A chuva caindo sobre a estalagem em Kibune gradualmente tornou-se uma garoa.
— Deveríamos ir de uma vez. — murmurou Nakai, quase como se estivesse falando consigo mesmo. Os garçons pareciam desconfiados enquanto arrumavam os restos de cozido. Não era exatamente injustificável. Nós lhes dissemos que estávamos ali para ver o Festival do Fogo de Kurama, mas aqui estamos, não parecendo preparados para sair.
Takeda e Tanabe desdobraram um formulário de corrida de cavalos e fizeram suas previsões para o Kikuka-shō[1] de amanhã, enquanto Fujimura deitava-se no quarto ao lado para passar o efeito da bebida. Suspeitei que, a este ritmo, o festival poderia terminar antes mesmo de chegarmos lá, mas eu não conseguia levantar. Talvez todo mundo se sentisse da mesma forma.
Nakai pegou uma garrafa de cerveja e serviu no meu copo.
— Você gostava da Hasegawa, né?
— Todos gostavam, não é mesmo?
— Sim…, suponho que seja verdade. Claro que é verdade. — admitiu Nakai, com um sorriso.
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Quando todos nós levantamos, a chuva já havia parado.
A equipe nos guiou até Kibuneguchi, onde embarcamos em um vagão de trem de Eizan. Havia alguns passageiros, mas o piso estava sujo de lama e o ar dentro dos vagões, estagnado. Enquanto estávamos reunidos ao redor de uma panela na estalagem em Kibune, esse pequeno vagão de trem estava ocupado levando vastas hordas de turistas.
Quando chegamos à Estação de Kurama, o festival tinha acabado.
— Parece que perdemos a festa. — disse Takeda.
Havia uma longa fila de turistas na Estação de Kurama para o trem de volta, e a estação da montanha, que normalmente ficava vazia, estava preenchida por um ar frenético. Conforme andávamos, passamos por policiais que orientavam os turistas pela cidade. Cinzas umedecidas vindas de tochas estavam espalhadas pelo asfalto, emitindo sons abafados à medida que pisávamos nelas. Ficamos na ponta inferior dos degraus de pedra de Kurama-dera[2] por um tempo, observando o agito do festival se esvaindo. A atmosfera era como um fardo sendo retirado dos ombros. Ninguém falou nada, mas era o que parecia enquanto ouvíamos a chuva novamente na estalagem: estávamos esperando o festival acabar.
Enfim, Nakai propôs:
— Por que não fazemos um passeio de volta a pé até Kibuneguchi?
— Será que o tempo vai aguentar? — Fujimura olhou para o céu. Nenhuma estrela era visível.
— Você viu como os trens estavam lotados. — comentou Takeda.
Tanabe assentiu com a cabeça, concordando.
— Pessoalmente, prefiro não me espremer como uma sardinha em uma lata apertada.
— Então vamos andando!
Partimos, seguindo logo atrás de Nakai.
Lojas de lembrancinhas e casas estavam alinhadas ao longo da rua pela cidade templo. Crianças brincavam ao redor de pequenas fogueiras acesas em braseiros nas entradas, e, durante um tempo, o festival permanecera no ar. Entretanto, em cinco minutos andando pela rua, as casas ficaram mais esparsas, e o agito de Kurama-dera desapareceu. O frio da noite vinha do bosque que ficava à esquerda do caminho. Devido às restrições de tráfego do festival, não havia carros, e a rua asfaltada estava deserta.
— Uma rua bem silenciosa, hein? — murmurou Fujimura.
E se a rua da noite leva para outro mundo; e se Hasegawa vive lá? Eu me perguntei.
Nos dez anos desde o desaparecimento dela no Festival do Fogo de Kurama, seu paradeiro permanecia completamente desconhecido. Era como se o buraco negro que a engoliu permanecia aberto em algum lugar aqui de Kurama.
Antes que eu percebesse, Nakai andava ao meu lado.
— Por que não vamos todos ver as gravuras de Kishida Michio amanhã?
— Me parece uma boa.
— Que coincidência maluca, hein?
Pensei sobre as histórias que todo mundo contou na estalagem em Kibune.
Tudo começou com a história de Nakai sobre a imagem desenhada por Kishida Michio, a qual viu no hotel comercial em Onomichi. Todo mundo comentou sobre lembranças de suas próprias viagens: Onomichi, Okuhida, Tsugaru, Tenryūkyō. Todas foram histórias de viagem comuns e simples. Simples, se não fosse pelo fato curioso de que todas elas giravam em torno das gravuras de Trem da Noite de Kishida Michio.
No caso de Nakai, ele foi atrás de sua esposa, que saiu de casa, mas histórias como essa não eram tão incomuns nos dias de hoje. Takeda, Fujimura, Tanabe, todos eles voltaram sem incidentes de suas viagens.
Mas há uma chance de que não tenham, sussurrou uma voz dentro de mim.
Um buraco pode se abrir inesperadamente no meio da jornada e o engolir.
Essa possibilidade sempre existiu.
Assim como Hasegawa foi engolida naquela noite—
Um vagão de Eizan vinha do outro lado do bosque de cedro, flanqueando ambos os lados do córrego da montanha. Todos nós ficamos ao lado da rua, transfixados pela vista do trem percorrendo as profundezas da noite. Os estalos agudos das rodas misturavam-se com o som do córrego fluindo, então desapareciam na distância.
Parecia como uma cena retirada de um sonho, e ela me lembrou a gravura de Kishida Michio que vi antes, na vitrine da galeria.
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Mais cedo, à tarde, ouvi uma história estranha de Yanagi, o proprietário da galeria.
— Kishida tinha uma obra misteriosa, a qual não fui publicada.
Kishida Michio começou a série Trem da Noite dez anos atrás, no mesmo ano em que Hasegawa desapareceu. E, nos dois anos e meio que se seguiram até a sua morte, produziu quarenta e oito obras.
Quando ainda estava vivo, contou a Yanagi sobre a existência de um trabalho não publicado. Era a contrapartida de Trem da Noite, uma série de gravuras em placa de cobre chamada Alvorecer.
Enquanto Trem da Noite representava uma noite sem fim, Alvorecer mostrava uma manhã solitária, foi o que Kishida supostamente falou.
— Os frequentadores do salão estavam ansiosos para vê-lo.
— Salão?
— Na época, a casa de Kishida era ponto de encontro para várias pessoas que se reuniam lá, tarde da noite. Aquela reunião era chamada “Salão Kishida”. Claro, eu fazia parte dessas várias pessoas.
— Mas, então, alguém viu Alvorecer?
— Ninguém. — Yanagi sorriu.
Depois que o trem de Eizan passou do outro lado das árvores de cedro, a área ficou silenciosa uma vez mais, e nós começamos a andar novamente.
Esse Alvorecer me intrigava. Trem da Noite já era uma série longa, com quarenta e oito peças, então sua oposta, Alvorecer, devia ser grandinha. Entretanto, Yanagi me disse que mesmo depois de vasculharem todas as suas posses, não foram capazes de encontrar um traço sequer dela. Kishida estava mentindo e os provocando por puro divertimento? Ou tinha escondido em algum estúdio secreto?
Aproximei-me de Tanabe.
— Sobre Kishida…
Quando perguntei sobre Alvorecer, ele riu, esfregando o queixo peludo.
— Tenho quase certeza de que é uma brincadeira dele.
— Só estava fazendo todo mundo de bobo?
— Um cara deveras estranho ele era.
Pouco a pouco, Tanabe descreveu as noites que passou no Salão Kishida. Havia uma suavidade em sua voz. Uma visão preencheu meus olhos, pessoas se reunindo em uma casa e conversando alegremente até quase amanhecer. E o centro de tudo isso era Kishida Michio, aquele estranho gravurista de placa de cobre, em sua jornada sem fim através da noite.
— Havia um quarto escuro na casa de Kishida, e lá era onde ele aguardava pelas ideias para Trem da Noite chegarem. Esquisito, não acha?
— Soa quase como o desenvolvimento de um filme.
— Fui lá com ele uma vez. Era uma sensação bastante estranha. Aquele quartinho gradualmente começou a parecer cada vez maior. Então, no fim, eu não sabia mais onde estava.
Atrás de nós era possível ouvir a risada alegre de Nakai e do resto. Tanabe deu uma breve olhada para trás, fazendo uma carranca, na intenção de parecer engraçado.
— Com licença?
Entretanto, quando olhou para frente de novo, sua expressão ficou séria.
— Sinto como se ainda estivesse no quarto escuro — disse. — De vez em quando.
— Acho que sei do que está falando.
Chegamos a um lugar em que a rua se dividia em duas. Os sons de água caindo vindos do córrego da montanha escoavam entre nós. O caminho da esquerda nos levava em direção à cidade de Quioto, e, seguindo o caminho da direita, estava a Estação Kibuneguchi. Sem hesitar, Tanabe e eu pegamos a direita e caminhamos em direção à Estação Kibuneguchi. Depois de uma pequena distância, ele se virou e franziu a testa.
— Hã? Por que não estão vindo com a gente?
Olhei para a lâmpada vermelha do corpo de bombeiros.
Dez anos atrás—
Nos perdemos de vista entre a multidão do Festival do Fogo de Kurama. Lembrei-me das tochas espalhando brasas, os homens usando tangas em seu zelo fervente. Fumaça espessa percorria o ar. A escuridão da noite parecia ainda mais profunda quando passei pela luz da tocha. Como perdi Hasegawa de vista? Estive a observando o tempo todo, certo que estávamos de mãos dadas. Sinto como se ainda estivesse no quarto escuro. A sensação que Tanabe expressou, eu também a conhecia.
De repente recuperei os sentidos.
— Por que não ligamos para a estalagem e pedimos para virem nos buscar? — sugeri.
Mas Tanabe não respondeu.
Me virei e vi a rua asfaltada vazia debaixo das luzes que vinham dos postes. A única coisa que conseguia ouvir era o som alto do córrego.
Continuei esperando, mas meus amigos não apareceram.
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Ao passar por baixo dos trilhos elevados de Eizan, aventurei-me até a Estação Kibuneguchi.
No final de uma pequena escadaria ficava um caminho que levava até a cabine de bilhete, iluminada por uma luz branca fluorescente. No banco diante dos quiosques fechados estavam vários homens e mulheres jovens sentados, sussurrando em tons apressados. Eles se pareciam conosco de dez anos trás. Olharam na minha direção, desconfiados, então embarcaram em um carro de cortesia de uma das estalagens que veio para pegá-los. Quando partiram, a estação ficou tão silenciosa quanto uma ruína abandonada.
A escuridão das montanhas que pressionava ao redor de mim me deixava cada vez mais desconfortável. Continuei esperando, e ninguém, nem Nakai nem nenhum dos outros, apareceu.
— O que está rolando? — Me sentei no banco e liguei para Nakai. O toque de chamada parecia soar como se viesse de outro mundo.
— Alô?
Quase caí quando ouvi Nakai atender, sua voz ressoando alegremente. Ele parecia estar bêbado. Pude ouvir uma música baixa e vozes sussurrantes vindo do lado dele. Me lembrou um bar de hotel mais reservado. Os sons eram muito estranhos em um lugar como esse, no meio das montanhas escuras. Não é possível, pensei comigo mesmo, confuso. Ele estava caminhando comigo até agora há pouco.
— Nakai, onde você está agora?
— Quem está falando?
— O que quer dizer com isso? Sou eu, Ōhashi.
— … Ōhashi?
— Eu fiquei esperando por vocês na frente da estação.
No momento em que disse isso, Nakai ficou em silêncio do outro lado da linha. O seu silêncio foi engolido pelo som de fundo suave do bar. Quase parecia como se tivesse largado o celular e ido para outro lugar, mas, pressionando o celular contra o ouvido, pude ouvir sua respiração trêmula.
Depois de um tempo, ouvi ele murmurar, confuso:
— Você disse Ōhashi?
— Sim, Ōhashi. Quem mais poderia ser?
— Isso… não é nada engraçado. — disse ele, antes de desligar abruptamente.
O barulho do bar desapareceu, e eu fui deixado sozinho na estação silenciosa.
Encarei o celular, perplexo.
Recompondo-me, digitei o número de Tanabe, o qual sequer chamou. Depois disso, tentei Fujimura. Ficou chamando por um longo tempo. Justo quando eu estava prestes a desistir, ouvi a resposta de uma voz suave.
— Alô?
— Fujimura?
— Quem é?
— Onde você está agora?
— Eu gostaria de saber quem é primeiro.
— Veja, vocês me pegaram, tá? É Ōhashi.
Assim que ouviu o meu nome, Fujimura ofegou.
— … Ōhashi? Você é realmente Ōhashi?
— Do que está falando? Viemos a Kurama juntos, não é?
Fujimura não disse nada. A ligação ficou tão silenciosa quanto a estação. O silêncio trouxe à mente um corredor vazio em um apartamento espaçoso. O rosto de Fujimura apareceu na minha mente, o mesmo rosto que há pouco estava comigo: alegre e, de certa forma, cansado.
Um momento depois, a ouvi mais uma vez, com sua respiração irregular.
— Do que você está falando? Isso foi quando ainda estávamos na escola. Ōhashi, onde esteve esse tempo todo?
Eu não tinha ideia do que ela estava falando também.
— Ōhashi? Pode me ouvir?
— Sim.
— Onde está agora?
— Kurama. Estou em Kurama.
Quando ela falou em seguida, senti um certo temor em sua voz.
— … Você é mesmo Ōhashi?
Desencorajado repentinamente, desliguei. Ainda apertando o celular, encarava o chão cinza debaixo das luzes fluorescentes. Mesmo que ligasse para Takeda, seria a mesma coisa, pensei. Por precaução, liguei para a estalagem. Mas fui informado que não havia reservas para o nome Ōhashi. Murmurei algo em resposta e desliguei. Era como se até mesmo a viagem a Kurama tivesse desaparecido.
Levantei-me do banco e saí da estação.
Ao meu redor ouvia apenas o fluxo misterioso do córrego. Voltei para debaixo dos trilhos, mas não havia traço algum de nenhum deles. Sem demora, ouvi o som de rodas nos trilhos vindo da direção da cidade, e um vagão de Eizan vazio apareceu à vista. O trem parou brevemente na Estação Kibuneguchi, então partiu para Kurama. Suas janelas brilhantes passavam por trás das árvores sombrias.
Observei o trem partir, sentindo-me profundamente perdido.
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Da Estação Kibuneguchi, peguei o trem de volta para Demanchiyanagi.
Estava quente e abafado dentro do vagão, o qual estava repleto de turistas no caminho de volta, e minha cabeça parecia estufada, como se estivesse cheia de algodão. Ao olhar pelas janelas escuras, vi um rosto pálido vigiando por trás das árvores de cedro que o trem passava. Levou um tempo até que eu percebesse que era o meu próprio rosto refletido na janela.
Pensei que, ao ir para outro lugar, onde estivesse iluminado e cheio de pessoas, poderia ser capaz de recuperar o semblante da realidade. Talvez escolheria um quarto em algum hotel da cidade, ou beberia a noite toda no primeiro bar que visse, e amanhã contaria a todos sobre o sonho engraçado que tive. Essa esperança fraca era tudo o que eu tinha para me apoiar.
Ao chegar em Demachiyanagi, fui em direção ao Rio Kamo.
Na confluência dos Rios Takase e Kamo ficava um banco de areia conhecido como Delta Kamo. Me sentei na parte mais alta e olhei para a Ponte Kamo e as lâmpadas que a iluminavam ao longo do corrimão. A noite se intensificava e havia menos pedestres, mas era uma mudança bem-vinda das montanhas de Kurama.
Um jovem casal saltitava sobre as pedras do outro lado do rio.
Eu fiz isso com Hasegawa uma vez. Naquela vez, Nakai nos levou para Kiyamachi[3].
Na época, Nakai nos levava com frequência para comer fora depois da aula de inglês. Normalmente ficávamos pelos bairros de Demachiyanagi ou Hyakumanben, mas, naquela noite, demos uma saída rara até Kiyamachi, onde passamos um tempo até as primeiras horas da manhã em um bar em que um dos conhecidos de Nakai trabalhava. No nosso caminho de volta para casa depois do bar, Hasegawa e eu caminhamos ao longo do Rio Kamo. O resto dos nossos companheiros provavelmente ficou para trás para continuar bebendo.
A partir da Ponte Shijō, caminhamos na direção norte ao longo do rio.
— Bora dar uma caminhada? — Provavelmente foi Hasegawa quem sugeriu.
À medida que caminhávamos e o agito de Shijō desaparecia ao longe, começou a parecer que estávamos descendo, ela e eu, para as profundezas da noite. Contamos piadas bobas um para o outro, fofocamos sobre nossos colegas da escola de inglês e falamos sobre livros que lemos e filmes que assistimos. Fiquei surpreso com o quão próxima Hasegawa parecia de mim naquela noite. Quando comecei a frequentar a escola, me sentia um tanto desconfortável perto dela, mesmo estando na mesma turma. Os dois eram tímidos, e, quando a aula terminava, tratávamos um ao outro como completos estranhos. Eu estava quase mais acostumado a ouvi-la falando em inglês do que em japonês. Entretanto, naquela noite, não senti nem um pouco essa distância.
A noite em que ela me contou sobre o cosmonauta[4].
O cosmonauta soviético, Yuri Gagarin[5], uma vez disse: “A Terra é azul”. Nos dias de hoje, imagens da Terra não são incomuns, e temos o azul dela como algo garantido. Porém, o cosmonauta disse que o que realmente o pegou de surpresa foi a escuridão do espaço. Era impossível entender o quão escuro e vazio era aquela escuridão a menos que visse com os próprios olhos. As palavras de Gagarin se referiam àquele vazio sem fim.
Sempre que Hasegawa pensava sobre aquela escuridão profunda, esta não poderia ser representada em uma fotografia, ela se sentia tanto assustada como encantada.
— O mundo todo está em uma noite perpétua. — disse.
Então chegamos até a Ponte Kamo. Observei-a atravessar as pedras sobre o rio. A noite está acabando, pensei comigo mesmo. Nada tinha acontecido em particular, mas, naquela noite, enfim percebi que me apaixonara por ela.
Foi em setembro, e o Festival do Fogo de Kurama foi no mês seguinte. Quem sugeriu que todos nós fôssemos juntos? Será que havia sido eu?
Quando voltei a mim, o casal tinha atravessado o rio e se fora. Não havia mais ninguém perto de mim. Encarei as luzes do centro da cidade rio abaixo.
Meu celular tocou; era uma ligação de Nakai.
Respondi, resoluto, e ouvi uma voz calma dizer:
— Ōhashi, né?
— Sim.
— … Onde você está agora?
— Estou perto de Demachiyanagi.
O que está fazendo aí? Estamos todos na Estação Kibuneguchi esperando por você! Por um segundo, tive a esperança de que essas palavras sairiam da sua boca, mas não foi bem assim.
— Bem, acha que pode vir para Karawamachi Sanjō então?
Nakai me falou o nome do hotel em que estava hospedado e pediu para que o encontrasse no bar do primeiro andar.
— É melhor vir. Vou ficar esperando.
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Peguei a Linha Keihan de Demachiyanagi até Sanjō.
— É melhor vir. Vou ficar esperando.
Tinha algo na voz de Nakai que impedia uma recusa.
Ele passava essa impressão para as pessoas desde os seus dias de aluno. Essa contundência o fazia parecer confiável, mas, agora que paro para pensar nisso, era apenas um aluno de graduação na época. Havia algo forçado nisso, como se estivesse tentando demais para agir como um mentor confiável. Seu comportamento após o desaparecimento de Hasegawa serviu apenas para confirmar essa suspeita. Era como se algo tivesse quebrado dentro dele, e, após isso, aquele comportamento confiante nunca mais voltou.
O hotel em que ele estava hospedado ficava seguindo a avenida a partir de Kawaramachi Sanjō. Ao entrar na recepção, fiquei cego pela luz brilhante do lustre. Eu sabia que tinha andado de trem nas linhas Eizan e Keihan para chegar aqui, mas isso não me impediu de sentir como se tivesse sido abduzido nas montanhas por um tengu. Parecia que uma parte de mim foi deixada naquelas montanhas. No fundo da recepção, em um bar escuro e apertado, vi Nakai bebendo sozinho. Ao ver suas costas largas e arredondadas, dei um suspiro de alívio. Parecia que estava tudo bem agora.
— Nakai! — chamei. — Obrigado por esperar.
Quando ele me viu, pareceu perplexo.
— É você mesmo, Ōhashi?
— Quem mais poderia ser?
— Eu não acreditei quando te ouvi no telefone. É como se tivesse me deparado com um fantasma.
— Você não estava comigo em Kurama?
— Isso… foi há dez anos.
Fiquei calado.
Tanto Nakai quanto Fujimura falaram a mesma coisa.
— Bem, por que não se senta. Pode ser?
Fiz o meu pedido ao bartender. Nakai tinha chegado na cidade dois dias atrás com a sua esposa, a qual foi dormir mais cedo no seu quarto.
— Então está dizendo que não foi a Kurama nenhuma vez?
— Desde o incidente, nenhuma. — respondeu, olhando com cuidado para mim. — Onde esteve? O que esteve fazendo nestes últimos dez anos?
— Dez anos?
— Sim, já se passaram dez anos!
— Se importa… de me explicar o que está acontecendo?
— Espera um pouco aí. Sou eu quem quer explicações.
— Ouça, não tenho ideia do que está rolando.
Nakai suspirou e começou a explicar o que aconteceu dez anos atrás.
Em uma noite, Nakai saiu com seus amigos da escola de inglês para ver o Festival do Fogo de Kurama. Eles pegaram o Trem de Eizan até Kurama e foram engolidos por multidões gigantes na cidade templo, vendo homens com tochas passando.
Em certo momento, durante o procedimento, Nakai me perdeu de vista. Isso não o preocupou no começo, pois assumiu que eu tinha saído com Hasegawa para descansar em algum lugar. Entretanto, depois que o festival acabou e o enxame humano começou a desaparecer, viu Hasegawa, de testa franzida e fazendo uma busca pela região. No fim, Fujimura e os outros também começaram a murmurar: “Ōhashi não tá aqui!”
Todo mundo foi com Nakai até a estação, esperando pacientemente até que eu aparecesse. Conforme as linhas do Trem de Eizan diminuíam, o barulho de Kurama ficou silencioso.
— No fim, você nunca apareceu.
Sem outra escolha, foram até a polícia.
Suas esperanças de que talvez tivessem apenas se desencontrado no caminho desapareceram no dia seguinte. Notificados sobre o que aconteceu perto da universidade, minha família veio a Quioto. O desaparecimento foi anunciado em um pequeno canto do jornal. Mas nada apareceu. Não descobriram motivos para o meu desaparecimento, nenhuma pista. E, desta forma, Ōhashi sumiu.
— Você esteve desaparecido durante dez anos.
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Coloquei meus cotovelos sobre o balcão e enfiei o rosto entre as mãos.
— Mas isso é completamente diferente do que sei.
— O que tem para contar?
— Deveria ter sido Hasegawa quem desaparecera.
Nakai olhou para mim, confuso.
— Ela voltou com todos nós. Nunca deixou de se preocupar com você.
— E como ela está agora?
— Faz anos que não nos falamos. — comentou Nakai. — Tenho certeza de que ficará emocionada ao saber que você está de volta.
— … Estou de volta?
— Claro que está! Você voltou. — Ele parecia estar tentando acalmar uma criança. — Nestes dez anos, senti como se uma parte de mim estivesse faltando. Por que diabos você sumiu? Nunca fui capaz de entender. Me diga, por favor, o que aconteceu?
Mas eu não tinha resposta para lhe dar.
Tudo o que aconteceu nos últimos dez anos foi um sonho? Tudo o que aconteceu após o desaparecimento de Hasegawa — os últimos dias que eu passei em Quioto, os anos que trabalhei em Tóquio, eu chamando todo mundo para visitar o Festival do Fogo de Kurama pela primeira vez em dez anos — foi uma ilusão.
Era impossível. Agora há pouco, eu e ele estávamos conversando naquela estalagem em Kibune. Ainda podia lembrar do rosto dele com bastante clareza, falando sobre sua viagem até Onomichi.
— Sua esposa já saiu de casa? — perguntei.
Ele parecia surpreso ao ouvir isso.
— Qual é, de onde saiu essa?
— Você já foi atrás dela em Onomichi?
Havia medo em seus olhos enquanto me observava.
— Como… sabe disso?
— Hoje à noite, nós todos nos reunimos em uma estalagem em Kibune. — eu disse. — Estávamos aqui para ver o Festival do Fogo de Kurama depois de dez anos. Você nos contou sobre o que aconteceu em Onomichi.
— Não pode! Eu estava aqui, no hotel. — Ele bateu no balcão.
— Então como eu sei sobre Onomichi?
Repeti para ele em detalhes o que me disse na estalagem. Enquanto ouvia, seu rosto ficou rígido.
— Como sabe disso tudo? — Foi sua vez de colocar os cotovelos sobre o balcão. Ele colocou a cabeça entre as mãos e encarou a fileira de garravas do outro lado. Eu tinha visto essa expressão diversas vezes, quando estava na escola, e imaginava que todos os tipos de teorias estivessem girando na sua mente.
— Algo muito estranho está rolando aqui.
— Pois é, com certeza.
— Por que me chamou, para começo de conversa?
— Quando estávamos voltando de Kurama, todo mundo desapareceu no caminho. Não entendi também.
De repente, lembrei-me do estalar das rodas do trem através das montanhas e fechei a boca. O trem de Eizan tinha passado do outro lado das árvores de cedro, e eu fiquei lá, observando-o naquela estrada escura da montanha. Em minha mente, a cena parecia uma gravura em placa de cobre. A pintura na janela da Galeria Yanagi foi intitulada Trem da Noite – Kurama.
— Ei, Nakai, você já ouviu falar de um artista chamado Kishida Michio?
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Contei a Nakai sobre Kishida Michio.
Sobre o seu estúdio em Quioto. Sobre a série de gravuras que criou chamada Trem da Noite. Sobre a forma que vivia, seus dias e noites reservadas. Sobre os visitantes noturnos ao seu estúdio, o Salão Kishida.
— Mas não consigo entender. Esse tal de Kishida já morreu. E você nunca o viu. Como ele poderia estar envolvido?
— Independentemente, vou mais uma vez para aquela galeria.
— Você sabe que horas são?
— Alguém ainda pode estar lám né? Pelo menos serei capaz de dar mais uma olhada na imagem na vitrine.
Nakai pensou por um momento, então disse:
— Tudo bem, eu vou com você.
— Tem certeza que quer deixar sua esposa aqui?
— Ah, ela está dormindo mesmo. Seria pior se eu deixasse você ir sozinho. Não posso deixar que desapareça de novo.
Saímos do hotel e passamos pelo famoso fliperama de Sanjō. Lembrei das vezes em que andei pelas ruas noturnas com Nakai em meus dias de aluno assim. Enquanto andávamos por entre os prédios escuros, comecei a sentir que a rua estava nos levando direto para aquela noite de outubro de dez anos atrás.
Quando eu disse isso, Nakai riu, soando satisfeito.
— Né? Eu estava pensando a mesma coisa. Que estranho.
— É tudo muito misterioso.
— Quase como se tivéssemos voltado dez anos no passado.
Chegamos a um cruzamento de um museu cultural de tijolos e viramos na direção sul, percorrendo a Rua Takakura. Um silêncio tomava conta entre as pequenas lojas e apartamentos, e postes de iluminação pública aqui e ali piscavam ao longo do caminho. Lá eu vi a Galeria Yanagi, da mesma forma que me lembrava. Uma placa de fechado estava pendurada na porta, mas, atrás dela, vi uma luz brilhante. O proprietário devia estar lá dentro.
Quando olhei pela janela, fiquei chocado.
A imagem à mostra certamente era um dos trabalhos de Kishida Michio, mas estava longe de ser a mesma que vi de dia. A paleta de cores preta e branca foi invertida, e o tom era brilhante. Um trem de Eizan percorria do outro lado de um bosque sob a luz do sol da manhã. Perto do lado das árvores estava uma mulher, olhando para o trem que passava, com a mão direita erguida. A placa ao lado dizia: Alvorecer – Kurama.
Nakai olhou pela janela.
— Não se parece com a imagem que você falou.
— É porque não é a mesma.
Abri a porta de vidro e entrei na galeria.
O interior comprido estava banhado por uma luz suave, e o fraco aroma de incenso estava no ar. Cada uma das mezzotints que estavam penduradas nas paredes com espaçamentos brilhava. Eram como janelas retangulares que estavam abertas para um mundo banhado pela luz da manhã. Não parecia a galeria que visitei de dia.
Yanagi, o proprietário da galeria, emergiu detrás de uma divisória.
— Sinto muito, mas já estamos fechados agora…
— Me desculpe — eu disse. —, mas visitei a galeria hoje cedo. Você não se lembra de mim?
Yanagi me observou, perplexo. Me parecia estranho ele ter esquecido de mim depois da longa conversa que tivemos. Porém, o mais estranho era o fato de que todas as imagens à mostra na galeria foram invertidas.
Apontei para as imagens penduradas na parede branca e perguntei:
— Você trocou as imagens esta tarde?
— Não, nada do tipo aconteceu.
— Que engraçado. Quando vim aqui mais cedo, todas elas eram do Trem da Noite. Você me falou bastante sobre Kishida Michio.
— Trem da Noite nunca foi exibido aqui.
— Não pode ser verdade. Eu as vi bem aqui.
— Temo que não. — respondeu Yanagi, com um sorriso forçado.
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— Pedimos desculpas por ter vindo tão tarde. — disse Nakai, batendo no meu ombro. — Vamos, Ōhashi. Você ainda não está pensando direito. Descanse um pouco e deixe para pensar nisso amanhã.
Mas eu não estava pronto para desistir ainda. Resistindo às tentativas de Nakai para me arrastar para fora, olhei para as mezzotints penduradas na parede branca.
— Essa série é Alvorecer, correto? E há quarenta e oito obras ao todo?
— Sim, isso mesmo. A série foi criada por Kishida Michio.
As paisagens monocromáticas de preto e branco me lembravam o radiante brilho do sol da manhã. Uma mulher solitária estava presente em cada uma das gravuras. Nenhuma delas tinha olhos nem boca, e suas cabeças de manequim estavam inclinadas para o lado.
Onomichi. Ise. Nobeyama. Nara. Aizu. Okuhida. Matsumoto. Nagasaki. Tsugaru. Tenryūkyō. Conforme olhava para uma de cada vez, senti um fluxo estranho, um ritmo. Era como a manhã se espalhando para cada uma dessas cidades distantes do Japão e uma mulher presente nelas.
Lembrei-me da história que Yanagi contou durante o dia, o rumor sobre o trabalho póstumo de Kishida Michio. A série que revelou a Yanagi, mas que nunca mostrou para ninguém. A contrapartida de Trem da Noite, a série de gravuras de placa de cobre: Alvorecer.
Trem da Noite e Alvorecer.
Foi então que finalmente percebi.
Alvorecer e Trem da Noite eram dois lados da mesma moeda. No meu mundo, o que foi Trem da Noite era Alvorecer neste. Quando perdi de vista os meus amigos no caminho de volta do Festival do Fogo de Kurama, acabei no mundo de Alvorecer. Se Trem da Noite não existia neste mundo, era óbvio que não seria colocado à mostra.
Mas quem acreditaria em uma história dessas?
— Kishida Michio entenderia. — murmurei.
— Mas ele não está morto? — Nakai interveio.
— Este certamente não é o caso. — interrompeu Yanagi. — Acabei de conversar com ele.
Nakai e eu trocamos olhares.
Kishida Michio estava vivo.
— Você poderia entrar em contato com ele? — pedi.
Yanagi franziu a testa.
— Já está bem tarde…
Eu não podia culpá-lo por suspeitar de nós.
Implorei para que acreditasse em mim para que pelo menos nos conectasse pelo telefone e que cedesse. O ouvi falando pelo telefone do outro lado da repartição.
— Aqui é Yanagi. Sinto muito mesmo por ligar a essa hora.
Parecia que foi a esposa de Kishida quem atendeu. Ouvi partes da conversa. Yanagi continuou explicando a situação por um tempo. Quando enfim citou nossos nomes, pareceu surpreso pela resposta da esposa de Kishida.
— Algum problema? — perguntou, soando preocupado, e teve um breve momento de silêncio. No final, sua cabeça apareceu do outro lado da tela, com uma expressão perplexa no rosto.
— A esposa dele quer falar com vocês.
Peguei o telefone e coloquei no ouvido. A esposa de Kishida falou em um sussurro e, para minha surpresa, sua voz estava trêmula.
— … Ōhashi?
Já ouvi essa voz antes.
— Sou eu, Hasegawa. Se lembra de mim.
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O táxi percorria a noite, na direção norte na Rua Karasuma.
Olhando pela janela, Nakai falou:
— Algo muito estranho está rolando aqui.
Enquanto me acompanhava durante a noite, as ideias de Nakai pareciam estar em desordem. Isso era bastante compreensível. Para mim, era como se eu tivesse caído em uma toca de coelho. Os mundos de Alvorecer e Trem da Noite pareciam ter começado a se engrenar um no outro.
— Faz dez anos desde que ouvi a voz ela.
— Como foi?
— Bem estranho. Não parecia que foi dez anos.
Ainda olhando pela janela, Nakai disse:
— Você gostava da Hasegawa, né?
— Todos gostavam, não é mesmo?
— Sim…, suponho que seja verdade. Claro que é verdade. — admitiu Nakai, e quase pude sentir que estava sorrindo.
As luzes do centro da cidade sumiam na distância enquanto continuávamos, com a longa parede do Jardim Nacional de Quioto Gyoen na nossa direita. Na Universidade Dōshisha, o táxi dobrou à direita na Rua Imadegawa, aproximando-se então da barragem do Rio Kamo. Era por volta da uma da manhã, e havia poucos carros na rua. Ao passar pelas árvores sombrias ao longo da rua, vimos o rio se espalhando abaixo de nós, com suas margens solitárias e desertas. Do outro lado cintilavam as luzes das casas perto do rio.
— Deve ser por aqui. — murmurou o motorista, olhando para o GPS.
Descemos do táxi no final da Ponte Izumoji.
A residência-estúdio de Kishida Michio ficava no bairro residencial da barragem no oeste. Entre as outras casas escuras nas ruas adormecidas, aquela única residência ainda jorrava luzes pelas janelas. A visão das luzes me encheu de alívio, como um viajante cansado se deparando com uma estalagem depois de uma travessia por uma região selvagem.
A estrutura estava desgastada pelo tempo, mas o exterior e as árvores ao redor continuavam bem mantidas. Perto da porta da frente ficava uma borda com pequenos ladrilhos verdes. Depois que Nakai apertou a campainha, ouvimos passos do lado de dentro, e um homem magro abriu a porta.
— Pedimos desculpas por ligar tão tarde assim. Me chamo Nakai e ele é Ōhashi. Você seria Kishida?
— Eu mesmo. Estive esperando por vocês. — Sua voz continuava calma enquanto pedia para que entrássemos.
— Venha, eles chegaram. — gritou para o segundo andar.
A luz das escadas se acendera.
Logo depois, pés delicados tocavam a escada de madeira desgastada, e um rosto familiar de pele pálida apareceu. Lá estava ela, Hasegawa. Ela parou na metade do caminho nas escadas, olhando para baixo em choque.
Parecendo tímido, Nakai murmurou:
— E aí, Hasegawa. Já faz um tempo.
— Nakai! Eu não imaginei que viesse.
— Sinto muito por aparecer tão tarde. Também estou bastante chocado. Olha aqui quem eu trouxe junto.
— Quanto tempo, Hasegawa. — eu disse.
Ela ainda parecia não acreditar nos próprios olhos.
— … Ōhashi?
Não parecia que fazia dez anos desde a última vez que nos vimos. Ela não tinha mudado nem um pouco, e eu não sentia que tinha mudado também.
— Bem, subam. — Kishida nos chamou.
Do aposento próximo à lareira vinha um cheiro medicinal de vinagre. Kishida moveu-se rápido, acendendo as luzes e nos iluminando lá dentro.
— Aqui é onde mantenho o meu estúdio. — Parecia que ele tinha feito uma completa alteração no aposento.
À primeira vista, parecia uma pequena oficina. Ferramentas estavam espalhadas por todo lado em um espaço de dez tatames debaixo de uma luz fluorescente. Nas prateleiras ao longo da parede ficavam pilhas de papel, ferramentas e frascos de remédios, e a velha bancada de trabalho também estava bagunçada. No centro do aposento ficava uma máquina pesada com uma grande alça. Linhas se estendiam dela, e vários mezzotints recém impressos estavam pendurados como se fossem roupas estendidas para secar.
— Venham por aqui. — disse Kishida, nos convidando para a sala de estar.
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A sala de estar aconchegante estava preenchida por uma luz quente e aroma de café. Da cozinha, Kishida gargalhou.
— Quase parece uma festa, não é? Que maravilha ter visitantes noturnos.
— Amanhã é feriado. Fiquem o quanto quiser. — disse Hasegawa com uma voz entoada.
Sentei-me no sofá que ficava de frente para o jardim. Ao ver o casal preparar café na cozinha, senti algo estranho. Talvez fosse a atmosfera peculiar que Kishida e Hasegawa exalavam. Nakai também parecia estar se sentindo confortável. Aceitando sua xícara de café, ele disse:
— Não sei por quê, mas não parece que é o nosso primeiro encontro.
Kishida sentou-se no sofá e riu.
— Ouço isso com frequência. Talvez eu apenas sou acolhedor.
— É porque é distraído demais.
— Não, não só isso. Não parece como se já tivéssemos nos reunido aqui antes?
— Uma sensação acolhedora, então?
— Um Salão Kishida, se assim pode chamar.
Kishida sorriu ao me ouvir.
— Gostei. Acho que vou pendurar uma placa com isso.
Todo mundo parecia ter aceitado o fato de que voltei depois de dez anos. Enquanto bebericava o café quente com eles, me senti em casa ali, naquele mundo.
— O que tem feito da vida, Hasegawa?
Hasegawa viveu os últimos dez anos. Depois de se formar na faculdade, passou tempo trabalhando como professora substituta em uma escola de ensino médio local, então foi contratada como professora de japonês.
— E, cinco anos atrás, me casei com ele.
— E você ainda é professora?
— Claro. — concordou.
Aceitei esses seus dez anos sem hesitar. Eles tinham existido, assim como os meus também existiram.
— E quanto aos seus últimos dez anos?
Depois da pergunta dela, comecei a contar a minha própria história: sobre o desaparecimento de Hasegawa dez anos atrás em Kurama; minha vida em Quioto após isso; como eu consegui um trabalho e me mudei para Tóquio e todas as coisas estranhas que aconteceram em Kurama após a minha visita com todo mundo em dez anos. A única coisa que deixei de fora foi que Kishida morreu.
Vez ou outra, Hasegawa e Nakai interrompiam com perguntas, mas Kishida ouviu em silêncio até o fim.
— Uma história interessante. — disse ele, pensativo, assim que terminei. — E é por isso que acha que meus trabalhos escondem algum segredo. E também é por isso que veio até aqui.
— Sei que parece como se houvesse algum tipo de magia em suas imagens.
— Mas temo que eu não possa usar magia. Vou admitir que já pensei certa vez em Trem da Noite… — Ele parou e pensou por um momento, então continuou: — No lugar do qual você veio, minha esposa desapareceu, não é? Eu estava vivendo nessa casa sozinho, então?
— Sim, isso.
— Que solidão terrível. Nem consigo imaginar isso.
Não entendi como cruzei com os trabalhos chamados Trem da Noite neste mundo. Kishida não fez mais do que criar essas artes. Mas como Trem da Noite e Alvorecer surgiram? Quando perguntei, Kishida disse “só um segundo” e se levantou.
Ele voltou logo depois do seu estúdio, carregando um mezzotint.
— Essa é a primeira obra de Alvorecer: Onomichi.
Ela mostrava uma cidade ao lado de uma colina à luz da manhã. Do segundo andar de uma casa na colina, uma mulher inclinava-se na janela e acenava com a mão. Ela parecia ser bastante jovem para mim.
— Foi em Onomichi que eu encontrei a minha esposa pela primeira vez. Isso foi há, hm, treze anos.
E Kishida começou a nos contar a história da sua viagem a Onomichi treze anos atrás.
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Isso aconteceu em fevereiro, cerca de meio ano depois que eu voltei dos meus estudos no exterior.
Minha mãe faleceu no hospital no final do ano, e eu estava me sentindo terrivelmente deprimido. Estava tão animado antes, convencido de que minha carreira estava prestes a fazer sucesso, o que só serviu para deixar o golpe ainda mais pesado.
Não coloquei a mão em nada durante o primeiro mês do ano, mas, por volta do segundo, comecei a remodelar a casa que meus pais me deixaram e, aos poucos, estava recuperando minhas ambições.
Naquela vez, um conhecido meu, professor de artes em uma faculdade em Onomichi, estendeu um convite para mim vir fazer uma visita. Um símbolo da sua preocupação, assumi, devido à minha falta de ânimo. Ele foi meu mentor na escola de arte, e ouvi que voltou para sua cidade natal por volta da mesma época que fui para Inglaterra.
— Tem um museu de arte no Parque Senkōji em Onomichi. Estou fazendo as exibições de graduação dos meus alunos lá. — disse ele, pelo telefone.
Ir para Onomichi seria legal, pensei comigo mesmo. Por causa do meu trabalho de meio período e a hospitalização da minha mãe, não tive a chance de sair de Quioto desde que voltei ao Japão, nem vi meu amigo durante alguns anos.
Logo parti para Onomichi. Meu amigo me encontrou do lado de fora da cabine de bilhetes da estação.
Ambos tiveram grandes mudanças na vida, por isso não faltava coisas para conversarmos. Passamos a tarde no museu de arte e caminhamos por Senkōji e, à noite, batemos um papo durante o jantar em um ryōtei[6] à beira mar.
— Quando eu era criança, meu avô sempre me trazia aqui quando havia algo para celebrar. — Meu amigo lembrou, emocionado.
Com a janela aberta, as ondas escuras e agitadas do oceano pareciam que podiam entrar lá dentro. Lembrei de que este lugar era um ryōtei bastante misterioso.
Quando esgotamos os tópicos comuns de conversa, meu amigo perguntou de repente:
— E sobre o que você estava falando com ela?
Entendi de imediato o que queria dizer.
Estávamos passando pela exibição do museu à tarde. Havia poucos visitantes lá dentro além de nós, e o museu estava silencioso e monótono. Em cada sala de exibição, universitários estavam sentados em cadeiras dobráveis de metal e seguravam a respiração. Passamos por eles, observando as exibições com um vago ar de seriedade.
Ao entrar na sala de exibição de Nihonga, nos deparamos com uma colegial solitária de frente para uma grande pintura. A pintura era um autorretrato em frente a uma janela, tendo um céu estrelado cheio de detalhes do lado de fora, como se ficasse diante do espaço sideral. Um cachecol vermelho estava envolto sobre os ombros da garota, e uma pelúcia do Snoopy estava pendurada em sua mochila. Não deveríamos interferir com os visitantes, então, tomando cuidado para não entrar na sua linha de visão, entramos na ponta dos pés no hall de exibição.
Sem demora, ouvimos uma voz estranha.
— Ah, ah, ah!
Nos viramos para ver o que era, então vimos uma das alunas de artes se levantando da sua cadeira.
— O que foi? — perguntou o meu amigo, para qual ela apontou um dedo trêmulo na direção do piso da sala. Sentado lá estava um gato cinza, logo ao lado da garota que observava a pintura, como se estivessem pacificamente contemplando-a juntos.
— O… O que eu faço, professor?
— É só espantá-lo, vamos!
Naquele momento, a colegial olhou para os seus pés e deu um grito baixo, enfim notando a presença do gato, o qual permanecia com o olhar fixado na pintura.
— Amigo seu? — perguntei.
A garota riu.
— Não. É a primeira vez que o vejo.
— Então vou só tirá-lo daqui. — declarou meu amigo, e, junto com a aluna, começaram a espantá-lo da sala. Depois de correrem atrás dele por um tempo, os dois o perseguiram quando ele escapou para o corredor, deixando apenas eu e a colegial ali.
Estava começando a pintar um clima estranho quando a garota fez uma pergunta, incerta:
— Você é um professor?
— Não, não sou. O outro cara era. Sou apenas um amigo.
— Um amigo?
— Sim. E você? Conhece algum dos alunos?
— Na verdade, não. Eu simplesmente acabei entrando aqui por acaso. Estava indo para a casa da minha avó para fazer uma visita e vi que estavam fazendo uma exibição.
Ela voltou a encarar a pintura.
— Você realmente gosta de pinturas, hein?
— Não é bem assim…
Ela me falou sobre a entrevista de um cosmonauta que tinha lido.
O cosmonauta soviético, Yuri Gagarin, uma vez disse: “A Terra é azul”. Nos dias de hoje, imagens da Terra não são incomuns, e temos o azul dela como algo garantido. Porém, o cosmonauta disse que o que realmente o pegou de surpresa foi a escuridão do espaço. Era impossível entender o quão escuro e vazio era aquela escuridão a menos que visse com os próprios olhos. As palavras de Gagarin se referiam àquele vazio sem fim. Sempre que a garota pensava sobre aquela escuridão profunda, esta não poderia ser representada em uma fotografia, ela se sentia tanto assustada como encantada.
— A mundo todo está em uma noite perpétua. — murmurou ela.
Que garota estranha, pensei comigo mesmo.
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Contei tudo isso ao meu amigo no ryōtei à beira mar.
— Ela te encantou, foi isso?
— Não foi.
— Pediu o nome dela? De onde é?
— Ela disse que vive em Mukaishima. A casa da sua avó fica nas colinas em Onomichi.
Do outro lado da janela estava o mar escurecido, e além dele podia-se ver as luzes de Mukaishima. O mundo todo está em uma noite perpétua. Suas palavras ficaram na minha mente. Eram o tipo de palavras que abriam caminho até a sua mente em uma noite silenciosa em uma cidade estranha, sozinho com seus pensamentos.
Depois de sair do ryōtei, me despedi do meu amigo em frente à Estação de Onomichi, passando pelos trilhos e subindo as colinas. A estalagem em que eu estava hospedado ficava no Parque Senkōji.
Estava bem tarde agora, e a encosta da colina estava em total quietude. Eu andava sozinho pelos becos pavimentados com pedras e iluminados por lanternas laranjas, passando pela frente do terreno do templo deserto. Onomichi era uma cidade antiga e parecia que as profundezas das suas encostas e becos levavam para outro mundo. Minha respiração formava uma fumaça na minha frente, e, à medida que subia a encosta, a cidade costeira ficava para trás, e o céu noturno parecia ficar cada vez mais próximo.
Cheguei a um longo declive.
A estalagem deveria estar logo ali, naquele declive, mas em total contraste à sua aparência durante o dia, agora estava coberta pela escuridão tão espessa que eu duvidava se conseguiria passar. Estava iluminada por apenas uma lâmpada que ficava no meio do caminho.
Depois de subir por um tempo, olhei para cima e pensei: “Minha nossa”.
Para lá da luz estava uma silhueta branca na escuridão. Ainda que fosse difícil ver, o rosto parecia ser de uma mulher. Uma suspeita surgiu em minha mente. A silhueta misteriosa estava parada na escuridão, encarando-me diretamente. Eu a olhava de volta, resoluto, e, logo depois, ela virou-se e desapareceu na escuridão.
Fiquei lá, petrificado, e um calafrio repentino percorreu minha espinha.
O que foi aquilo?
Olhei para a escuridão, mas não vi nada. Era terrivelmente preocupante. Entretanto, a estalagem ficava no topo do declive, então eu não tinha outra escolha a não ser continuar. Depois de disputar com a indecisão por um momento, segui o caminho, com medo. Entretanto, não me deparei com ninguém.
No final, ao ver as luzes da estalagem, dei um suspiro de alívio. Virei-me para ver as luzes de Onomichi brilhando logo abaixo.
Lá longe, ouvi o som de um trem passando.
Uma sensação estranha veio a mim de repente. Senti como se estivesse suspenso no ar, em um mundo da meia-noite. Nunca senti que a noite fosse tão profunda, tão vasta, como naquele momento. No mundo inteiro, em cidades e metrópoles distantes, milhares de pessoas estavam sonhando, envoltas pela mesma noite que eu passeava naquele exato instante. Talvez essa noite eterna fosse a verdadeira forma do mundo.
Foi então que a frase surgiu na minha mente: Trem da Noite.
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Passei a noite acordado na estalagem, incapaz de me livrar da sensação de desolação. Revirando-me no futon, parecia como se me lembrasse da silhueta que vi no declive escuro sussurrando para mim. Estava quase certo de que era uma mulher. O momento em que ela se virou sutilmente e desapareceu na escuridão passou diversas vezes pela minha mente. Aquele desconforto me lembrava uma gravura que vi na Inglaterra.
Era um trabalho antigo, pendurado em uma moldura preta no escritório do mestre, que foi meu mentor. Ela mostrava uma mansão, e foi criada por volta da virada do século dezenove. O pai do meu mestre foi funcionário de uma companhia especializada em pinturas topográfica e a comprou de um ambulante em uma das suas viagens de colecionador para o interior inglês. À primeira vista, parecia uma obra qualquer, mostrando uma mansão e seu jardim; no primeiro andar ficava uma varanda, dentro da qual estava uma jovem mulher sozinha.
— Essa, Kishida, é a pintura de um fantasma.
O que o meu mestre contou foi outra daquelas histórias clichês de pinturas assombrada.
Há muito tempo, uma jovem que vivia naquela mansão desapareceu. Depois de vários anos, seu pai, e também lorde da mansão, pagou outro nobre, que era seu amigo, para criar essa obra. O nobre era bem conhecido como um gravurista amador de placa de cobre. Entretanto, algo curioso aconteceu no dia após tê-la completado: ao colocar os olhos nela, gritou: “A garota!” e desmaiou. Ele tinha desenhado apenas a mansão e o jardim, mas lá, na mezzotint, uma garota fez uma aparição mais do que inesperada. Ninguém acreditava na história dele, mas o artista nunca recuperou os sentidos e morreu balbuciando delírios para si mesmo. De acordo com aqueles que estavam juntos em seu leito de morte, ele confessou ter uma paixão proibida por aquela garota, dizendo que, por amor, a matou.
— Era o fantasma da garota que se fez presente na sua gravura. Se você a deixar levar seu coração, pelo que dizem, ela começará a mexer com a sua cabeça aos poucos, mas bem aos poucos. E o pobre coitado que ver seu rosto, bem, na pintura entrará. É melhor ter cuidado, hein?
E meu mestre deu uma piscada.
Claro, eu não acreditava em histórias desse tipo. Mas não pude deixar de admirar toda vez que a via em seu escritório. Sempre checava para ver se não estava olhando na minha direção. A garota na mezzotint… virando a cabeça na sua direção devagar. No fim, me abduziria para dentro da pintura.
Aquela noite, na estalagem, a história da gravura assombrada parecia ter um estranho traço de verdade nela.
Então comecei a pegar no sono.
Sonhei que estava em minha casa, em Quioto.
Estava sentado no sofá, assim como estou agora. Olhei para o jardim escuro, segurando a respiração, esperando. Não sei o que estava esperando. Enquanto prestava atenção, ouvi uma porta se abrir no final do corredor. De dentro do quarto escuro saiu uma pessoa, pisando na ponta dos pés para passar despercebida no corredor. Era a garota que vi no museu que tinha aparecido na sala de estar. Ela veio até perto de mim, sentou-se e sussurrou:
O mundo todo está em uma noite perpétua.
Então percebi que eu tinha morrido.
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Quando acordei daquele sonho maldito, meu coração estava batendo tão forte que chegava a doer. A solidão, a euforia que senti quando aquela garota chegou perto de mim permanecia em minha mente. Levantei do futon. Do lado de fora da janela, o céu tinha começado a ficar claro.
Decidindo sair para uma caminhada matinal, saí silenciosamente da estalagem.
Envolta pelo ar da manhã, a cidade que parecia estar morta na noite passada agora estava voltando à vida. Gatos de rua andavam por pátios abandonados, e vi mulheres idosas fazendo visitas cedo da manhã ao templo. O céu lentamente estava ficando mais brilhante, e os prédios tinham silhuetas precisas, como se estivessem se erguendo do fundo do mar. As lâmpadas dos postes, ainda brilhando com a neblina da manhã, eram lindas. Eram como os últimos vestígios da noite que foi atormentada e assombrada.
Voltei para o longo declive que levava para o hotel.
No meio do caminho, ouvi o som familiar de janela se abrindo, então parei no lugar. Estava diante de uma casa velha de telhado azul. Era uma janela no segundo andar que se abriu, e uma jovem se inclinava nela exuberantemente, olhando para o mar de manhã cedo. O alvorecer que iluminava a cidade deixava suas bochechas com uma cor maravilhosa.
É ela, pensei.
Era a mesma colegial com quem conversei no museu na tarde de ontem.
Nunca senti a manhã da forma que sentia naquele momento. A inquietação da noite, a ameaça da mulher fantasma, tudo sumiu, deixando apenas o rosto da garota se inclinando naquela janela do segundo andar. Enquanto a observava, maravilhado, ela me notou no declive e me chamou com um sorriso:
— Bom dia!
Então pensei comigo mesmo…
A aurora chegou.
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Kishida apontou para a gravura sobre a mesa.
— Foi isso que criei assim que voltei de Onomichi. — Ele tinha imaginado que nunca mais veria a garota.
Mas, à medida que o tempo passou, começou a lamentar por terem trocado apenas algumas palavras. Mesmo enquanto continuava com seus trabalhos solitários em seu estúdio em Quioto, a manhã em Onomichi sempre esteve presente em uma parte da sua mente. Essa saudade apenas aumentava cada vez que olhava para a gravura, Onomichi.
O proprietário da Galeria Yanagi ficou impressionado com o trabalho, sugerindo:
— Por que não a chama de Alvorecer?
A luz de uma única manhã banhando a cidade.
Entretanto, ele ainda não tinha decidido criar uma série.
E, depois de uma pausa de três anos, se reuniu mais uma vez com a garota.
— Foi no Festival do Fogo de Kurama. A vi na multidão e sabia que não poderia a perder de vista novamente.
Naquela noite, Kishida adentrou as montanhas escuras para ver o festival, assim como nós o fizemos. Eu podia ver a cena diante de mim com clareza, como se também estivesse lá. Tochas cuspindo fagulhas, as bochechas coradas de Hasegawa na luz delas. A noite em que Kishida encontrou Hasegawa também foi a noite em que a perdemos. Aquela foi a noite em que começou o Alvorecer, assim como o Trem da Noite.
— Depois daquilo, passei a trabalhar em Alvorecer.
Olhei mais uma vez para a gravura sobre a mesa.
— Quantos anos fazem? — Ponderou Kishida. — Desde aquele dia, viajei para vários lugares com a minha esposa.
— Nós realmente estivemos em todos os cantos, não é mesmo? — Os olhos de Hasegawa ficaram enevoados pelas lembranças. — Em todos os lugares…
Ela começou a listar os lugares em que estiveram juntos.
Manhãs em agitadas cidades de porto, charnecas austeras, propriedades da era samurai, florestas cercadas pelas gotas da neve derretida. Nenhuma dessas manhãs foi igual.
Enquanto eu ouvia as histórias sobre suas viagens, olhei para a porta de vidro que levava para o jardim. Lá, vi nosso reflexo, sentados ao redor de uma mesa e conversando. O sorriso de Hasegawa era tão vibrante, e Kishida e Nakai estavam animados também. Era como se eu olhasse para a janela de um trem. Era como estar em um trem à noite. Não importava quão escura e vasta a noite do lado de fora fosse, o interior do trem era quente, tinha amigos e luz. Para onde íamos, viajando através dessa noite longa e sem fim?
Com esses pensamentos passando pela minha cabeça, voltei a olhar para a mesa e notei que a mezzotint à minha frente estava mudando. Como se o fluxo congelado do tempo estivesse descongelando, a luz radiante da manhã desaparecia. A paisagem ilustrada de Onomichi afundou na penumbra, e, então, na escuridão da noite. Olhei para os outros três, mas parecia que eu era o único que via as mudanças na gravura.
Como se refletisse as mudanças na gravura, a sala de estar também foi engolida pela escuridão. Nakai e Hasegawa continuaram conversando alegremente, mas suas vozes já não me alcançavam mais. Atordoado, só conseguia observar aquelas mudanças acontecendo.
A última coisa que ouvi foi a voz de Kishida Michio.
— Apenas uma única manhã…
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Quando voltei a mim, estava sentado na sala de estar, sozinho.
A cena aconchegante que estava lá há poucos instantes mudou por completo. As persianas estavam fechadas na porta de vidro, a sala estava escura, e a única claridade era uma luz fraca que vinha da janela que ficava na cozinha. Uma camada de pó cobria os móveis na sala de estar, e a ambientação da casa era a de uma ruína.
Uma gravura estava sobre a mesa à minha frente…
Trem da Noite – Onimichi.
A cidade de Onomichi estava engolida por uma escuridão suave. A casa na colina tinha se transformado em uma sombra negra, e a garota que erguia a mão para o sol nascente não estava mais lá. Entretanto, meus olhos foram atraídos para uma única lâmpada que brilhava com força no meio de um longo declive. Debaixo dela havia uma jovem mulher sem rosto, com a mão direita erguida, como se me chamasse. A visão me lembrava uma noite sem fim.
Depois de encarar a gravura por um tempo, olhei para a sala deserta uma vez mais.
Kishida e Hasegawa ainda viviam nessa casa. O fato de eu não poder mais vê-los era apenas porque o mundo deles estava escondido dos meus olhos, e o meu estava escondido do deles. Apenas Trem da Noite e Alvorecer de Kishida tinham aberto a janela.
Andando suavemente, saí pela porta da frente.
O ar do início da manhã estava frio como era normal no inverno.
No portão, dei meia volta. A visão da casa em ruínas de Kishida me doía; pilhas de sujeira jogada na entrada, e as árvores estavam espessas e entrelaçadas, sem receber cuidado. O telhado e as paredes estavam manchados e sujos. Ninguém vivia ali agora.
Na estrada, olhando para a casa, comecei a ouvir sons da vizinhança ao redor. O som de pratos sendo postos na mesa, o sibilar de chuveiros sendo ligados, o ronco de motonetas passando, passos de pessoas indo a pé para o trabalho, o chilrear de pássaros, o choro de bebês.
Que estranho eu nunca os ter ouvido antes, esses sons de uma manhã agitada.
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Subi os degraus de pedra da barragem e caminhei em direção ao Rio Kamo. Ali era onde pessoas passeavam com seus cachorros ou corriam, com a respiração exalando fumaça branca enquanto passavam ao longo da margem. Sentei-me no chão de terra, ainda molhado pelo orvalho, e observei tudo aquilo, maravilhado. Inalando o ar frio da manhã, olhei para o céu, tão lindo e brilhante, parecendo ter sido lavado de tão limpo que estava.
Duvidava que veria Hasegawa novamente. Porém, depois de a encontrar pela primeira vez em dez anos, podia me lembrar muito bem da forma que falava, da forma que se movia. O tempo estava passando para ela, assim como estava passando para mim.
Pensei agora nos quatro amigos que tinha reunido comigo em Kurama depois de dez anos. Assumindo que fui eu quem desapareceu enquanto voltávamos do festival e não eles, deviam ter passado a noite toda morrendo de preocupação. Eu precisava avisá-los que estava tudo bem comigo.
Levantei-me e digitei o número de Nakai. Não tinha certeza se a chamada seria completada, mas, depois de ter tocado por um tempo, ele atendeu, com uma voz repleta de preocupação:
— … Ōhashi?
O som daquela voz parecia tão querida para mim agora. Respirei fundo e disse:
— Bom dia.
Nunca senti tanto a manhã como estava sentindo naquele momento.
Apenas uma única manhã…
Ao lembrar dessas palavras, estreitei os olhos na direção do céu acima de Higashiyama. Estava tão brilhante que quase me fez derramar lágrimas.
Notas:
1 – O Kikuka-shō é uma corrida de cavalos plana japonesa de grau 1 no Japão para potros e potros de três anos de idade, percorrendo uma distância de 3.000 metros no Hipódromo de Kyoto.⇧
2 – Kurama-dera é um templo no extremo norte de Quioto, que abriga alguns tesouros nacionais do Japão.⇧
3 – Kiyamachi Street é uma rua histórica em Quioto, Japão, correndo norte-sul. Corre entre Kiyamachi Nijō e Kiyamachi Shichijō, no lado oriental do rio Takase, perto do rio Kamo.⇧
4 – Cosmonauta é alguém que pilota uma nave espacial. Tem o mesmo significado que astronauta, só está adaptado para se dirigir à um russo.⇧
5 – Yuri Gagarin foi o primeiro homem da história a viajar para o espaço, tornando-se o primeiro cosmonauta na então União Soviética.⇧
6 – Ryōtei é um restaurante japonês luxuoso que serve comida tradicional japonesa. Geralmente é usado como um lugar para tratar de negócios.⇧
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