Império Tearmoon – Vol. 01 – Cap. 59 – Os Sonhos e Memórias de uma Mia Resfriada

— Uuugh… Uuuuugh…

Mia gemia deitada na cama, sofrendo com uma doença daquelas. No dia do torneio de esgrima ela ficara na chuva, ensopada até os ossos, enquanto assistia à partida fascinante entre Abel e Sion. Após a conclusão, correra rapidamente para Abel para cobri-lo de elogios. Já emocionada com o desempenho dele, sua empolgação atingiu o auge quando ele destacou como a luz do sol dançando em seus cabelos molhados lhes dava um novo brilho deslumbrante. Como resultado, apesar das repetidas tentativas de Anne para convencê-la a se secar, ela passou o resto do dia correndo por aí com o cabelo molhado, o que prontamente a levou a pegar um resfriado.

Pouco depois do meio-dia, Mia abriu lentamente os olhos.

— Anne? Você está aí? Anne?

Com os olhos ainda pesados de sono, ela deu uma olhada lenta pelo quarto.

— Nossa, que estranho — murmurou ela, intrigada.

Estava um silêncio total. Não havia ninguém além dela. O quarto estava uma bagunça. Apenas uma tentativa superficial havia sido feita para dobrar as roupas que estavam espalhadas, e canetas haviam sido deixadas destampadas na escrivaninha. Embora estivesse claramente malcuidado, a sensação de desordem no quarto parecia estranhamente familiar.

Ah, eu sei… Isso foi de…

Ela se lembrou de uma época, na linha do tempo anterior, em que também estivera doente com um resfriado.

— Isso mesmo. Eu me lembro. Quando acordei… Aquela garota não estava lá. — Depois que Mia adormeceu, a garota que servia como sua dama de companhia a deixara para sair. Sendo a terceira filha de uma poderosa família nobre, nunca lhe faltavam sorrisos ou lisonjas quando estava em sua presença. Ela sempre fora uma favorita, e Mia achava seus generosos elogios música para os ouvidos.

Lembro-me de ouvir de outros mais tarde que ela não queria pegar meu resfriado, então foi tomar chá com suas amigas atendentes…

Tendo acordado completamente sozinha, os raios brilhantes do sol da tarde iluminando o vazio de seu quarto, ela se sentiu subitamente muito pequena. Uma sensação avassaladora de pavor tomou conta de seu coração. Ela apertou o lençol e fechou os olhos, sentindo como se tivesse sido deixada para trás em um mundo árido, completamente sozinha.

— Milady… Milady…

Ela sentiu seu corpo ser sacudido. Lentamente, abriu os olhos.

— Milady Mia, você está bem?

O rosto preocupado de Anne apareceu.

— Fwha? Oh, Anne… Então… aquilo foi um sonho?

Confusa, ela deu uma olhada nervosa pelo quarto. Estava perfeitamente arrumado. Alguém havia limpado enquanto ela dormia? Não havia uma camisa perdida à vista. Não só isso, mas algo no quarto parecia reconfortante. Ela podia sentir a tensão se esvaindo dela. Era o oposto do quarto em seu sonho. Aquele a fazia se sentir desconfortável, como se não pertencesse a ela de forma alguma.

— Você esteve muito inquieta. Teve um pesadelo?

— Oh… N-Não se preocupe com isso.

Anne soltou um suspiro de alívio e sentou-se novamente. Ela havia movido uma cadeira para o lado da cama e parecia ter vigiado Mia todo esse tempo.

— Anne, você deveria ficar longe… ou vai pegar esse resfriado também…

— Do que está falando, milady? Eu sou super saudável, então não se preocupe comigo — declarou Anne com as mãos na cintura. — Pare de pensar em tantas coisas e apenas descanse por enquanto.

Então ela removeu o pano da testa de Mia e o substituiu por um novo. Uma sensação confortável de frescor permeou sua testa febril, e Mia rapidamente adormeceu novamente.

— Princesa Mia, olhe. Aquela garota está lendo sozinha de novo.

— Ora, é mesmo?

Era início da tarde, e um dos membros da comitiva de Mia sorriu e apontou para o canto da sala de aula onde Chloe estava sentada. Chloe não existia nas memórias de Mia de sua vida passada. Elas nunca haviam sido amigas, e quase não houve interação entre elas. Portanto, Mia não tinha nenhuma lembrança do que havia acontecido naquele dia.

— Diga, Princesa Mia, o que você acha daquela garota Chloe?

— Ouvi dizer que ela comprou o título dela, com dinheiro. Não acredito que a academia deixaria entrar alguém assim.

Enquanto o séquito de Mia se revezava zombando de Chloe, Mia não participou, mas também não os impediu.

— Não vejo o que vocês acham tão interessante nela. Mais importante, vocês ouviram? Aparentemente, o atendente do Príncipe Sion é um plebeu, mas muito bonito…

— Ah, Princesa Mia. Você está acordada?

Quando ela acordou novamente, Chloe estava ao seu lado.

— Ah, Chloe…

Chloe fechou silenciosamente o livro em suas mãos e se inclinou.

— Há algo que você gostaria que eu fizesse por você? Gostaria de um pouco de água? Ou algo para comer?

— Obrigada por vir me ver, mas você não deveria chegar muito perto de mim ou vai pegar… O que é isso?

Mia não pôde deixar de perguntar quando notou o tecido branco cobrindo a metade inferior do rosto de Chloe, obscurecendo tanto o nariz quanto a boca.

— É uma espécie de máscara, e impede que resfriados se espalhem.

Mia ficou impressionada. As filhas de comerciantes ricos não deviam ser subestimadas. Elas claramente sabiam das coisas.

— Anne foi buscar mais água fria. Ah, e eu trouxe alguns remédios para resfriado que meu pai me mandou há um tempo. Vou deixá-los aqui. Por favor, certifique-se de tomá-los mais tarde — disse Chloe com um sorriso.

Mia mordeu o lábio. Depois de um momento, ela disse em voz baixa: — Eu… te devo um pedido de desculpas.

— Hã?

Ela ignorou o olhar vazio que Chloe estava lhe dando e continuou.

— Naquele dia, eu vi seu sofrimento… e escolhi ignorá-lo. Sinto muito por isso.

— …Hum, Princesa Mia, isso foi um sonho que você teve ou algo assim? — A jovem comerciante riu baixinho.

Um sonho… Talvez tenha sido.

Talvez realmente não tivesse acontecido. E mesmo que tivesse, era de um tempo muito distante. Que diferença havia entre um futuro que nunca aconteceu e um sonho? Talvez fossem a mesma coisa. A culpa, no entanto, era real. Ela podia sentir a dor disso pressionando seu coração.

— Princesa Mia, desde que você se tornou minha amiga, eu me diverti tanto. Eu realmente gosto de fazer coisas com você, como quando fizemos sanduíches juntas. Além disso, posso conversar com você sobre as histórias que leio. Sempre sonhei em ter uma amiga como você. Então, por favor, não há nada pelo que você precise se desculpar.

Enquanto ouvia, Mia sentiu o peso em seu coração ficar um pouquinho mais leve. Suas pálpebras caíram novamente, e ela sussurrou suavemente: — Você poderia… me contar uma história…

— Hm?

— Algo que eu gostaria que você fizesse… Se você leu alguma história interessante ultimamente… Poderia me contar uma?

— Tudo bem, então. Vejamos. Nesse caso…

Sentindo o agradável arrepio da voz suave de Chloe em seus ouvidos, Mia adormeceu mais uma vez.

— Bem. Cuide-se na estrada então, Lady Tiona.

Era o último dia antes das férias de verão. Sion estava se despedindo de Tiona com um sorriso brilhante. Ela se inclinou para fora da janela e sorriu de volta. Somente depois que sua carruagem começou a dobrar uma esquina ela se sentou novamente.

Numerosas pessoas haviam se reunido em volta de Sion, todas esperando para se despedir dele. A multidão crescente deixava Mia cada vez mais ansiosa, mas ela continuou a trocar despedidas com seu próprio grupo de garotas.

— Princesa Mia, meu pai adoraria ter a chance de conhecê-la pessoalmente.

— Assim como eu. Posso ter a honra de apresentar meus respeitos pessoalmente a você e a Sua Majestade Imperial durante o verão?

— Não, você deve nos visitar primeiro! Embora nosso reino seja pequeno, é um maravilhoso resort de verão.

Enquanto cumpria as formalidades de atender aos pedidos delas um por um, ela continuava espiando Sion. Uma vez, ele olhou em sua direção e seus olhares se encontraram. Seus olhos normalmente brilhantes de repente ficaram frios. Por um segundo, sua expressão escureceu. Então, ele desviou o olhar, como se já tivesse perdido o interesse nela.

Mia viu a mudança em sua expressão, mas não tinha ideia do que significava.

Eu me pergunto por que o Príncipe Sion não está vindo se despedir… Ah, já sei. Ele deve se sentir sem graça depois de recusar minha lancheira. Oh, ele é tão bobo. Ele realmente acha que eu guardaria rancor por isso?

Mia permaneceu completamente alheia aos sentimentos de Sion e Tiona até que as chamas da revolução começassem a arder. Não só isso, ela nem sequer tinha uma boa noção do que as garotas de sua própria comitiva estavam pensando. Nunca dedicou um pensamento aos sentimentos dos outros. Nem uma vez… até que o mundo como ela o conhecia chegou ao fim. Foi por isso…

Durante o último ano que passou em São Noel antes que o conflito consumisse a terra — quando o Império começara a entrar em colapso sob o peso de seus próprios problemas financeiros e violentos tumultos começaram a se espalhar — Mia se viu sozinha no último dia de aula.

— Como… chegamos a este ponto?

Não restava uma única pessoa que se desse ao trabalho de vir se despedir. Nenhum dos outros nobres de Tearmoon estava em condições de enviar seus filhos para a escola, e estudantes de outros reinos não tinham desejo de se associar à princesa de um império em queda.

Ela estava sozinha agora. Verdadeira e inegavelmente sozinha.

Enquanto vagueava pelo pátio, encontrou Sion. Cercado por uma multidão de estudantes, ele era popular como sempre. Quando ele a viu, fixou-a com um olhar frio e duro e, com uma voz que poderia cortar aço, disse: — Eu te desprezo, Princesa Mia.

— Hyaaaaaaaaah!

Mia gritou ao saltar da cama. Estava encharcada de suor.

— Ah… A-Ah… Foi… um sonho?

Uma xícara apareceu na frente dela. Ela a agarrou e engoliu o conteúdo. Água fresca e refrescante aliviou sua garganta seca.

— Obrigada. Eu precisava disso.

— De nada. Mas você está bem? Suponho que estivesse tendo algum tipo de pesadelo, considerando o quão violentamente você estava se revirando.

Uma mão tocou sua testa. Era agradável e fresca. Ela estava prestes a fechar os olhos e aproveitar o quão bom aquilo era, foi quando a voz começou a se registrar completamente em sua mente.

E-Espere… Eu não conheço essa voz…?

Lentamente, ela virou o pescoço para o lado e arriscou uma espiada nervosa.

— Eeeeek!!

Ela se assustou e soltou um grito de surpresa quando viu o rosto da pessoa.

— P-Príncipe… Abel? Mas, mas… O que você está fazendo aqui? — Seu olhar era gentil, e sua voz era suave.

— Certo, desculpe por isso. Sei que não deveria estar observando uma dama dormir, mas a Senhorita Anne me pediu para ficar de olho em você por um tempo.

Mia teve uma visão de Anne fazendo um sinal de positivo para ela.

Sei que você acha que está ajudando, Anne, mas está ajudando de todas as maneiras erradas!

Ela puxou o cobertor até a boca.

— Muito obrigada por vir me ver, mas você não deveria ficar aqui. Eu não gostaria que você pegasse um resfriado de mim.

— Sabe, eu não me importaria de ficar doente.

— Hã? O que você quer dizer?

— Oh, é que, uh, de onde eu venho, dizem que você pode se livrar do resfriado de alguém pegando-o você mesmo. Se realmente funcionar, então eu não quereria nada mais do que pegar seu resfriado para que você melhore. — Ele coçou a cabeça e riu, meio envergonhado.

— Nossa…

Seu charme juvenil provocou uma risadinha de Mia também, e os dois se entregaram a algumas brincadeiras amigáveis por um tempo.

— Falando nisso, está quase na hora das férias de verão — disse Mia.

— Você vai voltar para o Império?

— Sim, vou. Há muitas coisas que gostaria de fazer em casa. Pretendo ficar lá até as aulas recomeçarem.

Férias longas não significavam que ela poderia simplesmente ficar sentada e vadiar. Ela tinha que fazer o máximo que pudesse para se salvar daquela guilhotina iminente.

— O que você pretende fazer, Príncipe Abel?

— Eu também vou para casa, mas pretendo voltar para a escola um pouco mais cedo. Esperava ter a chance de passar algum tempo com você então, mas parece que não terei tanta sorte neste verão.

Co-Como é que ele consegue dizer coisas assim com uma cara perfeitamente séria? Oh, meu coração…

Mia rapidamente desviou o olhar e se esforçou para se acalmar. Bem quando estava prestes a respirar fundo, ouviu uma batida na porta.

— Ah, isso me lembra. O Príncipe Sion e Lady Tiona mencionaram que viriam mais tarde. Devem ser eles.

— Nossa, parece que sou uma celebridade hoje.

Claro, em sua cabeça, ela estava pensando: Ugh, que incômodo. Como se o resfriado já não fosse ruim o suficiente.

Então, ela franziu a testa. Havia uma estranha dissonância entre suas palavras e suas emoções. Por alguma razão, ela não se sentiu tão irritada com a visita deles quanto pensara. Decidiu atribuir isso a todo o sono que tivera. Até mesmo sua febre parecia estar diminuindo, pois notou que sua cabeça parecia muito mais leve.

— Com licença — disse Sion enquanto a porta se abria. — Olá, Princesa Mia. Como está se sentindo? É um resfriado forte?

— Eu trouxe algo para ajudar com a febre — acrescentou Tiona. — Meu irmão mais novo fez com as ervas que ele cultiva. Não é nada sofisticado, então espero que você não se importe…

Gradualmente, uma atmosfera amigável e agradável encheu o quarto de Mia. Era um tipo de ambiente em que ela estivera completamente ausente em sua vida anterior, e ela passou o resto do dia em seu abraço gentil, apreciando o calor acolhedor da companhia.