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Sua História – Cap. 01 – Verde Verde

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Oh! Nós temos os bolsos cheios, 

Nós poetas, de cartas de amor, escritas a Chloes,

Dafnes – criações de nossas cabeças. Nossos 

amores – fantasmas de nossos cérebros – vãs 

fantasias, como bolhas de sabão! Venha! Pegue-a 

e transforme palavras de amor fingidas em verdadeiras.

— Edmond Rostand, “Cyrano de Bergerac”


 

Tenho uma amiga de infância que nunca conheci. Nunca vi seu rosto. Nunca escutei sua voz. Nunca senti seu toque. Apesar disso, conheço as tão queridas características de seu rosto. Sei a meiguice de sua voz. Lembro do calor de suas mãos.

Ela não existe. Para ser mais preciso, existe, mas apenas na minha memória. Pode parecer que estou falando sobre uma falecida, mas não é o caso. Desde o começo ela nunca existiu.

Era uma garota que foi criada apenas para mim, e seu nome era Touka Natsunagi.

Uma Substituta. Um dos tão ditos habitantes de Mimories[1]. Para dizer de forma mais simples, uma pessoa fictícia.

Meus pais amavam ficção mais do que tudo. Ou talvez apenas odiassem a realidade mais do que qualquer coisa. Em vez de tirar férias, compravam Mimories de férias. Em vez de dar festas, compravam Mimories de festas. Não planejaram fazer um grande casamento, então compraram Mimories de um casamento. Esse é o tipo de gente que me criou.

Nossa família era realmente irregular.

Meu pai costumava chamar minha mãe pelo nome errado. Apenas pelo que ouvi pessoalmente, ele tinha ao menos cinco modos diferentes de errar isso. Embora casado, comprou várias luas de mel. Variando entre mulheres com idade para serem suas mães ou até mesmo suas filhas, ele aparentemente teve ex-esposas, Substitutas, na verdade, com diferença de cerca de dez anos entre uma e outra.

Minha mãe nunca chamou meu pai pelo nome errado. No lugar disso, foi o meu que sempre errou. Embora eu fosse filho único, ela parecia ter quatro filhas. Eu, e três crianças Substitutas concebidas via Angel[2]. Os nomes delas também seguiam um padrão diferente do meu.

Agora, se eu sempre errasse o nome do meu pai, então teríamos um loop[3] perfeito. Mas, infelizmente, nunca recebi Mimories enquanto era jovem. Meus pais nunca tocaram na minha memória. Não é que não tivessem dinheiro para comprar Mimories para seu filho. Por mais imperfeita que fosse a família, dinheiro era algo que tínhamos. Isso era apenas como decidiram me criar.

Era sabido que a prática de implantar Mimories de amores incondicionais ou sucesso em seus anos de estudo tinha efeitos favoráveis no desenvolvimento emocional. Em alguns casos, poderiam ser até mesmo muito mais eficazes que o verdadeiro amor ou sucesso conquistado. Tudo porque falsas memórias criadas para se adequar ao indivíduo funcionavam muito melhor do que experiências reais repletas de distrações.

Duvido que meus pais não soubessem dessas coisas. Entretanto, escolheram não comprar quaisquer Mimories para mim.

Mimories são como um membro ou olho artificial; servem apenas para ocupar o lugar daquilo que não existe ou está em falta — dizia meu pai. — Quando você for mais velho e souber o que lhe falta, poderá comprar todas Mimories que desejar.

Parecia que eles engoliram as banalidades que os fabricantes e clínicas falavam sobre mudança de memórias desculpas reconfortantes para aliviar qualquer culpa por fabricar o passado dos indivíduos com Mimories. Tive dificuldades para entender que tipo de coisa “falta” para alguém precisar de cinco ex-esposas.

Aqueles dois, que permaneciam em um passado fictício, evitavam contato real com a própria família. Mantinham a comunicação no mínimo possível, comiam separadamente, saíam de casa cedo todas as manhãs e só voltavam bem tarde, e mesmo nos dias de folga saíam sem dizer um ao outro para onde estavam indo. Pareciam convencidos de que o que existia, na verdade, não era real. Ou talvez tivessem que fazer isso para continuar seguindo em frente. E é supérfluo dizer que, enquanto faziam isso, estavam me negligenciando por completo.

Se não seriam pais diligentes, deveriam deixar o filho satisfeito com Mimories, assim como eles. Era isso que eu sempre pensava quando era jovem.

Crescendo sem conhecer o amor real ou o fictício, fui criado como uma pessoa que não tinha ideia de como amar ou receber amor. Incapaz de imaginar que seria aceito por outra pessoa, eu renunciaria à comunicação na primeira oportunidade. Mesmo se tivesse a sorte de alguém se interessar por mim, existia um medo infundado de que logo decepcionaria qualquer pessoa, então afastei todos antes que isso acontecesse. Como resultado, tive uma juventude terrivelmente solitária.

Quando completei quinze anos, meus pais se divorciaram. Explicaram que decidiram isso há muito tempo, mas tudo que eu conseguia pensar era: E daí? Achavam que pensar muito na decisão tornava as coisas melhores? Um assassinato planejado certamente é um ato mais criminoso do que um espontâneo.

Depois de algumas idas e vindas, meu pai acabou ficando com minha custódia. Apenas uma vez após isso, vi minha mãe durante uma viagem, mas ela passou e nem olhou para mim, como se nem mesmo tivesse me visto. Que eu saiba, ela não é uma atriz boa o suficiente para fingir isso. Entendi que usou Lethe[4] para apagar todas as memórias referentes à família.

Agora, eu era um completo estranho para ela.

Passado o choque, senti um pouco de admiração. Sinceramente, poderia sentir inveja desse compromisso enorme com o próprio modo de vida. Eu poderia até seguir esse exemplo, cheguei a pensar.

Isso aconteceu há cerca de meio ano após eu completar dezenove.

Naquele momento em que apaguei a luz do meu quarto, tomei uma cerveja barata e olhei para o que vivi até o momento, percebi que, nestes dezenove anos, não tinha uma única memória que valesse a pena lembrar.

Foram dias tão cinzentos. Jardim de infância, primeiro grau, segundo grau, ensino médio, faculdade… Sem cor, sem luz, sem intensidade. Apenas um cinza monótono se estendendo além do horizonte. Até a crueza de “uma infância que nunca foi como eu quis” desapareceu em algum lugar.

Então entendi naturalmente. 

— Agora eu entendi. É claro que pessoas tão vazias assim se apegariam a falsas memórias.

Mesmo assim, eu não sentia vontade de comprar Mimories. Talvez tenha sido uma revolta contra a família de mentirosos que me criou, mas passei a odiar Mimories e todos os tipos de ficção. Até a vida mais insípida de todas parecia muito melhor do que uma cheia de falsa ostentação. Até a mais incrível das histórias me parecia sem graça, simplesmente por ser algo fabricado.

Eu não precisava de Mimories, mas a ideia de mudar minhas memórias não era ruim por si só. A partir daquele dia, não fiz nada além de trabalhar durante meio período. Meu pai me dava uma mesada decente, mas eu queria cuidar disso sozinho, ao menos tanto quanto possível.

Meu objetivo era comprar um pouco de Lethe.

Foi uma vida tão vazia, pensei, poderia muito bem esquecer tudo.

Quando não há nada em um lugar onde deveria haver algo, isso faz você se sentir vazio. Mas em caso de se livrar desse “lugar”, o vazio desapareceria junto.

O “vazio” não pode existir em algo que não existe.

Eu queria me aproximar do nada absoluto.

Economizei dinheiro por quatro meses. Então peguei todo o pagamento do meu serviço de meio período da minha conta bancária, fui até a clínica, passei por meio dia de aconselhamento para criar um registro pessoal e voltei para casa, exausto. E comemorei com bebidas, sozinho. Pela primeira vez na vida, senti como se tivesse conquistado algo.

Durante o aconselhamento, fiquei em um estado de hipnose com sedativos, então não me lembro do que disse. Mas depois que saí da clínica e fiquei sozinho, um arrependimento borbulhou até chegar à superfície: Falei demais. Provavelmente fui franco sobre alguns desejos embaraçosos ou coisas do tipo. Era vago, mas era o sentimento que tive. Mesmo que meu cérebro não lembrasse, meu corpo, de alguma forma, O fazia-o.

O fato de o aconselhamento, geralmente realizado durante vários dias, terminar em apenas meio dia, era uma inegável prova de quão vazio meu passado foi.

Um mês depois, recebi um embrulho contendo Lethe. Vi meus pais tomarem doses de nanobots que alteram memórias inúmeras vezes, então nem precisei ler as instruções anexadas. Derramei todos os nanobots em pó da embalagem de papel na água e tomei com um só gole. Então caí no chão e esperei meus dias cinzentos tornarem-se brancos.

Agora posso esquecer tudo, pensei.

Claro, na realidade, não é como se todas as memórias fossem removidas. Isso foi projetado para preservar as memórias necessárias para seguir com a vida normal, e Lethe afeta apenas memórias episódicas no final das contas. Memórias declarativas[5] e semânticas[6] ficam intocadas. Memórias não declarativas[7] permanecem as mais inalteradas possíveis. Isso é comum a todos os nanobots alteradores de memórias; portanto, as mesmas restrições se aplicam ao implante de memórias. É por isso que o desenvolvimento de Mnemosine[8], que fornece onisciência e onipotência instantâneas, é algo incomum. Não é possível esquecer conhecimentos ou habilidades usando Lethe. Tudo que pode ser apagado são lembranças.

Escolhi apagar todas as memórias dos meus seis aos quinze anos. Você geralmente designa a limpeza da memória especificando apenas “memórias relacionadas a…”; pessoas como eu, que desejam apagar períodos de tempo completos, são aparentemente incomuns. Acho que isso até faz sentido. Os indivíduos só querem eliminar o sofrimento de suas vidas, e não erradicar isso como um todo.

Olhei para o relógio sobre a mesa. Esperei e esperei, mas nenhum sintoma de perda de memória apareceu. Normalmente, os nanobots chegariam ao cérebro após cinco minutos e completariam todo o processo em até meia hora. Mas, após uma hora, não senti alterações nas memórias da minha juventude. Eu me lembrava de ter quase me afogado durante as aulas de natação quando tinha seis anos, me lembrava de ser hospitalizado com pneumonia por um mês quando tinha onze anos, de ter sofrido aquele acidente aos quatorze e por isso levar três pontos no joelho. Até conseguia lembrar o nome de todas as filhas fictícias de minha mãe e das ex-esposas de mentira do meu pai. Estava ficando cada vez mais desconfortável. Não me diga que me entregaram um produto falho? Ou talvez seja assim que funciona o apagamento de memórias. Quando você esquece completamente dela, talvez sequer consiga perceber que ela sumiu.

No momento em que tentava amenizar meus medos com esse raciocínio conveniente, notei uma presença estranha no meu passado.

Levantei-me às pressas, peguei o saco de lixo e li o bilhete que veio junto do pacote.

Rezei para que não fosse isso. Mas era.

Houve algum tipo de erro. Eu não tinha recebido Lethe. Esses eram nanobots diferentes – usados principalmente por aqueles que tiveram uma juventude insatisfatória – que foram programados para proporcionar uma infância fictícia.

Verde Verde.

Era isso que eu tomei.

O horizonte cinzento não ficou branco, mas sim verde.

Eu conseguia entender por que a clínica teria feito isso. Talvez meu conselheiro tenha ouvido “Não tenho boas lembranças da juventude, então quero esquecer tudo”, e levou apenas a primeira parte em conta e chegou a uma conclusão precipitada.

Certamente, é o que você normalmente faria. É a conclusão natural: se não tem boas lembranças, então crie algumas. De certa forma foi minha culpa por não ter esclarecido as coisas direito. Mais importante, foi meu o erro crucial de não olhar com cuidado os documentos que estava assinando.

Por causa desse erro, tornei-me inadvertidamente uma daquelas pessoas que eu tanto desprezava.

Não pude deixar de sentir que isso era, de alguma forma, fatídico.

Comuniquei à clínica que tinha recebido algo diferente do que pedi e logo recebi uma ligação. Cerca de duas semanas depois, recebi dois pacotes de Lethe. Um era para apagar as memórias de minha juventude, outro para apagar minhas falsas experiências com a pessoa fictícia chamada Touka Natsunagi.

Mas eu não estava com vontade de usar nada disso, então guardei tudo, lacrado, em um armário. Hesitei em deixar isso visível.

Estava com medo.

Não queria ter esse sentimento novamente.

Para dizer a verdade, quando percebi que tinha ingerido Verde Verde no lugar de Lethe, fiquei secretamente aliviado.

Acho que finalmente entendi por que existem tão poucos usuários que abusam do uso de Lethe quando comparado com outros tipos de nanobots.

E assim, recebi lembranças de uma infância fictícia. Mas eram um pouco tediosas. Normalmente, as Mimories fornecidas pelo Verde Verde deveriam se propagar, desde lembranças de momentos divertidos com os amigos até a superação de várias dificuldades. Mas, por alguma razão, as minhas estavam focadas em episódios com uma única amiga de infância.

Mimories eram criadas com base em um documento – o “registro pessoal” – gerado sistematicamente por meio de um programa que analisa os dados obtidos nos aconselhamentos. Em outras palavras, o engenheiro de Mimories que criou essas Mimories examinou meu registro pessoal e decidiu que “Estse é o tipo de passado que esse cara precisa”.

Eu tinha algumas suposições sobre por que existia apenas uma amiga de infância. O engenheiro deve ter pensado que, já que tive uma juventude solitária na qual não recebia carinho da família e não tive amigos ou namoradas, então me dar alguém que eu pudesse sentir como se fosse da família, um amigo ou namorada seria apenas algo suficiente. A combinação desses fatores em uma pessoa economizaria tempo, já que não precisaria do esforço para formar várias personagens e, com esse tempo disponível, a criação única poderia ser ainda mais profunda.

Na verdade, Touka Natsunagi era a pessoa ideal para mim. Combinava com o meu gosto em todos os sentidos; eu poderia chamá-la de garota ideal. Toda vez que pensava nela, não podia deixar de imaginar:

Ahh, se realmente tivesse uma amiga de infância assim, como aqueles dias teriam sido maravilhosos.

E é exatamente por isso que fiquei insatisfeito com essas Mimories.

O que é mais vazio do que o fato de as mais belas lembranças em minha memória não passarem de fabricação alheia?

— Você provavelmente deve acordar logo — disse ela.

— Estou bem — respondi com os olhos ainda fechados.

— Vou te pregar uma peça se não acordar — sussurrou ao meu ouvido.

— Vá em frente — murmurei enquanto virava na cama.

— Gostaria de saber o que vou fazer? — perguntou rindo.

— Seja lá o que for, só vou descobrir mais tarde. — Eu ri.

— Senhor — disse modestamente.

— Você também deveria dormir aqui, Touka. — Fiz um convite.

— Senhor?

Eu acordei.

— Você está bem?

Olhei na direção da voz e vi uma funcionária usando uma yukata[9] de uniforme inclinando-se para olhar o meu rosto. Sentei e olhei em volta enquanto meus olhos entravam em foco e, depois de uma pausa, lembrei que estava em um pub[10]. Devia ter cochilado enquanto bebia.

— Você está bem? — perguntou ela novamente. Parecia um pouco envergonhada após escutar meus devaneios enquanto dormia.

— Poderia pegar um pouco de água para mim? — Fiz meu pedido calmamente.

Ela sorriu e concordou, depois foi em busca de uma jarra.

Olhei para o meu relógio. Acredito que eram três da tarde quando comecei a beber, e já chegavam às seis horas.

Engoli a água que a atendente trouxe, paguei a conta e saí. Assim que saí do estabelecimento, um calor espesso agarrou meu corpo. Quando pensei no meu quarto com ar condicionado, comecei a ficar deprimido. A situação atual era quase como estar em uma sauna.

O distrito comercial estava cheio de pessoas. Garotas vestidas em yukatas de verdade, não eram coisas falsificadas iguais à da garçonete, passaram na minha frente alegres da vida. Fumaça branca carregando cheiros de molho queimado e carne grelhada entrou e fez cócegas em meu nariz. Pessoas conversando, barracas cheias de clientes, o som de sinais de trânsito e da faixa de pedestres, o zumbido baixo de alternadores e sons distantes gerados por flautas e tambores taiko[11] – tudo estava misturado e espalhado pela cidade.

Primeiro de Agosto. Dia do festival de verão.

Eu considerava isso um evento sem qualquer relevância.

Indo contra a multidão que estava andando em direção ao festival, comecei a caminhar em direção ao meu apartamento. Quando o sol se pôs, a multidão aumentou ainda mais; se não tomasse cuidado, poderia acabar sendo arrastado. Os rostos suados dos transeuntes estavam iluminados pelo sol ao oeste, brilhando com uma cor laranja clara.

Cometi um erro ao ir ao santuário, pensando que poderia pegar um retorno assim. O lugar estava lotado com as pessoas dos carros estacionados ao longo do caminho, bem como por aquelas que estavam apenas fazendo uma pausa. Quando segui contra a multidão, os cigarros no bolso do meu peito foram esmagados, e fiquei com manchas de molho na camisa e meus dedos dos pés foram pisoteados por sandálias geta[12]. Não parecia mais ser possível deliberar sobre minha própria direção, então me entreguei ao fluxo, esperando até que chegasse do lado de fora naturalmente.

Por fim, consegui sair da área do santuário e, enquanto descia as escadas para a saída…

De repente, escutei uma voz.

— Ei, quer beijar?

Eu sabia. Era o efeito do Verde Verde. Não passava de uma alucinação causada pela associação ao festival de verão. Talvez ainda houvesse vestígio do sonho que estava tendo no pub.

Tentei pensar em outra coisa para me distrair. Mas, quando uma associação começa, ela aumenta conforme você tenta pará-la; as Mimories surgindo no âmago de sua mente se tornam mais vivas quando você tenta as evitar. Antes que eu percebesse, minha consciência tinha fugido para aquela juventude fictícia.

— Pelo visto as pessoas acham que estamos namorando.

Touka e eu estávamos visitando o santuário local. Depois de dar uma volta e visitar todas as barracas, sentamos juntos em alguns degraus meio escondidos, olhando casualmente para as multidões.

Eu estava com meu traje habitual, mas Touka vestia uma yukata. Uma yukata azul escura com estampa de fogos de artifício e crisântemos vermelhos em seus cabelos. Ambos eram de uma cor mais suave do que a que usara no ano anterior, e pode ser por isso que parecia um pouco mais madura.

— Mesmo nós sendo apenas amigos de infância, sabe?

Com isso, Touka tomou um gole de um refrigerante com uma cor meio estranha e depois tossiu de leve. Então olhou para mim para ver minha reação.

— Se alguém nos ver juntos assim, isso pode aumentar os mal-entendidos — respondi escolhendo as palavras cuidadosamente.

— Bom ponto. — Touka riu. Então, como se tivesse lembrado algo, colocou a mão sobre a minha. — Se vissem algo assim, as coisas ficariam ainda piores.

— Pare com isso.

Isso foi o que saiu da minha boca, mas minha mão não afastou a dela. Em vez disso, olhei para os lados casualmente. Fiquei dividido entre a preocupação de algum conhecido nos ver e usar isso para nos provocar, e a esperança de alguém fazer exatamente o que eu temia.

Bem, talvez desejasse a segunda opção um pouco mais do que a primeira.

Eu tinha quinze anos, foi então que comecei a ver Touka sob uma perspectiva romântica. No meu segundo ano do ensino médio, fomos para salas diferentes, diminuindo bastante o tempo que passávamos juntos – e foi isso que desencadeou tudo. Foi naquele ano que tive a dolorosa percepção de que minha amiga de infância, que até então eu considerava parte da família, era de fato uma garota normal, como qualquer outra da sala.

E, ao mesmo tempo, fiquei consciente da minha atração romântica. Assim que pude me afastar dos preconceitos para voltar a olhar para ela, vi que Touka Natsunagi era uma garota muito bonita. A partir desse momento, fiquei perdido em seu rosto, o qual deveria ser muito familiar para mim, e muitas vezes me sentia inquieto só de vê-la conversando com outros garotos.

Talvez a razão pela qual perdi meu interesse em garotas até então seja porque minha parceira ideal esteve comigo desde o começo.

Por causa de nosso longo relacionamento, logo notei que Touka estava passando por uma mudança mental bem parecida. A partir do verão do nosso segundo ano do ensino médio, ela começou a me tratar de um jeito mais estranho. Embora agisse da mesma maneira de sempre, superficialmente, após uma observação cuidadosa, pude ver que estava apenas tentando imitar seu velho comportamento. Deve ter feito o possível para preservar nosso relacionamento casual.

Quando chegou o terceiro ano e voltamos a estar na mesma sala, começamos a nos aproximar constantemente, como para compensar o ano anterior. Não perguntamos diretamente sobre os sentimentos um do outro, mas de vez em quando mandávamos um sinal indiferente. Com métodos como dizer que “podemos ser confundidos com um casal” e observando a expressão do outro – igual ela acabou de fazer – ou de brincar de dar as mãos e esperar por uma reação.

Com tentativa e erro, estávamos aprofundando nossas convicções de que sentíamos o mesmo.

E naquele dia, Touka chegou à fase final de confirmação.

— Ei, quer beijar? — perguntou ela quando sentei ao seu lado, com o olhar ainda fixo para baixo.

Ela disse que, de repente, apareceu essa ideia, mas eu sabia que estava engolindo essas palavras há muito tempo.

Afinal, por um longo tempo, fiquei segurando algo bem parecido.

— Vamos lá, vamos ver se realmente somos apenas amigos ou não — explicou Touka com um ar irreverente. — Talvez fiquemos surpresos quando nossos corações dispararem.

— Quem sabe — respondi casualmente. — Aposto que não sentiremos nada.

— Você acha?

— Provavelmente.

— Bem, vamos fazer um teste.

Touka olhou para mim e depois fechou os olhos.

Isso é estritamente brincadeira. Um experimento baseado em curiosidade. Quero dizer, um beijo não é lá grande coisa. Depois de erguer todas essas defesas, pressionamos nossos lábios.

Depois que nossos lábios se afastaram, encaramo-nos novamente como se nada tivesse acontecido.

— E aí? — perguntei. A pergunta saiu estranhamente seca, quase como se a voz nem fosse minha.

— Hmm… — Touka abaixou um pouco a cabeça. — Nadica de nada. E aí?

— Também não.

— Huh.

— Ei, eu disse, não disse? Não sentiremos nada.

— É. Verdade, acho que somos só amigos de infância.

Foi uma conversa recheada de mentiras lavadas. Eu queria beijar a Touka de novo agora mesmo, e queria confirmar todos os tipos de coisas além dessa. Os mesmos sentimentos surtiram no movimento de seus olhos e sua voz trêmula, e eu sabia que a pequena pausa após sua primeira resposta foi por não ter se decidido sobre não dizer algo do tipo “Não sei, então vamos tentar de novo”.

Bem, provavelmente o plano era manter as coisas assim até chegar a uma confissão. E, de fato, eu elaborei um plano bem parecido. Entretanto, naqueles breves segundos em que nossos lábios se tocaram, meus pensamentos mudaram bastante. Você não pode avançar ainda mais, alertaram as células de todo o meu corpo.

Se você for mais longe, tudo vai mudar.

Em troca do estímulo e excitação momentâneos, essa coisa confortável entre nós desaparecia para todo o sempre.

E não teria como retomarmos nosso relacionamento atual.

Touka também deve ter percebido isso. Ela mudou seu plano às pressas, ao que parece, para fingir que era brincadeira.

Fiquei grato por sua prudente decisão. Porque se tivesse decidido abrir seu coração para mim, jamais seria capaz de recusar.

No caminho para casa, Touka se lembrou de algo e falou:

— Aliás, esse foi o meu primeiro.

E eu fingi ignorância.

— Seu primeiro o quê?

— Beijo. E o seu, Chihiro?

— Foi o meu terceiro.

— Hein? — Touka arregalou os olhos e parou. — Quando? Quem?

— Você não lembra?

— Foram comigo…?

— No armário da minha casa quando eu tinha sete anos, e também no escritório da sua casa quando eu tinha dez anos.

Após alguns segundos de silêncio…

— Ah é… — murmurou Touka. — Uau, que memória boa.

— Touka, você que é esquecida.

— Foi mal.

— Aposto que também vai esquecer o dia de hoje em alguns anos.

— Uhh, então essa foi a terceira vez… — Touka ficou em silêncio por um momento, depois sorriu. — Bem, então foi o quarto.

Desta vez, fui eu que fiquei surpreso?

— Quando?

— Não vou contar — disse ela com um olhar composto. — Mas foi bem recente.

— Não lembro.

— Bem, você estava dormindo.

— Não percebi…

— Ahaha. Essa era a ideia.

— Que sorrateira…

— Sorrateira, né?

Touka estufou o peito e riu.

— Então foi o quinto… — murmurei bem baixinho.

Ao menos nós dois estávamos sendo sorrateiros.

Inúmeras e doces memórias falsas como essa existiam em minha mente. E cada pequeno detalhe flutuava muito mais vividamente do que qualquer memória real, sacudindo meu coração violentamente.

O mais preocupante era que, ao contrário das memórias normais, você não consegue esquecer as Mimories ao longo do tempo. São como tatuagens; não desaparecem naturalmente. De acordo com um estudo clínico, pacientes no início da doença de Nova Alzheimer[13] que têm Mimories implantadas, mesmo depois de perder todas suas memórias, ainda ficarão com as Mimories por bastante tempo. É esse o nível de poder dos nanobots que alteram as memórias. A única maneira de esquecer as falsificações criadas pelo Verde Verde é usando Lethe, projetado especificamente para apagá-las.

Enfrentar meu medo e tomar o Lethe, ou fazer um compromisso com as Mimories. Eu vacilei entre minhas opções por um longo tempo.

Desde que não apaguei essas Mimories, eu ficaria para sempre atado às lembranças de uma amiga de infância inexistente. 

Abaixei minha cabeça e suspirei. Eu estava farto de minha própria indecisão.

Olhei para cima e vi um torii[14] na minha frente. Parecia que cheguei à entrada enquanto perdido em pensamentos. Fiquei aliviado; agora finalmente poderia fugir do festival. Enquanto estivesse nele, continuaria pensando em um passado inexistente.

Então, ouvi um som alto. Olhei para o reflexo e vi fogos de artifício sendo lançados no céu noturno. A cidade vizinha devia estar fazendo um show com eles. Olhei para baixo e pensei ter ouvido alguém dizendo “vire-se já”. Inconscientemente, diminuí meu ritmo. E olhei por cima do ombro.

Entre a multidão, vi na mesma hora.

E também olhava para mim.

Sim, havia uma garota lá.

Com cabelo preto que caía pelos ombros.

Usando uma yukata azul com estampa de fogos de artifícios.

Uma pele pálida que atrai a atenção.

Crisântemos vermelhos em seus cabelos.

Nossos olhos se encontraram.

O tempo parou.

Eu soube intuitivamente.

Ela tinha as mesmas lembranças.

O barulho do festival diminuiu.

Tudo, exceto ela, perdeu a cor.

Preciso ir atrás dela, pensei.

Preciso falar com ela, pensei.

Decidi ir em sua direção.

Ela decidiu vir na minha.

Mas a multidão impiedosamente nos arrastou para longe e nos separou.

Em um piscar de olhos a perdi de vista.

 


Notas:

1- Mimories é, em Francês, mimetizações. Ou, em Eslovaco, imitar.

2- Anjo em Inglês.

3- Repetição.

4- Lethe, do grego, esquecimento. Referência ao Rio Lethe, cuja água, de acordo com os mitos, faz esquecer absolutamente tudo.

5- Memória declarativa é aquela que armazena o saber de que algo aconteceu.

6- Memória semântica é a memória a longo prazo que armazena palavras, símbolos e significados.

7- Memórias não declarativas armazenam como algo aconteceu.

8 – Mnemosine ou Mnemósine era a personificação da memória na mitologia grega.

9 – Vestimenta japonesa tradicional.

10- Os pubs são os estabelecimentos onde são servidas bebidas alcoólicas na Grã-Bretanha. Leia-se bar chique.

11- Tambor japonês tradicional.

12- São as tradicionais sandálias de madeira com salto do Japão.

13- Alzheimer é um transtorno neurodegenerativo progressivo que se manifesta pela deterioração cognitiva e da memória.

14- Portão tradicional japonês ligado à tradição xintoísta.


 

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