Cliff Grimoire, o neto do Papa reinante da Igreja Millis, era um jovem prodígio com um talento especial para a magia. Infelizmente, ele também era temperamental, egoísta e um fanfarrão pomposo. Como resultado, não tinha nenhum amigo. Atualmente tinha dezesseis anos; em outras palavras, atingiu a maioridade há pouco mais de um ano. Mas ninguém apareceu para comemorar esse marco com ele.
Ainda assim, o jovem tinha suas virtudes. Apesar de seus discursos arrogantes, trabalhava duro para alcançar o sucesso, em vez de confiar apenas em seus talentos naturais. Havia alguns, pelo menos, que perceberam e o respeitavam por isso.
Cliff foi para a Universidade de Magia de Ranoa por um motivo simples: se envolveu em uma horrenda luta pelo poder em sua casa. Após a tentativa de assassinato de uma Criança Abençoada perto da cidade de Millishion, há vários anos, um conflito interno da Igreja Millis havia se tornado cada vez mais intenso e violento. O avô de Cliff, que por acaso era o Papa, o mandou para o outro lado do mundo para a sua própria segurança.
O garoto se lembrava perfeitamente das palavras de despedida de seu avô: “Você tem potencial para algum dia ser um grande homem, Cliff. Não se deixe levar; conheça suas falhas e trabalhe para saná-las.”
O jovem sabia bem que muito se esperava dele. E, na época, achava isso razoável. Afinal, ele era um prodígio. Talvez não tão talentoso quanto a jovem e brilhante espadachim Eris, que ele vira derrotando um grupo de assassinos treinados em um piscar de olhos; mas, ainda assim, um prodígio. Ele sempre acreditou que possuía dons especiais.
O Reino de Ranoa, que Cliff alcançou após uma longa e difícil jornada, provou ser uma terra severa. A comida não era do seu gosto, o clima era rigoroso e muitos dos habitantes locais se comportavam de maneiras que considerava estranhas e desagradáveis.
Ainda assim, ele acreditava que seu talento ajudaria a superar qualquer desafio. Ele era um Aluno Especial, neto do papa e o homem que um dia assumiria toda a Igreja Millis; isso com certeza indicava que estava acima dos demais.
Para a surpresa de Cliff, entretanto, foi envergonhado em duas ocasiões no seu primeiro ano na Universidade.
A primeira humilhação chegou pelas mãos de um jovem chamado Zanoba Shirone. Tratava-se de uma Criança Abençoada, agraciada com certos dons divinos desde o nascimento. Ele era um indivíduo um tanto instável, sim. Mas sua força física era genuinamente surpreendente. Certa vez, Cliff vira Zanoba agarrar um homem com três vezes seu peso pela cabeça, erguê-lo do chão e jogá-lo para o lado sem esforço.
Apesar de suas temíveis capacidades, o homem se matriculou na Universidade de Magia, onde estudou feitiçaria como qualquer outro. Pelos padrões de Cliff, seu progresso era dolorosamente lento, mas não era como se uma Criança Abençoada precisasse muito de magia. Na verdade, alguns estudiosos teorizavam que a magia era originalmente desenvolvida pelos antigos como um meio de ajudar as pessoas comuns a imitar os poderes divinos. E, é claro, uma Criança Abençoada era uma manifestação humana desses mesmos poderes. Quase não havia razão para um dos eleitos de Deus brincar com o lançamento de feitiços.
Eventualmente, Cliff abordou Zanoba e pressionou-o por uma explicação.
— Por que você está se preocupando em aprender magia, Zanoba?
— Isso é bastante simples — respondeu o jovem. — Estou perseguindo uma meta que significa tudo para mim.
Pegando uma caixa que carregava consigo, Zanoba pegou uma única estatueta… sobre a qual começou a falar sem parar. A maior parte desse monólogo não significava nada para Cliff, mas estava claro que Zanoba não tinha nada além de elogios pela qualidade do design e da fabricação da pequena estatueta.
— Desejo me tornar aprendiz do homem que fez esta estatueta e espalhar estatuetas tão maravilhosas assim por todo o mundo. Para que isso aconteça, vou ter que aprender a fazer estatuetas sozinho! Antes de me reunir com o meu mestre, devo dominar ao menos os feitiços básicos necessários a esse propósito. Eu sentiria vergonha ao encará-lo de alguma outra forma! E, claro, morro de vontade de criar algumas estatuetas com as minhas próprias mãos.
O homem tinha um sonho. Isso era algo que faltava ao próprio Cliff. Ele havia desistido de seu próprio sonho há algum tempo. Dada sua posição no mundo, não havia outra escolha a não ser fazer isso. Mesmo assim… Zanoba era também uma pessoa de certa importância. Como uma Criança Abençoada, carregava as esperanças de seus compatriotas em seus ombros. Depois que ele voltasse para Shirone, certamente não teria nenhuma liberdade real para escolher seu próprio caminho na vida. E, ainda assim, se agarrava a um fio de esperança – planejando de acordo com a possibilidade de que algum dia poderia ser livre. Se ele tivesse a chance, não hesitaria em escolher o seu próprio destino.
De qualquer forma, foram essas as impressões de Cliff. Elas eram baseadas em suposições que não eram totalmente precisas. Ele não sabia nada sobre os eventos que aconteceram em Shirone, ou sobre a posição real de Zanoba por lá. Ainda assim, sua interpretação deixou uma profunda impressão. Ele se viu olhando para Zanoba com verdadeiro respeito – até mesmo admiração.
— Afinal, quem é esse “mestre” de que você vive falando?
— Ele é um mago conhecido como Rudeus Greyrat.
Cliff ficou sem palavras. Rudeus Greyrat. Era um nome que ele jogou em um canto sombrio da sua mente, desde aquele dia em que foi rejeitado por Eris. Nunca poderia esperar ouvir isso novamente em um lugar desses, dito por um homem que acabara por respeitar.
Foi um golpe duro em seu ego.
A segunda humilhação de Cliff chegou pelas mãos de duas alunas mais velhas.
Como era de se esperar, ele acreditava ser o mago mais poderoso matriculado na Universidade. Existiam muitas pessoas que poderiam superá-lo em uma luta de curta distância, é claro, mas ele, no mínimo, se considerava bem superior como mago. Afinal, era um verdadeiro prodígio, enquanto os outros eram simples estudantes. Mesmo os professores muitas vezes não eram páreo para suas habilidades. Em suma, se considerava basicamente invencível.
Levou dois meses para ser rudemente desiludido desta noção. Sua derrota chegou pelas mãos de duas garotas do povo fera, consideradas algumas das estudantes mais fortes da Universidade. Seus nomes eram Linia e Pursena.
Era meio difícil dizer exatamente quem foi que começou com a briga. Cliff era um jovem de língua afiada, e falou com elas com clara arrogância. Naquela época Linia e Pursena estavam menos agressivas que o normal, mas ainda não se dispunham a deixar um primeiranista falar de um jeito desses com elas. Cliff não lembrava direito nem do que disse para provocá-las. Mas lembrava muito bem da luta em si. Ele tentou lançar um feitiço de nível Avançado; Pursena disparou uma magia de nível Iniciante bem rápido, interrompendo seu encantamento e restringindo os seus movimentos. Linia então se aproximou e bateu nele até dizer chega.
Logo após essa derrota pública, Cliff retirou-se para seu quarto para chorar sozinho. Ele disse a si mesmo que a luta não foi justa. Afinal, esteve em desvantagem numérica. Não tinha realmente perdido.
Mas alguns dias depois, soube que outro estudante chamado Fitz havia derrotado Linia e Pursena em um instante. E essa notícia foi um verdadeiro choque.
Sempre havia alguém melhor em algum lugar. Por mais óbvio que possa parecer, até o momento Cliff ainda não havia aprendido essa lição. O fato de que conhecia tantas magias de nível Avançado não o tornava, só por isso, poderoso em combate. Isso também era algo que ele havia acabado de começar a entender.
E passou por muitas dificuldades para encarar isso. No entanto, a partir daquele dia, redobrou os seus esforços para melhorar a si mesmo. Ele era orgulhoso demais para aprender com os seus professores, que dirá com os outros alunos. Em vez disso, tentou encontrar seus próprios meios para se melhorar. Foi complicado, mas continuou, em uma constante e obstinada busca para eliminar suas fraquezas.
Com o tempo, porém, chegou ao seu segundo ano na Universidade… e recebeu mais uma sucessão de choques.
O primeiro choque foi a matrícula de Rudeus Greyrat.
O garoto vestia um robe cinza surrado e a incerteza em seu rosto gritava que lhe faltava confiança. Ele era servil e submisso a todos que encontrava, colocando-se para baixo em todas as oportunidades; e também costumava olhar com malícia para todas as mulheres próximas. Não havia nada de viril ou atraente nele.
Em outras palavras, era virtualmente o oposto do que Cliff imaginara quando ouviu Eris e Zanoba falarem de “Rudeus”. Aquele era mesmo ele? Não poderia ser uma outra pessoa com o mesmo nome? Parecia ser algo bem possível.
Mas Zanoba reconheceu Rudeus como seu “mestre”, e o garoto lembrava muito bem do que Eris falara. E assim, Cliff concluiu que ele só podia ser uma fraude. De alguma forma, tinha enganado Zanoba e Eris com um monte de mentiras e alguns truques desonestos.
E as evidências pareciam apoiar essa teoria. Quando desafiado por Linia e Pursena, o garoto instantaneamente se curvou e se rebaixou para evitar um conflito. Se fosse um mago poderoso de verdade, com certeza não teria hesitado em colocá-las em seus lugares.
Assim sendo, Cliff concluiu que Rudeus seria muito em breve exposto como uma enorme fraude. Linia e Pursena eram lutadoras temíveis, e Zanoba era um jovem diligente com poderes divinos à sua disposição.
Blefes e trapaças só poderiam levar uma pessoa até uma certa altura em um ambiente como este. Corriam boatos de que Rudeus havia derrotado Fitz. Mas isso provavelmente era algum tipo de mal-entendido ou alguma mentira que o próprio Rudeus havia espalhado. Se ele tivesse de alguma forma ganhado, devia ter recorrido a algum truque sujo. Cliff se sentia bem confiante disso.
No entanto, Rudeus logo demonstrou que suas habilidades eram reais. Ele podia lançar magias não verbais livremente. Em algum momento, tornou Linia e Pursena em suas subordinadas leais e, de alguma forma, ganhou ainda mais admiração de Zanoba. Até Fitz parecia reconhecer suas habilidades: logo foram vistos estudando juntos na biblioteca todos os dias. E apesar das habilidades óbvias de Rudeus, Cliff o tinha visto frequentando aulas – palestras sobre feitiços Divinos e de Barreira básicos. Ele não tinha nenhuma necessidade real para aprender esse tipo de magia básica, com certeza, mas parecia ter uma fome inata por todo tipo de conhecimento.
Rudeus Greyrat era tão dedicado quanto Cliff, e consideravelmente mais talentoso. Mais importante ainda, suas realizações também eram muito mais impressionantes.
Isso normalmente seria muito doloroso para Cliff admitir. Mas, por alguma razão, logo se viu capaz de aceitar os fatos. Talvez fosse por já conhecer Zanoba e por ter sido derrotado por Linia e Pursena. Podia admitir, pelo menos para si mesmo, que este Rudeus estava destinado a coisas maiores do que ele.
Isso não significava que gostasse do garoto, é claro. Esse era um assunto bem diferente.
O choque seguinte e final foi de natureza um tanto diferente.
Atingiu Cliff durante uma noite, sem qualquer aviso, quando estava voltando para o dormitório e olhou para cima.
Se viu olhando para uma deusa. Ela estava encostada no parapeito de uma janela com uma expressão apática, deixando seu luxuriante cabelo dourado esvoaçar com a brisa. O sol poente lançava um brilho vermelho em seu rosto bem simétrico.
Cliff ficou instantaneamente apaixonado. Ele se apaixonou à primeira vista. Sempre fora atraído por esse tipo de beleza. Em seus dias de infância, quando sonhava em viver como um aventureiro, também se imaginava casando com uma mulher linda. Na verdade, uma grande parte do motivo pelo qual Cliff desenvolveu tanto interesse por aventuras era uma jovem Curandeira que às vezes visitava o orfanato onde ele cresceu.
A mulher na janela de repente olhou em sua direção.
Com um sorrisinho, ela acenou com a mão.
Foi tudo tão… pitoresco. Tão perfeito. Cliff ficou profundamente comovido.
Eu nasci para me encontrar com essa mulher, pensou. E ela nasceu para me encontrar. Naquele instante, seu primeiro amor, Eris, foi rebaixada ao status de uma conhecida em sua mente.
Ponto de Vista do Rudeus
Chegou a hora da minha aparição mensal na sala de aula. Eu estava sentado à minha mesa, cercado por Zanoba, Julie, Linia e Pursena. Era bom às vezes estar no centro do meu grupinho.
Como de costume, Linia estava recostada na cadeira com os pés sobre a mesa, exibindo as coxas bem torneadas sem o menor sinal de vergonha. Outra boa vantagem da minha nova posição era poder vê-las de perto e pessoalmente em uma base regular.
— Você nunca para de olhar para as minhas pernas, Chefe — disse Linia com um sorriso provocador. — Heheh. Acho que seu coração pende um pouco para a promiscuidade, hein? Mas não posso te culpar. Sou criminalmente sensual… Ehehehe. Pode ir em frente, pode dar uma espiada aqui dentro… Myaaah! Tire a sua mão daí!
Passei a mão por baixo de sua saia sem qualquer hesitação ou constrangimento. Mas tatear as suas coxas só me fez sentir um vazio profundo. Nada torna um homem mais infeliz do que sua libido baixa.
— Mew?! Não fique todo desapontado! Foi você quem decidiu me apalpar! Afinal de contas, o que é que há de tão ruim nas minhas pernas?!
Para ser bem honesto, ultimamente tenho sentido mais prazer ao tocar suas orelhas ou cauda. Acariciar algo peludo assim era ao menos relaxante.
— Linia, você é uma grande idiota — murmurou Pursena, mastigando uma coisa maior do que as minhas mãos. Aquela garota parecia nunca parar de comer carne. Às vezes era seca, às vezes grelhada, às vezes crua, mas sempre estava comendo ela de algum jeito. Era uma garota durona e de cabeça fria, mas se balançasse um pouco de carne na sua direção, trotaria na direção da pessoa com o rabo abanando sem parar. Seu pelo era mais macio que o de Linia e muito gostoso de acariciar. Mas, ao contrário de Linia, não me deixava acariciá-la, a menos que eu primeiro oferecesse um pouco de comida.
Por outro lado, se eu mostrasse um pouco de carne, ela me deixaria fazer basicamente qualquer coisa que quisesse. A garota parecia ter alguns pontos de vista bem antiquados a respeito de castidade, mas eu estava um pouco preocupado com a possibilidade de alguém tirar vantagem dela.
— Hmm… Mestre, olhe aqui — disse Zanoba. — Eu deixei o ângulo deste tornozelo ruim, não é?
— Deixe-me consertar isso para você, senhor — ofereceu Julie, olhando para a estatueta.
— Eu preferia que você me chamasse de Mestre, Julie. Também lembre-se de chamar Rudeus de Grão-Mestre.
— Certo, Mestre.
Nosso príncipe residente parecia estar mais ou menos como sempre. Ainda assim, parecia que tinha caído para o fundo da hierarquia de nosso pequeno grupo. Ele acompanhou minha luta com Linia e Pursena, mas eu basicamente acabei derrotando-as sozinho. Linia demonstrava desdém ao compará-lo com uma hiena se esgueirando na sombra de um leão.
De sua parte, porém, Zanoba parecia mais preocupado com seu status como meu “primeiro aluno”. Claro, ele era tecnicamente a quarta pessoa que eu ensinava, depois de Sylphie, Eris e Ghislaine. Com Ghislaine, houve uma troca mútua de informações, então provavelmente poderia retirá-la da lista… mas isso ainda deixaria Zanoba no número três.
Quando mencionei isso, porém, ele pareceu tão inconsolável que me arrependi na mesma hora. Para aliviar um pouco o golpe, disse que ele era o meu primeiro aluno no ofício das estatuetas.
Julie, minha segunda aluna neste ofício, sempre ouvia as enormes palestras de Zanoba sobre sua amada estatueta de Roxy atentamente. Ele comunicava com suficiente paixão para que ela entendesse o que estava sendo dito; percebi o crescente interesse da garota em fazer estatuetas por conta própria. Ainda assim, demoraria algum tempo até que ela pudesse discutir os pontos mais delicados do design e da técnica da maneira que Zanoba e eu discutíamos.
Porém, sendo tão importante quanto isso, ela começou a dar seus primeiros passos desajeitados nos feitiços não verbais. Mestre Fitz acertou em cheio quando sugeriu que aprender magia desde cedo era a melhor maneira de dominar essa habilidade.
— Não pude fazer isso, Grão-Mestre…
— Tudo bem.
Apesar de todo o progresso de Julie, ela ainda era jovem e cometia muitos erros. Desta vez, as pernas da estatueta estavam inchadas como balões de água. Ela não tinha o controle necessário para usar a magia da Terra com precisão em uma escala tão pequena. Nunca fiquei bravo ou frustrado com ela, é claro. A encorajava a continuar tentando, dizendo para não se preocupar com os erros. O sucesso nunca chega fácil, e desistir após um único fracasso é o caminho mais curto para se tornar um perdedor recluso e mal-humorado.
— Acho que você ainda não está pronta para consertar os bonecos, hein?
— Sinto muito…
Não importa com quanta gentileza eu falava com Julie, ela sempre revelava medo no olhar ao me encarar. Pelo visto, eu a intimidava.
— Meeeew… Tanto sono…
— Sim. Está ficando mais quente e tal.
— Ei, Chefe. Temos um ótimo local para cochilar de dia, sabia? Que tal se depois te mostrarmos?
— Hmm? Posso fazer coisas pervertidas com você enquanto você dorme, Linia?
— Você já pensou em qualquer coisa além de sexo, Chefe…?
— Não fale besteira. As estatuetas estão sempre em primeiro lugar nos pensamentos do mestre.
— Ah, Zanoba, baixa a bola. Ninguém falou com você.
— Mas eu…
— Coloque uma meia na boca. Que tal você ir comprar carne pra gente?
— Não falta muito para o professor chegar, mew.
— Então acho que é melhor ele andar logo.
— Mestre Zanoba, posso ir no seu lugar…
— Não vou deixar que uma garotinha como você faça essas coisas. Por que não vou no seu lugar?
— Mew? Não seja ridículo, Chefe! Prefiro ir eu mesma!
— Ah, é? Bem, então pode ir.
— Meow?!
Nós cinco estávamos conversando bem alto. Imagino se isso era muito irritante; afinal, não éramos as únicas pessoas na sala. Havia um outro aluno na sala de aula. Ou seja, Cliff Grimoire, que estava estudando sozinho durante toda a nossa conversa.
Ele, de repente, se levantou e virou em nossa direção, seus ombros tremiam de fúria.
— Vocês podem, por favor, calar a boca?! Eu não consigo me concentrar! Se vão ficar só brincando, então vão fazer isso em outro lugar!
Fechei a minha boca na mesma hora. Zanoba também parou de tagarelar e voltou a instruir Julie em silêncio.
Nossas duas ex-delinquentes, entretanto, optaram por interpretar a explosão de Cliff como um desafio.
— Com quem você pensa que está falando desse jeito, criança?
— De agora em diante, seu dinheiro é para a minha carne!
Podia se esperar que elas hesitassem um pouco mais para começar uma briga, já que as derrotei de forma sólida. Mas ouvi que brigaram com Cliff logo após ele se matricular, e o derrotaram com facilidade; depois disso, o garoto se dedicou de todo o coração aos estudos.
Eu tinha que admirar um cara que usava seus contratempos como motivação. Assediar um aluno tão diligente não seria correto.
— Sinto muito por isso, Cliff — falei, interrompendo. — Não quis atrapalhar os seus estudos. De agora em diante vamos fazer silêncio. Vamos lá, vocês duas. Silêncio. Silêncio!
— Se diz, Chefe, mew…
— Porra…
Linia e Pursena voltaram aos seus lugares, parecendo bastante mal-humoradas.
— Hmph — bufou Cliff. — Bem, era isso que eu queria. Sério, vocês são ridículos… Não posso acreditar que você carregou o Zanoba para esse absurdo.
Linia e Pursena estalaram as línguas, claramente irritadas. Ainda assim, eu não via motivo para mexer com alguém que estava trabalhando tão duro para progredir na vida. Também não me considerava nenhum preguiçoso, mas Cliff e eu estávamos claramente seguindo por caminhos bem diferentes. Nunca seríamos nada mais do que conhecidos.
Ou, ao menos, foi o que pensei na época.
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Uma semana depois, eu estava pesquisando sobre teletransporte com o Mestre Fitz em uma de nossas sessões regulares na biblioteca.
Nos últimos tempos, comecei a entender que o teletransporte tinha certas semelhanças com magia de Invocação. Os círculos mágicos utilizados eram muito parecidos e a cor da energia mágica que liberavam quando ativados era quase idêntica.
Entretanto, seus aspectos eram completamente diferentes. Era impossível invocar um ser humano. Simplesmente não havia maneira conhecida de fazer isso, mesmo com as técnicas mais avançadas e complexas. Era possível invocar diabos, espíritos e até plantas, sim. Mas não uma pessoa. Vasculhei por incontáveis registros, mitos e histórias antigas sem encontrar uma única referência a alguém invocando uma pessoa. Havia muitas raças neste mundo, incluindo as várias tribos da raça dos demônios, mas essa regra parecia se aplicar igualmente a todos.
Isso não tinha nenhuma relevância direta para o que queríamos saber, é claro. Talvez não fosse algo significativo. Mas havia algo nisso que me incomodava. Não era possível invocar uma pessoa de carne e osso. Muito justo. Mas e a sua alma?
Não expressei esses pensamentos, mas os arquivei em silêncio. Se algum dia encontrasse um verdadeiro especialista no assunto, teria que perguntar sobre a possibilidade de invocar o espírito de um homem morto de outro mundo.
— Mestre Fitz, você poderia tentar descobrir se há algum professor que saiba muito sobre Invocação para mim?
— Hã? Bem, claro. Mas não ensinam isso aqui, sabe? Nada fora Encantamento, acho. Não tenho certeza se encontraremos alguém que saiba sobre o tipo de coisa que estamos pesquisando…
Pensando bem, percebi uma nítida falta de aulas de Invocação na lista de cursos oferecidos… embora Encantamento fosse tecnicamente uma subcategoria disso, pelo que parecia. Eu tinha lido algo sobre isso em um dos meus livros?
— Bem, não custa nada dar ao menos uma olhada e ver o que consegue encontrar.
Para ser honesto, no momento, uma sementinha de incerteza estava brotando dentro de mim. Mas não deixei isso transparecer, é claro. Eu provavelmente estava enganado. O Incidente de Deslocamento ocorreu quando eu tinha dez anos – uma década inteira depois de reencarnar neste mundo. Essas duas coisas não podiam estar conectadas, certo? Afinal, passaram-se dez anos sem que nada acontecesse…
Com um sinal de ansiedade em minha mente, deixei a biblioteca e me dirigi ao dormitório sob a luz do sol poente. A última neve estava quase derretida; manchas de terra marrom-avermelhada estavam visíveis no pátio e o caminho pavimentado por pedras estava limpo. Enquanto seguia em direção ao meu destino, ouvi um grito de algum lugar próximo.
— Volte aqui, seu merdinha!
— Você acha que vamos deixar você lançar um feitiço?!
No instante seguinte, um jovem saiu de trás de um prédio escolar, seguido por um grupo de seis homens mais velhos que obviamente o perseguiam. O jovem estava tentando ganhar distância suficiente dos seus perseguidores para lançar um feitiço Avançado, mas eles continuavam interrompendo o seu cântico. Ele mudou para uma magia de nível Iniciante, tentando retardá-los, mas não foi o bastante. O grupo de seis o alcançou e o derrubou no chão, depois o chutaram com violência enquanto ele ficava em posição fetal.
Pelo visto, tropecei com um caso de bullying no pátio da escola. Só de assistir já era doloroso; não pude evitar de intervir.
— Ei, vamos lá. Parem com isso, rapazes — gritei enquanto trotava. — Não precisam implicar com a pobre tartaruga.
Os seis valentões se viraram e olharam ferozmente em minha direção. Eram todos um pouco mais altos do que eu, então acho que estavam tentando me intimidar.
— Quem diabos seria você?
Depois de um momento, porém, um deles me reconheceu.
— E-ei, aquele é o Atoleiro…
— Atoleiro? Espera, tá falando do Rudeus?!
— Aquele Rudeus?! O cara que trancou a Linia e a Pursena em um quarto e as adestrou?!
Ora, ora. Não houve nenhum adestramento, garanto.
— Essa história é pura conversa.
— Mas eu vi a Pursena abanando o rabo enquanto o chama de Chefe…
— Ela abana o rabo para qualquer um com um pedaço de carne!
— Mas elas fazem o que ele manda, não é?
— Sim. Eu vi elas na aula com a cara toda desenhada.
— O que dizia mesmo? “Somos as escravas do Rudeus”, não era?
— Bem, não me lembro exatamente o que era…
— Droga. Ele as espancou e depois escravizou?
— Cara, elas são princesas Doldia!
— O cara nem pensou nas consequências…
Depois de sussurrar esses rumores completamente imprecisos em voz alta, o grupo de agressores engoliu em seco ao mesmo tempo e olhou para mim com uma expressão de temor. Se entreolharam, balançaram as cabeças e então voltaram a atenção ao garoto deitado aos seus pés.
— Certo, criança. Por hoje vamos deixar você escapar.
Logo aproveitei o gancho desse comentário.
— Por hoje? Então vamos passar por isso amanhã de novo? Estão planejando atacá-lo mais uma vez?
Os seis valentões fizeram uma careta de irritação.
— Tch…
— Olha, uh… Senhor Greyrat. Isso não tem nada a ver com você, certo?
Caras como esse amavam falar essa frase. Sim, sim. Isso não era da minha conta. Eu sabia disso mesmo antes de enfiar o meu nariz.
— Não sei o que aconteceu, mas seis contra um não é uma luta justa.
O grupo trocou olhares e balançou a cabeça. Com certeza eram bons amigos, a julgar pela sua capacidade de se comunicarem em silêncio.
— Certo. Tá bom. Vamos deixar a criança em paz — disse um deles. — Mas, só para você saber, não é como se a vítima aqui fosse ele.
Com isso, ele se virou e foi embora, indo para trás do prédio. Os outros cinco o seguiram. Talvez tivessem uma pequena base de operações estabelecida lá atrás ou coisa do tipo.
Assim que desapareceram, deixei um suspiro de alívio escapar. Manter a calma enquanto seis pessoas me olhavam daquele jeito não foi fácil. Elaborei algumas estratégias para lutar quando estava em menor número, mas ainda assim precisava de algum esforço para não me dar mal. Entretanto, eu não via problemas ao encarar alguém no um contra um.
— Ei. Você está bem? — Fui até o garoto intimidado enquanto ele lutava para se levantar. O rapaz limpou a poeira de suas roupas e murmurou um encantamento rápido para um feitiço de Cura. Neste lugar, até mesmo as crianças que eram intimidadas eram magas aparentemente competentes…
O garoto se virou para mim. Era Cliff.
— …
Sério, a maioria das minhas interações com esse cara foram bem desagradáveis. Sempre que esbarrávamos um no outro, ele era abertamente hostil comigo. Provavelmente diria algo como “Não pedi a sua ajuda!” e depois sairia em fúria.
— Eu não pedi… — No meio da frase, Cliff fez uma pausa e franziu a testa, pensando. Depois de um momento, soltou um suspiro. — Foi mal… Agradeço a sua ajuda, Rudeus.
— Eh? Não há de quê.
O jovem mago curvou-se um pouco para mim, depois se afastou rapidamente. Fiquei lá e o observei partindo, me sentindo um pouco assustado. Era verdade que saí em seu socorro, mas aquela repentina mudança de atitude parecia muito estranha. Quase me fez pensar que ele estava tramando algo.
Ainda assim, provavelmente era melhor não tomar conclusões precipitadas no momento. Cliff foi hostil comigo por algum tempo, mas nunca retruquei de volta. Talvez finalmente tivesse percebido que eu não era um inimigo. Sério, não entendi por que decidiu me odiar desde o começo, mas…
— Bem, que seja. — Dei de ombros e fui em direção ao meu dormitório.
No dia seguinte, Cliff me pediu para falar com ele atrás do prédio da nossa escola.
Ele estava irritado. Eu não fazia ideia do motivo, mas isso estava na cara. Parecia que poderia acabar em violência, então ativei meu Olho da Previsão de antemão e analisei os arredores com cuidado. Eu também tinha uma boa quantidade de mana reunida em minha mão direita esperando para ser usada.
Mas, sério. As tartarugas desses dias. Quanta ingratidão.
— Certo, aqui deve servir.
Depois de verificar se não havia mais ninguém na área, Cliff se virou para mim. Seu rosto estava com um tom interessante de vermelho.
Logo percebi que havia mal interpretado a situação. Ele não me chamou ao lugar para lutar comigo. Estava, no mínimo, mais para uma cena clássica de confissão de amor. Isso era um pouco estranho. Verdade, ultimamente eu não tinha conseguido me animar com as mulheres, mas isso não significava que estava disposto a estudar toda a Anatomia Masculina.
É difícil ser sexy assim, heh heh.
— E-então, Rudeus, é o seguinte…
— Sim? — Eu já sabia como responderia, é claro. Dar uma resposta clara e direta era importante. Íamos começar como amigos. E também terminaríamos assim.
— Bem, eu me apaixonei por alguém — continuou Cliff, coçando a bochecha enquanto estudava o chão, todo tímido.
— S-sério? — Cara, eu realmente teria que atirar neste pobre soldado? Só de pensar nisso o meu estômago doeu. Não pude deixar de pensar em como poderia ter reagido se ele fosse uma garota… mas minha espada tinha suas preferências, e elas não iriam mudar.
Para minha surpresa, entretanto, Cliff ergueu os olhos e apontou para o lado.
— É aquela bem ali.
Ele estava indicando um prédio um pouco distante. Havia alguém lá dentro, olhando por uma janela aberta. Seu longo cabelo loiro esvoaçava com a brisa enquanto ela olhava para o sol poente com uma expressão melancólica no rosto.
— Eu vi vocês dois conversando esta tarde. Você a conhece, certo? Uhm… poderia nos apresentar?
— Er, claro…
A pessoa parada naquela janela era uma mulher que eu conhecia muito bem. Era uma notória criadora de problemas, objeto de incontáveis rumores – e uma predadora voraz que devorava seus colegas estudantes com todo o vigor de uma súcubo.
Em outras palavras, era Elinalise Dragonroad.
Tradução: Pimpolho
Revisão: PcWolf
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