Dark?

Sua História – Cap. 11 – Sua História

Todos os capítulos em Sua História
A+ A-

Recebi um enorme envelope no final de setembro. Dentro estava o registro pessoal de Touka e também uma carta bem curta.

 

Primeiro examinei o conteúdo da carta e depois li o registro pessoal. A carta era bem simples: uma confissão sobre ter Nova Alzheimer e um pedido de desculpas por usar Mimories para tentar me enganar. Em comparação com isso, o registro pessoal era enorme e acabei levando quatro horas para ler ele inteiro.

 

Esquecendo-me de comer ou dormir, li várias vezes. Pelo visto, quando ela era engenheira de Mimories, lia os registros pessoais de seus clientes tantas vezes que acabava guardando cada um deles na memória.

 

Todas as respostas estavam ali. O registro pessoal parecia ter sido escrito quando Touka tinha dezoito anos, então eu só podia imaginar que tipos de circunstâncias poderiam levá-la a elaborar o Plano Amigos de Infância, mas agora que sabia de tudo sobre sua vida, já não seria difícil dar um palpite certeiro.

 

Sentindo que era seu destino receber um registro pessoal do cliente Chihiro Amagai, ela criou Mimories com base na teoria de “e se tivéssemos nos conhecido aos sete anos de idade?”, plantando essa ideia em nossos cérebros, para encontrarmos salvação um no outro em nossas memórias. Não só isso, como também para tornar a mentira em realidade, atuou como minha amiga de infância.

 

Escolheu viver o tempo que restava como “Touka Natsunagi”.

 

Essa era provavelmente a verdade.

 

Que tola, pensei. Ela poderia ter simplesmente me entregue o registro pessoal e dizer: “Estávamos destinados a nos conhecer”, e isso já seria o bastante. Se tivesse visto seu registro pessoal desde o início, seria capaz de amá-la. Seríamos o par perfeito desde o começo, sem precisar do apoio de qualquer falsa memória.

 

Fiquei triste em pensar que ela só conseguia acreditar no poder da mentira no final. Lamentei seu descuido, sendo tão determinada a perseguir uma vã noção de felicidade que explodiu como uma bolha que foi ignorada diante da felicidade iminente.

 

E mais do que tudo, amaldiçoei-me por ter tanto medo de me machucar que acabei não percebendo seus sinais de angústia.

 

Fiz algo irreversível.

 

Só eu poderia ter salvado Touka, isso era certo. Podia entender sua solidão por completo. Podia entender todo o seu desespero. Podia entender até mesmo o seu medo.

 

Sim, o motivo pelo qual continuei sem usar o Lethe foi porque descobri o medo de perder as memórias após usar o falso Lethe. Aquele medo infindável de perder quem eu era, de perder o mundo sob meus pés.

 

Ela esteve lutando contra isso o tempo todo. Com ninguém em quem confiar, ninguém para entendê-la, ninguém para consolá-la; enquanto lutava sozinha, como se fazendo preces pela salvação, ficou esperando por mim para mudar seu coração.

 

Talvez devesse ter deixado Touka me enganar. Como aquele Okano fez quando encontrou uma golpista e até vendeu uma pintura cara, mas continuou acreditando na existência de sua colega de classe, Ikeda. Eu deveria ter simplesmente interpretado as coisas enquanto me convencia. Então poderia ter dançado alegremente na palma de sua mão.

 

Ou, se não fosse assim, deveria ter estudado minuciosamente as Mimories, assim como Emori. Se tivesse feito isso, talvez acabasse encontrando a entrevista de Touka. Mesmo se não encontrasse aquela em particular, se soubesse que existiam engenheiros de Mimories adolescentes, era possível que acabasse descobrindo a verdade sobre ela ter criado o meu Verde Verde. Então, talvez, pudesse ter aliviado um pouco de sua solidão, desespero e medo.

 

Entretanto, escolhi a pior opção. Recusei-me a acreditar em suas palavras e, ainda assim, não trabalhei ativamente para sanar minhas dúvidas, deixando o mistério sendo um mistério após fazer apenas uma pesquisa superficial. Por quê? Porque, embora tivesse medo de acabar sendo enganado, por outro lado, também não queria acordar de meu sonho. Durante o maior tempo possível, queria preservar a existência de um “talvez” no espaço entre a confiança e a desconfiança. Queria fingir ignorância e aceitar o carinho de Touka, permanecendo em um local seguro onde não pudesse me machucar.

 

E então ela se esqueceu de tudo. Ficou incapaz de lembrar qualquer coisa além dos últimos dias, de modo que até as curtas férias de verão que passamos juntos sumiram sem deixar qualquer vestígio. Quando ela olhou para o meu rosto, parecia não saber quem eu era.

 

O olhar que Touka me deu quando nos vimos no corredor do apartamento me lembrou o olhar que minha mãe, que apagou todas as memórias de sua família usando Lethe, me dirigiu quando a vi pela última vez. Quando perguntei se lembrava de mim, desculpou-se balançando a cabeça.

 

Sequer me perguntei: “O que está acontecendo?”

 

Apenas pensei: Ah, mais uma vez fui esquecido por uma pessoa querida.

 

Touka deixou seu quarto carregando uma bolsa grande. Imaginei que voltara para se preparar para a internação. Observei-a sair enquanto estava na varanda. Queria correr atrás dela e conversar, mas minhas pernas não se moveram. Eu não estava confiante de que poderia manter minha sanidade se mais uma vez recebesse aquele olhar indiferente.

 

Em menos de dois meses provavelmente não saberia sequer como andar.

 

Esqueceria como comer. Esqueceria como mover o próprio corpo.

 

Esqueceria como se usa a boca. Esqueceria até mesmo de como respirar.

 

Além disso, a morte seria inevitável.

 

Por mais que eu quisesse me desculpar, a única a quem me desculpar já não estava neste mundo. Então, pelo menos, queria dedicar tudo o que me restava a Touka. Jurei isso em meu coração. Não apenas neste verão; usaria o resto de minha vida por ela. Mesmo após ela abandonar este mundo, para sempre.

 

Queria encontrar Touka o quanto antes, mas havia algumas coisas que precisava fazer primeiro. Fui a um barbeiro e cortei meu cabelo, depois fui até a cidade e comprei algumas roupas novas. Escolhi um corte e roupas de qualidade, algo que me fizesse parecer o “Chihiro Amagai” das Mimories dela. De volta ao apartamento, tomei um banho e vesti as roupas que acabara de comprar, e finalmente estava pronto.

 

De pé na frente do espelho, encarei o meu rosto. Não conseguia lembrar da última vez que me olhei seriamente no espelho, mas senti que minha expressão estava menos rígida do que antes. Claro, isso devia ser graças a Touka.

 

Entrei no ônibus e fui para o hospital no qual suspeitava que ela estaria. Não havia qualquer nuvem no céu, mas o calor opressivo desaparecera há algum tempo, por isso estava confortável dentro do ônibus. O verde visível pela janela foi gradualmente aumentando, e o ônibus passou por uma estrada com montanhas, uma represa e até um túnel curto, depois parou em frente a um pequeno campo de girassóis. Paguei a passagem e desci do ônibus.

 

Depois que o ônibus partiu, a área ficou envolta em silêncio. Fiquei lá e olhei para todos os lados. A terra estava cercada por um bosque denso, com casas decrépitas espalhadas aqui e ali. O ar frio estava misturado com o cheiro de terra molhada.

 

O hospital ficava na margem oposta ao parque que visitamos várias vezes em nossos passeios de bicicleta. Não havia qualquer garantia de que Touka estivesse nele. Mas, se estivesse, isso explicaria seu interesse excessivo no hospital em questão.

 

Quando cheguei ao lado de fora e olhei casualmente para o segundo andar, vi uma pessoa parada na janela.

 

Foquei bem os meus olhos para ver o rosto daquela pessoa.

 

Era minha amiga de infância.

 

Desta vez vamos fazer direito, pensei.

 

O quarto do hospital carregava um poderoso cheiro de morte. Não era como o de cadáveres, ou mesmo de incenso. Havia algo ali que fazia qualquer um sentir que era o cheiro da morte. Talvez fosse possível dizer que faltava uma sensação que deveria haver em qualquer lugar com humanos vivos.

 

Touka estava lá. Não fazia nem uma semana desde a última vez que nos vimos, mas parecia estar um pouco mais magra. Ou talvez a sombra da morte no cômodo apenas fizesse parecer isso.

 

Ela ficou na janela, observando a paisagem do lado de fora, assim como sempre. Não usava seu habitual pijama de puro branco, mas uma bata azul e desbotada do hospital. Talvez por não ser do tamanho certo, as mangas estavam inclusive dobradas. O caderno azul que segurava sobre o braço provavelmente era um meio de armazenar suas memórias externamente. Isso me indicou até que ponto a doença progredira. Não havia nada escrito na capa, e uma caneta barata estava amarrada ao arame.

 

Parei à porta do quarto de Touka e olhei distraído por um longo tempo. Ela parecia estar encontrando paz em seu quarto de hospital, desfrutando do relaxamento naquele lugar sombrio. Parecia que o quarto em si também aceitava naturalmente a presença dela.

 

Essa sensação de harmonia me deu um forte sentimento de que ela nunca mais poderia sair do lugar. E provavelmente era verdade. Se houvesse alguma oportunidade para deixar o quarto do hospital, seria após tornar-se “algo que já foi ela”. Eu não aguentava sequer pensar nisso.

 

Touka logo encontraria uma segunda morte.

 

Não consegui falar com ela. Não tive coragem de romper a conexão íntima que existia entre ela e o quarto do hospital. Além disso, queria vê-la a uma pequena distância assim, tanto quanto pudesse. Porque essa foi a primeira vez que a vi enquanto sozinha.

 

E então, Touka se virou lentamente e notou a presença do convidado. Inclinou a cabeça, afastou o cabelo da bochecha e olhou para o meu rosto. Então disse meu nome com uma voz rouca.

 

— Chihiro…?

 

Não era como se restasse alguma lembrança. Simplesmente encontrou alguma semelhança entre mim e o “Chihiro Amagai” de suas Mimories, e deu um palpite natural partindo disso. Do mesmo modo que eu tinha pronunciado seu nome por reflexo na primeira vez que nos vimos de perto. A sobreposição com certos episódios nas Mimories provavelmente também ajudou a alimentar a imaginação.

 

— Touka.

 

Falei seu nome bem naturalmente. Foi tão gentil que não acreditei que pronunciei aquele nome. Parecia que não precisava atuar de propósito. Tornei-me “Chihiro Amagai” por completo.

 

Virei o “Herói” de Touka Natsunagi.

 

Touka me olhou como se estivesse vendo algo inacreditável. Como se dissesse: “Isso não deveria estar acontecendo, deve ser algum tipo de engano”. Ela olhou ao redor do cômodo como se procurasse uma equipe de filmagem. Mas estávamos apenas nós ali.

 

— Quem é… Você?

 

— Chihiro Amagai. Seu amigo de infância.

 

Peguei um banquinho no canto do quarto e o coloquei ao lado da cama, depois me sentei. Mas Touka não se afastou da janela. Com a cama entre nós, lançou-me um olhar cauteloso.

 

— Não tenho nenhum amigo de infância — disse lentamente.

 

— Então como sabe meu nome? Acabou de me chamar de “Chihiro”, não foi?

 

Touka rapidamente balançou a cabeça algumas vezes, levou a mão esquerda ao peito e respirou fundo. Então falou como se quisesse convencer a si mesma:

 

— Chihiro Amagai é um Substituto. Uma pessoa fictícia que existe apenas em minha cabeça. Perdi todas as memórias graças à Nova Alzheimer. Tudo o que me resta são Mimories. É verdade que me lembro do nome Chihiro Amagai, mas isso indica que Chihiro Amagai não existe. É proibido que os Substitutos sejam modelados de acordo com pessoas reais. — Depois de falar tudo isso de uma só vez, fez outra pergunta para mim. — Vou perguntar novamente. Quem é você?

 

Parecia ser verdade que a Nova Alzheimer só levava as lembranças embora. Ela ainda conservava seu conhecimento a respeito de Mimories – bem como sua capacidade de raciocínio.

 

Claro, eu já tinha previsto isso. Pensei até em inventar alguma lógica adequada para enganá-la, mas reconsiderei a hipótese.

 

Queria fazer tudo desde o começo, com o mesmo método que ela usou.

 

Queria continuar com o Plano Amigos de Infância exatamente como devia ser e provar que sua ideia não foi errada.

 

— Sou Chihiro Amagai, seu amigo de infância — repeti.

 

Ela olhou para mim em silêncio. Como um gato de rua julgando a distância de alguém.

 

— Se não acredita em mim, não precisa. Apenas lembre-se de uma coisa… — Peguei emprestadas as palavras que ela disse antes de perder a memória. — Estou ao seu lado, Touka. Não importa o quê.

 

Depois de pensar durante a noite toda, parecia que Touka chegou à mesma conclusão que eu.

 

— Minha teoria é que você é um golpista atrás da minha herança. — Foi o que ela disse assim que viu a minha cara no dia seguinte.

 

Não ousei negar, e perguntei qual processo de pensamentos levou a essa conclusão.

 

— Perguntei à minha cuidadora e, pelo visto, sou bastante rica. Você pretende me atrair para uma armadilha após eu perder as memórias, já que não sei o que está acontecendo, não é?

 

Não pude deixar de rir em amargura. Devia ser assim que Touka se sentiu quando tentou me enganar.

 

— O que é tão engraçado? — Suas bochechas ficaram vermelhas enquanto ela me encarava.

 

— Ah, é que acabei de me lembrar de algo nostálgico.

 

— Não tente me enganar. Você pode provar que não é um golpista?

 

— Não posso — respondi honestamente. — Mas se estou atrás de sua herança, conforme você diz, por que iria querer atuar como se fosse o Substituto Chihiro Amagai? Acho que agir como alguém bem parecido com ele seria muito melhor para entrar em seu coração.

 

Ela pensou no meu contra-argumento por algum tempo. Então falou friamente:

 

— Isso não é necessariamente verdade. Você pode ter tido a impressão de que eu já estava perdendo a distinção entre o que são memórias ou Mimories. A maioria das pessoas não tem ideia de que as Mimories são mais resistentes ao esquecimento da Nova Alzheimer. Ou talvez você tenha pensado que a minha mente estava tão enfraquecida que eu nem me importaria com a diferença entre o que é verdade ou mentira.

 

— Ou talvez estivesse colocando muita fé na influência que as Mimories possuem — falei antes que ela pudesse concluir. — Ou então, talvez exista alguma razão para ter que atuar como seu amigo de infância.

 

— Não pense que pode me despistar assim. De qualquer forma, o humano Chihiro Amagai não existe.

 

— Acho que mostrar minha identidade ou cartão do seguro não vai te convencer, não é?

 

— Isso mesmo. Esse tipo de coisa sempre pode ser falsificado. Além disso, mesmo se você fosse um Chihiro Amagai, isso não provaria que era meu amigo de infância. Essas Mimories podem ter sido criadas para me enganar.

 

Suspirei. Realmente estava encarando meu antigo eu.

 

— Além disso, isso mesmo, não podemos descartar a hipótese de você estar fazendo isso só por diversão. Existem pessoas que gostam de brincar com o coração alheio e rir dos outros pelas costas.

 

— Você é tão pessimista. Não pode nem considerar isso como sendo um garoto que você salvou há muito tempo tentando retribuir o favor?

 

Ela balançou a cabeça resolutamente.

 

— Não consigo imaginar que eu seja assim. Disseram-me quanto tempo ainda tenho de vida, mas nenhum membro de minha família, amigo ou colega de trabalho veio me visitar. Devo ter vivido uma vida vazia e solitária. A falta de fotos ou diários prova que meu passado não merece ser lembrado. Talvez seja melhor que eu tenha perdido todas as memórias antes de morrer.

 

— Verdade, seu passado pode ter sido solitário — concordei —, mas certamente não foi insignificante. É por isso que estou aqui. Porque você é minha “heroína” e eu o seu “herói”.

 

— Que idiotice é essa…?

 

Tivemos várias conversas semelhantes depois disso.

 

— Não consigo imaginar que você poderia entender ao menos um pouco — disse Touka, sua voz chegando até mesmo a vacilar. — Mas mesmo que sejam fictícias, minhas memórias de Chihiro Amagai são minha única base. Não seria exagero dizer que são todo o meu mundo. E você está maculando esse santo nome. Está atuando como ele para conquistar minha afeição, mas isso está tendo o efeito oposto. Te desprezo por assumir a identidade de Chihiro Amagai.

 

— Certo. Essas lembranças são mais importantes do que qualquer coisa para você. — Usei as palavras dela contra ela. — Não acha que é por isso que elas milagrosamente não foram esquecidas?

 

— Não. Se apenas memórias importantes pudessem permanecer, haveria ao menos algum indício disso. E deve haver alguma pessoa com Nova Alzheimer que tenha mais lembranças maravilhosas do que eu.

 

— Mas ninguém é mais apegado às memórias sobre uma única pessoa do que você. Estou errado?

 

Os poucos segundos de silêncio eloquente denunciaram-me o tremor em seu coração.

 

Ainda assim, ela continuou obstinada.

 

— Independente do que você disser, essas memórias são apenas Mimories. São boas demais para ser verdade. Toda e qualquer memória parece tão confortável. A sensação de que todas foram escritas apenas para corresponder aos meus desejos está clara como o dia. Certamente são Mimories com base no meu registro pessoal. Devo ter pensado que, apesar da vida que levei, poderia encontrar salvação na ficção.

 

Quando estava prestes a dar meu contra-argumento, um alto-falante começou a tocar, marcando o final do período do encontro.

 

Firefly’s Light.

 

Nossa conversa cessou quando escutamos a música.

 

Não havia espaço para dúvidas de que ambos estávamos pensando na mesma coisa.

 

— Isso realmente deve ser algum tipo de maldição — falei rindo.

 

Touka me ignorou, mas não negligenciei o fato de sua expressão rígida ter relaxado um pouco.

 

— Já vou embora. Desculpe pelo incômodo. Te vejo amanhã.

 

Quando levantei e me virei, ela disse:

 

— Tchau, Senhor Golpista.

 

Seu tom foi brusco, mas não senti qualquer animosidade.

 

Virei, disse: “Amanhã chegarei mais cedo”, e deixei o cômodo para trás.

 

Nos próximos dias, Touka continuou me chamando de “Senhor Golpista”. O que quer que eu tentasse dizer, ela só podia ver como o capricho de um golpista, e até brincava com ironia, falando: “Hoje você fez um bom trabalho novamente.”

 

Mas logo percebi que era tudo atuação. Como alguém que pensa muito mais rápido do que eu, ela percebeu há muito tempo que não havia qualquer mérito em me comportar como seu amigo de infância. Bem como o fato de eu estar mostrando um carinho legítimo.

 

Parecia que Touka não tinha medo de ser enganada por mim, mas de se aproximar de mim. Agiu com indiferença, provavelmente porque desenhou uma linha de limite em nossa relação. Quando sua guarda enfraqueceu e se viu prestes a demonstrar carinho também, limitou-se a me tratar como um golpista para aumentar a distância entre nós e manter o autocontrole.

 

Eu podia entender como ela se sentia. Era certo que logo abandonaria este mundo, então queria ter o mínimo de bagagem possível. Agora, tinha ciência da definição de “coisas que poderia ter” e “coisas que poderia perder”. Quanto maior o valor da vida, maior a ameaça da morte. Ela queria manter o valor da vida zerado, para que, quando se tornasse um fantasma, também pudesse escolher o momento correto para partir.

 

Dito isto, não parecia ter chegado a uma resignação tão profunda para me afastar por completo, então estava obviamente feliz quando eu aparecia no seu quarto de hospital e evidentemente solitária quando eu partia. Mesmo na vez que fiquei tão emocionado ao ponto de abraçá-la com força, não mostrou resistência e, quando me afastei, estava mordendo o lábio com relutância. De vez em quando, chegava a cometer um deslize e me chamar de Chihiro, embora sempre fosse rápida para acrescentar: “… falso, Senhor Golpista.”

 

Para passar o máximo de tempo possível com ela, solicitei uma licença da faculdade e deixei o emprego. Enquanto não estava no hospital, estava lendo artigos sobre a Nova Alzheimer, procurando maneiras de prolongar sua vida, mesmo sabendo que isso não fazia sentido. Claro, todos esses esforços foram em vão.

 

O rosto de Touka ficou nublado quando perguntei por que não ouvia músicas no quarto do hospital.

 

— Não tenho nada para fazer isso por aqui. Todas minhas músicas estavam em discos. Como eu só podia trazer algumas coisas, decidi deixar tudo para trás…

 

— Agora se arrepende?

 

— Só um pouquinho — disse concordando. — Este quarto é silencioso e agradável durante o dia, mas um pouco quieto demais à noite.

 

— Foi bem o que imaginei.

 

Tirei um reprodutor de músicas portátil do bolso e entreguei a ela.

 

— Coloquei suas músicas preferidas aqui.

 

Touka, visivelmente nervosa, pegou o aparelho de minha mão. Ela tocou a tela para ver como funcionava, depois colocou os fones de ouvido e pressionou “reproduzir”.

 

Por um tempo após isso, ouviu música. Sua expressão não mudou, mas o leve balanço de seu corpo entregou que estava gostando. Parecia que eu a agradei.

 

Pensei em deixar o lugar por um momento, para não incomodar. Quando levantei do assento, ela levantou a cabeça. Logo tirou os fones de ouvido e disse:

 

— Um… Aonde você vai?

 

Disse que estava pensando em fumar, e ela suspirou, “Entendo”, depois voltou a colocar os fones de ouvido e retornou a seguir o fluxo do som.

 

Segui com minha mentira improvisada e fumei na ala de fumantes fora do prédio. Depois de apenas três tragadas, apaguei o cigarro, encostei na parede, fechei os olhos, pensei em Touka tentando me impedir de sair e deixei meu coração vibrar em silêncio.

 

Qualquer que fosse o motivo, ela continuava a me querer. Isso me deixou incrivelmente feliz.

 

Quando voltei no dia seguinte, Touka ainda estava profundamente absorta pela música. Suas mãos estavam nos ouvidos, os olhos alegremente entreabertos, assim como um gato relaxando à luz do sol, e tinha um sorrisinho nos lábios.

 

Quando falei com ela, tirou os fones de ouvido e me cumprimentou com seu típico “Olá, Senhor Golpista.”

 

— Escutei todas as músicas.

 

— Todas elas? — perguntei. — Pensei que tivesse mais de dez horas de músicas gravadas…

 

— Sim. Foi por isso que não dormi desde ontem.

 

Ela cobriu a boca e bocejou, depois enxugou os olhos com os dedos indicadores.

 

— Cada música soou perfeita para mim. Já estava começando a repetir as faixas.

 

Eu ri.

 

— Fico feliz por você ter ficado tão feliz, mas precisa dormir um pouco.

 

Mas ela não pareceu me ouvir. Sentou-se na cama, mostrou-me a tela do reprodutor de músicas e falou com um rosto confuso:

 

— Já ouvi essa mais de dez vezes…

 

Lembrou-se de algo e bateu palmas, depois colocou um fone de ouvido e me ofereceu o outro.

 

— Vamos ouvir juntos, Chihiro.

 

Ela esqueceu por completo de me chamar de Senhor Golpista. Mas era aceitável que isso acontecesse. Suas memórias foram apagadas, então ouviu a lista de reprodução que selecionou ao longo de toda a vida pela primeira vez. Não poderia haver maior luxo para os amantes de música. (E, embora seja possível que a Nova Alzheimer não fizesse esquecer as músicas, provavelmente fazia com que esquecesse toda e qualquer conexão com elas.)

 

Sentei ao seu lado na cama e coloquei o outro fone de ouvido em minha orelha direita.

 

Ela mudou o reprodutor para o modo monofônico e pressionou “reproduzir”.

 

As músicas antigas que escutei durante as férias de verão começaram a tocar.

 

Durante a terceira música, as pálpebras de Touka começaram a pender. Depois de fazer movimentos pendulares por um tempo, apoiou seu peso em mim e adormeceu no meu colo. Provavelmente deveria deitá-la na cama, mas não consegui deixar essa posição. Cuidadosamente estendi a mão e abaixei o volume do reprodutor, e então olhei incansavelmente para o seu rosto.

 

De repente, tive aquele sentimento casual: Perderei essa pessoa.

 

Ainda não conseguia entender exatamente o que isso significava para mim. Da mesma forma que um indivíduo não sabe o que o fim do mundo significa para si. A tragédia seria tão grande que era efetivamente impossível mensurá-la.

 

De qualquer forma, no momento não podia ficar cabisbaixo com a dor ou com o destino maldito. Deveria adiar tudo por enquanto, e apenas pensar em como enriquecer o tempo que Touka e eu passaríamos juntos. Se quisesse me desesperar, poderia fazer isso após tudo encontrar seu fim. Porque certamente teria muito mais tempo para fazer isso do que imaginaria.

 

Depois de tirar uma soneca, Touka finalmente recuperou a compostura. Ela pediu desculpas por adormecer no meu colo, depois olhou para o meu rosto e soltou um longo suspiro resignado.

 

— Senhor Golpista, você realmente sabe como me fazer feliz. Eu odeio isso.

 

Silenciosamente lamentei o retorno do “Senhor Golpista”.

 

— Estou meio cansada — disse apática, e então caiu de bruços na cama. — Ei, Senhor Golpista. Se me contar a verdade agora mesmo, te darei toda a minha herança. Bem, não tenho ninguém para quem deixar mesmo.

 

— Então vou contar a verdade. Estou irremediavelmente apaixonado por você, Touka.

 

— Mentiroso.

 

— Não estou mentindo. Você também deve estar ciente disso, não?

 

Ela rolou e ficou de costas para mim.

 

— O que há de tão atraente em uma garota tão vazia quanto eu…?

 

— Tudo.

 

— Você tem mau gosto.

 

Eu podia dizer pelo tom de sua voz que ela estava sorrindo.

 

Touka, lenta, mas seguramente, começou a sorrir para mim. Chegou até a me preparar um assento em seu quarto, começou a falar “até amanhã” quando o encontro acabava e eu partia, e cochilava em meu colo quase todos os dias (embora sempre dissesse que foi por acidente).

 

Segundo a enfermeira, falava constantemente sobre mim quando eu não estava por perto.

 

— Ela fica olhando pela janela a manhã inteira, fica esperando ansiosamente até você aparecer — sussurrou a enfermeira.

 

Se ela me aceitava tanto, deveria ter acreditado em minhas mentiras, mas Touka não recuaria nisso. Eu era estritamente apenas o “Senhor Golpista” em busca de sua herança, e ela simplesmente se atreveu a aproveitar o tempo com o referido golpista, jamais passaria disso. Assim como certo alguém já havia feito.

 

Uma noite, Touka parecia melancólica quando se apoiou em meu ombro.

 

— Devo ser uma presa fácil aos seus olhos, Senhor Golpista. Estou tão enfraquecida que, se você me mostrar um pouco de gentileza, sinto que posso acabar cedendo.

 

Embora eu ache que meio que entendi, ela apenas juntou-se ao silêncio.

 

— Então eu ficaria feliz se você fizesse isso e me reconhecesse como seu amigo de infância.

 

— Não posso fazer isso.

 

— Realmente sou tão suspeito?

 

Depois de uma pausa compassada, respondeu:

 

— De alguma forma, posso dizer que seu carinho não é uma mentira. Mas…

 

— Mas?

 

— Digo — disse ela com uma voz rouca —, todas as minhas memórias foram apagadas, mas as relacionadas a um único garoto continuam vivas. Fui abandonada pela minha família e não tenho amigos, mas esse garoto vem me visitar todos os dias, sem falta. Você diz que gosta de mim, mesmo eu não tendo valor e não conseguindo mais trabalhar. Quem pode acreditar em uma história assim?

 

— Certo… Penso da mesma forma.

 

Ela deu um salto e ficou me encarando quase até criar um buraco no meu rosto.

 

— Você admite que está mentindo?

 

— Não. — Balancei a cabeça lentamente. — Acho que é inevitável que você não acredite em mim. Conheço a dolorosa sensação de ver algo bom demais para ser verdade como uma armadilha… Mas às vezes esse tipo de coisa acontece na vida, por incrível que pareça. Assim como uma vida repleta de felicidade é altamente improvável, uma repleta de miséria também é bem improvável. Você não pode acreditar um pouquinho mais na sua felicidade?

 

Essas palavras também foram direcionadas ao meu eu do passado.

 

Eu deveria ter acreditado na felicidade que obtive.

 

Touka ficou em silêncio para refletir a respeito de minhas palavras, mas logo soltou um suspiro.

 

— De qualquer forma, ter alguma felicidade tão tarde assim é apenas vazio.

 

Ela colocou a mão esquerda no peito para suprimir seus batimentos e sorriu debilmente.

 

— Então, acho que estou bem com você, Senhor Golpista.

 

Mas esse foi o último dia em que conseguiu manter esse blefe.

 

No dia seguinte, fui recebido no quarto do hospital por uma Touka sentada na cama, segurando os joelhos e tremendo.

 

Quando falei, ela levantou a cabeça e murmurou meu nome, “Chihiro”, e não Senhor Golpista.

 

Então saiu da cama, tropeçou em mim e enterrou seu rosto no meu peito.

 

Enquanto acariciava suas costas, tentei pensar no que poderia ter acontecido.

 

Mas, na verdade, não precisava pensar em algo do tipo.

 

A hora que chegaria, chegara. Isso era tudo.

 

Vendo que Touka estava recuperando um pouco de sua compostura, perguntei:

 

— Suas Mimories também começaram a desaparecer?

 

Ela assentiu de leve enquanto se afundava em meu peito.

 

Minha cabeça girou.

 

Por um instante, senti um tipo de sensação confusa, como se o mundo tivesse sido deslocado em alguns milímetros.

 

O apagamento das Mimories.

 

Isso significava que ela finalmente estava se aproximando do verdadeiro vazio.

 

Isso significava que não tínhamos sequer mais um mês.

 

A próxima coisa que esse demônio tomaria seria sua vida.

 

Desde o momento em que ela soube que tinha Nova Alzheimer, soube que esse dia chegaria.

 

Ela já devia ter aceitado. Já devia estar pronta.

 

Mas no final, eu não sabia de nada.

 

Naquele dia, aprendi a verdadeira razão pela qual o Lethe foi desenvolvido.

 

Aos vinte anos, finalmente compreendi o motivo pelo qual as pessoas usavam o poder de pequenas máquinas para tentar esquecer tudo.

 

Ela continuou chorando por horas. Como se estivesse tentando colocar todas as lágrimas de sua vida para fora de uma só vez.

 

Quando o sol ao oeste encheu o quarto do hospital com uma cor laranja pálida, finalmente parou de chorar.

 

Com minha visão embaçada, vi sua sombra balançando.

 

— Ei… Me conta sobre o passado — falou Touka com uma voz seca. — Fale sobre mim e Chihiro.

 

Falei sobre todas as falsas lembranças para Touka.

 

O dia em que nos conhecemos. A vez que eu estava convencido de que ela era um fantasma. Andarmos de bicicleta pela cidade com ela sentada na garupa. Visitava sua casa todos os dias nas férias de verão e conversava pela janela. Reunião na sala de aula no próximo ano escolar. Ser apontado como o único amigo que cuidaria dela, por ela não conseguir se encaixar na escola. Ir buscá-la todas as manhãs e caminhar juntos para a escola. Ficar juntos durante a semana, fins de semana e em todos os momentos. Ela constantemente segurando a minha mão. Nossos colegas de classe nos provocando por nosso relacionamento nos anos anteriores. Um coração com nossos nomes sendo desenhado no quadro negro. Eu tentando apagar isso, mas ela dizendo para não fazer algo assim. Ouvir músicas de novo e de novo enquanto continuávamos estudando. Ela orgulhosamente explicando o significado de cada letra de música. Ficar na casa dela nos dias de folga. Assistir exibições de filmes juntos e ficando desconfortável quando havia alguma cena mais melosa. Ficando sentados um ao lado do outro no ônibus indo para um passeio. Ela ficando quase sem energias nas montanhas, e eu deixando ela se apoiar em meu ombro. Dizer a amigos em uma barraca ao ar livre na escola quem era a garota de quem eu mais gostava e isso sendo espalhado pela sala de aula no dia seguinte. Ela recebendo um tratamento parecido. Nós sendo combinados como par para uma dança folclórica, e ela pendendo a cabeça o tempo todo. Ela tendo uma crise de asma grave durante o verão na sexta série. Por algum tempo após isso, ficou louca de preocupação sempre que tossia. Eu escrevendo “espero que a Touka melhore” como meu desejo de Tanabata[1], e seus olhos lacrimejando ao ver isso. Entrando para os mesmos clubes no ensino médio, assim tendo mais tempo para ficarmos juntos. Parar em turmas diferentes pela primeira vez durante o primeiro ano do ensino médio. Isso nos levou a começar a nos ver como potenciais parceiros românticos. Nossa maneira de interagir ficando um pouco estranha. Ela sempre esperando na sala de aula até eu terminar minhas atividades no clube. Nós dois aprendendo uma letra errada de Firefly’s Light. Sendo provocados pelos colegas de classe no terceiro ano, mas de forma diferente do primário. Decidir espalhar todos os tipos de rumores verdadeiros e falsos sobre nosso relacionamento, e após isso não sermos mais provocados. Seu rosto ficando vermelho ao ouvir essas coisas. Ser escolhido como Âncora para o revezamento na pista de corrida. Caindo no chão após correr o mais rápido que pude, e recebendo os cuidados dela na enfermaria. O festival de verão aos quinze anos sendo de alguma forma especial.

 

Como ela estava maravilhosa em sua yukata. Erguemos nossas defesas e trocamos um beijo malicioso. O beijo não foi o terceiro ou o quarto, mas sim o quinto. Agimos como se não sentíssemos nada só para preservar o status quo[2]. Saímos de nossos clubes, conseguimos mais tempo juntos e ficamos felizes por isso. Levei álcool de casa para ajudar a afogar as mágoas relativas aos problemas familiares e bebemos juntos. Então nos soltamos um pouco mais do que deveríamos. Não fomos capazes de fazer contato visual no dia seguinte graças ao constrangimento. Pessoas escolhendo pares durante os preparativos para o festival cultural e nós ficando juntos. Conversando em uma sala de aula escura sobre coisas que normalmente não gostaríamos. A linda lua que vimos pela varanda. Tendo um encontro secreto na noite de uma viagem escolar. Fazendo coisas juntos quando os grupos tinham algum tempo livre e os outros tacitamente aceitando isso. Indo juntos para a biblioteca e estudando para que pudéssemos frequentar a mesma faculdade. A primeira neve da estação caindo enquanto íamos da biblioteca para casa. Vendo-a iluminada pelas luzes dos postes enquanto brincava com a neve. Não usando luvas de propósito, porque queria segurar sua mão enquanto caminhávamos para casa. Estranhamente conversando pouco depois do Ano Novo. A data de sua mudança já estava decidida naquela hora. Ganhando um chocolate mais bem elaborado do que o normal para o dia dos namorados. Ela descobrindo que eu guardei a caixa de todos os chocolates de dias dos namorados, de todos os anos, e rindo. De repente, descobrindo sobre sua mudança e sendo ríspido com ela. Fazendo-a chorar pela primeira vez. Indo até sua casa mais tarde para pedir desculpas e reconciliando-se. Prometendo nos encontrarmos novamente, mesmo após tomarmos rumos separados. Ela ficando mais propensa a chorar conforme a graduação ia chegando. Ela rindo enquanto chorava, e chorando enquanto ria. Passeando pela cidade juntos após a formatura e conversando sobre nossas memórias. Encontrando-se no escritório vazio de seu pai no dia anterior à sua mudança e falando sobre heróis e heroínas. Coisas que poderiam ter acontecido entre nós dois. Coisas que queríamos que acontecessem. Coisas que deveriam ter acontecido.

 

Continuei falando sobre tudo que conseguia lembrar. Touka ouviu com uma expressão tranquila no rosto, como se ouvisse uma canção de ninar. Quando escutava um episódio que também lembrava, sorria e falava: “Isso aconteceu”, e quando ouvia algo que esqueceu, sorria e dizia: “Então isso aconteceu”. E também fez breves anotações no caderno azul que continuava segurando.

 

Quando contei sobre minhas lembranças dos sete anos, ela se tornou uma garotinha de sete anos e, quando contei sobre as lembranças dos dez, tornou-se uma menina de dez anos. Claro, a mesma coisa aconteceu comigo. Assim sendo, revivemos o período dos sete aos quinze anos.

 

Percebi que também estava falando de episódios que não existiam nas Mimories, mas apenas quando estava chegando ao final da história.

 

O Verde Verde que Touka havia criado deixou bastante espaço em branco. Talvez não tenha tido tempo o suficiente para trabalhar nele, ou talvez tenha concluído que seria suficiente incluir um número mínimo de momentos efetivos. De qualquer forma, havia espaço para uma interpretação livre. Sem perceber, preenchi as lacunas com minha própria imaginação.

 

Ao adicionar episódios essenciais com base em ideias essenciais, forneci detalhes complementares às Mimories. Essas histórias misturaram-se bem naturalmente às de Touka, e elas ressoaram, tornando o Verde Verde mais colorido a cada dia. Enquanto eu não estava no hospital, continuava revisando a nossa história. Poderia embelezar o passado o quanto quisesse através da minha interpretação – desde que permanecesse fiel à minha imaginação.

 

Mas, mesmo tentando preencher todos os cantos dos espaços em branco, ainda faltavam lembranças. Em cinco dias, contei tudo o que havia ocorrido nas Mimories, sem esquecer nada. Quando terminei de contar sobre o dia em que prometemos nos reunir e Touka se afastou, não havia mais nada restando.

 

E um silêncio vazio perdurou.

 

Touka perguntou inocentemente:

 

— E depois, o que aconteceu?

 

Não aconteceu nada, murmurei mentalmente. Você só produziu Mimories dos sete aos quinze anos de idade. A história foi totalmente amarrada assim, e a única garota que sabia do resto já não está mais neste mundo.

 

Mesmo assim, não pude adicionar nada mais à história. Esta era a última de suas criações que a vinculava à vida. Senti que, no momento em que isso acabasse, seu corpo vazio seria levado pela primeira brisa, levando-a para longe em um piscar de olhos.

 

Então decidi pegar o bastão e seguir adiante com a fantasia de Touka.

 

Se a história dela terminou, a minha deveria começar.

 

Seguindo a mesma abordagem que eu costumava ter ao preencher os espaços em branco do Verde Verde, fiz uma simulação detalhada de nossas vidas dos quinze aos vinte anos. Produzi uma “continuação” adequada, na qual nós, que fomos separados, superamos essa distância e obtivemos um amor ainda mais forte.

 

Então falei sobre isso. Touka parecia aceitar minha história naturalmente, da mesma forma que antes.

 

Dia após dia, continuei tecendo mentiras. Como se eu fosse Scheherazade em Mil e Uma Noites, ofereci preces para que, talvez, quanto mais tempo mantivesse a história, mais Touka vivesse.

 

Durante essas duas semanas, parecia que nós dois éramos as únicas pessoas no mundo. Nós nos amontoamos como se fossemos os últimos sobreviventes de toda a humanidade, sentando e conversando sobre antigas memórias em uma varanda ensolarada enquanto observávamos o fim do mundo.

 

E muito em breve, eu seria o único sobrevivente.

 

Apenas uma vez, sonhei. Uma cura para a Nova Alzheimer fora encontrada, Touka foi escolhida como voluntária para testes e, uma vez curada, todas suas memórias retornaram. Fui buscá-la quando ela saiu do hospital, abraçamo-nos e compartilhamos nossa alegria sob um céu resplandecente, e enquanto cruzávamos nossos mindinhos prometendo fazer algumas memórias reais juntos, despertei.

 

Que final feliz mais barato, pensei. Súbito, contundente e muito harmonioso. Podia ser algo possível em Mimories, mas seria completamente ridicularizado em qualquer outro meio. Milagres só podiam existir em lugares longe da realidade.

 

Mas eu não me importei. Poderia ser algo barato, repentino, abrupto, irrealisticamente harmonioso. Eu não me importava com o quão ruim fosse a história. Orei para que esse sonho se tornasse realidade.

 

Digo, ele ainda nem tinha começado. Nosso relacionamento estava apenas começando. Um verdadeiro amor brotara da profunda comunalidade entre nossas almas e, com isso, nossa eterna solidão deveria ser recompensada.

 

Mas, na realidade, acabou antes mesmo de começar. Os créditos finais já estavam começando a passar quando ela realmente me entendeu, e o público estava começando a abandonar as poltronas quando eu realmente a entendi. Nosso amor era como uma cigarra em outubro, sem ter para onde ir e prestes a perecer. Já era tarde demais.

 

E se pudéssemos receber um adiamento de apenas um mês? Isso acrescentaria um único mês de felicidade e, ao mesmo tempo, de infelicidade, concluí enquanto pensava até altas horas da noite. Os esforços que apliquei buscando possibilidades provavelmente tornaram tudo muito mais difícil.

 

Um amor que acabou assim que começou, ou um amor que acabou pouco antes de começar – o que seria mais trágico? Talvez fosse uma pergunta sem sentido. Essas duas tragédias seriam as piores, então não poderiam ser classificadas.

 

Uma história é algo que pode continuar sendo escrita enquanto alguém quiser. A razão pela qual as histórias sempre terminam, apesar disso, não é porque o escritor deseja, mas pelo desejo da própria história. Após ouvir algo assim, não importa o quanto sinta que não há história suficiente, é preciso chegar a um consenso adequado e deixá-la. Como os compradores quando começam a escutar Firefly’s Light.

 

Em uma tarde de outubro, logo após o relógio passar das três horas, ouvi aquela voz chamando. Sabia que a história estava avisando que acabou.

 

Isso significava que a história havia terminado.

 

Quaisquer adições seriam supérfluas. Eu sabia disso graças aos meus sentidos de contador de histórias.

 

Parecia que Touka, sentada ao meu lado, intuitivamente entendeu isso, sendo uma ex-engenheira de Mimories. Não perguntou algo como “O que aconteceu depois?”, não mais. Ela fechou os olhos e absorveu o eco por algum tempo, mas logo deixou a cama, ficou de pé junto à janela e fez alguns alongamentos. Então soltou um ligeiro suspiro e virou-se.

 

Eu sabia que ela estava prestes a dizer algo. Mas senti que não podia deixá-la fazer isso. Se permitisse, não haveria retorno.

 

Procurei desesperadamente por palavras para compor minha última frase. Mas não conseguia pensar em uma única que poderia ser usada.

 

Então, ela quebrou o silêncio.

 

— Ei, Chihiro.

 

Eu não respondi. Isso tomou tudo de mim para resistir.

 

Ainda assim, ela continuou.

 

— Antes de você vir hoje, eu estava relendo meu caderno e pensando. Por que está fazendo tudo isso por mim? Por que sabe o conteúdo de minhas Mimories? Por que continua atuando como meu amigo de infância?

 

Após um breve silêncio, revelou um sorriso efêmero.

 

— Chihiro. — E mais uma vez disse meu nome. — Obrigada por me acompanhar em minhas mentiras estúpidas.

 

Sim.

 

Mentiras são algo que sempre serão expostas.

 

Ela sentou-se ao meu lado e olhou para a minha cabeça pendendo para baixo.

 

— Fui eu quem começou a mentir primeiro, não foi?

 

Mantive meu silêncio por um longo tempo, mas percebi que isso era inútil e respondi um “sim”. Touka completou com um “entendo” e sorriu.

 

Não era necessária nenhuma explicação. Ela vira a realidade com sua imaginação surpreendente e com os fragmentos de informações registrados em seu caderno azul. Foi isso.

 

Ela não parecia decepcionada. Dito isto, também não parecia satisfeita com todas as mentiras. Apenas parecia estar pensando na complexa história que foi tecida entre nós dois.

 

Do lado de fora da janela, um avião desenhava uma linha bem fina no céu azul, e logo depois desapareceu. As enormes nuvens cumulonimbus que povoavam o céu de agosto desapareceram sem deixar rastros, e apenas aquelas tão finas quanto arranhões em um carro permaneceram.

 

Bem longe soava o som de um trem passando. O trem tocou a buzina, o som correndo pela pista ficou distante e, alguns segundos depois, sumiu.

 

Touka murmurou:

 

— Seria bom se tudo fosse verdade.

 

Balancei minha cabeça.

 

— Isso não está correto. É porque essa história é uma mentira que é muito mais gentil que a realidade.

 

— Você está certo…

 

Ela juntou as mãos na frente do peito, como se estivesse segurando algo, e balançou a cabeça.

 

— É gentil porque é uma mentira. E eu tenho um último pedido — disse Touka. Foi sua mentira final.

 

Ela pegou um pacote com um remédio branco de uma gaveta do armário e me entregou.

 

— O que é isso? — perguntei.

 

— O Lethe que estava no seu quarto, Chihiro. Aquele que deveria ter chegado até você a princípio: o Lethe que apagaria suas memórias de infância.

 

Olhei para o pacote agora em minha mão. Então adivinhei suas intenções.

 

Se ela estava me devolvendo isso a essa altura… Então seria assim?

 

— Quero que você beba isso aqui. — Ela disse o que eu esperava, palavra por palavra. — Quero que sua infância pertença apenas a mim.

 

Se ela quisesse, eu não teria motivos para recusar. Balancei a cabeça sem dizer qualquer palavra, saí da sala para comprar uma água na máquina de vendas automáticas e voltei. Coloquei água no copo que Touka havia preparado, rasguei a embalagem e misturei tudo.

 

Então bebi de uma só vez.

 

Não teve um sabor amargo ou a sensação de qualquer substância estranha. Era realmente como água comum.

 

Mas em pouco tempo, os efeitos do Lethe começaram a transparecer. Casualmente, coloquei a mão no bolso, mas algo que deveria estar ali não estava, não conseguia sequer lembrar o que era – ansiedades vãs e urgentes me atingiram uma após a outra. Mas todas aquelas mãos malignas transformaram-se em cinzas antes que pudessem me tocar e dissolveram-se ao vento. Era assim que o medo era ao ser esquecido.

 

— Já começou? — perguntou Touka.

 

— Sim — respondi, empurrando meus dedos contra a testa. — Parece que sim.

 

— Bom. — E então acariciou seu peito, aliviada. — Mais cedo, foi uma mentira.

 

E então contou algo inesperado.

 

— Mentira…?

 

Lentamente olhei para cima.

 

Touka revelava um sorriso triste.

 

— O que você acabou de tomar, Chihiro, foi o Lethe para apagar suas memórias sobre mim.

 

Com isso, ela pegou outro pacote de Lethe da gaveta do armário e me mostrou.

 

— Este que é o verdadeiro.

 

Minha visão tremeu. O Lethe parecia realmente ter começado a trabalhar. Tive a ilusão de que meu corpo estava sendo dilacerado e, sem pensar, abri as mãos para me certificar de que ainda tinha os dez dedos.

 

— Desculpe por sempre mentir. Mas essa é a minha última mentira — disse quase que cantando. — Antes de eu perder minhas memórias, sempre estava preocupada que iria te incomodar até o fim, Chihiro. Ainda assim, queria ficar com você o máximo de tempo possível, então confiei o papel de limpar a bagunça para o meu eu pós-perda de memória.

 

Touka levantou da cama e rasgou o outro pacote de Lethe, depois jogou o conteúdo pela janela aberta. Os nanobots foram levados pelo vento e desapareceram como fumaça.

 

Ela se virou e sorriu resplandecente.

 

— E o fato será que chegamos ao fim sendo uma mentira.

 

Olhei para o relógio ao lado da cama. Seis minutos se passaram desde que tomei o Lethe. Se minhas memórias fossem apagadas em trinta minutos, eu ainda tinha mais vinte e quatro. Não importa o quanto lutasse, não havia como resistir ao Lethe, uma vez que fosse tomado. Mesmo se eu vomitasse tudo que havia no meu estômago, os nanobots já tinham chegado ao meu cérebro.

 

Desisti de resistir e perguntei:

 

— Posso te abraçar enquanto esqueço?

 

— Claro — disse alegremente. — Mas você pode ficar um pouco confuso quando esquecer de tudo.

 

— Vamos ver.

 

— Direi que eu pedi por isso. Como se quisesse sentir o calor de alguém antes de morrer.

 

— Mas essa é a verdade, não é?

 

Ela riu. Uma risada entre um “ehehe” e um “ahaha”.

 

A cada minuto, Touka perguntava:

 

— Ainda lembra?

 

E toda vez eu respondia:

 

— Ainda lembro.

 

“Bom”, falava ela, e aninhava seu rosto ao meu peito.

 

— Ainda lembra?

 

— Ainda lembro.

 

— Bom.

 

— Ainda lembra?

 

— Ainda lembro.

 

— Tudo bem, tudo bem… Ainda lembra?

 

— Ainda lembro.

 

— Mas já estamos quase lá.

 

Uma hora se passou.

 

Touka gentilmente se afastou de mim e olhou para o meu rosto, pasma.

 

— Por que você ainda lembra…?

 

A risada que eu estava segurando finalmente escapou.

 

— Agora nós somos dois mentirosos.

 

Ela não parecia entender o que eu quis dizer.

 

Então, no final, também arruinei seus planos.

 

— O que eu tomei foi o Lethe para apagar as memórias da minha infância.

 

— Mas você nunca teve a chance para trocar… — Ela engasgou e fechou a boca. Isso mesmo. Tive muitas chances.

 

Se prestasse atenção nos acontecimentos de dois meses atrás.

 

— Será que… — Ela engoliu em seco. — Você trocou isso desde o começo?

 

Concordei.

 

— Eu sabia que você provavelmente faria um truque assim, Touka. Então acreditei em você e tomei.

 

Na primeira noite em que joguei a comida caseira de Touka no lixo, preparei um pequeno truque que poderia me ajudar a pegá-la no ato. Ou seja, troquei os dois pacotes de Lethe.

 

Meus pensamentos foram os seguintes: Até o momento, tudo que ela havia roubado era minha chave reserva, e não havia tocado no Lethe. Mas se fosse uma vigarista, no momento em que visse isso, definitivamente tentaria usar para fins nefastos. Se apagasse minhas memórias de infância, a participação de “Touka Natsunagi” em minhas memórias aumentaria. Não existiria ninguém além dela para mim.

 

É claro que, se tudo o que eu quisesse evitar fosse esse resultado, eu apenas teria que esconder o Lethe de sua vista. Poderia guardá-lo em um armário da faculdade ou no trabalho e deixar trancado. Mas fui e mantive o Lethe em um lugar que seria facilmente encontrado. Foi uma armadilha para forçá-la a agir. Pensei que tinha criado uma boa isca diante da situação.

 

E para realmente brincar com ela, troquei os dois pacotes de Lethe. Ao fazer isso, se fizesse algo como colocar Lethe na minha bebida, eu perderia apenas as memórias sobre Touka Natsunagi.

 

Mais tarde, inesperadamente, Touka trocou o Lethe. Ambos os pacotes foram substituídos por um pó sem qualquer efeito. O Lethe roubado ficou em suas mãos e, antes que perdesse suas memórias por completo, teve a ideia de usar isso para apagar todas as minhas memórias sobre ela. Sequer considerou que eu havia trocado um com o outro.

 

Touka enviou uma mensagem para seu futuro eu. (Provavelmente cronometrando tudo para que as coisas acontecessem pouco antes de sua vida acabar.) Mas lendo as cartas de seu passado, provavelmente pensou o seguinte: “Mesmo se eu disser ‘Por favor, me esqueça’, Chihiro Amagai não é do tipo que obedece tudo o que escuta.” Então tramou o plano para me enganar. “Quero que sua infância pertença apenas a mim”, e me fez tomar o Lethe trocado.

 

Seu erro de cálculo foi que eu também vi esse lado dela. No momento em que disse: “Quero que sua infância pertença apenas a mim”, eu sabia que era uma mentira. É verdade que ela era uma pessoa egocêntrica e egoísta, mas não era do tipo que me tomaria algo. Isso iria ser algo claramente contra o seu comportamento.

 

Afinal, ela era uma garota que queria ser uma “heroína”.

 

Acreditei em sua mentira e tomei o Lethe sem hesitar. Se ainda estivesse trocado, isso desafiaria suas expectativas e apagaria as memórias de minha infância.

 

Ganhei a aposta. Agora, minha infância tinha apenas Touka.

 

— Não sou páreo para você, Chihiro… — Ela perdeu as forças e caiu na cama. Então falou atônita: — Tenho certeza de que você se tornará um mentiroso muito maior do que eu já fui.

 

— Talvez sim.

 

Rimos juntos. Com muito carinho. Como verdadeiros amigos de infância.

 

— Agora, já que aquela foi a sua última mentira, responda à minha próxima pergunta honestamente.

 

Touka sentou-se e perguntou:

 

— Qual?

 

— Ficou desapontada por eu não ter te esquecido?

 

— Nem um pouco — respondeu de imediato. — Estou tão feliz por poder continuar conversando com você, Chihiro.

 

— Fico feliz em ouvir isso.

 

— Ei, Chihiro?

 

— O quê?

 

— Quer beijar?

 

— Ahh, você falou primeiro…

 

— Ehehe.

 

Nós gentilmente juntamos nossos lábios. E não para confirmar qualquer coisa, mas apenas para beijar, e nos beijamos.

 

No dia seguinte, a condição de Touka mudou de repente. Ao menos, essas foram as palavras usadas pelo médico. Mas não senti um pingo de tensão com o que foi dito. Assim como a luz de um vaga-lume desaparece silenciosamente na escuridão, seus momentos finais foram pacíficos e silenciosos.

 

Em uma clara e agradável manhã de outubro, a cortina caiu para a curta vida de Touka.

 

Chegou junto ao final do curto verão que pareceu uma eternidade.

 


Notas:

1 – É uma comemoração derivada de uma tradição chinesa que ocorre na sétima noite do sétimo mês do ano.

2 – Manter as coisas nas condições que estão.

📃 Outras Informações 📃

 

Apoie a scan para que ela continue lançando conteúdo, comente, divulgue, acesse e leia as obras diretamente em nosso site.

 

        • Já leram a outra obra desse autor? Recomendamos darem uma olhada em Three Days of Happyness, mais um romance dele. Então não deixem de irem na Saikai e ler se não leram ainda!!!.

 

 

        • Quer mostrar o que acha de Kimi no Hanashi? Vote na Central Novel.

 

 Quer dar uma forcinha para o site? Que tal acessar nosso Padrim :ZeroTwo8:

Padrim

Acessem nosso Discord, receberemos vocês de braços abertos.:kenislove:

 

Tags: read novel Sua História – Cap. 11 – Sua História, novel Sua História – Cap. 11 – Sua História, read Sua História – Cap. 11 – Sua História online, Sua História – Cap. 11 – Sua História chapter, Sua História – Cap. 11 – Sua História high quality, Sua História – Cap. 11 – Sua História light novel, ,

Comentários

Cap. 11