Nossa, que noite agitada. Quem diria que o culpado por trás dos desaparecimentos dos estudantes era o bibliotecário-chefe?
Depois que o vi sequestrando a Claire e a Alexia, observei-o amarrá-las no meio daquela névoa esquisita. Tenho que admitir, foi bem sinistro.
É bastante óbvio que o cara era um pervertido. Apesar de estar em conflito com sua própria natureza, ele não conseguiu se controlar. Todo mundo tem sua razão de ser, mas quando esses objetivos vão contra o que a sociedade considera aceitável, as pessoas são forçadas a fazer uma escolha: seguir seus corações ou sufocar seus sonhos. Eu me encaixo no primeiro grupo, assim como ele.
O fato de o cérebro por trás dos desaparecimentos ser apenas um pervertido não se encaixa muito bem na minha narrativa de Eminência nas Sombras, mas não há como argumentar contra os fatos.
Quando a manhã chega, a academia está fervilhando de gente da Ordem dos Cavaleiros. Suponho que estejam investigando toda a situação do bibliotecário.
— Hã? É quem eu estou pensando?
Vejo uma garota de cabelos escuros passando cabisbaixa pelos cavaleiros.
— Sim, é a Claire.
Normalmente, eu me esconderia neste ponto, já que é sempre uma dor de cabeça enorme quando ela me vê, mas parece que hoje não será necessário. Pelo jeito, ela não vai notar muita coisa.
— Lá-lá-li, lá-lá-lá — canto uma musiquinha qualquer para mim mesmo enquanto aproveito a luz da manhã.
Lá estou eu, um estudante perfeitamente comum.
A questão é: como devo reagir quando “descobrir” sobre o bibliotecário? Devo entrar no modo pânico clássico de personagem secundário ou tremer de medo contido?
Enquanto tento me decidir, passo pela minha irmã.
— Parado aí. — Ela agarra meu colarinho com um aperto de ferro.
— O-oi, Mana. Você me viu? — viro-me e a encontro me fuzilando com os olhos.
— Claro que vi. Tem algo a me dizer?
— B-bom dia?
— Bom dia, Cid. Algo mais?
— Não, uh… não consigo pensar em nada — respondo depois de ponderar por um momento.
Tento me lembrar se havia algo que eu precisava falar com minha irmã, mas nada me vem à mente.
— Estou deprimida, Cid.
— Ah.
— Meus ombros estão caídos, e pareço desanimada.
— Aham.
— Eu pensaria que há algo que qualquer bom irmão diria à sua irmã em momentos como este.
— Uh…
Permito-me três segundos para pensar.
— Você parece triste. Aconteceu alguma coisa?
— …Passou. Mas por pouco.
— Por pouco?
— Você precisa se preocupar mais. E também, precisa intuir o que está errado desde o início.
— Acho que você está exigindo um pouco demais.
— Ainda assim, parece que você está curioso, então acho que posso te contar.
— Acho que nunca disse que estava…
— Você está curioso, não está?
— Nossa, estou super curioso! — digo enquanto Claire torce meu pescoço.
— Está muito barulhento aqui, vamos encontrar outro lugar para conversar.
— Uh, e a aula?
— As aulas foram canceladas hoje. — Claire se vira e olha para o prédio da escola. — O bibliotecário-chefe morreu.
Decido responder à sua revelação sussurrada com choque, como qualquer bom personagem secundário faria.
Estou sentado no elegante salão, bebendo meu chá com leite tranquilamente. Aparentemente, este é um tipo de sala especial onde apenas os figurões são permitidos. Não faço ideia de por que deixaram minha irmã, uma nobre de uma família qualquer, entrar.
— Desculpe, não posso te dar detalhes. Não quero que você se envolva — diz Claire com uma expressão sombria. — Mas a Ordem dos Cavaleiros está tentando abafar a verdade sobre o bibliotecário… e não posso fazer nada para impedir. É tão frustrante…
— A verdade sobre o bibliotecário, hein?
Faz sentido que eles não queiram que a notícia sobre o quão pervertido ele era se espalhe. O plano da Ordem dos Cavaleiros para proteger sua reputação tem todo o meu apoio.
— Há coisas mais importantes que a verdade — ofereço.
Claire me lança um olhar assustador.
— Você está insinuando que estou errada?!
— Não é isso que estou dizendo. É que…
— É que o quê?
A linguagem corporal da minha irmã deixa bem claro que, se eu não escolher minhas próximas palavras com cuidado, elas podem ser as minhas últimas.
— A escuridão do mundo é profunda. Nem todos estão preparados para aceitar o quão profunda ela é.
— …Você está dizendo que haveria pânico se a notícia se tornasse pública?
— Sim, provavelmente.
Quer dizer, pense em como todas as garotas que já foram à biblioteca ficariam traumatizadas.
— Mas isso não significa que está tudo bem simplesmente varrer tudo para debaixo do tapete! — exclama Claire.
— Claro que não. É por isso que é importante ter pessoas investigando o caso em segredo.
— “Investigando o caso em segredo”…
— Sim. Mesmo quando a verdade é enterrada, isso não significa que as coisas tenham que terminar aí.
— Ah, entendi… Então cabe a mim desvendar o caso.
— Uh, não precisa ser necessariamente você.
— Eu sei a verdade, e sou livre para agir sem impedimentos… Com certeza, fui escolhida. — Ela aperta a bandagem em sua mão direita.
— Uh, na verdade, não foi.
— Sou a única que pode te proteger, Cid.
— Uh, sou perfeitamente capaz de me proteger sozinho.
— Eu sei, eu sei. Você não quer que eu me preocupe com você. — Ela me abraça com tanta força que ouço um estalo sinistro. — Mas vou proteger esta academia, esta nação e você também. Vou proteger tudo isso.
— …Tudo bem. Fique à vontade.
— Não vou deixar as coisas terminarem assim. De jeito nenhum.
Ainda preso nos braços da minha irmã, tomo outro gole do meu chá com leite. Tenho que dizer, isso aqui é realmente bom.
As aulas foram canceladas pelo resto do dia, então volto para o meu dormitório e sou imediatamente abordado por Skel e Po.
— Caramba, que loucura — diz Skel. — Não acredito que o bibliotecário-chefe foi assassinado desse jeito.
— Pois é, né? — concorda Po. — A tal organização misteriosa pode mesmo estar por trás disso.
— Parece que a coisa ficou séria de repente.
— Sim, todo mundo está pirando.
Os dois estão bebendo café de primeira linha da Mitsugoshi e relaxando como se fossem os donos do lugar.
Mas não são. É o meu quarto.
— Vocês dois não deveriam estar fazendo suas tarefas extras? — digo, colocando mais peso na minha voz para deixar a indireta clara: CAIAM FORA, CARAS.
— Faço mais tarde — responde Skel. — Agora que temos o dia de folga, tenho tempo de sobra.
— É, eu também — acrescenta Po. — Se a gente ficar tão preso na lição de casa a ponto de deixar as pequenas alegrias da vida passarem, para que estamos vivendo, afinal?
Os dois tomam o café ruidosamente.
— Certo, mas nada disso explica o que vocês estão fazendo no meu quarto.
— Porque é aqui que tem o café chique da Mitsugoshi, oras — diz Skel.
Sem nem pedir permissão, Po vasculha minha gaveta e abre um pacote de chocolate.
— E você também tem doces chiques da Mitsugoshi.
— Cara, isso é meu.
— Tá tranquilo — Po me assegura. — Somos todos amigos aqui.
— E, para ser sincero — acrescenta Skel —, não tem como sua mesada dar conta de comprar tudo isso.
— Já achávamos isso estranho há um tempo.
Os dois ficam sérios de repente e se viram para me encarar.
— E-eu, uh…
Eles me pegaram.
Uma única xícara de café de alta qualidade da Mitsugoshi custa mais de dois mil zeni. Não faz sentido um aristocrata falido como eu ter sempre isso estocado no meu quarto.
Dito isso, não é minha culpa que a Gamma continue me mandando caixas do produto.
— Desembucha, Cid — diz Skel. — Você tem comprado a crédito, não é?
— Hã?
— Se for isso, tem que nos contar, cara — insiste Po.
— Não, espere, volte um pouco. Que história é essa de comprar a crédito?
— Cara, encontramos panfletos disso espalhados pelo seu quarto. — Skel me mostra um. — “Novo Serviço Incrível do Banco Mitsugoshi, Parcelamento Mitsugoshi.” Se você sabia dessa nova forma incrível de pegar dinheiro emprestado, por que não nos contou?
— P-Parcelamento Mitsugoshi?
Com um aperto no estômago, leio o panfleto e descubro que ele anuncia um plano de pagamento que pareceria perfeitamente normal no meu antigo mundo. Agora que penso nisso, acho que expliquei à Gamma como funcionavam os planos de pagamento, não foi?
— N-não me digam que vocês pegaram dinheiro emprestado, pegaram?
— Claro que sim — responde Po. — Eles me emprestaram dois milhões de zeni, sem fazer perguntas.
— E eu peguei um milhão — emenda Skel. — Agora tudo o que tenho a fazer é pagar as parcelas mensais fixas de vinte mil zeni cada. Que moleza, hein?!
— Ai, meu Deus…
Eles estão condenados.
— Qual o problema, Cid? — Po pergunta. — Você está com aquela cara de quem acabou de perceber algo.
— Qual é a taxa de juros desses planos?
— Dois por cento ao mês, eu acho? — responde Skel.
— Sim, vinte e quatro por cento ao ano. É uma pechincha, comparado a outros credores na capital.
Eu encaro o vazio.
— Deixa eu ver se entendi — digo a eles. — Você pegou um milhão de zeni a uma taxa anual de vinte e quatro por cento com pagamentos mensais de vinte mil zeni, certo?
— Sim.
— O que tem de errado com isso?
— Vocês já fizeram as contas de quanto tempo levarão para pagar isso?
Se eles têm uma taxa de 24% sobre um milhão de zeni, então o juro anual soma duzentos e quarenta mil zeni.
Se os pagamentos mensais são de vinte mil zeni, então os pagamentos anuais somam duzentos e quarenta mil zeni.
Duzentos e quarenta mil zeni de juros, duzentos e quarenta mil zeni em pagamentos.
Em outras palavras, tudo o que eles estão fazendo é cobrir os juros, e nunca deixarão de ter que fazer pagamentos pelo resto de suas vidas.
— Sei lá, uns cinco anos? — diz Po.
— Por que eu me daria ao trabalho de calcular isso? Tudo o que tenho a fazer é pagar meus vinte mil por mês — acrescenta Skel.
— O fato de não nos fazerem fazer todas essas contas é como se sabe que a Mitsugoshi é uma loja honesta.
— …Acho que vocês deveriam considerar aumentar o valor de suas parcelas.
— Do que você está falando, cara? Se a Mitsugoshi está de boa com a gente pagando só vinte mil, por que iríamos nos dar ao trabalho de dar mais dinheiro a eles?
Po concorda com Skel.
— É, você está falando besteira. Já ouvi falar de estudantes que pegaram emprestado até dez milhões de zeni com eles. Eles emprestam dinheiro para qualquer um, de aristocratas a estudantes. Contanto que sua família tenha propriedades, você está tranquilo.
Eu encaro o teto.
— Agora — anuncia Po —, vamos começar a festa.
— Acabamos de pegar um monte de dinheiro emprestado, e você sabe o que isso significa — diz Skel.
Os dois produzem um baralho de cartas.
— Sério? Mais pôquer?
— O quê, está com medinho? — Skel provoca.
— Se achou que íamos deixar você sair por cima, pense de novo. — Po me diz. — Agora estamos com os bolsos cheios.
— Não…
Solto um grande suspiro. Então, bato uma pilha de notas na mesa.
— …Vamos dobrar ou nada.

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— Droga, a gente ainda vai te pegar! — lamenta Skel.
— M-mas é impossível… V-você roubou! Com certeza você roubou!! — choraminga Po.
Agarro os dois pela gola e os jogo no corredor.
— É, é, tanto faz. Está tarde, então tentem não fazer barulho.
— Espere! Pelo menos nos deixe jogar mais uma mão!
— Não podemos terminar assim! Não com uma derrota!
— Desculpem, mas não tenho utilidade para caras com os bolsos vazios. Boa sorte com os pagamentos de vocês.
Depois de bater a porta atrás deles, eu a tranco.
Ouço murmúrios do outro lado.
— Como? Depois de todo o tempo que passamos aprimorando nossa trapaça?
— Não acredito. Será que realmente perdemos tudo?
— Será que fomos mesmo limpos?
— Parece impossível, mas aqui estamos…
— Droga. Vamos na Mitsugoshi pegar mais dinheiro emprestado.
Eu frustrei todas as tentativas de trapaça deles, é claro, e assim que tentaram me enganar, ganhei o direito de retribuir seus truques na mesma moeda.
Junto os ganhos empilhados na minha mesa e dou um sorriso de canto.
— Parece que Skel e Po acabaram de virar meus novos cofrinhos. E eu não poderia ter feito isso sem vocês, Parcelamento Mitsugoshi.
Assim que o dinheiro fluir do Banco Mitsugoshi para Skel e Po, estarei lá para pegá-lo. Essa é a lei da selva.
— Lá-lá-li, lá-lá-lá.
Canto uma musiquinha qualquer para mim mesmo enquanto guardo o dinheiro no meu Fundo de Guerra.
Então me viro e chamo pela janela:
— Desculpe a espera, Zeta. Já pode entrar.
Uma teriantropa de cabelos dourados aparece silenciosamente no meu quarto.
— Feliz aniversário, Mestre.
— Hã? Ah, é verdade. Acho que fiz dezesseis anos agora.
De fato, a data virou. E, olha só, é meu aniversário.
— Parabéns.
— Valeu.
Sinceramente, não acho que seja algo a ser comemorado. Só tenho cerca de seiscentos anos de vida, e agora, um desses anos se foi. E pensar que ainda não me tornei a Eminência nas Sombras perfeita. A vida humana é realmente passageira.
— Você não gosta de aniversários? — Zeta me pergunta.
— Não são meus favoritos, com certeza. Cada um que passa significa que minha vida tem menos tempo.
— Entendo como se sente. — Zeta me oferece um sorriso pequeno e relaxado. É raro ver um sorriso tão genuíno dela.
— Às vezes, parece que a vida é curta demais para alcançar meus objetivos.
— Mm. Entendo. — Ela concorda novamente. Então me olha com uma expressão séria no rosto. — Vim para falar de algo importante.
— Certo.
Será que é sobre dinheiro?
Zeta já fez muito por mim, então eu não me importaria de emprestar a ela uns mil zeni.
— Você quer a vida eterna, certo?
Respondo instantaneamente:
— Sim, claro.
Há uma parte em que espero cem anos para que as pessoas comecem a me esquecer, então reapareço do nada e faço com que todos digam: “Espere, ele é aquele cara das lendas?”. Com a vida eterna, eu poderia repetir essa cena quantas vezes quisesse. Enquanto estiver vivo, posso apertar o botão de reset na minha configuração de Eminência nas Sombras repetidamente.
Meu plano original era usar magia para viver seiscentos anos, mas isso não é nem de perto o suficiente para aproveitar tudo o que a vida tem a oferecer. Eu só quero continuar sendo eu para sempre.
Vamos lá, Deus, me faça um favor e crie um sistema onde eu possa comprar anos de pessoas que não querem envelhecer.
— Eu entendo como se sente, Mestre.
— Aham.
— Então estou agindo para te ajudar a conseguir.
— Aham?
— Você se lembra do primeiro dia em que nos conhecemos?
— Aham.
Estava chovendo naquele dia, certo?
— Estava nevando e um frio cortante.
Ah, nevando.
— Quando tive a possessão, aprendi como as pessoas eram feias.
— Aham.
— E eu pensei. Sobre as pessoas que nos perseguiam. Sobre como o mundo é estúpido.
Seu olhar se torna frio.
Desde que a conheço, ela sempre fica com esse olhar de vez em quando. É bem legal, então eu secretamente comecei a imitá-la.
— As pessoas repetem seus erros sem parar, sem se cansarem. — Zeta continua. — O mundo nunca fica menos estúpido.
— Aham.
— Pensei que queria morrer. Minha morte não mudaria o mundo. Minha vida não mudaria o mundo. Mas quando te conheci, vi que havia algo que eu precisava fazer…
Com isso, Zeta inicia sua história.
A tribo em que a garota nasceu era um dos grupos de maior status entre todos os teriantropos: o clã Leopardo Dourado. Supostamente, até o rei teriantropo lhes mostrava deferência.
O clã Leopardo Dourado havia conquistado inúmeros clãs menores, e a garota era a filha primogênita da família que governava sobre todos eles.
Ela recebeu o nome de Lilim.
O imenso talento de Lilim era óbvio desde tenra idade, e sua família a criou com orgulho, percebendo que seria mais valioso mantê-la do que casá-la. Seu pai, o patriarca do clã, importava livros para poder dar a ela a melhor educação possível. Mesmo para os comparativamente intelectuais Leopardos Dourados, fazer isso era algo quase inédito.
A garota se afeiçoou àqueles livros como um peixe à água, e esperava com grande expectativa o dia em que poderia usar seu conhecimento para o bem de seu clã.
Lilim era amada por todo o seu clã e cresceu num piscar de olhos.
Quando ela completou doze anos, o desastre aconteceu.
Foi quando as manchas pretas começaram a aparecer em sua barriga. Eram pequenas no início, então ela não lhes deu muita importância, mas quando começaram a se espalhar, Lilim ficou preocupada e foi pedir conselho à sua mãe.
Sua mãe ficou pálida.
Então, sem dizer uma palavra, ela chamou o pai de Lilim. Quando ele apareceu, também ficou pálido.
Foi nesse ponto que Lilim percebeu que algo sério estava acontecendo.
Seu pai olhou novamente para sua barriga.
— …É a possessão — disse ele, mal conseguindo pronunciar as palavras.
A possessão. Lilim ponderou sobre o termo. Em um nível intelectual, ela sabia o que era. Depois de tantos livros que lera, estava confiante de que era a mais instruída de todos em seu clã.
Não importa o quanto tentasse, porém, ela não conseguia conciliar o conhecimento em sua cabeça com as manchas pretas em sua barriga.
A possessão.
Ela refletiu sobre isso repetidamente, e antes que percebesse, estava chorando.
Lilim era uma garota inteligente e, assim que entendeu o que estava acontecendo, soube exatamente o que aconteceria com ela. Os possuídos eram impuros, e essa impureza precisava ser purgada antes que tivesse a chance de se espalhar. Essa era a regra do clã.
Era um grande problema ter uma mancha dessas nascida na linhagem do patriarca, especialmente para um clã tão estimado quanto os Leopardos Dourados. Isso não afetava apenas a ela; a situação poderia derrubar toda a sua família.
Lilim enxugou as lágrimas.
— Pai, você tem que me queimar até a morte.
— Mas…
— As manchas ainda não são tão grandes. A impureza ainda é pequena. Se me queimar agora, você salva a família. Certamente, isso satisfará o clã.
— Mas…!
— Por favor, Pai. Pela nossa família. Pelo meu irmãozinho.
Lilim olhou para o bebê que sua mãe embalava. Ele nascera há apenas meio ano, mas um dia seria o chefe da família.
Ela inclinou a cabeça enquanto suplicava.
— Por favor… Você tem que fazer isso. Você tem que fazer!
— …Eu não farei.
— Pai!
— Não farei! Estava naquele livro dos elfos – dizia que há uma maneira de curar a possessão.
— Não há prova de que seja verdade!
— Dizia que havia uma panaceia que poderia curá-la.
Seu pai começou a procurar ansiosamente pelo livro em questão. Ele normalmente parecia tão grande para Lilim, mas naquele momento, algo nele parecia terrivelmente pequeno.
— O que deu em você, Pai? Recomponha-se. Não vale a pena depositar sua fé nisso. Mãe, fale com ele.
No entanto, sua mãe apenas abaixou a cabeça e não disse nada.
— Aqui, olhe. Está escrito bem aqui.
— Pai, controle-se…
Lilim parou no meio da frase.
Gotas de lágrimas caíam na capa do livro que seu pai lhe entregara. Foi a primeira vez que ela o viu chorar.
— Pai…
— Vou encontrar, eu juro. Por favor, apenas confie em mim e espere.
— Pai, eu…
Lilim sentiu os braços quentes de seu pai a envolverem, e sua mãe se juntou a eles.
— Pai… Mãe…
Lilim vinha segurando as lágrimas, mas naquele momento, elas começaram a cair livremente.
No dia seguinte, seu pai partiu em uma jornada.
— Ele disse que voltará dentro de um mês — explicou a mãe de Lilim enquanto envolvia uma bandagem em volta da barriga de Lilim. — Você terá que esconder sua ferida até lá. Não saia de casa, aconteça o que acontecer.
— Sim, Mãe.
— Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. Vou garantir que nossa família fique segura.
Sua mãe lhe ofereceu um sorriso gentil.
Lily tocou a bandagem que sua mãe enrolou e sorriu também. Algo lhe dizia que tudo ficaria bem.
Um mês depois, Lilim foi acordada no meio da noite.
Estava barulhento lá fora. Talvez seu pai tivesse voltado. Ela seguiu a mãe para fora.
Lá, ela encontrou seu pai. Ele estava amarrado com uma corda e ajoelhado no chão.
— P…Pai?
Cercando-o havia uma multidão de tochas, e suas roupas estavam manchadas de sangue.
Sua mãe falou corajosamente.
— O que vocês pensam que estão fazendo?
— Dizem que um de vocês está manchado. — Um portador de tocha avançou da multidão. Era o chefe de uma família ramo dos Leopardos Dourados. — Manchas têm que ser purgadas. Essa é a regra.
— …
A mãe de Lilim se postou diante da filha, em silêncio.
O chefe da família ramo apontou sua espada para a garganta do pai de Lilim.
— Quem é o manchado? Confesse.
— …Não sei. — Seu pai engasgou.
— Oh, é mesmo?
O chefe do ramo mergulhou a espada no ombro do pai dela.
Sangue jorrou, seguido pelo som de osso se partindo.
O pai de Lilim não gritou. Ele simplesmente permaneceu imóvel, com a cabeça baixa.
— Patético. — O chefe do ramo enfiou a espada novamente.
— Parem com isso imediatamente! — gritou a mãe de Lilim. — Se acham que podem atacar seu chefe e sair impunes, estão muito…
— Oh, eu posso fazer muito. Sou o novo chefe dos Leopardos Dourados. Este coitado traiu o clã.
— Que prova você poderia ter para isso?
— Um sacerdote dos Ensinamentos Sagrados veio à aldeia e me contou. Disse que sentiu o cheiro da possessão. No leste, a Igreja é responsável por reunir os possuídos e purificá-los.
Outro homem avançou do grupo. Ele estava vestido com vestes de sacerdote e usava um sorriso fino.
— Os possuídos devem ser purificados sem demora. Se deixados sem tratamento, sua praga pode se espalhar, levando aldeias inteiras à ruína…
A voz rouca do pai de Lilim interrompeu o sacerdote.
— Mentiroso.
— Desculpe, teriantropo, você disse alguma coisa?
— Eu te chamei de mentiroso, humano.
O sacerdote lançou um olhar ao pai de Lilim, pingando desprezo, e seu pai o encarou de volta.
— E sobre o que exatamente estou mentindo, por favor?
— Tudo. A possessão é uma farsa, inventada pela Igreja.
— Que teoria fascinante. — O chefe do ramo riu. — Parece que ele finalmente enlouqueceu.
A multidão ao redor deles se juntou e riu também. Enquanto isso, Lilim e sua mãe não conseguiam compreender o que seu pai estava falando.
Durante todo o tempo, o sacerdote e o pai de Lilim continuaram se encarando sem sequer piscar.
— Que prova você tem, teriantropo?
— Os Leopardos Dourados têm uma linhagem que remonta a gerações, e durante todo esse tempo, eles vêm transmitindo uma épica de um patriarca para o outro – uma épica sobre a heroína teriantropa, uma das três que enfrentaram Diablos.
— Então uma lenda boba.
— É uma lenda, sim, mas é um pouco diferente da que o resto do mundo ouviu. Nossa versão retrata as três heroínas como mulheres em vez de homens, e chama a possessão de uma bênção em vez de uma maldição.
O olhar do sacerdote endureceu.
— Tudo o que você acabou de dizer é blasfêmia contra a Igreja.
— Há muito tempo me pergunto sobre isso. Por que a versão da história dos Leopardos Dourados era tão diferente da do resto do mundo?
— Essa é uma pergunta estúpida. As lendas mudam e se transformam com o tempo. É o que elas fazem.
— Não tenho tanta certeza disso. Gerações de patriarcas tomaram grande cuidado ao transmitir nossa épica. Não teriam deixado que ela simplesmente mudasse assim. E o mais importante, somos os Leopardos Dourados – descendentes de uma das três heroínas que derrotaram Diablos, Lily, a Leopardo Dourado. Aí está sua resposta.
— …O que você está insinuando?
— Que a versão da história que os Leopardos Dourados transmitiram é a verdade, e que os Ensinamentos Sagrados pegaram essa verdade e a distorceram — declarou o pai de Lilim com olhos límpidos.
Um longo silêncio pairou sobre a reunião.
Eventualmente, risadinhas silenciosas começaram a se espalhar como um contágio, crescendo até se tornarem gargalhadas ruidosas que abalaram toda a aldeia.
O chefe do ramo agarrou o peito enquanto uivava.
— Ah-ha-ha-ha-ha! Isso é ótimo. É hilário! Nem me lembro da última vez que ri tanto!!
— É realmente engraçado, não é? — O sacerdote também riu. No caso dele, porém, o olhar em seus olhos estava o mais longe possível de ser alegre.
— Ok, ok, deixa eu ver se entendi — disse o chefe do ramo entre risadas. — Você está dizendo que a possessão é uma farsa inventada pela Igreja, e que os possuídos são na verdade descendentes dos heróis. Por isso não há necessidade de limpar a mancha. Entendi tudo certo?
— …Sim.
— PALHAÇADA!! — O rugido do chefe do ramo abalou o ar. — Você arriscaria o clã inteiro por causa de uma fantasia delirante?!
— Você pode não acreditar, mas essa é a verdade!
— Pare de inventar mentiras!
O chefe do ramo socou o rosto do pai de Lilim. Ele o atingiu uma vez, depois outra, e outra, e outra, e outra.
Lilim ficou paralisada. Seus joelhos tremiam enquanto ela observava horrorizada.
— Ok, chega de brincadeira. — O chefe do ramo limpou as manchas vermelhas de suas mãos. — Quem é o manchado?
Um pequeno sorriso brincou no canto da boca do pai de Lilim.
— …
— Se não nos contar, queimarei todos eles.
— Você faria isso de qualquer maneira. Só está aqui para me atormentar.
O chefe do ramo ficou em silêncio. Isso por si só já era resposta suficiente.
— Como quiser, então — disse o chefe do ramo finalmente, desembainhando a espada.
— P… pare com isso!
Todos os olhos se voltaram para Lilim.
— S-sou… Sou… eu… — Suas pernas tremiam sob ela. — E-eu… sou… a p-possuída…
Ela podia ouvir o quão patética soava.
Sua visão nadava em lágrimas. Então ela encontrou o olhar do homem que a encarava diretamente – seu pai.
— Escute-me. — Sua voz era extraordinariamente gentil. — O clã Leopardo Dourado descende de Lily, a heroína que uma vez salvou o mundo. Nossa linhagem é algo do qual devemos nos orgulhar. A questão é: por que Lily nos confiou sua história? Por que gerações de nossos patriarcas a transmitiram? Há uma razão para isso. É porque temos um dever.
— Pai…
— O sangue do herói corre mais forte em você do que em qualquer um. Você é inteligente e forte, e eu não poderia estar mais orgulhoso de você. Você tem que ir para o leste, Lilim. Há alguém no Reino de Midgar que pode curar a possessão. É aí que reside nosso dever.
— M-mas, Pai… eu não consigo…
— Você consegue, Lilim. — Com isso, seu pai se virou para sua esposa. — Cuide deles.
Ela lhe deu um pequeno aceno de cabeça e então puxou Lilim para perto.
— Você realmente acha que vamos deixá-los escapar?
Os homens teriantropos já os haviam cercado.
— Vou garantir que sim — respondeu o pai de Lilim. — Mesmo que custe minha vida…
Um rangido alto encheu o ar.
Vinha de dentro do corpo de seu pai. Algo dentro dele pulsava.
Um momento depois, uma quantidade tremenda de magia explodiu de seu corpo, arremessando suas amarras pelos ares.
— D-de onde veio esse poder?! — gritou o chefe do ramo.
— As veias dos Leopardos Dourados correm espessas com sangue selvagem. Eu apenas libertei o meu.
O cabelo dourado de seu pai se projetou para fora. Era como uma juba, como se ele estivesse regredindo de uma pessoa para uma besta.
— I-isso é impossível. Ninguém nunca me contou sobre…
— Esta é uma técnica proibida ensinada apenas ao patriarca do clã – uma que destrói a vida do próprio usuário.
Lágrimas de sangue escorriam pelas bochechas de seu pai. Seus músculos ondularam, veias estouraram e sangue jorrou.
— GRAHHHHHHHHHHHH!!
Com isso, ele se tornou uma besta frenética e arremessou os outros teriantropos pelos ares.
Então ele se posicionou entre sua família e seus inimigos.
— Vão!! — Ele berrou. — Corram!!
— Venha conosco, Pai!!
— Não posso!!
Seu pai olhou para trás, por cima do ombro, e quando Lilim viu seu rosto, ela ofegou.
— …
Era quase completamente bestial.
— Seu pai acabará se tornando totalmente selvagem. Precisamos sair daqui antes que isso aconteça…
— N-não! Pai!
Lilim estendeu a mão para as costas de seu pai. No entanto, sua mão nunca chegou lá.
— Que habilidade fascinante. Nunca imaginei que encontraria descendentes tão longe.
O sacerdote interveio e balançou uma corrente marrom-avermelhada.
— GRAHHHHHH!!
Seu pai afastou a corrente. O peso com espinhos em sua ponta foi arremessado.
— Meu Deus, isso é incrível… Vim apenas para recuperar um possuído, mas parece que minha jornada deu frutos inesperados.
— Rápido, Lilim!! Saia daqui!!
Seu pai investiu contra o sacerdote. Isso lhes deu uma pequena abertura, e sua mãe a usou para pegar Lilim e correr.
— Pai… PAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIII!!
A última coisa que Lilim viu de seu pai foi ele parecendo maravilhosamente grande.
Ainda carregando Lilim, sua mãe corria pela floresta densa. Seus passos não faziam barulho; a mulher era uma mestra da furtividade.
No entanto, seus perseguidores se aproximavam cada vez mais.
Alguns membros do clã Leopardo Dourado tinham olfatos excepcionalmente aguçados, e alguns deles devem ter se juntado à caçada.
— Precisamos nos separar.
Quando chegaram a um rio, sua mãe parou e colocou Lilim no chão. A floresta estava gelada à noite, e uma leve camada de neve caía do céu.
— Vou seguir para sudeste ao longo do rio. Lilim, você atravessa aqui e segue para leste.
Com isso, sua mãe tirou o menino de suas costas e fez menção de entregá-lo.
— Cuide do seu irmão para mim, Lilim.
— Não…! Quero ficar com você, Mãe!
— Não seja teimosa. É só por um tempo. Nos encontraremos em Midgar.
Ela abraçou Lilim com força.
— Mas então por que… por que você está me dando meu irmão?
— Lilim…
— Não sei lutar. E não consigo correr bem como você.
— Lilim, escute-me.
— Certamente, ele estaria mais seguro com você!
— Escute-me, Lilim!!
— Não… — Lilim enterrou o rosto no peito de sua mãe e balançou a cabeça.
— Lilim…
— Se eu não tivesse pego a possessão, se vocês dois tivessem me queimado até a morte… O pai ainda estaria… É tudo culpa minha…!!
— Seu nascimento o mudou, Lilim. Antes, tudo o que ele se importava era lutar com sua espada, então quando o vi lendo um livro de figuras para você, meu coração deu um pulo. Ele andava se gabando para quem quisesse ouvir do gênio que você era.
— Pai…
— Vê-la crescer é a maior felicidade que já tivemos. Lilim… você pode não saber lutar, mas é uma garota tão inteligente. Você tem o conhecimento para superar qualquer adversidade. É por isso que sei que ficará bem.
— Mãe…
— Por favor, Lilim. Cuide dele.
Sua mãe lhe entregou o pequeno bebê. Seu irmão olhou para ela com olhos confusos e inocentes.
Grandes lágrimas rolaram pelas bochechas de Lilim enquanto ela o pegava.
— Obrigada, Lilim. Fomos tão felizes desde que você chegou em nossas vidas.
— Mãe… Prometa que nos encontraremos em Midgar…
— Você precisa ir agora. Atravesse o rio e esconda seu cheiro.
Lilim entrou no rio raso e fez como instruído, depois seguiu para a floresta oriental, olhando para trás a cada poucos passos.
Depois de se certificar de que Lilim e seu irmão haviam partido, sua mãe disparou em uma corrida e seguiu a margem do rio para o sudeste.
Seus passos altos ecoaram pela floresta escura.
Lilim foi para o leste.
Leste, como se puxada por uma força invisível.
Ela correu pela floresta escura. A noite de inverno a gelou até os ossos, e suas mãos e pés pareciam congelados.
Então, bem quando o amanhecer rompeu, ela emergiu da floresta.
— Eu conheço isso…
Era a primeira vez que via aquelas praias arenosas ou aquela água que se estendia até o horizonte, mas sabia exatamente o que estava vendo.
— …É o mar.
Ela lambeu a espuma, só para ter certeza.
— É salgado.
Não havia como confundir.
— Pai… não há nada aqui.
Lilim soltou uma lufada de ar enevoado. Havia neve caindo do céu.
Ela se sentou na praia fria e baixou a cabeça.
— Fui para o leste… e não há nada aqui. Onde está meu dever? Onde está Midgar? Quero minha mãe…
Seus pés pareciam tijolos. Ela não conseguia dar mais um passo. As manchas pretas haviam se espalhado por todo o seu peito, e latejavam de dor.
No entanto, ela ainda segurava seu irmão nos braços. A vida minúscula dele fora confiada a ela, e ela sabia que precisava protegê-lo.
— Vamos. Vamos atravessar o mar.
Ela sabia que havia um país do outro lado do mar. Não sabia se era o Reino de Midgar ou não, mas seu pai havia dito que era, então certamente devia ser.
Sua mãe a esperava lá. Talvez seu pai também estivesse.
Se ela continuasse pela praia, acabaria encontrando uma vila de pescadores. De alguma forma, ela teria que convencê-los a lhe dar uma carona em um de seus barcos.
Lilim partiu novamente.
Bem quando o fez, porém…
— Ahhh, então foi aqui que você veio parar.
…o sacerdote chegou. Sangue pingava de suas correntes barulhentas.
Lilim recuou com passos trêmulos.
— A-afaste-se de mim…
— Agora, a questão é: onde está o possuído? — O sacerdote sorriu diabolicamente e ergueu uma cabeça decepada. — Não era ele.
— P… PAAAAAAAAAAAAAAAAAIIIIIIIIIIII!!
A cabeça pertencia ao pai dela.
Vendo o quão ensanguentada estava, não foi difícil para ela imaginar o quão valente sua morte tinha sido.
— Também não era ela. — O sacerdote ergueu outra cabeça.
— MÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃE!!
Aquela era de sua mãe.
Ela morrera com os olhos bem abertos e o olhar fixo em algo.
— Por quê…? Por quê?!
— Isso deixa apenas duas opções.
O sacerdote jogou as cabeças de lado e caminhou em direção a Lilim.
— Nãooooo… Pai… Mãe…
— Quase não há relatos de homens com a possessão, mas isso não significa que eles não existam.
Lágrimas escorriam pelas bochechas de Lilim enquanto ela abraçava o bebê com força.
— A-afaste-se… N-não encoste um dedo no meu irmão…
— Agora, qual de vocês é o possuído?
— S-sou eu. Eu sou a possuída, então, por favor, deixe meu irmão em paz…
— Boa menina. Agradeço sua honestidade. — O sacerdote afagou a cabeça de Lilim com sua mão ensanguentada.
— Eek…
— Você e eu talvez passemos um bom tempo juntos, então talvez seja melhor me apresentar. Meu nome é Sumo Sacerdote Petos, e você, mocinha, é um espécime de teste extremamente valioso.
— O… e o meu irmão…?
— Não se preocupe. Não tenho utilidade para crianças sem a possessão. — Petos bateu na cabeça do irmão dela com sua corrente. — Vou me certificar de que ele tenha uma morte indolor.
Sangue espirrou.
Lilim sentiu a cabeça de seu irmão rolar de seus braços.
— AaaaaaaaaahhhhhhhhHHHHHHHHHHHHHHHHH!!
Enquanto Lilim gritava, Petos olhou para ela e soltou uma risada maníaca.
— Heh-heh. Hee-hee-hee-hee-hee-hee-hee-hee. Vamos comemorar, que tal?
— AHHHHHHHHHHHHHHHHHH!! Por quê?! Por que você fez isso?!
— Que dia auspicioso tem sido. Você abriu um caminho para mim direto para os Noturnos.
Lilim pegou as três cabeças que jaziam no chão – a de seu pai, a de sua mãe e a de seu irmão.
— Ahhhhhhhhh… Vou te matar… Vou te matar!!
O ódio queimava nos olhos de Lilim enquanto ela gritava.
No entanto, Petos ignorou seus gritos e virou-se de costas para ela.
— Terminaram?
Quando ele chamou em direção à floresta, um grupo vestido com mantos estranhos apareceu de dentro dela.
— Sem sobreviventes — respondeu um membro.
— Mostre-me.
Uma coleção de cabeças rolou pela praia arenosa. Todas pertenciam a Leopardos Dourados.
— Eliminamos todo o clã Leopardo Dourado. Agora não precisamos nos preocupar com o vazamento dessa informação.
— Ah, não é ótimo? — Petos dirigiu sua resposta a Lilim. — Olhe, o assassino do seu pai está morto.
Com uma risada, ele jogou uma das cabeças para ela. Pertencia ao chefe do ramo.
— AhhhhhhhhhhhhhhhhhhHHHHHHHHHHH!!
Lilim correu pela praia e investiu contra Petos.
No entanto, ele a afastou com sua corrente.
— Koff… M-matar… você… Matar…
Ela não conseguia reunir forças. Sua consciência começou a se esvair.
— Amarrem-na e levem-na para o laboratório Variola. Preciso preparar o terreno com a facção…
E então ela desmaiou completamente.
Quando Lilim acordou, encontrou-se em uma carruagem. Suas mãos e pés estavam amarrados, e sua boca tinha gosto de sangue.
— Vou matá-los… Vou matar todos eles.
Seu murmúrio arrancou um bufo divertido do homem que a guardava.
— Vou matá-los…
Suas glândulas lacrimais já haviam secado. Naquele ponto, a única coisa que a mantinha de pé era o ódio.
O que ela precisava era de poder.
O conhecimento era inútil. Não podia proteger ninguém. A única coisa que poderia libertá-la era a força pura e desenfreada.
Então ela rezou: “Quero poder…” Poder suficiente para quebrar suas amarras, poder suficiente para matar o sacerdote, poder suficiente para…
A voz pareceu vir do nada.
— Você quer poder, é?
— Hã…?
Lilim olhou ao redor, mas a única pessoa ali era o guarda.
— Você quer poder?
Desta vez, ela teve certeza de que ouviu. A voz era profunda, como se estivesse ressoando das profundezas do abismo.
— Quero! Se eu tivesse poder… Se eu tivesse poder!!
— Ha-ha, a garota enlouqueceu.
Aparentemente, o guarda não conseguia ouvir a voz. No entanto, ela chegou aos ouvidos de Lilim, alta e clara.
Ela não se importava se estava apenas imaginando coisas ou se aquela voz pertencia ao próprio Diabo. Isso não faria diferença para ela.
Tudo o que ela queria era poder.
— Se é poder que você quer… então poder eu lhe concederei.
De repente, uma magia azul-púrpura se materializou na carruagem.
— Q-que luz é essa?!
A carruagem parou bruscamente, e homens entraram do lado de fora.
— O que aconteceu?! O que há com a magia?!
A magia se desfez em finas partículas e começou a espiralar.
Então, uma figura apareceu no meio da espiral. Era um garoto vestido com um longo casaco preto como a noite.
— Como diabos ele entrou aqui?!
— Agarrem-no! Tirem-no da carruagem!
— EU SOU…
No centro da espiral, o garoto ergueu uma lâmina de ébano. O próprio ar tremia com a imensidão de sua magia.
Lilim observava enquanto o poder incomparável se acumulava na espada do garoto. Era aquilo – era aquilo que ela procurava: poder suficiente para esmagar tudo em seu caminho.
— …QUASE ATÔMICO.
A magia explodiu para fora.
Todo o som desapareceu, e o mundo inteiro foi inundado por uma luz azul-púrpura.
— Eh, eu daria uns sessenta de cem. Ainda precisa de alguns ajustes.
Lilim acordou com o som da voz do garoto. Ela devia ter desmaiado.
— Isso não é o suficiente. Não para o que estou tentando alcançar…
O garoto murmurava no centro de uma cratera. A carruagem havia sido destruída, e o grupo sinistro desaparecera sem deixar vestígios.
Lilim tremeu. Mas não de medo.
— C-com licença… — Ela começou a dizer.
— Hã? Ah, você acordou. Aqui, deixe eu resolver essa possessão para você.
Com isso, o garoto liberou uma explosão de magia azul-púrpura. Depois de envolver as manchas pretas de Lilim em calor, a magia brilhou e devolveu sua pele à condição original, como se tivesse rebobinado o próprio tempo.
— Não pode ser… É impossível.
Quando a magia desapareceu, as manchas haviam sumido completamente. A possessão que a atormentava, ele a curou num piscar de olhos.
— Essa, porém, eu daria noventa e cinco de cem. Meu controle foi quase impecável. Dito isso, me deixou um pouco exausto.
— Ele estava certo… — Lágrimas sinceras começaram a brotar nos olhos de Lilim. — Ele estava certo… O pai estava certo…
— Hã?
— Ele disse que os possuídos eram descendentes dos heróis… E que havia alguém no leste que poderia curar a possessão… Ele estava certo sobre tudo.
— Caramba, eu não sabia que nossa história já tinha se espalhado tanto.
— Então, por quê? Por que meu pai e minha mãe tiveram que morrer…? Por quê? Nenhum deles fez nada de errado!
O garoto coçou a cabeça por um momento.
— É por causa do Culto de Diablos. Toda a desgraça é culpa deles.
— O Culto de Diablos?
— Sim. Aqueles homens agora há pouco não eram da Igreja dos Ensinamentos Sagrados. Eram secretamente Cultistas. Eles esconderam a verdade e agora estão tentando eliminar os descendentes dos heróis sem que a história saiba, e reviver o demônio Diablos. Para eles, os descendentes dos heróis são uma ameaça. — Seu longo casaco preto esvoaçava atrás dele enquanto falava. — Nós somos o Jardim das Sombras. Espreitamos na escuridão e caçamos as sombras.
— Espreitar na escuridão e caçar as sombras…
O coração de Lilim tremeu.
Tudo estava se encaixando.
— Então o Pai estava certo, afinal.
— Sim.
— Ele me disse que havia alguém em Midgar que poderia curar a possessão. Disse que era lá que estava meu dever.
— Hã? Sim, com certeza.
— Você deve ser meu dever.
Esse era o seu dever.
Seu pai morreu, sua mãe morreu e seu irmão morreu. Todos eles se sacrificaram para mantê-la viva.
— Preciso de poder… Por favor, dê-me o poder para caçá-los!
— Muito bem. Ela chegará em breve.
— Quem?
No momento em que a pergunta saiu de sua boca, houve um brilho na escuridão.
Esse brilho acabou sendo uma bela elfa loira vestida com um macacão preto.
— Eu te disse para esperar! Não conseguimos acompanhar sua velocidade — resmungou a garota.
— Bem, a missão está cumprida.
A garota elfa lançou um olhar de reprovação ao garoto.
— Percebo que sim. Aquilo é definitivamente uma carruagem do Culto, embora uma que tenha sido reduzida a pedacinhos. Quantas vezes preciso te lembrar para deixar evidências suficientes para coletarmos?
O garoto coçou a cabeça por um momento.
Sua contraparte élfica soltou um suspiro derrotado e então olhou para Lilim.
— Então ela é a nova?
— Isso mesmo. Confio que você pode cuidar do resto.
— Hã? Espera, calma aí!
O garoto se virou para Lilim.
— Você pode pegar os detalhes com Alpha. — Com isso, ele desapareceu no ar.
— Eu juro! Ele sempre faz isso, simplesmente desaparece do nada.
— Hum… quem é você? — perguntou Lilim.
A garota lhe deu um sorriso caloroso.
— Desculpe por tudo isso. Parece que você levou um belo susto. Sou Alpha, a primeira membra do Jardim das Sombras. Prazer em conhecê-la.

— Alpha… Eu sou…
— Não. — Bem quando Lilim estava prestes a se apresentar, Alpha a interrompeu. — Você vai viver com um novo nome a partir de agora.
— Hã?
— Nós espreitamos na escuridão e caçamos as sombras. Para nós, nossas personas públicas são apenas isso. Somente na escuridão nós realmente existimos. Mesmo que isso signifique que talvez nunca possamos voltar para a luz. — Alpha estendeu uma máscara e fixou seus lindos e límpidos olhos azuis em Lilim. — Se você tiver determinação suficiente para fazer o mesmo, então pegue isto e se torne a sexta membra do Jardim das Sombras, Zeta.
— Zeta. — Lilim murmurou, refletindo sobre o nome. — Eu sou… Zeta…
— Parece que sua determinação é firme. Você tem olhos fortes. Mas…
— Quero poder.
— Você tem muito talento. Se tornará poderosa com o tempo. Mas um dia, esse seu ódio…
Alpha estava prestes a dizer algo, mas se conteve. Seu olhar azul permaneceu em Lilim por um bom tempo.
— Não, não é nada — disse ela, tristemente.
Lá no alto, no céu noturno, a neve branca continuava caindo em silêncio.
— Hmm. Que barra.
Assim que Zeta terminou sua história, ele faz um breve comentário enquanto olha pela janela.
Suas palavras são diretas.
No entanto, elas encapsulam tudo o que precisam. Zeta não estava procurando por compaixão barata.
Assim, ela responde com a mesma franqueza.
— Sim. Barra pesada.
Ela pegou o ódio daquele dia e o selou no fundo de seu coração. Emoções desnecessárias apenas atrapalhariam seu plano.
Antes mesmo de perceber conscientemente, ela começou a economizar nas palavras para evitar que seus sentimentos escapassem acidentalmente.
No entanto, Zeta prefere assim. Toda vez que seus sentimentos ou seu corpo evoluem, ela sente que está se aproximando de seu objetivo.
— Sou uma gata de rua. Apenas uma gatinha que você acolheu. É por isso que pensei muito sobre que tipo de mundo você quer. Você não me contou, então tem sido um pouco difícil.
— Foi?
— Sim. Foi.
Seu mestre levanta a taça de vinho.
Zeta rapidamente pega a garrafa e o serve. Então, ela se aninha perto dele.
— Você quer a vida eterna. Agora entendo o que isso significa.
— Fico surpreso que tenha percebido.
— Você está olhando para o futuro distante. Eu também.
— Entendo…
Ele encara a escuridão profunda além da janela. Zeta também olha para a escuridão profunda.
— Vou reviver Diablos. — Ela diz.
— Entendo.
— Então você não vai me impedir?
— Não tenho intenção de rejeitar sua escolha.
— Você é muito gentil, Mestre. Gentil demais para fazer essa escolha sozinho.
— É mesmo?
— A gentileza não pode mudar o mundo. Sua gentileza está te prendendo.
— …É mesmo?
— É. Mas eu não sou gentil. Reviverei o demônio, mesmo que isso coloque o mundo em perigo.
— Você será odiada.
— Por mim, tudo bem. O mundo precisa disso. — Zeta se inclina hesitante contra o ombro dele. — Então eu assumirei o desprezo deles em seu lugar. Esse é o meu dever.
— Entendo…
Zeta se afasta e vira as costas para ele.
— Se chegar a hora, me descarte.
Com essas últimas palavras, ela desaparece na noite.
Zeta está no telhado noturno e observa a academia.
Sua cauda dourada balança na brisa fria do inverno.
— Está na hora. — Ela murmura.
— Finalmente?
— Vejo que tomou sua decisão.
Há duas figuras paradas atrás dela.
Uma delas é Victoria. A outra é uma garota com o capuz baixo.
— Vou reviver Diablos — declara Zeta.
— O que Mestre Shadow disse? — pergunta Victoria.
— Conversamos. Só isso.
— Então você conseguiu a permissão dele?
— Esse nunca foi meu plano. Mas se ele fosse me impedir, eu teria parado.
Victoria sorri.
— Entendo que isso significa que ele tem que te dizer para parar.
— Não. De agora em diante, agirei por conta própria.
— Sabe que isso significa trair o Jardim das Sombras.
— Não me importo. Alpha é muito mole. Ela não tem visão para depois que esmagarmos o Culto. Mas eu tenho. — Zeta estreita seus olhos roxo-gelo. — Reviverei Diablos e obterei a vida eterna. Então controlarei o mundo para sempre.
As bochechas de Victoria coram de êxtase.
— E o Mestre Shadow se tornará um deus.
— Você será odiada — diz a garota encapuzada, que permaneceu em silêncio durante o resto da troca de palavras.
— O Mestre quer a vida eterna. Eu carregarei todo o pecado.
— Vamos fazer isso, então, que tal? Vida longa ao Mestre Shadow.
— …O plano prossegue.
Victoria e a garota encapuzada desaparecem sem fazer barulho.
Agora Zeta está sozinha no telhado. Ela encara intensamente as luzes da academia.
— Vou roubar tudo – a vida eterna e o controle do mundo. Então… finalmente teremos um mundo perfeito onde erros nunca mais acontecerão.
As luzes tremeluzem na escuridão da noite. Elas lembram Zeta das tochas daquela noite de tanto tempo atrás.
— Este é o meu dever.
Ela se aperta com força para verificar.
Bom, seus joelhos não estão tremendo.
Seu coração está calmo.
Sozinha, ela solta um longo e enevoado suspiro na noite. Então, acrescenta algumas palavras.
— Pai… Mestre… agora sou forte.
Tradução: Gabriella
Revisão: Pride
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