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O Começo Depois do Fim – Cap. 500 – Verde no cinza

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POV TESSIA ERALITH

 

Soprei o vapor da superfície da minha caneca a caminho dos lábios enquanto soltava uma risada. O wyvern, Avier, estava em pé no meio de uma pequena mesa redonda entre Mordain, Lyra e eu. Naquele momento, a coruja de penas verdes e chifres pulava de uma perna para a outra, falando rapidamente.

— E então ela olha para mim, com a cabeça entre as mãos, naquele momento eu só conseguia ver os olhos dela através dos dedos espalhados, e diz: “Eu simplesmente não sei o que fazer com o garoto, Avier. Ou o penduro numa forca… ou faço dele um professor!” Bem, todos sabemos como isso terminou.

Meus ombros sacudiram enquanto eu ria, e precisei pousar minha caneca antes que derramasse o conteúdo. Lyra Dreide olhava perplexa entre mim e o wyvern. Mordain soltou uma risada suave, seu olhar perdido no vazio.

Estávamos sentados no escritório privado de Mordain. As paredes arredondadas estavam cobertas por prateleiras curvas repletas de livros, cristais estranhos e uma variedade de objetos que não reconheci de imediato. Ele nos havia convidado para tomar chá mais uma vez antes de Lyra Dreide e eu partirmos do Santuário. Wren Kain já havia retornado a Darv, relutante em deixar seu trabalho para trás por mais tempo.

— Ela sabia que ele era o garoto que Agrona procurava, é claro, mas Cynthia já esperava que houvesse mais nele, mesmo naquela época — continuou Avier, agora mais sério. — Cynthia não era uma vidente, veja bem, mas era inteligente. Talvez a pessoa mais inteligente que já conheci. Arthur era mais do que apenas um quadra elemental. Ele compreendia a mana de uma forma impossível para um garoto da idade dele. — Avier hesitou, então continuou em um tom mais suave: — Ela até pensou, por um tempo, que ele pudesse ser o Legado.

Lyra Dreide tamborilou as unhas na lateral de seu copo.

— Incrível que ela tenha vivido tanto tempo depois de se voltar contra Agrona. Que uma única mulher pudesse atrapalhar a rede de informações de um continente inteiro, e contra nada menos que uma divindade.

— Agrona não é uma divindade — cortei de forma áspera, sentindo imediatamente o desconforto revirar em meu estômago ao perceber para quem eu estava falando. Lançando um olhar de Lyra para Mordain, inclinei a cabeça. — Ah, desculpem.

Mordain me deu um sorriso tranquilo e acenou com a mão, dispensando a preocupação. Ele estava sentado de lado em uma cadeira de grama trançada, uma perna cruzada sobre a outra, segurando uma caneca verde frouxamente em uma das mãos.

— Os asuras não são “divindades”, ou quaisquer que sejam os rumores que os agentes de Kezess fomentaram ao longo dos séculos. Ironicamente, porém, o próprio Agrona é provavelmente a coisa mais próxima de uma divindade que este mundo já viu.

O rosto de Lyra se contraiu.

— Porque ele criou os alacryanos, você quer dizer.

— Exatamente. Embora louco e indubitavelmente maligno, sua genialidade é inegável. Criar uma raça inteiramente nova à sua própria imagem. — Mordain balançou a cabeça com pesar.

— Eu vi de perto o quanto Cynthia precisou se esforçar apenas para escapar do alcance do clã Vritra — disse Avier eriçando suas penas verdes. — Em seus momentos mais sombrios, ela desmoronava e chorava enquanto detalhava as depravações em que havia participado, tudo em nome de Agrona. Perdoe-me, Lady Dreide, mas eu sempre tive dificuldade em entender como alguém de bom coração poderia nascer de tanta escuridão.

— Alguém nasce mau? — perguntou Lyra, girando seu copo antes de esvaziá-lo. — Cynthia Goodsky e eu fomos ambas forjadas em instrumentos amargos por mestres cruéis. Se fizemos o mal, foi porque nos disseram que era o bem. Aprendemos isso, assim como eventualmente aprendemos algo melhor. Não sei se todas as pessoas são capazes de tal mudança, mas preciso acreditar que são.

Eu me peguei franzindo a testa enquanto lutava para alinhar as palavras da retentora com minha própria experiência em Alacrya.

— Acho que a capacidade, ou melhor dizendo, a disposição de admitir que esteve errado e realmente mudar é algo bem excepcional.

O olhar de Lyra foi incerto; ela não sabia se eu estava a elogiando ou discordando dela. Suponho que estava fazendo ambos.

— Vocês duas estão certas, na minha opinião — respondeu Mordain, seus olhos ardentes de repente perfurando o ar. — Quanto mais velho se é, mais difícil… mais excepcional, se torna mudar. E, ainda assim, às vezes, a pressão externa exige uma metamorfose, sob pena de essas mesmas pressões esmagarem você. 

Avier esvoaçou, dando alguns saltos em direção a Mordain.

— Você está pensando em Chul.

— Estou — respondeu Mordain, distraído. — Eu sabia, quando concordei em deixá-lo ir, o que isso significaria. Kezess entenderá quem e o que ele é imediatamente, tenho certeza. Só posso esperar que a posição de Arthur proteja o jovem Chul de uma retaliação imediata.

— Então por que deixá-lo levar a mensagem? — perguntei, ainda confusa sobre esse ponto e contente que Mordain o tivesse mencionado. — Já que você sabe como transitar entre os dois mundos, poderia ter enviado qualquer pessoa, não poderia? Avier… — estendi a mão e acariciei as penas da coruja, só depois lembrando que ele não era uma mera besta, mas um wyvern de grande poder — c-com certeza seria capaz…

Ele se eriçou novamente, seus grandes olhos me absorvendo com uma expressão que eu não consegui decifrar.

O sorriso de Mordain tornou-se irônico.

— O caminho de Chul agora é o caminho de Arthur. Impedi-lo seria roubar seu propósito. — Quase falando consigo mesmo, ele continuou: — Já o coloquei em risco extremo duas vezes. — Ele piscou, sacudindo alguma emoção enterrada. — Não há como evitar esse perigo, mas isso força um homem muito velho a repensar suas decisões, tanto as recentes quanto as passadas. Kezess sabe que os Asclepius sobreviveram.

Observei o asura ancião desconfortavelmente. Às vezes, ele falava e parecia um idioma completamente diferente, como se eu fosse uma criança ouvindo adultos conversarem e simplesmente não entendesse. 

Mordain havia sido generoso com seu tempo e com as acomodações de seu povo no Santuário no último dia. Não pude evitar confiar nele e já o considerava um aliado. Embora não pudesse afirmar que o compreendia.

Ele de repente se iluminou, levantando-se.

— O que é, claro, por isso que enviarei um dos meus para acompanhá-las. Não há mais razão para se esconder, e há, talvez, muito que podemos oferecer a este mundo, mesmo que não possamos retornar para casa, em Epheotus.

Os olhos desproporcionalmente grandes de Avier piscaram duas vezes. Antes de falar, ele emitiu um som rouco e reptiliano.

— Mordain… você tem certeza? Isso é um grande passo e tão repentino.

Respirando fundo, Mordain fechou os olhos e sorriu para o teto do pequeno escritório redondo, como se o sol estivesse brilhando sobre nós.

— Mesmo em Epheotus, onde o tempo permanece imóvel, as coisas estão mudando de repente. Uma barragem se rompeu, Avier. Você não sente? Se já houve um momento para agir repentinamente, é agora.

Deixamos o escritório de Mordain e voamos por um dos túneis largos que conectavam as várias câmaras do Santuário. Passamos por um jardim comunitário onde alimentos eram cultivados, uma espécie de arena onde alguns jovens fênix lutavam, e uma fonte termal natural cheia de pessoas relaxando nas águas rasas. Pousamos na entrada de uma passagem estreita com o piso liso.

Mordain não disse nada enquanto nos guiava pela curta passagem. A câmara além era clara e arejada, cheia de aberturas que, presumi, permitiam o fluxo de ar da superfície. Fontes de água limpa e corrente dominavam uma parede, enquanto orbes flutuavam emitindo uma luz branca e fria. Duas fênix estavam sentadas em um tronco coberto de musgo, uma delas visivelmente doente enquanto a outra cuidava dela de forma protetora.

Ajoelhando-se diante da fênix doente, Mordain trocou algumas palavras gentis, então seguiu para a sala ao lado por meio de um corredor estreito que se ramificava em pequenos quartos privados.

— Isto é um centro de cura? — perguntou Lyra, espiando o interior de um dos quartos abertos. 

A única mobília era uma maca, mas o interior do cômodo era claro e limpo, de um jeito que me lembrava os estéreis quartos hospitalares da Academia Xyrus.

— É — respondeu Mordain, sem olhar para trás.

No final do corredor, ele abriu uma porta — uma das poucas que eu havia visto no Santuário — para uma sala secundária cheia de prateleiras metálicas, caixotes e plantas suspensas. Duas mulheres conversavam em voz baixa em um canto. Ambas olharam para cima surpresas ao nos verem entrar.

— Soleil, Aurora. — Mordain sorriu brilhantemente. — Venho com um pedido bastante incomum.

 

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O vento quente nos envolvia enquanto sobrevoávamos as copas das árvores, seguindo rumo ao norte. Soleil, Lyra e eu nos agarrávamos às franjas douradas que se projetavam da pele reluzente e esverdeada de Avier. Seu longo pescoço girava de um lado para o outro a cada batida de asas, enquanto ele vasculhava a Clareira das Bestas em busca de ameaças.

Considerando a força dos wyverns e das fênix, era difícil imaginar que alguma criatura pudesse nos ameaçar.

— Ah, faz tanto tempo que não saio para caçar — comentou Soleil, seu pescoço torcendo e girando quase tanto quanto o de Avier. Os olhos dourado-alaranjados da asura piscavam com uma luz interna, enquanto seus cabelos loiros acinzentados esvoaçavam ao vento. — E não voo assim desde que era apenas uma criança! Obrigada por me trazerem.

— Hm, obrigado por vir — respondi, meio rígida. Na verdade, ainda não tinha assimilado a ideia de ser escoltada por uma fênix à vista de todos, mas a presença de Soleil era o gesto de Mordain para iniciar um diálogo aberto com o restante de Dicathen. — Mordain deve confiar muito em você.

A asura mordeu o lábio, pensativa.

— Sou aluna dele há milhares de anos. Confiei nele o suficiente para deixar todo o nosso mundo para trás e me tornar uma refugiada aqui em Dicathen, mas a confiança que ele depositou em cada membro do nosso clã que escolheu vir com ele é difícil de mensurar. Qualquer um de nós poderia ter condenado os outros, e, ainda assim, nosso clã e nossa cultura sobreviveram até agora.

Lyra escorregou alguns centímetros para trás, ao longo das franjas de Avier, para ouvir melhor.

— Você acha que ele está certo em deixar de se esconder agora? — perguntou ela.

Uma expressão suave tomou conta do rosto de Soleil.

— Ninguém pode prever todos os desfechos, e até os grandes lordes podem cometer erros. No entanto, sua intenção é pura, e sua visão alcança mais longe do que a maioria. Já arrisquei tudo por essa visão uma vez, e estou feliz em fazer isso novamente.

Não consegui explicar, mas um silêncio melancólico caiu sobre mim como um grande peso. Soleil parecia contente em observar a Clareira das Bestas passarem rapidamente, enquanto Lyra estava visivelmente focada em retornar ao seu povo. Nenhuma delas reclamou quando me retraí para dentro de mim mesma.

O que é essa pressão apertando meu peito? Procurei a origem do medo crescente, da preocupação e da tristeza, mas ela era tão amorfa quanto expansiva. O mundo estava mudando — continuava mudando — e eu não sabia se conseguiria acompanhá-lo. E se eu falhar de novo? A pergunta era como uma faca de ansiedade cravada no meu peito.

Era um medo antigo. Penetrante e sufocante. Crescido do solo dos meus muitos erros e fertilizado pelos corpos daqueles que liderei em combate. Sabia que não poderia simplesmente afastá-lo ou fingir que não existia, então permaneci com aquela melancolia cansada, aceitando-a como o preço necessário da experiência. E não era de se surpreender. Tudo está mudando, como disse Mordain.

Avier pousou em uma faixa de grama marrom e árvores caídas que separava Elenoir da Clareira das Bestas. Havia um pequeno assentamento alacryano cerca de oitocentos metros a oeste, mas Lyra pediu que não voássemos diretamente sobre ele. Da última vez que uma enorme criatura alada apareceu no céu acima das vilas de refugiados, muitos alacryanos morreram.

Lyra liderou o caminho, seus passos rápidos, mas não apressados. Avier se transformou de volta na forma relativamente pequena de uma coruja e pousou no ombro de Soleil. Por sua vez, a mulher-fênix parecia quase nervosa enquanto nos aproximávamos da aldeia cinzenta na orla do desolado território.

Um grito soou de um par de guardas quando estávamos a algumas centenas de metros do edifício mais próximo. Um grupo de batalha se formou, posicionando-se à nossa frente. No entanto, assim que nos aproximamos o suficiente para discernir detalhes individuais, eles relaxaram. Nesse meio tempo, um homem de pele bronzeada e torso nu saiu correndo da vila, empunhando uma glaive de aparência ameaçadora com ambas as mãos.

— Djimon — chamou Lyra, acelerando levemente o passo ao entrar no alcance de sua voz. — Alguma novidade?

O homem de feições esculpidas ativou um artefato de armazenamento dimensional em forma de fivela de cinto e guardou sua arma.

— Lutamos contra uma matilha de lobos de presas negras ontem. Suas peles já estão sendo curtidas. Alguns de nós adoeceram com uma espécie de tosse. Nada mais digno de nota. — Seus olhos escuros cruzaram brevemente com os meus, antes de se fixarem em Soleil. — E sua missão?

Compreendendo a pergunta não dita, Lyra respondeu:

— A mensagem foi enviada. Não temos como saber se chegará a Arthur, nem se ele conseguirá retornar. Ainda assim, temos nossas próprias tarefas. — Virando-se para mim, ela acrescentou: — Lady Tessia Eralith, princesa de Elenoir. Este é Djimon Gwede, outrora Sangue Nomeado e Mago Superior do Hall dos Ascendentes em Itri. E esta… — Ela hesitou, escolhendo bem as palavras. — Djimon, esta é Soleil. Uma das asura. Uma fênix.

Djimon, que vinha inspecionando a asura atentamente, não pareceu surpreso com a revelação. Suponho que os olhos dourado-alaranjados e a assinatura de mana ardente dela fossem indícios claros de que Soleil não era humana.

— Tessia Eralith. Já ouvi seu nome e o de seu avô, Virion. É uma honra tê-la entre nós. — Ele se curvou.

Senti uma pontada de gratidão. Este homem, sem dúvida, também me conhecia como Cecilia, sua inimiga nos dois lados da guerra, mas ele não mencionou isso.

— Ouvi muito sobre o que vocês têm realizado aqui, mas queria ver com meus próprios olhos. Nós dois queríamos — acrescentei, gesticulando para Soleil. — Se Elenoir voltar a ser habitável, seremos vizinhos.

Ele assentiu seriamente.

— Um relacionamento no qual já demos os primeiros passos. Mesmo agora, seu povo vagueia pelo deserto, buscando lugares para plantar novos bosques.

— Todos nós estamos recomeçando, de uma forma ou de outra — disse Lyra, respirando fundo. O vento soprava do leste, trazendo um sutil aroma do mar distante. — Venham, vou mostrar o lugar.

O assentamento consistia em quarenta ou cinquenta construções. Os alacryanos haviam moldado tijolos com as cinzas, mas isso resultava em uma aparência monótona. Ainda assim, contra o fundo verde vibrante da Clareira das Bestas e com canteiros elevados cheios de frutas e vegetais, o lugar transmitia um ar acolhedor.

Duas jovens disputavam para colher rapidamente plantas cobertas de bagas roxas, gritando enquanto tentavam superar uma à outra. Algumas crianças passaram correndo, puxando pipas em formato de bestas de mana da Clareira das Bestas. Em algum lugar, um homem cantava, e sua melodia parecia flutuar magicamente pelo vilarejo, aliviando a ansiedade em meu peito e começando a dissipá-la.

— Quantos alacryanos ainda estão aqui nas fronteiras? — perguntei, tentando fazer cálculos rápidos em minha mente.

— Quatrocentos e vinte e oito — respondeu Lyra, casualmente, como se soubesse o número de cor. — Menos de um quarto do nosso número original. Estes são os que desejavam mais a nova vida prometida por Seris do que um retorno à normalidade em Alacrya. Não que os que partiram tenham recebido tal vida. Suspeito que muitos agora se arrependam de ter ido, considerando tudo.

Um mugido grave do outro lado do vilarejo fez meu coração saltar.

— Bois lunares?

Lyra sorriu.

— Continuamos a expandir nosso rebanho. Muitos acabam vindo para cá. Eles são incrivelmente úteis, fornecendo leite, fertilizante e um sistema de alerta contra bestas de mana próximas ao assentamento. Imagino que você já saiba disso, no entanto.

— Já tentaram fazer queijo com o leite? — perguntei, lembrando-me carinhosamente da primeira vez que meus pais me forçaram a experimentar. — É bem forte, um gosto adquirido, eu acho, mas muito nutritivo e dura bastante. — Uma ideia me ocorreu. — Sabe, Elenoir ficou isolada na maior parte da minha vida, então o comércio era limitado, mas, com a culinária anã que já provei, aposto que eles adorariam.

Djimon deu uma risada curta.

— Nosso primeiro produto de exportação como nação recém-nascida: queijo de boi lunar…

— Talvez, na próxima vez que tivermos elfos passando por aqui, eles possam nos ajudar com o processo? — sugeriu Lyra, séria, com uma linha se formando entre suas sobrancelhas enquanto se concentrava. — Podemos até oferecer alguns bois lunares em troca.

— Nosso primeiro acordo comercial — comentei, rindo levemente.

Lyra me lançou um falso olhar de reprovação.

— Você tem autoridade para negociar esse tipo de acordo?

Soltei um som nada elegante.

— Como você disse, sou a princesa dos ermos.

Ao passarmos por uma pequena cabana cinzenta, uma tosse úmida ecoou da porta aberta. Soleil parou e olhou para dentro das sombras.

— Você mencionou uma doença com tosse?

Djimon fez um som desconfortável.

— Sete adoeceram nos últimos dias. Suspeitamos que tenha algo a ver com as cinzas.

Soleil olhou para Lyra, que assentiu. Seguimos a mulher fênix até a porta, onde ela bateu levemente na moldura de madeira que sustentava os tijolos de cinza.

— Olá? Meu nome é Soleil, do Clã Asclepius. Sou curandeira.

Uma voz cansada permitiu sua entrada. Lyra e eu a seguimos, enquanto Djimon esperava do lado de fora.

O interior era escuro. O sol estava no ângulo errado para iluminar as pequenas janelas, bloqueadas por um prédio mais alto ao lado, e todas as velas haviam se apagado. Eu já tinha visto artefatos de iluminação em outros edifícios, mas não era surpreendente que não houvesse comodidades modernas suficientes para cada casa.

Além de ser escuro, o interior também era pouco mobiliado. Uma cama, pouco melhor do que uma maca, estava pressionada contra uma parede, enquanto metade do pequeno prédio era ocupada por prateleiras, mesa e cadeiras. Uma lareira simples foi construída na parede de trás e uma panela estava pendurada sobre os restos escuros e frios de uma fogueira.

Uma mulher de meia-idade descansava em uma cama coberta por um cobertor de retalhos.

— Como está se sentindo, Allium? — perguntou Lyra, ajoelhando-se ao lado da cama.

A mulher tossiu antes de responder:

— Meu corpo dói por causa da tosse, Lady Lyra. Eu simplesmente… — interrompeu-se com outro ataque de tosse. — Não consigo me livrar disso.

Com cada tosse, notei que sua fraca assinatura de mana parecia espasmar. Lyra também percebeu, seus olhos desviando rapidamente para o núcleo da mulher antes de voltar ao rosto dela.

— Nunca mais me senti realmente… como eu mesma, depois daquela onda que nos atingiu quando… Agrona foi derrotado. — Ela tossiu entre as palavras. — Acho que isso me enfraqueceu.

Soleil franziu o nariz, suas narinas inflando. Seus olhos brilhantes percorreram o corpo da mulher doente, como se pudessem enxergar não apenas através do cobertor, mas também através dela.

— Você tem consumido carne de bestas de mana?

— Todos nós temos — respondeu Lyra, um pouco defensiva. — Cultivamos o máximo de alimentos que conseguimos, mas a vida selvagem é escassa, exceto pelas bestas de mana que surgem na Clareira das Bestas.

— Fique tranquila — disse Soleil, com um sorriso que pareceu aquecer o ambiente. — Esta não é uma doença pulmonar causada pela exposição às cinzas. — Ela voltou sua atenção para a paciente. — Você contraiu um parasita ao consumir carne de uma besta de mana infectada por uma forma inferior de sanguessuga demoníaca. Fatal, se não tratada, mas a infecção em si pode ser eliminada de forma inofensiva.

O rosto da mulher, já pálido, perdeu ainda mais cor.

— Tenho sua permissão para tratar?

— Pelos chifres de Vritra, sim! — respondeu a mulher, quase engasgando ao tentar conter outro ataque de tosse.

Soleil afastou o cobertor, inclinando-se sobre a cama com as mãos estendidas. Uma luz quente começou a emanar de suas palmas, e a sala se encheu de mana. Faíscas flamejantes dançaram sobre a pele exposta da mulher doente por alguns segundos antes de penetrarem em sua carne. Ela começou a suar e a se contorcer. Uma tosse fraca escapou, e manchas vermelhas surgiram em seus lábios.

Lyra segurou firmemente a mão úmida da mulher, transmitindo apoio.

Tentei acompanhar a magia de Soleil enquanto ela percorria o corpo da alacryana. Como um véu de chamas finas queimando a vegetação indesejada do campo de um agricultor, a mana de Soleil purificava o corpo da mulher.

Algo despertou em minha mente — um lampejo de compreensão, algum conhecimento aprendido, mas esquecido. Foi Cecilia quem absorveu o resto da mana de Lady Dawn, não eu. Era o Legado que entendia aquilo. Eu havia sido apenas uma espectadora, assistindo uma maga muito mais poderosa manipular mana de uma maneira que eu jamais conseguiria compreender. No entanto, minha mente estava conectada à dela, absorvendo cada centelha de iluminação. Ver Soleil em ação trouxe esse conhecimento um pouco mais à tona…

A mulher doente arfou, apertando o peito com a mão livre. A mana condensada sobre sua pele ondulou como ondas agitadas por uma tempestade, indo e vindo enquanto ela instintivamente conjurava um escudo fraco.

— Calma — murmurou Lyra.

A mana ardente de atributo fogo da fênix subitamente se dissipou, e Soleil endireitou-se. Ela olhava para sua paciente com um sorriso radiante.

— Pronto! Tudo resolvido!

— S-sério? — perguntou a mulher. Uma tosse fraca acompanhou suas palavras.

Soleil acariciou gentilmente a cabeça dela. — Sim. Seu corpo pode se curar agora, e seus níveis de mana devem se estabilizar. Apenas descanse por alguns dias, certo?

— M-muito obrigada!

Após várias demonstrações de gratidão emocionada, saímos de volta para a luz do sol. No entanto, em vez de parecer satisfeita, Soleil tinha uma expressão preocupada.

— Você mencionou que há outros? — Ela perguntou a Djimon.

Ele piscou, e sua expressão endurecida suavizou visivelmente.

— Sim, há mais alguns

— Leve-me até eles.

 

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Os olhos grandes e cintilantes do boi lunar me encaravam enquanto eu coçava debaixo de seu queixo.

— Cuide bem do pessoal daqui — falei. Ele não respondeu, mas sua longa língua serpenteou para fora e raspou contra meu pulso com aspereza.

Com mais um afago no cabelo encaracolado de sua testa, deixei o cercado e segui direto pela aldeia sem nome, guiada pela assinatura de mana de Soleil. Ela havia passado o restante do dia anterior tratando aqueles infectados pelo envenenamento das sanguessugas demoníacas parasitas. Depois disso, nos ofereceram um verdadeiro banquete — asseguraram-nos que estava livre de qualquer resquício dos parasitas — em torno de uma fogueira com praticamente toda a aldeia reunida.

Na manhã seguinte, dediquei-me a revitalizar um pouco do solo de plantio deles com feitiços de mana desviante do atributo planta.

Minha visita à aldeia fronteiriça alacryana havia me dado muito em que pensar. Eles tinham criado uma vida simples, mas funcional, para si mesmos ali. Difícil, repleta de perigos, como o envenenamento deixou bem evidente, e claramente inferior ao conforto que a maioria deles desfrutava em Alacrya, mas era uma vida honesta e, acima de tudo, livre.

Se eles podiam reconstruir sozinhos, eu tinha certeza de que os elfos também poderiam.

Encontrei Lyra e alguns dos alacryanos que conheci ao longo do dia anterior ao redor de Soleil. A fênix distribuía seu sorriso caloroso enquanto apertava mão após mão com gentileza.

— Por favor, não podem ficar mais um pouco?

— …ofereça-nos sua bênção, grande fênix…!

— …posso ir com você, como assistente? Eu faço qualquer coisa…

— …faremos sem você se formos feridos ou envenenados novamente?

Soleil riu, um som como o farfalhar de asas. — Vocês eram fortes antes de eu chegar, e continuarão sendo após minha partida. Há muito deste continente que quero conhecer, mas vocês sempre serão especiais por terem sido os primeiros de sua espécie a dar boas-vindas ao Clã Asclepius de volta ao mundo.

Lyra, vendo minha aproximação, se afastou do grupo.

— Embora eu deteste ver vocês irem embora, acho melhor tirar a asura daqui antes que comecem a adorá-la. O vazio deixado pelos Vritra é difícil de preencher.

Sorri, mas minha expressão se partiu, transformando-se em algo entre um sorriso e uma careta.

— Viver assim ensinará a eles autossuficiência, sem dúvida. — Engoli em seco. — Estou… feliz por realmente tê-la conhecido, Lyra Dreide.

Sua boca se abriu, e ela me encarou em silêncio, surpresa.

Continuei, meio sem saber exatamente o que estava tentando dizer:

— Você me ajudou a encontrar um fechamento para uma parte da minha vida que eu nem sabia ser uma ferida aberta. Tanta coisa aconteceu tão rápido depois da morte dos meus pais, e não tive controle sobre nada por tanto tempo. E então Agrona se foi, a guerra acabou, e ainda assim há tantas emoções fervilhando dentro de mim, que… que… — As palavras me faltaram, e dei de ombros, impotente. — Só estou… feliz. É isso.

Lyra deu um passo à frente, abrindo os braços como se fosse me abraçar. Fiquei imóvel, e ela parou, recuando e inclinando-se em uma reverência profunda. Manteve a posição por muito mais tempo do que o necessário antes de endireitar-se. Uma mecha de cabelo laranja flamejante caiu sobre seu rosto, que ela afastou com um gesto prático.

— Adeus, Tessia Eralith.

Soleil acenou suas despedidas finais para os alacryanos reunidos, e nós alçamos voo, rumando para o norte, atravessando o vasto deserto cinzento. Avier, que havia repousado silenciosamente durante o último dia, ergueu-se de um telhado próximo e nos seguiu.

— Obrigada por me acompanhar — falei, projetando minha voz com mana para ser ouvida.

Soleil girou de costas no ar, voando com a facilidade de quem flutua sobre águas tranquilas.

— Estou aqui para experimentar o que você tiver a me mostrar. Sou os olhos, ouvidos e voz do Clã Asclepius em Dicathen agora, então, para onde quiser me levar, eu a seguirei!

Deixei escapar uma risada, que o vento carregou.

Nosso voo ganhou velocidade à medida que eu me sentia mais confortável, estudando como Soleil fazia, mas também simplesmente relaxando. Era hipnotizante atravessar a vastidão cinzenta. A devastação de Elenoir era tão completa que poucos traços do terreno ainda existiam. Rios haviam sido apagados, colinas niveladas, cânions desmoronados. Raramente víamos os restos de algumas árvores ou rochas emergindo das cinzas. Fora isso, era apenas um cinza infinito.

Isso e a falta de mana atmosférica tornaram bem fácil encontrar o primeiro “bosque”. Voamos por uma ou duas horas antes de senti-lo à distância. Eu tinha certeza de que Soleil e Avier haviam sentido isso muito antes.

Parei assim que nos aproximamos o suficiente para atrair a atenção dos poucos elfos que trabalhavam ali. Haviam plantado sete árvores. Nenhuma tinha mais de dois metros e meio de altura, todas esguias. O solo ao redor do bosque havia sido limpo de cinzas e cultivado com solo fresco trazido de além de Elenoir, misturado com apenas uma pitada do solo de Epheotus.

Verde no cinza…

Era um pensamento infantil, mas era tudo em que eu conseguia me concentrar. Aquele pequeno ponto verde. A vida lutando para se recuperar do caráter absoluto da morte.

— É lindo.

 


 

Tradução: NERO_SL

Revisão: ***

 

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