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Calmaria Divina – Vol. 01 – Cap.11 – Um alaúde

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Sanir Galho-Negro.

 

Era difícil ver minhas mãos, quase completamente envoltas em curativos, revirava as gavetas, tentando encontrar mais tecido que pudesse ser usado para estancar o sangramento em minha palma direita.

Encontrei uma toalha velha, a enrolei em volta da ferida. Uma de minhas irmãzinhas, Luna, passou como um verdadeiro relâmpago castanho por mim, depois voltou para ver o que estava acontecendo na cozinha apertada de nossa casa.

Ela abriu um sorriso cheio de maldade, enquanto olhava para a toalha.

— Não ouse…

— Mãnhê, o Sanir tá sangrando de novo!

Ela deu uma risada rápida, logo antes de correr para fora, ouvi o som de passos rápidos se aproximando.

Não havia nada que pudesse ser feito…

Enfiei o pedaço de pano em meu bolso instantes antes de minha mãe entrar no cômodo, acompanhada de mais três pares de olhos curiosos.

— Eu juro que se você tiver estragado mais alguma coisa, você vai trabalhar até comprar tecido o bastante pra forrar essa casa. Duas vezes. Já não bastou a minha toalha de mesa e o lenço da sua avó?

— Não é culpa minha… as facas gostam de quebrar enquanto eu uso elas, a madeira é muito dura.

— As facas gostam? Você já quebrou quantas essa semana?

— Três…

— Três!? Hoje é só terça e você já quebrou três?

— É que com as mãos desse jeito fica difícil.

Balancei minhas mãos, que estavam cobertas por camadas e mais camadas de ataduras.

Risadas escaparam de cinco gargantas diferentes, soaram como se fossem muitas mais, enquanto meus irmãos mais novos achavam graça na cena.

Me segurava para não rir junto, até que Mamãe deu um olhar perigoso para todos, que se espremiam ao redor do pequeno cômodo.

Todos se calaram em um instante.

— Muito bem, senhor Sanir, já tem idade suficiente para pagar as contas. Eu quero cinco moedas de prata por semana, a partir de agora. Então seja lá o que tem feito em seu quarto pelas últimas semanas, espero que sirva de algo.

Senti meu rosto ficando pálido, as gargalhadas voltaram a estourar dos pequenos indivíduos que mal sabiam o que cinco pratas significava, não que eu tivesse certeza também, mas provavelmente sabia mais do que eles. Agora toda a família estava reunida no cômodo onde mal cabiam cinco, mas acomodava nove de nós.

Voltei até meu quarto. Ser o mais velho realmente tinha suas vantagens, afinal, pude ficar com um quarto só para mim. Tudo bem que antes era um armarinho de vassouras, mas foi só enfiar uma cama e uma caixa que deu tudo certo, um lugar só para mim.

Olhei para o pedaço de madeira que vinha lascando desde a semana retrasada, agora em cima da minha cama, peguei a faca torta que descansava ao seu lado.

É… parece que essa vai ser a quarta.

Busquei o pano em meu bolso e rasguei uma tira, tornando a envolver minha mão.

Busquei a faca e o instrumento que vinha tomando forma. Terminei de arrancar seu miolo algumas horas depois, e olhei, maravilhado com o quão belo meu novo alaúde tinha ficado.

Agora só faltam as cordas. E aprender a tocar, mas isso deve ser fácil.

Saí correndo de casa, com meu instrumento em mãos. Mais uma vez algumas risadas vieram enquanto eu passava pela casa, risadas vindo de todos os cantos.

Sabe, se der pra ganhar dinheiro sendo engraçado, acho que eu já tô rico.

Eu sorria comigo mesmo, achando graça dos menores pensamentos que passavam por minha cabeça. Atravessei a pequena cidade, às vezes uma pessoa ou outra se irritava quando eu passava por baixo de suas pernas. Essa era a parte mais engraçada da caminhada.

Então vi alguém novo. Alguém que precisava receber as boas vindas do Sanir aqui.

Ele usava um sobretudo com capuz e estava de costas. As pessoas pareciam sair de seu caminho, evitando olhar em sua direção.

Tadinho, deve ser tão solitário. Pensei por alguns instantes, até que me decidi.

Já sei! Esse aí vai ser meu amigo, quem sabe ele tem umas cordas sobrando pra me emprestar.

Continuei correndo em sua direção, então pulei para dar um tapinha em suas costas.

— Meu nome é Sanir Galho-Negro, e você parece ser legal, senhor. Sabe um jeito de ganhar dinheiro sendo engraçado?

O forasteiro se virou e me fitou com os olhos escuros, banhados por grandes olheiras.

— Acho que me confundiu com alguém, garoto.

— Não, não. Eu estou te conhecendo agora, mas já acho que seremos grandes amigos, não de tamanho, já que eu sou bem menor, mas grandões de amigos.

Eu não podia ver sua expressão com clareza, mas acho que ele está rindo, afinal, todo mundo em casa riria de uma piada como essa.

— E por que você precisa de dinheiro?

— Mamãe mandou eu ganhar cinco pratas toda semana pra pagar pelos panos e facas que eu estraguei.

Ele olhou para minhas mãos enfaixadas e para o alaúde que eu segurava. Estufei meu peito em orgulho e o maior sorriso que eu poderia imaginar se formou em meu rosto.

— Você gostou? Fui eu que fiz. Custou meu próprio sangue e suor, literalmente, acho que as facas lá de casa não são tão boas pra cortar madeira.

Meu amigo olhou para o instrumento com interesse, abaixou seu capuz, revelando os cabelos longos escuros e uma face jovem.

— Sabe, garoto, eu acho que sei como você pode ganhar dinheiro. Como é a sua família?

— Ela é grandona, mas não é de altura não, é de quantidade mesmo.

E voltei a gargalhar. Ele estava apenas me observando. Ele deveria estar rindo também não é? Talvez ele só tenha vergonha.

— Você pode conhecê-los.

— É claro, eu adoraria.

— Vem, me siga! Tomara que você passe pela porta.

Estava alegre, ele era o primeiro amigo que eu levaria para casa além dos filhos da Tia Li. E o maior de todos!

Assim que chegamos na pequena casa, meus irmãos, que viviam espalhados pelo jardim, já nos espiavam e falavam sobre a visita.

— Mamãe! Vem ver quem eu trouxe aqui!

Mamãe parecia assustada olhando para meu amigo, enquanto eu segurava as pontas de seu sobretudo.

— Boa tarde. — ele se curvou um pouco enquanto se aproximava — Eu poderia conversar um pouco com a senhora? Acredito ter uma proposta que agradaria a ambos você e seu filho.

— Que tipo de proposta? — ela parecia feliz, então continuou — Entre, vamos conversar em um lugar mais confortável.

Meu amigo se espremeu pela porta e seguiu minha mãe de cabeça baixa até a sala, onde os dois se sentaram à mesa de jantar, logo depois de enxotar meus irmãos.

— Xispem daqui com esses ouvidinhos curiosos, eu e… qual o seu nome, jovem?

— Colly, é um prazer, senhora Galho-Negro.

Mamãe deu uma risadinha, o nome dele era mesmo um pouquinho engraçado.

— Eu e Colly, que é muito educado inclusive, precisamos conversar — sua expressão mudou subitamente, parecia que ela estava prestes a dar uma bronca em alguém — qual seria a proposta?

Eu estava parado ao lado da porta, apenas ouvindo, então Colly olhou para mim.

— Sanir tem um grande potencial, e por acaso encontrar jovens talentos é meu trabalho.

— E que tipo de potenciais meu garoto teria? — ela falava com um tom suave e orgulhoso, um que eu poderia contar em uma única mão o número de vezes em minha vida que eu ouvi ela usar. E ainda sobrariam um, dois ou três dedos!

— Ele tem a vontade forte o suficiente para suportar um grande poder. Eu gostaria de levá-lo até alguém que possa treiná-lo. Enquanto estiver lá, meu senhor lhe pagará dez moedas de ouro todo fim de mês, além de um valor simbólico. — e colocou um pequeno saco de couro em cima da mesa, que Mamãe se apressou em pegar.

Ela segurou um gritinho de alegria, ela devia estar feliz por saber que eu seria poderoso, seja lá o que isso significasse.

— Ha, pode levá-lo. Eu sempre soube que você seria grande, Sanir. — ela se virou para mim. — Vai aprender com o senhor de Colly e ainda ganhar um bom dinheiro.

— Mas mãe, você não vivia me dizendo que eu não passaria da sua altura?

— Não é grande de altura, bobalhão.

Colly se levantou e me deu um sorriso.

— Sanir, arrume suas malas, partiremos em uma hora.

Corri até meu quarto, quase tropecei em Wally, o segundo mais novo de meus irmãos, que brincava sentado com uma bola no meio do corredor.

Coloquei tudo o que era mais importante em minha mochila: minhas roupas, que não eram muitas e meu alaúde.

Saí de casa, vi meu amigo me esperando no portão.

— Ei, Colly, quantos anos você tem? Eu estou quase fazendo onze.

— Eu tenho vinte e seis.

— Como vamos chegar até seu senhor? Como ele é? Ele mesmo vai me ensinar? É muito longe? Ele é alto?

— Você vai ver quando chegarmos.

Enquanto conversávamos, ele me levou até um estábulo, onde um cavalo castanho estava amarrado. Ele alisou sua crina e o desamarrou, guiando-o e o prendendo a uma pequena carruagem.

— Ele tem nome? — perguntei — Vai ser minha primeira vez fora da cidade, ele é rápido?

— Esse é Koko, e eu garanto que vai ser uma ótima viagem com ele.

Colly abriu a porta da carruagem e eu entrei. Ele se sentou à frente, segurando as rédeas de Koko.

— Aproveite para descansar, chegaremos para o jantar. Tenho certeza de que vamos encontrar algumas cordas para seu alaúde.

Durante um tempo, fiquei aproveitando a brisa que entrava pela janelinha, mas quando comecei a me entediar, deitei em um dos dois bancos estofados e apaguei, achei que seria mais difícil dormir enquanto a carroça chacoalhava, mas me acostumei rápido.

— Ei, Sanir, chegamos.

Quando abri os olhos já era noite. Olhei pela porta aberta, de onde Colly me chamava.

— Bem vindo à minha casa.

Me levantei, lutando para recuperar o equilíbrio, desci da carruagem. Não pude conter minha surpresa ao ver a enorme mansão à minha frente. Era enorme mesmo!

— Uau! Você mora aqui mesmo?

— Sim, e tem um quarto só para você, ainda maior do que o que você tinha antes.

Minhas bochechas já estavam começando a cansar com o sorriso que ficou em meu rosto durante todo o caminho até a casa. No hall de entrada, que já era do tamanho da minha casa, haviam várias poltronas e mesinhas, além de quadros e coisas que eu não sabia o que eram, mas brilhavam bastante com a luz das velas que iluminavam o corredor.

Também haviam algumas pessoas que cochichavam e acenavam enquanto passávamos.

Meu amigo me levou até uma porta de onde vinha um cheiro absurdo de bom. Minha boca já estava parecendo um córrego.

Quando nós entramos, uma mesa gigante e retangular estava posta.

— Eu já os avisei que teríamos visita hoje, então pode comer à vontade.

Colly se sentou em uma cadeira e me ajoelhei em outra ao seu lado, me servindo de todo tipo de comida que nunca tinha visto.

Cara, parecia que eu ia explodir de tanto comer.

Ao fim da refeição, uma moça de olhos claros e com um vestido longo e escuro veio me chamar.

— Boa noite, senhor. O guiarei até seu quarto.

Eu não ia recusar, com toda essa comida boa e tudo o mais, as camas deles deviam ser das melhores, né?

Cambaleava um pouco enquanto a seguia até o segundo andar, onde ela abriu uma porta que não tenho certeza se alcançaria a maçaneta, mesmo se pulasse. Amanhã eu descubro isso, agora tá na hora de tirar um ronco.

Escalei a cama que era maior que meu antigo quarto, e me deitei. Parecia que ia afundar, e afundei mesmo, mal deitei e já estava capotado.

A próxima coisa que senti foi o calor do Sol em meu corpo, e o conforto da cama pareceu se transformar no chão de terra coberto por grama recém cortada.

— É um prazer conhecê-lo, Sanir Galho-Negro. Espero que não se importe de eu tê-lo trazido até aqui sem avisar, mas este é seu primeiro teste. — dizia uma voz que eu nunca havia ouvido antes.

Não conseguia abrir meus olhos direito ainda por conta da luz repentina.

— Será que dá pra esperar um pouquinho? Por favor? — disse enquanto me sentava.

— Não se preocupe, tudo o que eu quero é que você me conte a história mais feliz que conheça. Adoro histórias.

— Hum… tudo bem, eu acho? Teve uma vez que eu e Gil estávamos na casa da tia Li, e… e…

Minha cabeça começou a girar.

— Não pare. Continue me contando.

— Nós encontramos um…

Era difícil respirar. Ouvia a voz dizendo algo, mas não conseguia entender. Até que minha mente ficou escura. Não estava desmaiado ou dormindo, mas estava tudo escuro.

Comecei a pensar em meus irmãos, pouco a pouco, no que pareceram horas e horas, parava de pensar. Quando os imaginava eles tinham as formas distorcidas, ouvir suas vozes fazia meus ouvidos doerem. Pensar em seus nomes fazia minha cabeça gritar de dor. Parecia que eu ia explodir.

Eu estava sendo engolido pelo medo. Meu corpo inteiro doía, era como se minha mente estivesse sendo rasgada. Estava sozinho com essa dor. Eles estão rindo de tudo isso. Toda essa dor pelo dinheiro que minha mãe tanto queria. O que eu estou fazendo aqui?

Eu quero morrer.

Assim que esse pensamento veio, imaginei inúmeras formas de morrer. Eu já me sentia morto, queria que isso acabasse.

Então um único som veio de longe, de muito longe. Uma única nota. O alaúde que Titio tocava. Outra nota se seguiu, me imaginei tocando, da mesma forma que sonhei várias e várias vezes.

A cada nota que soava em minha mente, me tranquilizava. A dor diminuía a cada acorde.

Então uma dor súbita veio, mas a luz voltou. Levei minhas mãos à garganta, e senti um líquido quente escorrendo aos montes. Um líquido que encharcava minhas roupas e bandagens, minha vista ainda estava turva, mas vi alguém se aproximando e enrolando algo em meu pescoço, algo melado de algo extremamente gosmento, que queimou um pouco no começo, mas logo a dor se aliviou.

— Parabéns, você conseguiu! Obrigado, garoto. Eu realmente odiaria perder mais um, vou mandar prepararem o maior café da manhã da sua vida.

Não importava quanto eu tentasse responder, minha voz não saía. Senti quando o homem envolveu meus ombros com seus braços, me dando apoio, mas não pude fazer nada além de deixá-lo me guiar.

 


 

Autor: HaltTW

Revisão: Bravo

 

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