas de ensino dos professores. Em um piscar de olhos, ganhou o status de rank A na Guilda. Tinham chegado até ao ponto de oferecer o rank S no caso de ela estar disposta a compartilhar todo o conhecimento que possuía, mas acabou recusando essa oferta.
— Desculpe por ficar repetindo, mas não estou nem remotamente interessada em tornar este mundo melhor. Ou escalar até chegar ao topo dele.
Por causa dessa atitude, nunca fez coisas que ela mesma não usaria e também não as fornecia a outras pessoas. Para ser honesto, isso me parecia meio frio. Tornar o mundo um pouco melhor para todos não faria mal nenhum, certo?
Aparentemente sentindo minha discordância silenciosa, Nanahoshi soltou um suspiro.
— Olha, nós não pertencemos a este mundo, certo? Se tentarmos mudar a sua história de forma muito dramática, podemos acabar sendo apagados.
— Apagados? Do que você está falando?
— Você não leu nenhuma ficção científica? E se houver algum tipo de… força cósmica que tenta manter os eventos em seu caminho da forma correta?
Assim que ela mencionou, lembrei de ter lido um mangá onde esse era um dos pontos mais importantes da trama. Acho que chamaram de “lei da causalidade” ou algo assim.
— Existe mesmo algo assim por aqui…?
— Não faço ideia. Mas não custa nada ser cuidadosa.
Senti que essas questões costumavam surgir mais em histórias de viagens no tempo, onde as pessoas voltavam ao passado. Não parecia algo com que precisássemos mesmo nos preocupar, já que pousamos em um mundo totalmente diferente. Mas tanto faz. No final das contas, isso era escolha dela.
Depois de ter garantido um espaço de pesquisa privado onde ninguém jamais a incomodaria, Nanahoshi se dedicou a um estudo intenso de magia de Invocação. Também escolheu usar um nome falso, já que era famosa o suficiente para que as pessoas a rastreassem para importuná-la. Mas Setestrelas Silente não parecia uma escolha muito sutil. Eu teria optado por algo diferente de uma tradução literal. Será que queria manter o nome semelhante o suficiente para que seus dois amigos desaparecidos pudessem reconhecer? Mas quem sabia se aqueles dois estavam mesmo por perto? Nunca ouvi nada sobre nenhum deles.
Em qualquer caso, para aprender a magia de Invocação, precisava começar se familiarizando com os círculos mágicos. Enquanto magias mais dinâmicas, como elementais e de cura, eram lançadas principalmente com encantações, precisava de círculos para magia estática, como Barreiras e Invocação.
Nanahoshi devorou todas as informações que pôde encontrar nos círculos mágicos, aprendendo tudo sobre os princípios por trás deles. Em vez de recorrer aos professores para obter instruções, aprendeu sozinha com base em livros e registros antigos.
— As pessoas deste mundo são muito… coladas no próprio caminho, sabe? Suponho que faça sentido, dada a dureza daqui. Mas estou procurando fazer algo totalmente sem precedentes, então não posso esperar que alguém me ensine muito.
Hm. O que isso diz sobre mim? Eu aprendi quase tudo que sabia sobre magia com as pessoas deste mundo… Mas isso talvez não importasse muito. Eu não estava tentando realizar nada revolucionário como ela estava.
— E, claro, não temos nenhuma mana — continuou Nanahoshi. — É frustrante quando estão constantemente presumindo que você tenha.
— Muh? — respondi feito um idiota. Ela não tem mana? O que?
— O quê? Falei algo estranho?
— Bem, na verdade, eu tenho mana. Posso lançar magia sem nenhum problema. Na verdade, as pessoas costumam me dizer que tenho uma capacidade de mana anormal.
Nanahoshi pressionou a mão contra a máscara. Não consegui ver a sua expressão, mas era óbvio que essa notícia a chocou.
— Entendo. Suponho que você seja diferente porque reencarnou. Minha capacidade de mana… é aparentemente zero.
Eu pisquei. Literalmente zero? Isso significava que não podia usar magia alguma?
— A propósito, tudo neste mundo contém algum grau de mana. Até os cadáveres têm um pouco. Mas viemos de um mundo onde não existia, então achei que fazia sentido para mim não possuir.
Os cadáveres tinham mana? Isso era novidade para mim. Mas se a magia fosse realmente uma parte tão fundamental deste mundo, a falta dela não poderia causar… algum tipo de problema?
— Nesse caso, suponho que isso também não se aplique a você, certo?
Com essas palavras, Nanahoshi mais uma vez removeu a sua máscara. Foi estranho ver um rosto reconhecivelmente japonês de novo depois de todo esse tempo. Ela não era uma supermodelo, mas ainda era muito bonita. Eu tinha visto muitas pessoas lindas desde que cheguei a este mundo, então meus padrões provavelmente eram muito altos. Podia vê-la como uma das garotas mais fofas da própria sala lá no Japão.
— Já se passaram cerca de cinco anos desde que cheguei a este mundo, mas ainda não envelheci.
Cinco anos deveriam resultar em ao menos alguma mudança, mas ela ainda parecia ter dezesseis ou dezessete anos. Seu corpo, pelo visto, não estava envelhecendo mesmo.
— Bem… isso ao menos soa como um lado positivo.
Nanahoshi sorriu, então colocou a máscara de volta enquanto soltava uma risadinha.
— Suponho que isso seja melhor do que envelhecer em um lugar desconhecido…
Pensando bem, a minha versão que aparecia nos sonhos com o Deus Homem também parecia nunca envelhecer. Talvez fosse assim que funcionasse com pessoas chegadas de outros mundos.
— Mas não faço a menor ideia de por quê não estou envelhecendo. Isso é simplesmente bizarro.
— Só para constar, até agora estou envelhecendo normalmente.
— Certo. Suponho que a causa então seja algo inerente ao meu corpo. Vou ter que investigar, se possível. Pode haver algo que eu possa fazer quanto a isso.
Nanahoshi abriu um caderninho e escreveu uma breve nota. Ela estava evidentemente registrando as coisas que descobria ou quisesse estudar mais tarde.
— Certo, então, vamos voltar ao tópico principal.
Nanahoshi havia aprendido tudo sobre círculos mágicos. Eles eram geralmente feitos ao pulverizar cristais mágicos e os misturando com o pó de alguns ingredientes específicos para criar uma tinta especial, que seria usada para desenhar padrões bem específicos. Assim que a tinta se assentasse em uma superfície adequada, ela seria absorvida, dificultando que fosse apagada. Bombear mana na tinta aumentaria o poder da magia e produziria um efeito específico determinado pela estrutura do círculo.
Como regra geral, a tinta mágica evaporaria após um único uso. Muitas vezes eram necessárias coisas muito específicas para isso, e a lista de ingredientes variava dependendo da natureza do feitiço. Os feitiços de grande escala ou no nível Rei e superior, em particular, exigiam o uso de alguns catalisadores muito incomuns. Normalmente, seria necessário também o apoio financeiro de um país para conseguir colocar as mãos em tudo que era preciso.
— Esses círculos de teletransporte nas ruínas também desaparecem depois de um uso?
— Não, eles funcionam de forma diferente. Foram esculpidos no local usando uma técnica especial.
Interessante…
Atualmente parecia que a norma era fazer os círculos mágicos com tinta, mas, nos bons tempos, havia uma variedade muito maior de técnicas em uso. Alguns desses métodos não foram totalmente perdidos com o tempo. Seria possível, por exemplo, esculpir um círculo mágico em pedra e bombear magia nele. A própria Nanahoshi não podia usar esse método, então não havia passado muito tempo estudando isso, mas era bem usado na criação de implementos mágicos.
— Isso na verdade não é bem mais comum do que esse negócio da tinta?
— Eu não posso usar a técnica, então não me importo com ela.
Círculos mágicos poderiam ser usados para quase qualquer tipo de feitiço, desde que tivesse um bom padrão, a tinta certa e mana suficiente, mas havia um grande problema. Os padrões eram oralmente passados através das gerações, e a maioria deles se perdeu ao longo dos séculos. E também não havia ninguém capaz de inventar alguns novos. Se quisesse descobrir um “novo” círculo mágico, a única opção seria encontrar algum pergaminho antigo esquecido no fundo de algum tesouro real ou tropeçar em uma gravura nas profundezas de uma ruína ancestral.
Este, na verdade, foi o modo como as coisas funcionaram por um bom tempo… até que Nanahoshi chegou para movimentar as coisas. Ela analisou os padrões dos círculos mágicos conhecidos, elaborou suas próprias hipóteses e realizou incontáveis experimentos. Eventualmente, obteve sucesso ao criar os seus próprios padrões inovadores.
Isso tudo era bem impressionante. Quanto mais ela falava, mais eu queria aprender. Mas antes que eu pudesse tocar no assunto, Nanahoshi me desanimou.
— Não posso contar as minhas descobertas a qualquer um que perguntar.
Eu queria protestar, mas ela ainda não tinha terminado. Levantando a mão, fitou o meu rosto com calma.
— Vamos fazer um acordo.
Isso provavelmente era o que ela já vinha planejando há algum tempo.
— Não tenho mana nem meios para me defender. Eu não envelheço, mas tenho quase certeza de que não sou imortal.
— Certo.
— Para ser sincera, não suporto este mundo. Nada disso aqui me parece real . A comida é horrível, o senso de moralidade é bizarro e tudo é tão incrivelmente inconveniente. Eles nem têm xampu por aqui, fala sério. E, o mais importante, todas as pessoas de quem gosto estão no nosso mundo. Quero muito voltar para lá. E quanto a você?
— Gosto muito deste mundo — respondi na mesma hora. — E tenho mais amigos aqui do que naquele outro, pelo menos por enquanto. Não quero retornar.
— Entendo. Você não tem uma família que deixou para trás ou algo assim?
— Não tenho arrependimentos.
Eu nem queria pensar na minha vida antiga. Não queria mesmo. Há quinze anos, decidi dar o meu melhor com a segunda chance que recebi. Desde então aconteceu todo tipo de coisa – algumas maravilhosas, outras dolorosas. Mas eu estava bem satisfeito com a minha vida atual, mesmo levando tudo em consideração. Se alguém tentasse me arrastar de volta para “casa” depois desse tempo todo, eu não iria sem resistência.
— Entendo. Suponho que você deve ter vivido uma vida boa e longa…
Nanahoshi estava interpretando a situação de um jeito um pouquinho equivocado, mas, que seja. Não era como se eu tivesse contado que eu era o fracassado fedorento que pulou na frente daquele caminhão no último instante. Tudo que eu contei foi que a minha morte foi acidental.
— Então os nossos objetivos aqui são claramente diferentes. Mas podemos oferecer algo um ao outro, então vamos encontrar uma forma de cooperar.
— Existe algo que eu tenho que você deseja?
— Você mesmo disse antes. Você tem uma capacidade de mana de além da normal, certo?
Ela queria, dentre todas as coisas, a minha mana? Eu parecia me lembrar de ter visto pilhas de cristais mágicos espalhados pela sala dela… aquilo tudo não era o suficiente?
— Eu gostaria que você me ajudasse com os meus experimentos. Em troca, vou te ensinar tudo o que quiser saber. Se estiver procurando alguma resposta que eu não tenho, farei de tudo para encontrá-la. Conheço muitas pessoas influentes e sou uma pesquisadora bem qualificada. E também vou te ajudar de qualquer outra maneira que puder, é claro.
— Então, o que você quer é basicamente uma relação de dar e receber?
— Isso mesmo. É bem simples, na verdade.
Nanahoshi parecia uma pessoa muito inteligente e engenhosa. Eu não tinha certeza de quanta ajuda realmente seria para ela. Mas, talvez, estivesse apenas mostrando alguma compaixão por um companheiro Terráqueo. Ela disse algo sobre estar feliz em encontrar alguém do mesmo tipo.
— Certo, isso me parece bom. Eu aceito.
— Fico feliz por ouvir isso. Não mude de ideia depois, entendido?
— Um homem nunca volta atrás com a sua palavra.
— Heh… Devo dizer que é bom ouvir esse clichê japonês de novo.
— Eu sei o que você quer dizer. Ninguém entende nenhuma das minhas referências por aqui.
Nanahoshi pigarreou e se acomodou em seu assento. Ela tirou os anéis do bolso e os colocou, um a um. Havia algum sentido nisso tudo?
— Então devemos ir direto ao assunto? Tem algo que queira me perguntar? Ouvi dizer que você está investigando o Incidente de Deslocamento.
— Uh, quem te contou?
Lancei um olhar em direção de Fitz, que estava silenciosamente sentado ao lado com uma expressão um pouco amuada no rosto. Será que tinham conversado um pouco enquanto eu estava inconsciente? Percebendo o meu olhar, ele inclinou a cabeça para o lado, incerto.
— Hm? O que foi, Rudeus? Tem alguma coisa errada? — perguntou Nanahoshi, ainda em japonês.
— Vamos falar logo sobre o Incidente de Deslocamento. Nanahoshi, para isso, se importaria em falar na Língua Humana?
— Então vamos lá.
Fitz se moveu para perto de mim e se virou para Nanahoshi. Desse ponto em diante, usaríamos uma linguagem que todos os presentes pudessem entender.
— Não sei os detalhes do motivo por trás desse desastre — começou Nanahoshi, ainda relutante. — No entanto, coincidiu um pouco com o momento em que cheguei a este mundo.
Eu tive as minhas suspeitas, é claro, desde o momento em que soube quando e onde ela havia chegado a este mundo. E ela sem dúvidas soube através de Fitz que fui uma das pessoas afetadas pela calamidade.
— Em outras palavras? — indaguei.
— O Incidente provavelmente foi um efeito colateral causado pelo que me trouxe aqui. Ou seja… — Nanahoshi parou por um momento antes de continuar. — Na verdade, isso aconteceu por minha causa.
Certo. Nenhuma surpresa até aqui.
Eu já estava prevendo essas palavras há algum tempo. Invocação e Teletransportação eram semelhantes em muitos aspectos, e Nanahoshi aparentemente havia sido invocada no momento em que fomos teletransportados. Tudo se encaixava demais para ser só uma coincidência. Fiquei, no mínimo, aliviado por o desastre não estar relacionado à minha chegada.
Fitz, entretanto, reagiu de maneira muito diferente.
Com um grito estrangulado de “Eu vou te matar!”, ele deu um pulo e balançou o braço ameaçadoramente.
— O quê?! Você…?! — gritou Nanahoshi, erguendo uma das mãos. Um de seus anéis brilhou intensamente e o feitiço de Fitz falhou. O que foi aquilo?
Percebendo que sua magia não ia funcionar, Fitz saltou em direção a Nanahoshi e começou a dar socos. Mas o segundo dos anéis dela brilhou, e os punhos dele ricochetearam em algum tipo de barreira invisível.
— Você… tem alguma ideia… do quanto sofremos?! Minha mãe e meu pai… morreram por sua causa!
Aqueles anéis só podiam ser mágicos. Nenhum dos ataques de Fitz estava acertando.
— Não fique aí parado, Rudeus Greyrat! — gritou Nanahoshi, claramente perturbada. — Faça alguma coisa!
Dando um passo à frente, agarrei meu amigo ofegante pelo braço antes que ele pudesse bater o punho contra a barreira de novo.
— Acalme-se, Mestre Fitz.
— Você está falando sério, Rudeus? Ela já admitiu a culpa! Como você pode ficar tão calmo?! Você… Você também sofreu, não sofreu?!
Eu nunca tinha visto Fitz assim antes. Ele normalmente era tão calmo. Mas, claro, seria difícil culpá-lo por perder o controle. Ele perdeu todas as pessoas que amava naquele desastre. Após cinco anos, devia já estar, de certa forma, aceitando toda a sua perda. Mas isso não significava que pudesse ficar calmo quando confrontado pela pessoa responsável por tudo.
Com base no que eu tinha ouvido até o momento, porém, o Incidente de Deslocamento não foi culpa de Nanahoshi. Além do mais, eu estava bem ali com ela no momento em que nós dois fomos convocados para este mundo… embora não tivesse ideia de por que ela apareceu dez anos depois de mim.
O ponto principal era: ela não escolheu ser trazida para cá. Alguém tomou essa decisão em seu lugar.
Ah, certo. Estávamos conversando em japonês quando discutimos isso, não é? Surpresa nenhuma que Fitz tenha entendido mal. Ele não conhecia o contexto geral.
— Sinto muito, não explicamos isso com clareza suficiente. Ela não veio para cá por vontade própria, Mestre Fitz. Ela também é uma vítima.
— Uma vítima…? Espera… sério? — Fitz ainda estava ofegante, mas parecia ter levado as minhas palavras ao pé da letra. Com um longo suspiro, ele caiu de volta na cadeira.
— Sinto muito — disse Nanahoshi. — Eu poderia ter formulado isso com mais cuidado. Minha intenção não era te magoar.
— Então tudo certo… Peço desculpas por tirar conclusões precipitadas. — Fitz ainda não parecia completamente calmo. Ainda havia, por exemplo, uma luz forte em seus olhos. Mas ele parecia ter se controlado, pelo menos por enquanto.
Nanahoshi colocou aqueles anéis supondo que eu ficaria furioso e tentaria matá-la? A garota tinha alguma coragem, eu precisava admitir. Essas eram umas bugigangazinhas bem úteis. Para ser sincero, eu queria um ou dois conjuntos desses para mim. Talvez fossem o seu principal meio de autodefesa…
— De qualquer forma, não sei muito mais sobre o Incidente em si. Fui invocada aqui por causa daquilo, mas não tenho ideia de quem fez isso acontecer, quais foram seus motivos ou por que isso levou a um desastre tão grande. Ninguém sabe.
— Orsted também não tinha teorias?
— Não. Ele só disse que foi algo imprescindível.
Bem, se um suposto deus não tinha descoberto nada, provavelmente também não encontraríamos nenhuma resposta. Eu parecia me lembrar do Deus Homem dizendo que a culpa era de Orsted… mas graças àquela maldição, todos que se encontravam com o Deus Dragão o odiavam. Senti que o Deus Homem também podia estar sob os efeitos disso.
E, além disso, também tinham uma outra rixa, não? Ele podia só ter culpado Orsted por ser o seu costume.
Se Nanahoshi estava ao menos me dizendo a verdade, então era difícil imaginar que Orsted realmente tivesse desempenhado algum papel na causa do Incidente. Por que a invocaria e então gastaria tanto tempo ajudando-a a retornar para casa? Isso não fazia muito sentido.
— Então por que você disse que aconteceu por sua causa?
— Bem, de certa forma, foi. E eu gostaria de esclarecer isso agora mesmo. Eu não quero que ninguém use isso como desculpa para depois ficar contra mim.
— Entendo…
Em vez de tentar esconder algo que poderia me colocar contra ela, Nanahoshi disse a verdade sem qualquer rodeio, e então explicou. Essa parecia ser a melhor abordagem, ainda mais quando considerado o risco de eu descobrir alguma coisa no futuro.
Claro, eu ainda teria que manter em mente que existia a chance de que ela ou Osterd fosse um mentiroso muito habilidoso.
— Então isso é uma pena. Eu esperava que você tivesse alguma ideia do que aconteceu.
— Receio que não. Mas tenho um plano para dar continuidade à minha pesquisa.
— Se sua pesquisa progredir o suficiente, acha que descobrirá a verdade por trás do Incidente de Deslocamento?
— Eu deveria ser capaz de explicar o que aconteceu ao menos em um nível teórico…
Balancei a cabeça pensativamente. A maneira como ela cuidadosamente esclarecia as suas promessas a fazia parecer de alguma forma mais confiável.
— Mas para que isso aconteça, vou precisar de uma grande quantidade de mana.
— Entendo. Acho que então sou o homem dos seus sonhos.
— Heh. É, suponho que sim.
Fitz fez uma careta enquanto falávamos. Tive a sensação de que ele ainda não confiava completamente em Nanahoshi. Ainda assim, nunca esperei que um cara tão bom e amigável como ele surtasse daquele jeito. Ele tinha dito até que passou pelo Incidente sem grandes problemas… mas eu não sabia que seus pais tinham morrido. O mais inteligente provavelmente seria deixá-lo se acalmar um pouco antes de dizer qualquer coisa.
— Certo, Nanahoshi. Preciso de um pouco de tempo para pensar nisso tudo. Voltarei para te ver em alguns dias, pode ser? Até então vamos trabalhar nos detalhes.
— Combinado. Então nos vemos.
Com essa última troca de palavras, deixei a enfermaria com o Mestre Fitz no meu encalço.
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Depois que expliquei a situação de Nanahoshi a Fitz com mais detalhes, ele finalmente pareceu se acalmar um pouco. Quando eu contei que ela fora trazida a este mundo à força e estava desesperada para voltar para casa, a sua raiva desapareceu.
Assim que terminei, entretanto, ele me fez uma pergunta um pouco estranha.
— De qualquer forma, Rudeus… o que você acha dela?
A pergunta era um pouco complicada. Foi fácil para mim acreditar na sua história, já que eu mesmo reencarnei, mas devia ter soado bem estranho para Fitz. Pela maneira como Nanahoshi falava, era óbvio que não se importava muito com este mundo ou com o que acontecia às pessoas nele. Ela só queria dar no pé. Ao contrário de mim, desde que chegou a este mundo ela só provou o sucesso. Talvez todas as coisas lhe pareçam triviais. Eu não iria me gabar de todo o meu trabalho duro ou algo assim… mas realmente não gostei da atitude dela.
— Para ser honesto, há algumas coisas nela que eu não gosto muito. Mas acho que é relativamente confiável.
— Hm… Certo. Então isso é bom.
Fitz sorriu um pouco sem jeito. Talvez estivesse planejando me dar um sermão sobre confiar nas pessoas com muita facilidade, caso eu tivesse respondido de forma diferente. Eu realmente não sabia como Nanahoshi poderia ter elaborado um plano para me enganar, considerando que a abordei primeiro… mas acho que sua história era no mínimo muito difícil de acreditar.
— Você estava preocupado comigo, Mestre Fitz? Obrigado.
— Hein?! Não, eu… Eu não estava preocupado nem nada, mas… de qualquer maneira, acho…
Ver esse cara inquieto assim foi estranhamente comovente.
Em qualquer caso, Nanahoshi e eu tínhamos estabelecido uma parceria provisória.
Ainda havia dezenas de perguntas que eu queria fazer a ela, mas não havia necessidade de apressar as coisas. Simplesmente teria que trabalhar o meu caminho todo, passo a passo.
Tradução: Pimpolho
Revisão: PcWolf
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