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Sua História – Cap. 08 – Reprise

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Tenho um amigo de infância que nunca conheci. Nunca vi seu rosto. Nunca ouvi sua voz. Nunca senti seu toque. Apesar disso, parece tão próximo. Penso nele com tanto carinho. É como se ele fosse a minha salvação.

 

Ele não existe. Para ser mais precisa, existe apenas na minha fantasia. É uma ilusão conveniente que o meu cérebro privado de oxigênio criou em noites longas nas quais não dormi. Entretanto, essa ilusão começou a assumir uma forma mais definida e logo virou um amigo insubstituível para mim.

 

Ele não tem nome. Afinal, se eu o nomeasse, isso deixaria sua não existência ainda mais clara. Simplesmente me referi a ele como “ele”. “Ele” era meu único amigo de infância, alguém que me entendia e também meu herói.

 

No mundo fictício onde sua existência era real, eu era feliz.

 

No mundo real onde ele não existia, eu não podia ser feliz.

 

O mundo tem sido um lugar que me sufoca desde quando era jovem. E não digo de forma metafórica. Sim, sempre foi também um lugar que dificulta o alívio da mente, mas em primeiro lugar, fisicamente falando, tinha problemas para respirar. Literalmente não conseguia respirar conforme desejado. O mundo fez meu peito doer por causa de minhas emoções, mas, antes ainda, meu peito também vivia fisicamente dolorido. Parecia que poderia se abrir de verdade.

 

Sufocando. Abafando. Com falta de ar. Todo mundo usa essas expressões que me são familiares, mas quantas realmente estão acostumadas com a sensação de não conseguir respirar? Todo mundo respira subconscientemente. Podem fazer isso enquanto dormem. Aqueles que têm uma vida normal dificilmente correm o risco de acabar sufocando mesmo.

 

Eu tinha que levar minha respiração a sério naquela época. Passava a maior parte do dia pensando em respirar. Assim como um fotógrafo experiente pode se aproveitar da iluminação natural, eu podia verificar a quantidade de oxigênio no ar. Ninguém sente a presença do ar, mas eu podia senti-lo, quase apalpá-lo. E na hora que a maioria das pessoas adormecia, ficava concentrando todos os meus sentidos na respiração. Como se enfiando um enorme tubo pela cortina da noite, pensando em um tipo de snorkel[1], respirava desesperadamente.

 

Em nossos tempos modernos, com tecnologia como máquinas minúsculas que podem escrever um passado fictício em seu cérebro, geralmente pensam que asma não é uma doença grave. É verdade; a menos que seja um caso muito grave mesmo, geralmente seria possível viver como uma pessoa saudável, em caso de ter conhecimento adequado para lidar com todos os problemas.

 

O ponto era que meus pais não tinham algo como o conhecimento adequado. Eles decidiram que isso era como “uma doença que faz você tossir sem parar de vez em quando”. Aqueles dois, que nunca tiveram febre do feno[2], não entenderiam a sensação de sua respiração estar sendo restringida por um trato respiratório[3] bloqueado.

 

Não, talvez não fosse esse o principal problema. O que faltava a eles não era experiência com a doença, nem conhecimento, tampouco afeto, mas um nível bem rudimentar de imaginação. Meus pais fundamentalmente não tinham “entendimento”. Poderiam influenciar alguém a aproximar-se de seu mundo, mas eram incapazes de aproximar-se do mundo alheio.

 

Eles se espremeram irregularmente para dentro de uma pequena estrutura.

 

E pior ainda, tinham uma desconfiança infundada em todas as coisas relacionadas à tecnologia. Pessoas assim podem ser encontradas em qualquer era. Gente com esses processos de pensamento bruto que enxergam um valor indevido na palavra “natural”. Acreditavam com sinceridade, do fundo de seus corações, em frases duvidosas que se encontram por aí, como “Se você for ao hospital, ficará doente”. “A medicina prejudica a sua saúde”, “Tratamentos diminuem seu tempo de vida útil”, “Todas as doenças são esquemas criados pelos médicos” – eles estavam convencidos desse tipo de bobagem. Acho que essa era a doença que tinham.

 

Aos seus olhos, apenas o que existia desde o início prestava, e todo o resto era desprezível. Constantemente exausta graças a essa crença deles, adotei uma totalmente oposta devido à necessidade. Resumindo: desprezo o que existe desde o princípio e amo o resto.

 

E foi assim que “ele” nasceu.

 

Ainda me lembro das longas e escuras noites.

 

Naquela época, eu tinha medo das noites. Ainda tenho agora, mas por um motivo bem diferente. Não seria capaz de responder qual é pior, mas ambos são horríveis. Não há algo como “melhor” no sofrimento. Mas se a quantidade de sofrimento fosse o mesmo, suponho que sentia mais desespero quando criança, graças ao meu coração mais fraco.

 

Por volta da hora em que o dia acabava e ia para a cama, minha respiração começava a sair de ordem. Primeiro, sofreria com a tosse leve. Esse era o som do sofrimento batendo na minha porta. Se isso estava acontecendo, já era inútil tentar dormir. A tosse piorava consistentemente, e atingia o pico por volta das duas horas da manhã e continuava durante a noite toda. Era como se meu próprio corpo me negasse o ato de adormecer.

 

Era difícil respirar enquanto deitada de bruços, então sentei como se estivesse abraçando meu cobertor enrolado. Com o passar do tempo, minha postura pendeu para frente, colocando-me em uma pose meio encolhida. Se alguém me visse poderia pensar que eu estava pedindo perdão por algo. Ou poderia parecer que eu queria voltar a ser um feto que não sabe o que é sofrimento. Não era nada disso. Essa posição era simplesmente a mais confortável.

 

O sintoma mais visível era a tosse, mas ela não era a verdadeira essência do sofrimento. O que realmente me atormentava eram as dificuldades respiratórias. As ações básicas que todo mundo inconscientemente tomava desde o nascimento, inspirando e expirando, durante a noite tornavam-se complicadas para mim. Imagine se sua garganta se tornasse o plugue de ar de um colete salva-vidas. Ou talvez se seus pulmões fossem feitos de um plástico rígido. Se não conseguisse respirar com facilidade, também seria incapaz de expirar.

 

A sensação de não conseguir respirar direito conecta-se ao medo da morte. Será que minha garganta ficaria completamente trancada? Não seria mais capaz de funcionar, como se fosse o vácuo sugando uma bolsa de vinil? Quando chegasse a hora, eu provavelmente não soltaria sequer um gemido. Desesperadamente faria algum barulho para pedir ajuda, mas ninguém notaria, tremeria, ficaria aterrorizada, tremeria mais ainda, e meus numerosos gritos e maldições continuariam presos em minha garganta, já que nem sequer seria capaz de dar o suspiro final. Pensar nisso me fazia chorar de tanto terror.

 

Meu quarto ficava a uma distância razoável do de meus pais, e era nele que ficava a minha cama. Até os quatro anos dormi no mesmo quarto que eles, mas minha cama foi movida um pouco após completar cinco anos de idade. Minha mãe disse alegremente: “O banheiro fica mais perto, então deve ser bom”, mas não consegui ver isso como algo além de uma medida de isolamento. Provavelmente não suportavam que eu os mantivesse acordados com minha tosse durante a noite toda. Não poderia dizer que não entendia.

 

Disseram para chamá-los de imediato se algo acontecesse, mas no meio de uma crise, seria incapaz de gritar alto o suficiente para alcançar meus pais adormecidos do outro lado do corredor, de modo que a medida de isolamento era também minha sentença de morte. Além do mais, supondo que eu conseguisse desesperadamente rastejar até o quarto deles, não fariam nada por mim. Eu nunca seria capaz de me acostumar com minhas crises, mas meus pais se acostumaram a vê-las. Depois que souberam que, desde que não fosse muito sério, poderiam me deixar em paz e que melhoraria pela manhã, qualquer pedido que fizesse ou reclamação sobre meu sofrimento entrava por um ouvido e saía pelo outro.

 

Até os sete anos de idade, se tivesse uma crise grave à noite, me levariam para receber socorro emergencial. Quando ouvia o som do motor do carro e descobria que íamos para o hospital, minhas preocupações rapidamente abrandavam. Só de pensar em coisas como o cheiro do hospital, terapias e inaladores eu me acalmava. (Amava o local conhecido como hospital). E provavelmente, graças a esse alívio, era comum que dentro dos trinta minutos para chegar ao local, eu melhorasse. Como isso aconteceu várias vezes, meus pais começaram a suspeitar que eu fingisse passar mal. Pensavam que talvez estivesse apenas exagerando na tosse para fazer que prestassem mais atenção em mim.

 

Era comum que as crises de asma se acalmassem ao chegar perto do hospital, mas eu não sabia disso naquela época, e ainda não tinha a objetividade necessária para explicar minha condição de modo lógico. As dúvidas de meus pais se fortaleciam mais a cada dia. Eles me viam tossindo violentamente, e meu pai simpaticamente dizia: “Sua tosse está exagerada”. Então minha mãe, desconfiada, completava: “Está doendo?” Depois disso, mesmo quando tinha minhas crises, fingiam nem perceber.

 

Uma vez fiquei sem opção a não ser ligar para a ambulância. Meus pais ficaram sem falar comigo por um tempo após isso. Finalmente voltaram a conversar após uma semana, as coisas que saíam de suas bocas eram bem abusivas. “Você nos envergonhou”, “Acha que temos tanto dinheiro para gastar?” Essas pessoas provavelmente ficariam mais felizes se eu tivesse morrido, pensei assim desde muito jovem. Esse evento mais uma vez despertou em mim a capacidade de não esperar nada de ninguém.

 

Enfim, tudo que eu podia fazer era esperar o tempo passar. De vez em quando, enfiava a cabeça para fora da toca, olhava para o relógio iluminado pela lua que ficava ao lado da minha cama e rezava para que a noite passasse logo. Quanto maior o meu sofrimento, mais o tempo se arrastava, então a irritação muitas vezes me dava vontade de esmagar e enrolar o cobertor. Gostava do verão apenas porque suas noites eram mais curtas.

 

Quando o amanhecer chegava, minha respiração começava a se estabilizar e eu podia dormir, e naquele momento de sono fantasiava sobre “ele”. Mas duas horas depois, tinha que me levantar e ir para a escola. O mais preocupante sobre minha doença era a respeito de quando não estava tossindo, já que não parecia nada mal. Poderia ao menos dizer aos meus pais que estava cansada e precisava descansar, mas é claro que não davam ouvidos. Não acreditariam em mim sem alguma evidência, fossem números em um termômetro ou erupções cutâneas em minha pele.

 

Graças a isso, sempre fui privada do sono e cochilava durante o dia todo. Minha cabeça ficava entorpecida, minha visão embaçada, e todos os sons pareciam vir de trás de paredes. Em um mundo coberto pela névoa, apenas meu sofrimento e fantasias pareciam reais.

 

À medida que envelheci, minha condição lentamente ficou menos grave e a asma gradualmente se tornou nada mais que uma doença psicossomática[4]. Enquanto fatores ambientais começavam a ter menos influência sobre mim, eu fiquei suscetível a preocupações e ao estresse. Se fizesse algo de determinado modo, poderia sofrer uma crise e não poderia me permitir que um ataque acontecesse enquanto estivesse ocupada com algo; o ato de simplesmente pensar nas possibilidades se tornou o maior de todos os gatilhos.

 

Se eu tivesse alguém para me dar apoio emocional no passado, poderia ter sido totalmente curada de minha asma muito mais cedo (embora, claro, receber um tratamento adequado em uma instituição médica seria melhor do que qualquer coisa). Essa pessoa me salvaria, me entenderia, me protegeria – se tivesse alguém com que eu pudesse me sentir assim, tenho certeza de que teria ao menos reduzido o número de crises desencadeadas pela ansiedade.

 

Nunca tive amigos. Por ser internada com pleurite[5] aos seis anos, do inverno à primavera, tive uma entrada tardia na escola. Outra parte disso era por eu ter sido proibida de sair, “porque não deveria causar problemas para outras pessoas”. E não podia ser fisicamente ativa, então não podia brincar da mesma forma que as outras crianças. Além disso tudo, não poderia participar da maioria dos eventos, como caminhada ou atletismo.

 

Mas o maior fator era a minha personalidade. Minha doença me tornou uma pessoa servil e autopunitiva. Meu corpo era um fracasso que não me deixaria levar uma vida normal, e eu era uma causadora de problemas, ao menos no sentido de que minha simples presença desencadearia problemas para todos; estava bem ciente disso. Essas coisas na verdade poderiam ter sido evitadas, mas uma criança que viveu apenas uma década não tem obrigação de encarar os fatos. Eu não deveria me preocupar com esse monte de coisas e apenas ter vivido descaradamente.

 

Mas as duas pessoas das quais eu era mais próxima não apenas reforçaram esse comportamento servil, como encorajaram isso abertamente. Sem usar palavras, implicavam que eu “iria incomodar muitas pessoas na vida, então, ao menos, deveria manter a cabeça baixa”. Fui criada amaldiçoando-me, esse ensinamento era constantemente colocado em prática. Não havia qualquer chance de fazer amigos.

 

E também não tive boas lembranças da escola. Especialmente quando fui para a escola primária local, eu era um tipo de criatura verdadeiramente infeliz.

 

Naqueles tempos, eu tinha o hábito de andar meio devagar. Naturalmente, comecei a caminhar assim porque tornava a respiração mais fácil, mas meus colegas de classe costumavam me provocar por causa disso. Quando vi garotos imitando o modo como eu andava enquanto riam, avisei-me para ficar atenta, já que não poderia ter uma crise na frente deles. Afinal, tomariam isso como mais material para me provocar. E continuei sendo motivo de piada por anos. Definitivamente não poderia mais mostrar fraquezas. Quanto mais tensa eu ficava, pior era a atmosfera da sala de aula.

 

Havia um número bem pequeno de pessoas que sabia da minha doença e mostrava preocupação. Esse tipo de gente seria extremamente amigável no começo e me faria companhia, mas depois de certo tempo, começaria a se irritar com meu comportamento sensível, ficaria irritado até mesmo com o simples fato de que minha companhia impunha vários limites, e eventualmente se cansaria de mim e partiria. Nos piores casos, começava a me odiar. Então, por fim, voltava a ficar sozinha.

 

Se apenas não deixasse minhas emoções ficarem agitadas, e se sentisse uma crise iminente, desistiria do que fosse preciso e iria para a enfermaria. Seguir essas regras permitiu-me evitar revelar a extensão de minha doença aos meus colegas de classe. Na prática, meus esforços realmente valeram a pena, de certa forma. Mas no inverno da quarta série, tive uma crise bem severa enquanto estava na sala.

 

Um dos meninos viu o inalador que eu carregava como se fosse um amuleto de boa sorte e disse algo para me provocar. Isso serviu como um gatilho. Eu deveria ter ignorado, mas o que ele disse foi maldoso demais, então acabei retrucando. O garoto ficou confuso, não esperava uma resposta, e então ficou com raiva. E para expressar essa raiva, pegou meu inalador e jogou pela janela.

 

Eu fiquei em pânico. Comecei a correr para pegá-lo e, logo depois, mostrei a todo mundo a pior crise de asma que já tive.

 

Aquele dia ainda é revivido em meus sonhos.

 

A reação dos meus colegas de classe era geralmente a que eu esperava. Quando me viam tendo uma crise de asma, não me direcionavam piedade ou compaixão, simplesmente tratavam isso como algo cômico e perturbador. Desde então, quase não mostrei minha cara na escola. Passei meus outros dois anos da escola primária na enfermaria.

 

Claro, eu também não tinha lugar na enfermaria. Existiam certas panelinhas entre os desistentes. A enfermaria tinha sua própria sociedade, e eu fui banida por não me encaixar nela. Alguns alunos que ficavam lá conseguiam agradar a enfermeira da escola, outros não; e, claro, eu fazia parte do segundo grupo.

 

Ainda assim, mesmo não podendo chamá-la de um lugar completamente pacífico, a enfermaria poderia muito bem ter sido o paraíso se em comparação com a sala de aula. Eu ficava lendo sozinha por lá e tirava longos cochilos para recuperar o sono perdido. Nos dias de aula ao ar livre da quinta série e nos dias da excursão da sexta série, fiquei dormindo na enfermaria. Realmente não me senti mal por ter faltado a esses eventos.

 

Ou por finalmente ter conseguido dormir o bastante, ou porque não tive que lidar com o estresse da minha turma olhando para mim, e nesses dois anos eu também tive o segundo pior desempenho da minha sala, e ficava abaixo da média de altura, o que tornava tudo pior ainda. Além disso, adquiri conhecimentos sobre asma e, no ensino médio, poderia viver uma vida mais ou menos aceitável. Mas a esse ponto, a solidão já estava enraizada em meus ossos, eu sequer conseguia pensar em fazer amizade com alguém.

 

Pode parecer estranho, mas sentia que, se fizesse amigos naquele momento, seria imperdoável para o meu eu da escola primária. Se meu eu do presente negasse a solidão, isso seria como negar o meu eu do passado. Admitiria que aqueles seis anos regados a sofrimento não passaram de exaustão.

 

Queria continuar tendo as descobertas solitárias que fiz naqueles dias sombrios. O sofrimento que tive não foi por nada; meu antigo eu ainda respirava dentro de mim, só queria tranquilizá-lo.

 

Tive dias solitários no ensino médio também. Ainda não sei se foi bom ou não, mas acho que se tentasse dizer que o passado nunca aconteceu e vivesse uma vida normal, acabaria me esforçando demais e tudo acabaria ruindo. E então talvez ficasse mais sozinha ainda.

 

E essas eram minhas lembranças da escola. Nos dias de folga, ficava trancada no meu quarto. Meus pais me proibiram de sair sem motivos, mas também não sentia qualquer vontade de sair, e não havia ninguém com quem queria me encontrar. Não me sentia sequer motivada a estudar. Apenas escutar as aulas já bastava para tirar notas boas e, mesmo se estudasse muito, não podia imaginar que meus pais deixariam eu ir para a faculdade. Então, apenas lia os livros que pegava na biblioteca ou escutava as músicas em um toca-discos que meu pai não usava mais.

 

Quando não me sentia satisfeita com livros ou músicas, olhava as pessoas passando pela janela da minha sacada. Minha casa ficava em um terreno elevado, então podia ver um pouco além da janela. Montes de flores de cerejeira na primavera, campos de girassóis no verão, árvores de bordo no outono e a neve branca do inverno. Nunca me cansava de contemplar essas paisagens e de pensar no amigo de infância que nunca tive.

 

Para dizer a verdade, eu precisava de uma família. Precisava de um amigo. Precisava de um amor.

 

Sonhei com uma entidade que satisfazia os três desejos. “Ele” era inevitavelmente um amigo de infância. Podia ser caloroso como uma família, divertido como um amigo e querido como um amante, além disso, combinava com o meu gosto em tudo; podia chamá-lo de o melhor garoto existente.

 

O que teria acontecido se “ele” estivesse lá? Simulei esse “e se” até nos mínimos detalhes. Peguei toda e qualquer lembrança do meu passado e teci isso, buscando me salvar cada vez mais dessas lembranças tristes.

 

Se tivesse conhecido “ele”…

 

Se “ele” tivesse me salvado.

 

Se “ele” tivesse me abraçado com força.

 

Que tipo de vida eu estaria vivendo agora?

 

Fantasias assim eram meu único abrigo.

 

Um ponto de contorno apareceu na minha vida quando fiz dezesseis anos.

 

No momento, existia apenas uma maneira de alguém sem credenciais acadêmicas ou experiência profissional se inscrever para virar um engenheiro de Mimories. Isso era: aguardar que uma clínica importante abrisse seu recrutamento público periódico, criar e enviar Mimories de acordo com um registro predeterminado. Se atendesse aos padrões, seria assim contratado.

 

Provavelmente seria mais fácil imaginar isso como o prêmio de Novato do Ano em romances. Era tão competitivo quanto para os romancistas. Por fim, supondo que tudo seria igual no quesito “talento”, algumas pessoas podiam estudar o que pudessem e ainda não conseguiam, enquanto outras poderiam criar algumas Mimories aleatórias e serem contratadas pela maior clínica do mundo. Se idade e experiência não fossem relevantes, não seria necessário qualquer conhecimento técnico. Assim como um romancista não precisa saber todas as funções de um software de texto, um engenheiro de Mimories não precisa de muito conhecimento sobre neurociência ou nanotecnologia.

 

Bem, o que os engenheiros de Mimories faziam era praticamente o mesmo que os romancistas. A maior diferença era que os romancistas escreviam para os leitores, torciam para passar da casa dos milhares, enquanto os engenheiros de Mimories estariam trabalhando para um único leitor (mesmo que também existam romancistas que escrevam pensando em um único leitor). Os romancistas escreveriam seguindo suas inspirações, enquanto os engenheiros de Mimories seguiriam solicitações (embora isso também aconteça com alguns romancistas). Seria necessário examinar o registro pessoal do cliente e criar uma história totalmente programada para ele. Talvez parecesse um pouco melhor combinar esse trabalho com o de um poeta escrevendo um soneto para um patrono.

 

Era uma coisa muito simples. Não apenas por a natureza do trabalho ser algo simples, mas porque o trabalho de engenheiro de Mimories era uma novidade. As leis relacionadas às Mimories certamente apareceriam no futuro e tornariam as coisas mais complicadas ao longo do tempo. Mas deixei meu serviço como engenheira de Mimories antes que isso pudesse acontecer, então só cheguei a conhecer o lado simples desse mundo.

 

Fui contratada como engenheira de Mimories aos dezesseis anos. Mesmo quatro anos depois, os engenheiros contratados em tão tenra idade eram tão raros quanto romancistas adolescentes.

 

Eu só descobri sobre a existência dos engenheiros de Mimories quando tinha quinze anos. Estava olhando para um folheto na seção de cursos, imaginando o que colocar em “opção desejada”, quando de repente aquilo chamou minha atenção.

 

Meu pai era engenheiro dentário, então talvez tenha respondido à palavra “engenheiro”. Li a descrição do trabalho sem esperar muito, mas intuitivamente soube.

 

Era o trabalho feito para mim.

 

Minha intuição estava certa e, no verão seguinte, estava trabalhando em uma clínica bem conhecida como a então mais jovem engenheira de Mimories de todos os tempos. Acho que nunca tive que fazer um esforço que realmente merecesse ser considerado esforço. Ninguém precisou me ensinar nada; a partir do momento em que li um registro pessoal e coloquei meus dedos no teclado, já sabia exatamente o que fazer.

 

Não achava que receberia a bênção dos meus pais se dissesse que aspirava ser uma engenheira de Mimories, então esperei pelos resultados e, só depois de ser aceita, contei sobre isso. Enfatizei como era extremamente difícil conseguir um emprego no campo, e sobre como poderia manter isso sem qualquer impacto em meus estudos, e claro, o mais importante, que isso me renderia dinheiro (para estudar), então aprovaram com bastante relutância.

 

O procedimento era o seguinte: Primeiro a clínica me enviava o registro pessoal de um cliente. As informações do registro pessoal eram extraídas dos clientes em um estado hipnótico, portanto não havia qualquer mentira. Eu examinava o registro pessoal e o usava para criar um passado fictício que achava necessário para o cliente. Frequentemente discutia com algum editor e fazia um ou outro ajuste, e quando as Mimories chegassem às melhores condições, eram enviadas à clínica. Normalmente, poderia concluir todo esse processo em apenas um mês.

 

A ordem de criação variava de pessoa para pessoa, mas eu sempre começava lendo o registro pessoal vezes o suficiente para memorizá-lo. Nunca havia alguma instrução clara como “você deveria fazer determinada coisa”, então eu lia febrilmente. Em pouco tempo, comecei a quase ter a ilusão de que alguns clientes eram próximos a mim. Mesmo assim, ficava absorta na leitura do registro pessoal. Ao fazer isso, acabaria tocando no âmago da alma do cliente ou coisa do tipo. Era um estado além da simpatia ou da empatia – talvez devesse chamar de canalização.

 

Naquele momento, era como se aquela pessoa fosse eu. Podia perceber o que o cliente mais queria nas profundezas de seu coração, muito mais claramente que o próprio cliente. Os defeitos que não conheciam apareciam, e eu poderia procurar formas de oferecer peças que se encaixassem perfeitamente em cada lacuna existente. Dessa forma, poderia dar a eles a sensação de que essas memórias foram feitas para eles e para mais ninguém.

 

Eu, que continuava tendo fantasias sobre como preencher minhas próprias lacunas, podia realizar esse trabalho tão difícil com tanta facilidade quanto se respira – na verdade, o trabalho era muito mais simples do que respirar. Como uma pessoa que não teve tudo, eu poderia explicar todo tipo de falta. A falta das coisas era de fato essencial para criar uma história que satisfizesse as expectativas do cliente. Eu era capaz de me familiarizar com qualquer coisa.

 

Mesmo se escrevesse uma história épica, ela teria apenas um leitor e, mesmo se inventasse uma meio ruim, também teria um único leitor. Então, na verdade, havia muitos engenheiros de Mimories que faziam o trabalho só pela metade. Não havia algo como padrões objetivos para resultados bons ou ruins; portanto, poderiam perdoar o trabalho grotesco dizendo que o produto “parecia não se adequar às sensibilidades do cliente”. Quando tinha apenas um leitor, não seria criticado por repetir o enredo anterior ou se plagiasse algo, por isso não era incomum que as pessoas continuamente reproduzissem seus melhores trabalhos.

 

Era por isso que existia um abismo de qualidade entre os engenheiros de Mimories com boas consciências e aqueles sem. E os melhores engenheiros de Mimories atendiam clientes que se tornavam regulares. Os clientes, satisfeitos com suas Mimories, costumavam comprar várias outras. Só ficavam incomodados na primeira vez, e após o primeiro passo, ficavam possuídos pela satisfação obtida ao remodelar o passado.

 

Assim, os engenheiros que produziam Mimories de qualidade meia boca ganhavam muito dinheiro em curto prazo, porém, em longo prazo, aqueles que produziam as de melhor qualidade ganhariam muito mais. Os clientes se afastariam dos ruins ao longo do tempo e, nesse mundo competitivo, seria impossível recuperar a confiança perdida. Os compradores de Mimories eram conservadores. Ninguém estava curioso o bastante para optar por engenheiros de Mimories que sabiam já ter feito algum trabalho malfeito.

 

Dediquei-me ao trabalho de qualidade. Cumpri todos os prazos e não deixei de estudar. Não era como se sentisse alguma responsabilidade. Não era como se quisesse corresponder às expectativas dos clientes. Simplesmente gostava do trabalho.

 

Ler registros pessoais e elaborar passados fictícios era como também viver a vida de outras pessoas. Como alguém farto da própria vida, essa profissão oferecia a sobreposição ideal para minhas distrações e benefícios práticos. Negligenciei meus estudos escolares e me dediquei ao trabalho. Sempre ficava com a cabeça nas nuvens quando na sala de aula, e essa cabeça estava recheada de registros pessoais de meus clientes. Como me envolvia tanto com a vida de outras pessoas, às vezes esquecia que era uma adolescente que frequentava a escola pública local.

 

Meu trabalho me deu uma reputação e logo enormes somas de dinheiros, como nunca tinha visto antes, começaram a ser depositadas em minha conta bancária. No primeiro ano de trabalho, minha renda excedeu em muito a de meu pai. Não estava interessada em ganhar dinheiro, mas, olhando para as quantias em minha caderneta bancária, comecei a sentir que fui reconhecida pela sociedade. Pela primeira vez senti que estava tudo bem em pertencer a este mundo. Meus pais não pareciam gostar muito de como sua filha havia arbitrariamente escolhido seu próprio caminho na vida, mas dediquei metade dos meus ganhos à manutenção da casa, e isso foi de grande ajuda para as finanças da família, então não ficaram tão bravos quanto o esperado.

 

Os números passavam uma sensação tangível. Eu olhava minha caderneta nos momentos livres e analisava os enormes números para incentivar-me. Da mesma forma que quando era criança, silenciosamente pegava o inalador que mantinha no meu bolso e acalmava meu coração.

 

Quando fiz dezoito anos, bati de frente com meus pais por questões financeiras e, pensando que me explorariam pelo resto da vida se as coisas continuassem iguais, saí de casa. Convenci minha tia a me deixar ficar em sua casa por alguns meses (ela seria amigável se eu pagasse o bastante), e depois aluguei um apartamento em um conjunto habitacional antigo administrado por uma de suas amigas e passei a morar sozinha.

 

Continuei solitária como sempre, mas era um tipo de “solidão apropriada”, muito melhor do que ser injustamente empurrada para longe dos grupos. Não era a solidão da sala de aula, mas a do meu próprio quarto. Enquanto gostava do trabalho, tendo que pular de uma fantasia para outra, não tinha tempo para me sentir solitária.

 

Através das visitas periódicas ao hospital, descobri que minha asma em algum momento desaparecera. Com a confiança necessária para viver sozinha, finalmente fiquei livre das correntes que atavam minhas mãos e pés.

 

Minhas perspectivas eram brilhantes. Minha vida real finalmente poderia começar, foi isso que pensei.

 

Foi uma premonição bem precisa. Mas acho que descobri que o “real” nem sempre é algo positivo.

 

Aos dezenove anos descobri uma nova doença.


Notas:

1 – Um snorkel é o tubo que um nadador usa para respirar enquanto mergulhando.

2 – Com seu nome mais popular sendo rinite alérgica, é algo muito comum e cujos sintomas são, basicamente: coriza, olhos vermelhos, espirros e coceira nos olhos.

3 – O trato respiratório é, falando de forma bem básica, o sistema que leva o oxigênio do nariz até os pulmões.

4 – Uma doença psicossomática é quando o sofrimento psicológico acaba causando ou agravando uma doença física.

5 – Caracterizada por dor na região do peito e tórax, tosse e dificuldade para respirar.

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