Uma Elfa Lésbica e Uma Princesa Amaldiçoada

Uma Elfa Lésbica e Uma Princesa Amaldiçoada – Cap. 02.1 – Noite do Festival, Juramento da Primavera

Rem estava perto de uma janela no segundo andar, espiando pela entrada dos fundos da mansão, enquanto se escondia atrás das cortinas. Um grupo de vários soldados havia chegado pela estrada pavimentada com pedras, e agora descarregavam, preguiçosamente, as mercadorias que haviam trazido com eles. Embora a Princesa agradecesse ao homem que parecia ser o capitão do grupo por seu trabalho, era óbvio para qualquer um que ela não estava sendo sincera.

Eu sei que ela tem que agir como a realeza e tal, mas mesmo assim…

Para Rem, com certeza não parecia que os homens se sentiam honrados por estar em sua presença real… ou qualquer coisa do tipo. Assim que os soldados terminaram seus negócios e foram embora, Alferez se virou para a janela e falou em voz alta.

— Ei, Elfa! Você estava assistindo, não estava? Me ajude aqui!

Rem decidiu seguir o comando da garota; não era como se tivesse algo melhor para fazer. Ela encontrou Alferez em frente à porta que dava para a cozinha, com dezenas de caixinhas de madeira ao seu lado. A elfa percebeu que a Princesa queria que ela a ajudasse a carregá-las para dentro.

— O que há nisso?

— Alimentos, roupas e outras necessidades diárias.

— Nossa, isso parece bem pesado.

— Não se preocupe, mandei enchê-las de modo que sejam leves o suficiente até para mim. Fico feliz por você estar aqui, normalmente tenho que cuidar de tudo sozinha.

Embora Rem não fosse necessariamente uma fã de como a Princesa tinha acabado de presumir que ela iria ajudá-la, é claro que o faria. A elfa se sentia mal por ser uma inquilina, e a garota eventualmente até passou a compartilhar comida com ela. Isso era o mínimo que podia fazer em retribuição.

— Bem, acho que também vou comer isso, então… U-uau!

A única caixa que Rem tinha pego era muito mais pesada do que havia imaginado, e ela tropeçou, mal conseguindo se manter de pé. Alferez olhou para a luta da garota e seu rosto se contorceu em um sorriso malicioso.

— Elfos são tão fracos quanto parecem, hein?

Bastante ofendida por esta observação rude, Rem respondeu na lata, enquanto tentava impedir que seus braços tremessem.

— Talvez, mas equilibramos isso com a nossa sabedoria. Somos muito mais inteligentes do que os humanos.

— Eh? Conhecendo só você, nunca imaginaria isso.

As garotas se entreolharam com raiva enquanto levantavam a caixa juntas.

— Vamos fazer uma pausa…

— Certo… Vamos fazer isso…

A Princesa concordando com Rem era algo raro. No entanto, ela também estava faminta demais para essa discussão inútil. As duas só continuaram fazendo as coisas em absoluto silêncio.

— A propósito, por que uma princesa é forçada a fazer um trabalho tão duro? As pessoas que trazem essas coisas para cá não deveriam levar tudo para dentro? Todos os soldados do seu país são tão estúpidos quanto esses cabeças-duras?

Alferez respondeu à pergunta simplesmente batendo na caixa que estava segurando e encolhendo os ombros. Rem esperava que mais uma vez a outra admitisse que tinha razão, mas não parecia que seria isso que ela iria fazer.

— Essas pessoas são obrigadas a cuidar de mim devido ao meu status, mas nem por um segundo pense que sentem qualquer coisa, além de ressentimento, por mim. No que diz respeito ao estado, uma princesa que não pode se casar é apenas um fardo.

Rem tinha testemunhado o motivo para isso em primeira mão na noite anterior.

— Ei… Posso te perguntar uma coisa?

— Por que me transformei em uma gata? Não tenho certeza. A única coisa que me disseram é que é uma maldição.

— Uma maldição?! Bem, você parece mesmo alguém que poderia irritar alguma pessoa ao ponto de ela fazer isso. É, acho que deve ser verdade.

— Como é que é?! O que você quer dizer com isso?! … Enfim, essa é a última. Vamos continuar esta conversa enquanto tomamos um chá, que tal?

Elas terminaram de carregar as caixas durante sua curta conversa. Alferez rapidamente pegou um jogo de chá da prateleira e colocou-o sobre a mesa. No mesmo movimento rápido, também pegou alguns doces assados de um dos recipientes que haviam trazido. Com certeza não era a primeira vez que ela fazia isso. Os movimentos hábeis da garota deixaram Rem olhando em transe.

— Uma princesa está fazendo chá para mim? Quanta honra.

— Exatamente. Aprecio a sua gratidão.

Embora Rem estivesse muito impressionada com o conhecimento de etiqueta da Princesa, uma olhada nos diferentes alimentos enfiados nas prateleiras deixou claro que, digamos, cozinhar não era bem um dos seus pontos fortes. Enquanto pensava se isso era realmente o que ela comia todos os dias, a elfa percebeu que começava a se sentir mal pela garota.

Eu não me importaria de cozinhar para ela, mas… Ela provavelmente ficaria brava e gritaria algo como “Você realmente espera que eu coma algo que uma elfa fez?!”

Para uma princesa, sua língua era bem afiada. Apesar disso, ela não parecia nutrir tanto ódio por outras raças quanto os habitantes da cidade. Afinal, Rem foi capaz de ter uma conversa despreocupada com a garota, e mesmo depois de enfiar o nariz bem no meio dos seus negócios, ela permitiu que a elfa ficasse em sua casa. Era uma coisa ridícula para se preocupar, mas, mesmo assim, ela só não conseguia se livrar da sua ansiedade.

— Princesa. Você não… me odeia, certo?

— Odiar você? Bem, você me incomodou um pouco ao entrar furtivamente em minha casa, mas além disso, não vejo nenhuma razão para fazê-lo. Ahh, você quer dizer pelo fato de que eu sou uma humana e você é uma elfa?

Bem no ponto. Rem se sentiu um pouco chocada, mas também feliz. Ela nunca conheceu outra pessoa, mesmo um elfo, que a entendesse tão bem. Por outro lado, não havia muitas pessoas na aldeia interessadas no que ela, a criança tabu, tinha a dizer. Claro que ninguém entendia seus sentimentos; sua tia de sangue era praticamente a única pessoa com quem tinha conversado de verdade.

Esse era um dos motivos pelos quais gostava tanto de conversar com Alferez; a garota sempre parecia estar um passo à sua frente. Embora às vezes fosse um pouco irritante, Rem nunca se sentia oprimida ou como se tivesse que lutar para mostrar seu ponto de vista. Com a boca cheia de biscoitos, ela decidiu que esta seria uma boa oportunidade para fazer uma pergunta que estava a incomodando.

— Humanos odeiam elfos, não é? E não é só isso, você é uma princesa. Você devia mesmo tomar chá comigo?

— Depois do que aconteceu ontem à noite, tomar um chá é tão importante assim…?

Alferez, que estava prestes a tomar um gole, de repente congelou no lugar. Seu rosto ficou vermelho e suas mãos começaram a tremer, fazendo que derramasse o chá de sua xícara. Da mesma forma, Rem entendeu o que a garota estava prestes a dizer na mesma hora, e quase engasgou com o biscoito que estava mastigando.

As duas tinham feitos coisas indescritíveis uma com a outra, e não uma, mas duas vezes. Haviam tentado ao máximo abordar o assunto e, assim que ele foi levantado, nenhuma delas conseguiu encontrar coragem para olhar na outra.

E isso não era tudo. Pela memória de Rem, correu uma memória obscena atrás da outra. Expressões contaminadas pela luxúria, sons espessos de fluidos pingando, o par de lábios macios pressionando contra os dela. Só de lembrar o prazer que sentiu fez seu interior começar a latejar.

O-o que eu faço…?

Seus olhos vagaram ao redor com o nervosismo, assim como os da Princesa. Cada vez que seus olhares se encontravam, elas logo o desviavam. Depois de um tempo, as duas conseguiram recuperar a compostura e tomaram um grande gole de chá.

— E-enfim, de volta ao que eu estava dizendo…!

A Princesa ergueu a voz, fazendo de tudo para tirar a conversa deste assunto delicado. Rem obviamente não tinha objeções a isso.

— Acho que isso provavelmente é porque, quando te conheci, eu não sabia que você era uma elfa. Você normalmente não tem uma boa conversa com uma pessoa e de repente começa a odiá-la, certo?

Sim, normalmente era esse o caso. No entanto, esta situação estava longe de ser tão “normal” assim. Rem acreditava que os humanos aprendiam desde tenra idade que os elfos não eram confiáveis, assim como acontecia com o seu povo.

As reações das pessoas na cidade castelo confirmaram o que sua tia sempre lhe dizia.

Quando a elfa perguntou a ela sobre isso, Alferez apontou para seu próprio peito e disse o seguinte:

— Como você bem sabe, eu não sou uma humana comum. Posso parecer uma durante o dia, mas assim que o sol se põe, me transformo em uma gata. Se eu nem sou toda humana, então como poderia justificar o desprezo por um elfo antes de ter a chance de conhecê-lo?

Embora a declaração da Princesa fosse claramente sobre ela se odiar pela maldição, Rem ficou feliz em interpretar isso como seu repúdio ao ódio pelos elfos.

— A maldição da gata, você a tem desde que nasceu?

— Não, isso tudo começou há um ano. Era meu aniversário de quinze anos e eu estava prestes a me casar pela primeira vez. Imagine como fiquei chocada, não tinha ideia do que estava acontecendo comigo. Todas as noites depois disso, ficava com medo de que isso acontecesse, eu não voltasse mais ao normal…

Todo o seu ser mudou. Apenas uma pessoa com experiência em primeira mão poderia entender perfeitamente como isso deve ser assustador. Rem não soube o que falar para oferecer as suas condolências e só abaixou a cabeça, como se dissesse “Sinto muito”.

— Ah, por favor, não se preocupe, agora já estou bem acostumada. Às vezes, prefiro até ficar como uma gata.

A segunda metade dessa declaração provavelmente era mentira. Mesmo assim, nem em um milhão de anos Rem imaginaria que Alferez agiria de uma maneira tão estranhamente preocupada e, como resultado, caiu na gargalhada.

— Qual é a graça?

A Princesa estufou as bochechas, irritada por seu raro momento de consideração genuína ter sido motivo de riso. Agora era a vez de Rem tentar resolver esta situação incômoda.

— Foi mal, foi mal. Vejamos… Ah é! Eu estou realmente interessada em saber por que e por quem você foi amaldiçoada!

— “Interessada”…? Bem, por que não? Só desta vez. Não é como se eu tivesse muitas pessoas com quem conversar.

A garota se levantou como se para sinalizar “vamos continuar essa discussão em outro lugar”. Ela pegou as xícaras sujas da mesa e, ainda distraída, as jogou na pia. Rem não ia deixar a oportunidade de lado, e logo as duas estavam lavando as louças juntas. A Princesa, provavelmente nunca tendo lavado um único prato em sua vida, é claro que não vibrou para isso.

— Por que eu tenho que fazer essas tarefas…? — murmurou ela.

— Quem mais vai fazer isso? Além disso, dei uma olhada nos quartos. Você com certeza gosta de deixar suas roupas sujas espalhadas, hein?

— V-você viu?! Sua elfinha intrometida!

— Que tal lavar elas, assim não precisaria ficar envergonhada!

Paradas lado a lado em frente à pia, as garotas continuaram a fazer réplicas uma à outra, ao mesmo tempo que cobriam as mãos com espuma de sabão. Só então Alferez teve uma grande ideia e seu rosto se iluminou com um sorriso brilhante.

— Já sei! Você deve virar a minha serva!

— Hein? Vamos lá, Princesa, não seja tão idiota. Você vai mesmo contratar uma elfa?

— Por que não? Eu já não disse que não tenho problema com isso? Essas suas orelhas compridas só servem para mostrar por aí?

Rem, como mencionado anteriormente, era muito sensível com relação ao comprimento de suas orelhas e não gostou nem um pouco da garota tocando no assunto.

— Na verdade, sou apenas uma meio-elfa, infelizmente, então minha audição pode não ser tão boa quanto você espera. Os puros-sangues costumavam zombar de mim o tempo todo. “Olha lá a Rem, vamos rir dela, não é como se ela pudesse nos ouvir.” Claro, meus ouvidos ainda são muito mais sensíveis do que os de qualquer humano, mas sabe…

— Ah, você é meio-humana? Bem, nesse caso, não há nenhuma razão para que você não possa ser minha serva! — Alferez gritou bem alto, tendo claramente não entendido o que “ouvidos sensíveis” significava. Rem se encolheu de dor, antes de rapidamente repreendê-la.

— Sim, mas a minha outra metade é elfa! Na verdade, para começo de conversa, por que eu deveria ser a sua serva?! Só porque sou uma elfa?!

Depois de desviar um pouco do assunto, as duas chegaram ao cerne da questão. Embora a Princesa tivesse dito que não tinha problemas com Rem ser uma elfa, no fundo de sua mente estava começando a se perguntar se a garota tinha certos preconceitos em relação a sua espécie. A desconfiança deixou a sua cara feia.

— Você esqueceu que eu sou uma princesa? Ou o que, vai me dizer que você também faz parte da realeza dos elfos?

— Bem… não… Muito pelo contrário, na verdade…

A outra garota estava agora ao lado de Rem, olhando para ela com olhos cheios de confiança. A elfa não conseguiu responder, nem replicar. O que a Princesa disse era verdade; no que dizia respeito a sua posição social, Rem não era ninguém. De repente, ela se sentiu muito fraca e, ao virar a cabeça enquanto murmurava algo baixinho, pôde ver a outra garota bufando de orgulho. Alferez havia vencido.

— Ei, pensa assim. Eu, uma princesa, estou permitindo que você, uma plebeia, seja minha criada pessoal. Vai mesmo ser rude ao ponto de recusar essa oferta?

— Hein?!

Rem ficou chocada. Ou, mais precisamente, pasma. A princesa genuinamente não tinha problemas com outras raças. Mesmo quando ela, no calor do momento, revelou que era na verdade uma meio-elfa, a garota interpretou isso de uma forma positiva.

— S-se você quiser falar sobre grosseria, que tal apenas um segundo atrás, quando você zombou das minhas orelhas?! Obrigada, mas não quero!

— Ah, eu fiz isso? Sinto muito. Bem, se você realmente é contra isso, então acho que terei que desistir dessa coisa de serva.

A garota ergueu um pouco o vestido com as mãos ainda molhadas e curvou-se em um gesto de desculpas. Rem ficou pasma com a sua sinceridade. Ela não estava agindo educadamente apenas para se passar por um membro da realeza; parecia que queria mesmo ser respeitosa com a elfa.

Já falei uma vez e direi de novo, que princesa estranha…

A garota que Rem pensava ser altiva e arrogante acabou sendo gentil e atenciosa. A Princesa era realmente tão complexa ou era apenas ruim em ler as pessoas? De qualquer maneira, a explosão de raiva que tomou conta dela há apenas um momento havia agora morrido por completo; era hora de fazer as pazes.

— B-bem… Só não faça isso de novo… — disse ela, fingindo agir com firmeza. Alferez viu através desse blefe óbvio e mostrou um sorriso malicioso, quase provocando a elfa de novo.

— E então, do que estávamos falando mesmo?

As duas tinham perdido o rumo da conversa. Até Alferez parecia ter esquecido do tema. Ela inclinou a cabeça um pouco para o lado e tentou se lembrar.

— Algo sobre quem me amaldiçoou e por quê, não é?

— Aham, isso aí! — exclamou Rem enquanto levantava seu dedo no ar, espalhando bolhas de sabão por toda parte. Alferez respondeu de imediato:

— Eu na verdade conheço a pessoa que fez isso.

— C-conhece? Bem, você não pode simplesmente ir e pedir a para que te des-amaldiçoe?

A resposta que ela obteve foi exatamente o oposto da esperada. Enquanto a elfa lutava para entender o que acabara de ouvir, Alferez mostrou um sorriso irônico. Os pratos estavam limpos e ela saiu da cozinha enquanto gesticulava um “siga-me”.

— Bem, eu disse que sei quem fez isso, mas… Só vi o rosto dela. Não faço ideia de que tipo de pessoa é, ou mesmo onde poderia encontrá-la.

As duas estavam agora passando por um dos muitos longos corredores da mansão.

— Uma senhora estranha foi ao meu aniversário de quinze anos. Bem, acabou que ela era uma bruxa. Acho que ela gritou algo como “Fui eu quem lançou uma maldição sobre a sua princesa!” Os guardas tentaram pegá-la, é claro, mas quando a cercaram, ela simplesmente, puf, desapareceu no ar.

— Hein? Ela foi lá só para se gabar?!

— Parece que sim. Argh! Isso me irrita!

A Princesa pisoteou o tapete sob seus pés com frustração. Rem não podia culpá-la por estar zangada. Nada disso teria acontecido se tivessem conseguido capturar a bruxa quando tiveram uma chance.

— Eu tive até que sair do castelo por causa dessa maldição estúpida!

— Bem, parece uma história de fantasmas, não é? Uma princesa que se transforma em uma gata durante a noite.

— Como é?!

Embora Rem tivesse considerado seu comentário apenas uma piada, a Princesa parecia genuinamente ofendida com isso. Seu olhar estava feroz e drenou as forças da elfa, fazendo-a cair no chão.

— Eu odeio admitir, mas… você está certa. É por isso que acabei presa nesta mansão abandonada. E agora que me divorciei pela terceira vez, Mamãe e Papai perderam todas as esperanças em mim. Estou condenada a passar o resto da minha vida aqui, apodrecendo.

A garota falou com uma voz fraca, quase inaudível. Isso era perfeitamente compreensível, entretanto; não havia como uma garota que mal havia entrado na idade adulta ter a força mental para lidar com uma maldição como essa.

— Ainda não entendo porque seus maridos se divorciaram de você — disse Rem com a cabeça inclinada. — Você parecia super fofa como uma gatinha!

A expressão no rosto de Alferez era confusa; Rem não tinha certeza se a garota ia começar a gritar ou o quê. Suas bochechas se contraíram um pouco, mas, para o deleite da elfa, ela soltou um enorme suspiro.

— Bem, isso é meio óbvio, não é? Como você vai consumar um casamento com uma gata?

— Consumar o casamento…? Quer dizer…?

— Sim, sexo. Fazer bebês. É para isso que existimos nós, princesas, para nos casarmos com reinos estrangeiros, para ter filhos e ajudar a solidificar as relações. Agora, o que você acha que aconteceria se aquela princesa se transformasse em uma gata durante a noite crucial? Seu novo marido provavelmente fugiria gritando e se perguntaria como diabos deveria dormir com uma gata. Hã? Por que você está me olhando assim?

Alferez ficou com um olhar confuso enquanto a garota diante dela se contorcia onde estava e esfregava a parte interna das coxas. Rem não esperava que a Princesa falasse sobre fazer filhos e outros tópicos sexuais tão abertamente. Acontece que só de ouvir essas coisas podia ser muito embaraçoso. Alferez logo percebeu o que estava acontecendo e seu rosto se contorceu em um sorriso malicioso.

— Você quer que eu a ajude de novo?

— N-não! Eu estou bem!

Este era outro caso em que a possibilidade de a Princesa a ler acabou se provando negativa. Quando Rem fez beicinho em protesto, um sorriso sedutor surgiu no rosto da outra garota. Pelo visto, ela achou isso hilário. A Princesa fingiu se desculpar, mas faltou sinceridade ao fazê-lo. Rem não ia deixar isso passar; era sua vez de agir com maldade.

— Princesa. Isso significa que você não… umm… “consumou” nenhum dos seus casamentos?

— Exatamente.

— Então, você ainda é virgem mesmo depois de se casar três vezes?

Ver a seriedade com que Alferez levava seus deveres de princesa, não poder cumpri-los, deve tê-la deixado completamente humilhada. Bem, ela acabou congelando no lugar.

— Exatamente — afirmou com calma, para a enorme surpresa de Rem; que esperava receber uma resposta cheia de tristeza e constrangimento.

— Para ser honesta, estou, na verdade, como devo dizer isso, aliviada por as coisas terem acontecido dessa maneira. Digo, confirmar o corpo a um homem…? Isso parece muito assustador, não acha?

De alguma forma, Rem entendeu esses sentimentos perfeitamente. Para garotas como elas, sem experiência, essas coisas pareciam não passar de imaginárias. Mesmo quando Rem tinha acidentalmente visto um casal fazendo sexo na aldeia, a principal emoção que sentiu foi o medo. Parecia-lhe natural o porquê de Alferez sentir-se assim. Seus pensamentos foram interrompidos, no entanto, quando a garota acrescentou bem baixinho:

— Mas… Passar por um divórcio é uma experiência de partir o coração. É como se a outra pessoa tivesse julgado você como inútil.

Rem foi instantaneamente lembrada das vezes que tentou fazer amizade com os outros elfos. Era assim que Alferez se sentia? Ou era de alguma forma diferente? Ela decidiu se abster de balançar a cabeça só por garantia. Ao mesmo tempo, se sentiu um pouco culpada; ela considerou seu comentário como nada além de uma leve provocação, mas acabou fazendo a garota abrir o coração.

— Princesa… Isso significa que um dia você ainda espera se casar?

Alferez piscou, surpresa com a pergunta. Ela inclinou a cabeça de um lado para o outro, parecendo quase confusa.

— Hmm, imagino. Na verdade, só penso nisso como um dever, como algo que devo fazer. Mas, sim, agora que você tocou no assunto… parece que havia algo… faltando nos meus maridos anteriores.

Esta pergunta inocente não deu à princesa muito em que pensar. Ela ponderou sobre o assunto por um momento enquanto olhava para o nada, mas não conseguiu encontrar uma resposta. Rem, sentindo-se completamente esquecida, decidiu ver se poderia ajudar.

— Tipo, a sua alma gêmea está te esperando em algum lugar?

— Sim, isso aí! — gritou Alferez, apontando para Rem. Pelo visto, era essa a resposta que ela estava procurando. Entretanto, a Princesa logo percebeu o seu erro e corou intensamente. Rem teve dificuldades para não cair na gargalhada; na conclusão da profunda introspecção de Alferez, o seu maior desejo revelou-se saído direto de um conto de fadas infantil. — É-é por isso que eu… estava procurando um jeito de quebrar a maldição sozinha!

Embora Rem não tivesse certeza do que Alferez quis dizer com “é por isso”, ela entendeu que a garota estava tentando desviar a conversa do assunto embaraçoso. Embora pressioná-la ainda mais fosse algo tentador, a elfa já estava se sentindo mal por ela e deixou isso para lá.

— É possível mesmo cuidar de uma maldição dessas sozinha?

— Não tenho certeza, é por isso que estou pesquisando.

Alferez bateu na parede enquanto caminhavam, provavelmente para desativar uma armadilha.

Ela então abriu uma enorme porta, uma que Rem já tinha visto antes.

— Esta é aquela biblioteca cheia de grimórios…

— Olha só, você também entrou aqui? Digo, muito bem. Há uma armadilha do lado de fora da porta.

— Aham, tô sabendo. Enfim, que livros são esses…?

Neste ponto, Alferez realmente não mostrou guardar muito rancor da “pesquisa”que Rem fizera pela mansão. Em vez disso, parecia bastante satisfeita que a elfa tivesse interesse em seus livros, e orgulhosamente tirou um da prateleira.

— Seu palpite estava correto, estes são grimórios das trevas que reuni a fim de pesquisar e, um dia, dissipar a maldição. Demorou cerca de um ano entrando sorrateiramente na biblioteca do castelo para completar a coleção.

— Eles vêm em conjuntos ou algo assim? Espera aí… você roubou isso?

Rem sentiu que até mesmo uma princesa estaria em apuros se fosse pega roubando livros tão valiosos. Ao mesmo tempo, não havia nada a ganhar se envolvendo com isso e ela decidiu só ignorar o assunto. Também havia algo muito mais importante que precisava ser abordado primeiro.

— Então, você conhece uma maneira de quebrar a maldição…?

— Bem, não exatamente… Mas encontrei uma receita para uma poção que parece que pode interrompê-la temporariamente! Olha, bem aqui!

— E-ei…!

Alferez abriu o livro que segurava e empurrou-o na cara de Rem. Infelizmente, ela não era uma especialista quando se tratava de poções mágicas. Embora tivesse visto vários gráficos complexos e o que parecia ser uma lista de ingredientes, não fazia ideia do que qualquer uma das palavras significava.

— E se der certo… você não vai mais virar uma gata?

— Isso mesmo…

Quando Alferez disse isso, havia um distinto tom de tristeza na sua voz. Ela então tirou um pequeno frasco do meio dos seus seios, um que Rem já tinha visto antes.

— Todas as minhas tentativas de produção falharam. Não só não dissipa a maldição, como produz… certos outros efeitos…

Na mesma hora a elfa entendeu de qual efeito a garota falava; já tinha o testemunhado em primeira mão. Pensando na receita e nos ingredientes, algo parecia errado.

— Hmm…

Ela se aproximou um pouco mais da página e confirmou a sua suspeita. Até olhou de baixo para cima, só para ter certeza, e confirmou a declaração anterior de Alferez.

— Você faz sempre essa mesma poção, certo?

— Correto. É a única do tipo que consegui encontrar.

— Sim, entendo…

Alferez estufou as bochechas com frustração. A elfa havia claramente descoberto algo, mas não estava contando o que era.

— Se você tem algo a dizer, diga! Você pode ler isso?!

Pare de reclamar! Você deveria ser grata! Rem queria gritar de volta, mas decidiu não fazer isso; ela sabia como a Princesa estava ansiosa para ouvir o que o livro tinha a dizer e não conseguia ficar brava com ela.

— Aham, um pouco. Está escrito nos mesmos caracteres antigos que nós, elfos, usamos.

Ela então apontou calmamente para o título da página.

— Esta coisa aqui diz “poção do amor”.

— Hein…?

A garota congelou no lugar. Ela então agarrou o livro das mãos de Rem e olhou intensamente para a parte que a elfa acabara de ler.

— Não, não diz! Diz “dissipar maldição”…!

— Você está lendo errado. Não posso te culpar por isso, já que meio que parece com isso quando você soletra esses caracteres antigos.

— S-sem chances…

Alferez caiu de joelhos. Ela estava completamente arrasada; por todo esse tempo havia tentado criar a poção errada. O conhecimento esmagador de que todos os seus esforços tinham sido em vão tornou impossível que se levantasse. Rem ficou ao lado dela em silêncio, sem saber o que deveria dizer. Não se engane, a elfa não estava pensando em como consolar a garota, muito pelo contrário, na verdade. Ela se ajoelhou ao lado dela e falou em um tom muito urgente:

— Umm… Não acho que uma amadora criar poções mágicas seja uma ideia muito boa. Elas podem ser muito perigosas, sabia? Era possível que você tivesse feito até alguma letal. Sinceramente, acho que você tem sorte, já que não aconteceu nada de ruim.

Alferez voltou seus olhos marejados para ela.

— Você não sabe nada sobre mim…

Sim, claro que Rem nunca poderia entender completamente a imensa pressão que os deveres de Alferez como princesa colocavam sobre ela. Porém, a luta para encontrar um lugar para chamar de lar, era algo que conhecia dolorosamente bem. A julgar por tudo que a garota havia dito, ela sentia uma imensa responsabilidade por ter nascido na realeza. Estava preparada para desempenhar o seu papel, não importava com quem se casasse. Alguém como ela não ficaria contente em viver o resto de sua vida em confinamento graças a uma maldição.

— Você vai ficar brava se eu disser que sei…?

Ao dizer isso, Rem se sentou no chão e se virou para encarar a Princesa.

— Te contei que sou uma meio-elfa, certo? Bem, por causa disso, todos da minha aldeia me odiavam. Eu recebia o trabalho mais chato do mundo, não tinha permissão para participar dos festivais e…

— Você está insinuando que as pessoas me odeiam?

O rosto de Alferez ficou sério; a observação claramente feriu os seus sentimentos. Rem, tendo percebido o seu erro, apressou-se em negar qualquer coisa mal-intencionada enquanto agitava as mãos na frente dela.

— Não, nada disso! É claro que não! O que eu quis dizer é que fugi da minha aldeia. Sei bem o que é lutar para encontrar um lugar onde você possa ser você mesma…

Embora não fosse fã da atitude arrogante da Princesa, Rem não pôde deixar de admirar sua força de espírito. Um ano se passou, mas ela ainda não tinha sucumbido à maldição. Quando a elfa deu uma olhada na garota, ela fez beicinho e virou a cabeça para o outro lado.

— Você está brava?

— O que você acha? Claro que estou! Você, uma plebeia, está comparando sua situação com a minha, uma princesa. São poucas as coisas que você poderia dizer que me machucariam ainda mais.

— Ah, foi mal…

O pedido de desculpas de Rem foi genuíno e sincero, deixando Alferez sem jeito para evitar o seu olhar. Ela rapidamente se virou para a elfa, porém, focando nela com os olhos cheios de determinação.

— Uma elfa tola será punida. Mais uma vez ordeno, torne-se a minha serva!

— Isso de novo…?

— Você fugiu de casa, certo? Se não tem para onde ir, é melhor ficar aqui. Eu prometo trabalhar duro com você!

Suas palavras foram duras, mas a maneira como as pronunciou foi gentil. Por este motivo Rem decidiu finalmente aceitar a sua oferta.

— Tá, então tá. Se você realmente precisa tanto de uma babá, acho que terei que te ajudar. É melhor você ser grata, viu?

— Sua elfinha atrevida.

As duas garotas, ambas má perdedoras, fizeram beicinho ao mesmo tempo e olharam uma para a outra. Seus olhos, entretanto, sorriam.

— E aqui estamos…

Era seu primeiro dia como serva e Rem estava pronta para desistir. Seus anos olhando para a velha árvore não tinham a preparado para o trabalho pesado que cuidar de uma mansão em ruínas acabou provando ser. Primeiro vieram as pilhas de pratos sujos na cozinha, depois as pilhas de roupas sujas nos quartos, e então a compreensão esmagadora da terrível decisão que havia tomado. A Princesa tinha mais quartos do que Rem podia contar, e parecia escolher eles só com base em como se sentia naquele dia em particular. Como visto antes, nenhuma das camas estava feita e o chão estava coberto de lençóis sujos e camisolas usadas. Limpar tudo isso tomaria dias ou semanas. Talvez até mais.

— Além disso, essas roupas são uma merda!

Ela não estava mais usando suas confortáveis roupas de viagem, mas sim um vestido de empregada com babados que a Princesa havia pego sabe-se lá de onde. “Você agora é uma serva e se vestirá como tal.”, disse ela. Embora Rem tivesse aceitado de má vontade, o vestido era mais comprido do que qualquer coisa que normalmente usava, e achou que se mover com ele era bastante difícil. Os punhos largos também incomodavam um pouco, e ela acabou tendo que arregaçar as mangas.

— Não ajuda nada quando você só diz “acostume-se”… Os humanos realmente fazem trabalho doméstico usando isso?

As roupas não eram só desconfortáveis, mas também a deixavam trabalhando a passos de lesma. Só a casa exigiria anos para limpar, sem falar no quintal e todas as ervas daninhas que cresciam por lá. Só pensar nisso fazia Rem querer chorar de desespero. Para ser claro, ela não estava reclamando; depois de anos sem fazer nada, finalmente conseguiu um emprego real e gratificante. Não, o verdadeiro problema estava em outro lugar.

— Ei, Al! Você não pode me ajudar um pouco?! Para começar, foi você quem fez essa bagunça toda! — gritou a elfa enquanto marchava em fúria. Esses gritos eram dirigidos à Princesa, elegantemente sentada à sombra de um lindo guarda-sol no jardim. Havia uma mesinha com chá e biscoitos ao seu lado, bem como alguns livros que estava lendo. Ela tinha começado com um sobre poções mágicas, mas agora parecia estar estudando o básico dos caracteres antigos.

— “Al”? Sou sua senhora, sabia disso? Me chame pelo título adequado: Princesa.

— Qual é, seu nome é muito longo. Dizer “Alferez” todas as vezes é complicado. Isso também faz parecermos companheiras, não acha?

— Eu não sou sua “companheira”. E o trabalho doméstico é o dever de uma criada. Que sentido faria para mim, a mestra, ajudá-la com isso? Parece que você não entendeu direito o que significa ser uma serva. Preciso te lembrar quem está no topo dessa relação?

Ela ergueu o queixo e deu a Rem um olhar penetrante. Embora a garota estivesse sentada e, como tal, no sentido literal, abaixo dela, por algum motivo ainda parecia que estava olhando baixo para a elfa. Rem, é claro, não aceitaria nada disso.

— Pare de reclamar e venha me ajudar! — gritou e agarrou a Princesa pelo colarinho; ou ao menos era o plano. Veja, o vestido de Alferez era sem alças e decotado, o que significa que a mão de Rem acabou mais perto de seus seios do que do seu pescoço. Mesmo assim, ela puxou a garota da cadeira e arrastou-a pelo quarto.

— P-pare! Você está esticando o meu vestido! Tire suas mãos de mim, sua louca!

— Limpe sua bagunça antes de agir como a toda poderosa! … A propósito, há algo que estou pensando há um tempo…

Rem também deu uma longa e severa olhada no peito da garota.

— Seus seios são muito grandes, não são?

— O-o que você está…?!

A grosseria da pergunta fez com que até a princesa tirana corasse. Ela afastou a mão de Rem e rapidamente cobriu o peito com as dela. Claro, elas não estavam nem perto de ser o suficiente para esconder os dois sacos enormes.

— Todos os humanos que conheci tinham eles muito grandes, mas você realmente tem o maiores, Al. Bem, acho que você é da realeza. Quanto melhor a comida que você come, maior eles ficam, hein?

— C-calada! Tenha um pouco de vergonha! — gritou com raiva, corando até as orelhas. Ela podia jogar quanta culpa quisesse na poção, mas o fato era que mostrou seus órgãos genitais a Rem de forma voluntária. Falar sobre seios com outra garota era tão constrangedor?

— Os meus são bem pequenos, mas na verdade eram os maiores de toda a minha aldeia, acredite ou não.

— Você está brincando!

Esta declaração claramente despertou o interesse de Alferez. Sem hesitar, ela empurrou as mãos sobre os seios de Rem para verificar o seu tamanho, deixando a elfa se perguntando se seu embaraço anterior tinha sido apenas uma farsa.

— Esses eram mesmo os maiores? Como? Eles cabem nas minhas mãos.

Ela continuou tateando o peito da garota com uma expressão de descrença no rosto. Seus olhos foram para frente e para trás, comparando-os aos dela.

— E-eu não acho que tamanho é tudo que importa…!

— Eh? Lamento discordar. O tamanho do busto de uma mulher é uma parte vital do seu glamour.

Alferez orgulhosamente empurrava os seios para cima com as mãos, como se quisesse mostrá-los. Rem tinha sido derrotada em seu próprio jogo; tudo o que podia fazer era cerrar os dentes. A Princesa poderia facilmente ter só obtido sua vitória e ido embora, mas não parecia estar interessada em fazê-lo.

— Tá bom. Com seios grandes vem um grande coração. Vou ajudá-la com os seus deveres.

Rem ficou feliz em aceitar esse acordo; o seu objetivo era fazer a Princesa limpar a sua própria bagunça.

Entretanto, não demorou muito para que ela começasse a se arrepender dessa decisão. Receber a ajuda de Alferez – que tinha feito pouco ou nenhum trabalho doméstico em toda a vida – acabou sendo mais problemático do que lucrativo. Só de ensinar o básico a ela acabou exigindo todo o resto do dia de Rem.

E os próximos três dias seguiram o mesmo ritmo. A elfa tinha terminado seus deveres do dia e tomado banho, e estava deitada em sua cama, totalmente exausta. O tédio que sentiu enquanto guardava a árvore tinha sido ruim, mas não era nada comparado ao quão exaustivo era limpar a mansão gigante.

— Meu… corpo está tão pesado…

Seu corpo havia cedido e não se moveria um centímetro sequer antes da manhã seguinte. Rem se virou de costas e fechou os olhos.

— Bem, a Al parece muito feliz… Então acho que está tudo bem…

Se a elfa nunca tivesse aparecido no lugar, a mansão provavelmente não teria nada além de poeira e ervas daninhas.

Por falar na Princesa, ela se transformou em uma gata durante a noite e foi para a cama. Não importava o quão cansada ou exausta Rem estava, e o quão duro tentasse fechar os olhos, os pensamentos sobre o triste destino da garota consistentemente conseguiam mantê-la acordada até de madrugada. Quanto tempo ela teria que passar trancada neste lugar? A elfa só podia esperar que não fosse pelo resto da sua vida.

Rem tinha fugido da sua aldeia, da sua vida predestinada. Todos sempre a chamaram de fraca e covarde, e tudo o que fez foi provar que estavam certos. Era exatamente por isso que via Alferez como uma pessoa tão forte; apesar de sua terrível maldição, não desistiu e ainda estava tentando cumprir seu papel de princesa. No entanto, sua mãe e seu pai tinham se rendido, dissera ela. Teria sido fácil para a Princesa escapar, assim como a elfa, e deixar seu país para trás. O fato de ela não ter feito isso revelava que ainda se sentia presa pelo seu título.

— Ela não quer ser livre?

Embora o atual estado das duas garotas fosse semelhante, o que as levou a ele era bem diferente. É claro que pensariam de maneira diferente e fariam escolhas diferentes. Mesmo assim, não teria sido estranho para uma garota como ela, que acabara de atingir a maturidade, ansiar por mais liberdade. Quem não gostaria de viver livre como um pássaro?

— Não adianta tentar entender o que se passa na cabeça de uma princesa…

Todas as noites Rem chegava à mesma conclusão. Ela tentou adormecer novamente, mas, como sempre, uma imagem de Alferez dançando com um esfregão nas mãos apareceu em sua mente. Essa visão feliz fez a elfa sofrer.

— Talvez fazer ela parar as pesquisas tenha sido um erro…

A garota achava o trabalho doméstico divertido, provavelmente porque não havia mais nada para ela fazer. Dedicar-se à pesquisa pode ter sido a única coisa que dava sentido à vida isolada de Alferez.

— Eu deveria ajudá-la a encontrar algo para fazer…

Naquela manhã a cidade estava muito barulhenta. Rem teve dificuldade para distinguir os ruídos; a cidade não só estava longe, como a floresta entre ela e a mansão absorvia a maior parte do som. Mesmo assim, a tagarelice habitual da cidade não chegava à mansão; algo especial devia ter acontecido. Enquanto pendurava as roupas, ela parou por um momento e ouviu com atenção.

— Al, você sabe que som é esse? — perguntou à garota segurando um cesto de roupa ao lado dela. Não houve resposta. Alferez simplesmente ficou parada, olhando na direção do som.

— Al! Tô falando com você!

Depois de gritar algumas vezes, ela finalmente conseguiu chamar a atenção da garota. Alferez voltou seu olhar para a elfa, surpresa.

— Qual é o problema? Isso não é típico de você. Esses sons te significam alguma coisa?

— Sim… Isso é…

Seu olhar flutuou mais uma vez quando ela disse isso. No entanto, desta vez respondeu.

— É um festival. Temos uma tradição de fazer orações por uma boa colheita. As pessoas se vestem e fazem uma grande festa até a manhã seguinte para afastar os maus espíritos para quando a colheita acontecer.

— Como expulsar os maus espíritos leva a uma boa colheita?

— Ouvi dizer que os ruídos tinham a intenção de afugentar pássaros e outros vermes. Com o tempo, a tradição se desenvolveu e agora temos este festival absurdo.

— Engraçado como vocês têm um festival antes da colheita. Na minha aldeia sempre fazíamos um depois.

— Hmm? Também fazemos um desses. Quando a colheita do ano é boa, eles são lindos.

Dois grandes festivais em tão pouco tempo? Rem estava visivelmente confusa, fazendo com que Alferez soltasse uma risadinha.

— Eu acho que é uma coisa nacional. Parece que temos mais festivais aqui do que em qualquer outro lugar. E quanto aos elfos?

— Ah, elfos? Bem, eu só posso falar pela minha própria aldeia, mas eles são muito raros. Pensando bem, tenho quase certeza de que fugi antes do festival vicenciano. Será que ele já acabou?

— Você quer voltar…? — disse Alferez, parecendo claramente preocupada. Ela achava que Rem sentia falta da sua aldeia?

— Absolutamente não. Aquele povo nunca deixaria uma meio-elfa participar das coisas!

Por alguma razão, a Princesa pareceu um pouco aliviada com a explosão de Rem. Entretanto, ainda havia alguma tristeza em sua expressão.

Pouco depois, fogos de artifício explodiram no céu, e a garota voltou seu olhar para ele.

É você que quer voltar para casa, não é?

A Princesa devia se divertir muito participando do festival quando ainda morava no castelo; seus olhos claramente ansiavam por isso. Rem sabia muito bem o que deveria fazer a seguir.

— Ei, Al. Quer visitar o festival?

— Hein…? M-mas…

Quando Rem perguntou isso, os olhos de Alferez brilharam por um instante, esse fato não escapou do olhar da elfa. Seu palpite parecia estar correto. A casca dura da garota foi aberta; agora era hora de atacar.

— Vamos, vamos! Você pode até não querer, mas eu quero!

Ainda se sentindo culpado por roubar o único propósito de vida da garota, Rem estava procurando ativamente por algo que lhe desse vontade de continuar. Embora andar por um festival não fosse preencher o vazio em seu coração, era garantido que, pelo menos, a deixaria com um humor melhor.

— O que há de errado em sair para se divertir de vez em quando? Você não está proibida de sair deste lugar, certo?

— Bem, é verdade, mas…

Entretanto, Alferez ainda hesitou. Por que isso? Rem estava a ponto de descobrir.

— Todos os cidadãos conhecem o meu rosto… E eu me divorciei há poucos dias… Não quero fazer confusão desnecessária… Todo mundo vai ficar tirando sarro de mim…

Era óbvio o quanto ela sentia falta do festival, e também porque não queria ir.

— Além disso, você é uma elfa. Da última vez que você foi lá, foi perseguida pelos cidadãos, lembra?

— Ah, certo. Aham, acho que isso aí aconteceu mesmo…

Essas memórias ainda estavam claras na mente de Rem, é claro. No entanto, estava tão preocupada em fazer a garota ir com ela que esqueceu de pensar em si mesma. Embora Rem odiasse admitir, o argumento da Princesa era válido.

— Ei, já sei! Você disse que as pessoas usam fantasias durante o festival, certo?

— Fantasias…? Ah! Isso pode dar certo!

O plano de Rem funcionou; os olhos da garota estavam mais uma vez cheios de espírito.

Depois de vagar desajeitadamente pela mansão por um tempo, até mesmo revirar alguns dos quartos que haviam acabado de arrumar, as duas por fim reuniram o material necessário para elaborar as suas fantasias. Rem agarrou um vestido vermelho surrado do guarda-roupa. Ela também viu uma máscara de penas lá, e aproveitou para pegá-la. Para finalizar, havia decorado a cabeça com algumas flores do jardim, deixando-a com uma aura de alegria. Alferez, por outro lado, vestia um uniforme de criada, com um quarto de um lençol branco enrolado na cabeça.

— Al…? O que é isso…?

— Uma criada fantasma. Pensei que ser só uma fantasma seria chato demais.

Essa com certeza era uma interpretação possível; “fantasma” não era a última palavra que Rem teria usado para descrever o corte grosseiro e a borda puída do lençol pendurado em cima do peito da garota.

— Eu estava prestes a perguntar, o que você deveria ser?

Mesmo a elfa não sabia como responder a essa pergunta; ela só tinha pego as coisas aleatórias que foi encontrando. Rem deu um sorriso sarcástico para a Princesa, agora lutando para não rir. Seus trajes eram, bem, terríveis. No entanto, considerando o tempo limitado que tinham para fazê-los, eram bons o suficiente; o de Rem escondia as orelhas e o de Alferez o rosto, e no final isso era tudo que importava.

— Então vamos lá! — disseram as garotas em uníssono e deixaram a mansão. Mas já passava do meio-dia; se preparar exigiu um tempo surpreendente. Além do mais, elas não tinham acesso a uma carruagem e foram obrigadas a caminhar, então, quando saíram da floresta, o sol já havia começado a se pôr. Quando isso acontecesse, Alferez se transformaria em uma gata.

Bem, tanto faz. Al parecia estar se divertindo muito.

A Princesa, por si mesma, também estava claramente ciente de seu rígido limite de tempo. Contanto que pudesse aproveitar  .

— Rem, olha. Está vendo aquelas lâmpadas penduradas nos prédios? Você precisa ver como elas iluminam a cidade depois que o sol se põe, é mágico — explicou Alferez com entusiasmo. Veja, esta era na verdade a primeira vez que a garota comparecia ao festival; antes disso, ela só tinha permissão para observá-lo da segurança do castelo. Seus olhos brilharam inocentemente através dos dois orifícios em sua máscara. Poderia estar até mesmo mais animada do que Rem.

— Ei, Rem. Vamos visitar aquele estande. Ah! Aquela apresentação ali também parece muito divertida!

— Vamos lá, Al, se decida… Hã? O-o que é aquilo?!

— Uau! — A multidão estava arquejando. Um desfile com enormes estátuas e animais começou a passar pela rua.

— Al! Do que essas coisas são feitas? Madeira? Isso é incrível!

Embora Rem tivesse passado sua vida inteira cercada por árvores enormes, as estátuas eram simplesmente diferentes de tudo que já tinha visto antes. Era impossível que ela escondesse a sua excitação. Enquanto era constantemente empurrada pelos outros espectadores, ficou na ponta dos pés para ver melhor.

— Al, está vendo? Ei, Al! Pode ao menos me responder?

A elfa virou a cabeça e no instante seguinte seu sorriso sumiu; Alferez – que deveria estar parada ao lado dela – não estava em lugar nenhum.

— Al? Princesa? Princesa?!

Não houve resposta. Foi então que Rem percebeu que havia a perdido. Ela ficou pálida e sua cabeça começou a girar devido ao pânico, tentando descobrir para onde a garota tinha ido.

— O que eu faço…? Ela deixou bem claro que entraria em apuros se alguém descobrisse que era uma princesa, e aqui estou eu chamando em voz alta…

Deveria ficar onde estava ou ir procurá-la? Rem ficou parada no meio da multidão, incapaz de decidir. Entretanto, havia algo de que tinha se esquecido. Algo muito mais importante

 


Tradução: Pimpolho

Revisão: Texugo

 

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