— Isso aconteceu em fevereiro, três anos atrás, quando fui para Aomori. — Fujimura foi a terceiro a falar.
Eu ainda lembrava como ela costumava rabiscar seus cadernos todinhos, sempre que tinha algum tempo livre na aula de inglês. Seu interesse por rabiscos despertou meu interesse e, quando olhei de novo para aquilo, vi uma paisagem da Ponte Kamo, desenhada todinha de memória. Fiquei extremamente impressionado, mas ela apenas murmurou:
— Quando era criança eu gostava de desenhar.
Pelo visto, ela não era mais tão apaixonada quanto costumava ser.
— Agora sou mais uma apreciadora — contou-me.
Depois de se formar, ela foi trabalhar em uma galeria de arte em Ginza, e isso não me surpreendeu.
O que se segue é a história de Fujimura.
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Meu marido gosta de trens e, uma ou duas vezes por ano, faz uma viagem de trem com os amigos. Caso minha agenda permita, costumo me juntar a eles. Meu pai costumava assinar revistas de trens, então acho que eles sempre estiveram no meu sangue. Meu esposo também diz que tenho estradas de ferro no lugar das veias. Entretanto, quando se trata do plano de viagem, fico de mãos totalmente atadas, e aonde vamos fica à decisão de meu marido e seus amigos.
Ouvi dizer que as viagens deles costumavam ser marchas forçadas, seguindo horários rígidos e focando apenas nas viagens de trem, mas depois que comecei a participar aliviaram um pouco as coisas. Kojima sempre brincava com meu marido:
— Você está ficando mole, cara!
Ele era um de seus colegas de trabalho. Era um cara que sempre ia nas viagens e até mesmo cuidava da compra de passagens e reserva de hospedarias. Ele direto aparecia em nossa casa, sempre com uma garrafa de seu vinho favorito em mãos, e até visitava minha galeria para ver uma ou outra exposição. Ele é como um irmão mais novo para mim.
Um dia, estávamos nós três sentados, bebendo, quando surgiu o assunto dos trens da noite.
— Você nunca andou de trem pela noite antes, Reiko? — perguntou Kojima, parecendo surpreso. — Mas que pena.
— Não podemos deixar isso assim — declarou meu marido.
Kojima concordou com a cabeça.
— Para trens da noite, você só precisa embarcar em Ueno.
— É aquele. O trem que sai do enorme túnel para a região nevada…
— Isso é no inverno, ou sem chances, e inverno só pode indicar o Akebono.
Tudo isso passou completamente pela minha cabeça.
— Do que vocês estão falando? — Eu ri.
Kojima explicou:
— Akebono é o nome de um trem com dormitórios.
O Akebono andava entre Ueno e Aomori. Ele sairia da Estação Ueno às 21h, iria para o norte, passando por Echigo-Yuzawa ao longo da costa do Mar do Japão, e chegaria a Aomori por volta das 10h da manhã seguinte. Já era hora de colocar as coisas para funcionar, o meu marido e Kojima estavam me incentivando, já que a rota de longa distância estava prestes a ser fechada. Em outras palavras, só queriam dar um passeio de seus interesses.
— Então vamos fazer isso — respondi.
— Kojima, posso contar com você para comprar as passagens? — perguntou meu marido.
— Afirmativo! — respondeu Kojima.
Os dois foram sempre assim.
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Certa noite, no início de fevereiro, meu marido e eu fomos à Estação Ueno.
Um ar desolado pairava ao redor do lugar, e já estava de noite. As luzes na plataforma pareciam fracas e um vento frio soprava na estação, um que vinha da escuridão da noite além dos trilhos.
Quando finalmente vi o antiquado trem-dormitório azul deslizar para dentro da estação, uma sensação terrivelmente desoladora tomou conta de mim. Parecia que eu não estava mais em Tóquio, mas sim sozinha em algum vilarejo remoto ao norte.
— Por que isso me faz sentir tanta solidão?
— Isso é o incrível dos trens da noite — respondeu meu marido, todo feliz. — A sensação de viajar é simplesmente a melhor!
Mas não achei que essa solidão fosse a mesma coisa que a sensação de viajar que meu marido estava descrevendo. Parecia ser algo mais grotesco do que isso. Era mais como as sombras se estendendo pelo caminho de terra, ao longo do reservatório até em casa, naquele caminho que eu seguia na época da escola primária. Eu não entendia porque estava me sentindo assim. Meu humor ficou, por algum motivo, pior, mas quando Kojima deu as caras pela plataforma, com as garrafas de vinho de sempre balançando em suas mãos, a sensação de solidão me abandonou.
Parecia que ele tinha acabado de sair do trabalho; por baixo de seu casaco ainda estava com o terno.
— Se demorasse mais, poderia ter perdido o trem!
Mas o fato de ter lembrado de pegar algum vinho para tomar durante a viagem ainda era a cara dele. Kojima comprou o vinho em uma loja de bebidas próxima de seu local de trabalho e as guardou em sua bolsa de viagem, em um armário.
Ao embarcarmos no trem e procurarmos nossas cabines, Kojima disse:
— Que tal trocarmos de lugar, Reiko? O meu está em uma posição muito melhor, e pela janela dele dá para ver o oceano.
Então, trocamos de passagens.
Às 21:15 o trem saiu da estação. Estávamos apenas passando por Tóquio, mas, de dentro do trem, o cenário parecia completamente diferente. Nós três nos reunimos na cabine apertada de Kojima e brindamos com as taças de vinho enquanto olhávamos pelas janelas.
— Amanhã viajaremos por toda à Ferrovia Tsugaru.
Perguntei a ele o que havia no final do percurso, mas Kojima só disse:
— Uh, eu não sei…?
— Que se dane se eu sei — respondeu meu marido, dando de ombros.
Isso acontecia direto, mas mesmo assim, nunca consegui deixar de me sentir incrédula.
— Ir até a última parada é um ato de grande significado — argumentou Kojima. — Você não pode simplesmente dormir a vida toda e só acordar quando chegar ao final da linha. Me recuso a viver uma vida dessas!
— Bravo, Kojima, bravo!
— Obrigado, obrigado. Então, que horas vamos acordar? — Ele e meu marido começaram a estudar o calendário com entusiasmo.
Sempre que fazíamos essas viagens, os dois davam algum tipo de desculpa para olhar o calendário. Adorava vê-los assim e, às vezes, saltava no meio e dizia: “Vamos tentar um caminho diferente” ou “Quero passar mais tempo aqui!” Sempre que eu fazia isso, os rapazes pareciam ficar meio perplexos, mas normalmente pareciam bem felizes enquanto começavam a fuçar a programação e reformular o itinerário.
No dia seguinte viajaríamos no trem a vapor pela Ferrovia Tsugaru e, assim que chegássemos a Aomori, visitaríamos as ruínas de Sannai-Maruyama e depois iríamos fazer o check-in no hotel. Quando finalmente terminamos de fazer nossos planos, o trem já havia passado pela Estação Ōmiya e estava indo para Takazaki. Apagamos as luzes dentro da cabine e observamos as lindas luzes das ruas desconhecidas passando pelo lado de fora da janela. Senti aquela mesma solidão da Estação Ueno retornando.
Meu marido tomou um gole de vinho e suspirou:
— Os trens da noite sempre fazem você sentir como se estivesse indo para longe.
A luz pálida da rua iluminou nossos rostos.
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— O trem sai do enorme túnel e vai para a região nevada. Toda a terra sob o céu noturno é branca.
Estas são as famosas linhas de abertura de O País das Neves[1] de Kawabata Yasunari.
— Toda a terra sob o céu noturno é branca: Essa é uma linha fantástica. Ótima descrição — ponderou meu marido enquanto passávamos pelo túnel para Echigo-Yuzawa.
A essa altura, já tínhamos esvaziado duas garrafas de vinho do Kojima. A fadiga parecia já ter chegado; meu marido começou a bocejar toda hora, e até seu amigo ficou estranhamente quieto. As paredes do túnel estavam fechando a janela pelo lado de fora, e a escuridão na cabine parecia até mesmo sufocante.
Meu esposo de repente tocou minha mão.
— A qualquer momento a partir de agora.
E o trem saiu do enorme túnel. Toda a terra sob o céu noturno é branca.
A mudança no cenário foi tão abrupta, como se tivéssemos vagado para outro mundo, que prendi a respiração. A paisagem que se exibia do outro lado da janela estava toda forrada de branco. As casas estavam enterradas na neve, suas luzes cintilando como ilustrações de um livro de contos de fadas, e mesmo atrás das janelas grossas do trem eu quase podia sentir o silêncio invernal que envolvia a aldeia na montanha. A luz refletida pela neve através das janelas, banhando o vagão com uma luz pálida, por um momento pareceu até mesmo mágica.
— Eu adoraria dar uma passada por lá — falei, suspirando e olhando para a paisagem nevada.
— Dessa vez só poderemos olhar, mas algum dia…
— De acordo com minha experiência, desejos desse tipo tendem a ser realizados — disse Kojima. — Sempre que você pensa “Será que um dia vou parar nesta estação” ou “O que foi aquilo que vi do trem?”, inevitavelmente acaba retornando para dar uma conferida. Até mesmo aos lugares aos quais acredita que nunca mais passará. Isso é bem estranho, é quase como se fosse o destino te puxando.
— Kojima é um maldito romântico.
— Tenho certeza de que não sou o único.
— Parece que alguém tem trilhos de ferro no lugar das veias! — Resolvi o provocar, e então eu e meu marido trocamos olhares e rimos.
Foi então que aconteceu.
A cabine foi repentinamente iluminada por um brilho digno do sol ao meio-dia. A luz pálida que entrava pela janela desapareceu, e o rosto atordoado de Kojima ficou corado, igualzinho a um feijão vermelho. Foi só por um momento, e tudo que eu e meu marido vimos ao olhar para trás pela janela foi um incêndio gigantesco lançando suas línguas de fogo na escuridão da floresta conforme nos afastávamos. Assim que aquilo tudo desapareceu, o vagão voltou a mergulhar na luz pálida refletida pela neve.
— O que foi aquilo? — murmurou meu marido.
— Parece que era uma casa pegando fogo — disse Kojima, engasgando e de olhos arregalados.
Ele nos contou que, quando o trem passou por uma abertura entre as árvores, acabou vendo uma casa em chamas bem no meio da clareira cheia de neve.
— Parecia tão pacífico, mas estava em chamas — refletiu. Com a luz vermelha piscando sobre o campo nevado e as árvores estéreis[2], tudo parecia um sonho. — Havia uma mulher parada perto da casa. Acho que ela estava olhando para cá e acenando.
— Pare com isso, Kojima! — Por algum motivo, um arrepio correu pela minha espinha. Como alguém poderia estar acenando de lá para um trem que passava, isso enquanto sua casa pegava fogo bem diante dos próprios olhos? Então, parando para pensar, ela talvez estivesse pedindo por socorro.
Mas meu marido não aceitou isso.
— Ele só deve ter imaginado que viu alguma mulher, não seria a primeira vez.
— Vamos lá, não na frente de Reiko — resmungou Kojima. — Eu sou um cavalheiro.
— Até mesmo os cavalheiros deixam suas mentes vagarem de vez em quando.
— Meus pensamentos são puramente virtuosos, posso assegurar.
— Por que alguém tentaria obter ajuda de um trem no meio da noite, de qualquer forma? Se aquela pessoa tinha tempo para balançar a mão para um trem, então devia se apressar e ir chamar o corpo de bombeiros.
— Ela não parecia estar pedindo por ajuda. Era como se… — O que quer que Kojima desejasse falar, ficou apenas para ele. — Ah, deixa pra lá — murmurou.
Não muito tempo depois, todos nos retiramos para nossos cômodos individuais. Eu não estava acostumada com o balanço do trem durante a noite, então tive dificuldades para adormecer. Enquanto me revirava na minha cama individual, a imagem da casa em chamas no meio de toda a escuridão passava pela minha mente sem parar, com tanta vida quanto se eu tivesse visto tudo com meus próprios olhos.
Por fim, desisti e deixei a cama, observando a paisagem noturna passando pela minha janela. Bebi água de uma garrafa que tinha comprado na Estação Ueno. Havia música clássica bem baixinha saindo do alto-falante na parede, misturada ao monótono soar das rodas passando pelos trilhos.
Mais ou menos às 2h, levantei-me e fui ao banheiro.
Depois de lavar as mãos, já estava retornando para a minha cabine quando vi Kojima. Ele estava parado perto do engate do trem, olhando para fora pela janelinha. Seus olhos estavam vidrados, parecia até que não estava completamente acordado.
— O que você está fazendo aí, Kojima?
— Me senti meio sufocado, isso é tudo. Devo ter bebido demais. — Quando ele olhou para mim, notei que seus olhos estavam estranhos. — Só não estou conseguindo dormir. Cada vez que fecho os olhos, vejo aquela casa.
— Está falando daquela que estava pegando fogo?
— Você não viu nada mesmo?
— Eu estava olhando para vocês dois, e também passamos muito rápido.
— Seu marido não acredita em mim, mas eu sei o que vi. Havia uma mulher parada ao lado da casa em chamas. Acenando para mim desse jeito, como se estivesse me chamando ou… — Ele suspirou, e tentando fazer uma piada, disse: — Cara, o que tinha naquele vinho?
— Se realmente não estiver se sentindo bem, avise-nos.
— Obrigado. Vou ficar bem, eu acho.
Antes de voltar para a minha cabine, olhei para Kojima por uma última vez. Ele estava encostado na parede trêmula e parecia meio fora de si, igualzinho a uma criança abandonada.
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Chegamos à Estação Hirosaki na Linha Ōu pouco após às 9h. A Ferrovia Tsugaru é uma linha local que liga a Estação Goshogawara à Estação Tsugaru-Nakasato, passando pelo local de nascimento do famoso autor Dazai Osamu[3]. A viagem de Hirosaki até o início da linha em Goshogawara levaria cerca de meia hora. Logo desembarcamos do trem dormitório e embarcamos em um normal, na Linha Gonō.
Enquanto o trem balançava, meu marido bocejava. Apesar de todo seu amor por trens da noite, ele não conseguia realmente dormir em um.
— É bem divertido ficar olhando pela janela, isso é tudo — disse ele, recusando-se a admitir a verdade. Eu eventualmente consegui adormecer, então estava me sentindo revigorada. E lá estava Kojima, que parecia surpreendentemente indiferente, como se tivesse esquecido o que acontecera na noite anterior.
Saímos do trem na Estação Goshogawara e fomos para a plataforma da Ferrovia Tsugaru. Parado ali, o frio da manhã do norte e a dança da neve ao vento afastaram o que restava de nossa sonolência. Do outro lado da cerca, a cidade de Goshogawara parecia estar sendo esmagada pelas nuvens cinzentas. Um jovem trabalhador da estação segurando uma bandeira de sinalização estava parado na vala próxima aos trilhos, suas botas compridas esmagavam a neve abaixo delas enquanto ele olhava fixamente para o trem fornalha que se aproximava. Em um local elevado na plataforma congelada, eu podia praticamente sentir o frio do norte se infiltrando nos meus ossos.
— Sente esse frio? Agora sim estamos em Aomori! — disse meu marido, cheio de alegria, como se não pudéssemos dizer isso por nós mesmos.
Os vagões eram todos ultrapassados, era quase como se tivéssemos voltado no tempo. As madeiras do piso estavam úmidas por causa da lama e flocos de neve caíam das fendas entre as molduras das janelas antigas. Mas ao redor da fornalha a carvão o ar estava quente o bastante para fazer o rosto de qualquer pessoa ficar vermelho. Sentamos perto dela e compramos uma garrafinha de saquê do comissário, e então a dividimos. Beber durante o dia é um dos prazeres de uma viagem, observou meu marido, satisfeito.
Saindo da Estação Goshogawara, o trem cruzou intermináveis campos brancos. A neve caía continuamente do céu acinzentado, e com a neve que o trem estava levantando, parecia que estávamos viajando no meio de uma nevasca. Além daquele véu prateado, casas e fábricas cobertas de branco abraçavam a terra, como fósforos espalhados pelo campo. Galpões de fazenda semienterrados e eclusas passavam pela janela.
Olhando para aquela paisagem, Kojima murmurou:
— De qualquer forma, qual era o problema com aquela casa em chamas?
Fiquei surpresa.
— Você ainda está falando sobre isso, Kojima?
— Não é tanto por causa da casa, mas sim aquela mulher estava balançando a mão.
— Isso também.
— Bem, de acordo com a sua teoriazinha, Kojima, vamos acabar voltando lá, não é?
— Não, bem, eu não sei sobre este caso. Não consigo imaginar que acabaremos visitando uma casa no meio do nada que fica nas montanhas de Echigo-Yuzawa. E, de qualquer forma, aquela casa provavelmente já foi reduzida a cinzas. — Kojima dirigiu seu olhar para fora da janela. — Mas aquela mulher era linda.
— Eu sabia que era isso…
— No final das contas, sou só um sonhador.
O condutor veio andando pelo corredor e, sem dizer nada, colocou mais carvão na fornalha. Meu rosto estava queimando com o calor emanando e corado por causa do álcool. Cheguei mais perto da janela e senti o cheiro de algo parecido com orvalho congelado, e isso me levou de volta aos meus dias de infância.
Tsugaru-Nakasato, o ponto final da linha, era uma pequena estação, e apenas alguns de nós saímos do trem.
Na sala de espera, depois da barreira da bilheteria, duas velhinhas estavam sentadas nos bancos ao redor de uma fornalha. Com suas botas de cano longo e xales, pareciam duas ervilhas em uma vagem. Suas silhuetas negras se destacavam nitidamente contra o relevo ofuscante que fluía pelas portas de vidro fosco.
— Vamos pegar o próximo trem de volta. Teremos cerca de trinta minutos para fazer isso — disse Kojima. — Por que não damos uma voltinha?
Então, todos nós percorremos o longo caminho que se estendia da frente da estação. Passando em frente à prefeitura, vimos uma lojinha aqui e acolá, barbearias e salões de pachinko. Vi uma velha propriedade cheia de árvores em seu jardim, e pensei comigo mesma que esta devia ter sido, alguma vez, uma cidade próspera. Mas não havia quase ninguém nas ruas. E só passavam caminhões cobertos pela neve suja, e a cidade estava tão silenciosa que tudo que podíamos ouvir era o som de nossos passos e respiração. A neve suja estava formando uma crosta nos cantos do asfalto molhado, e a neve também estava começando a cair com mais força.
Meu marido limpou a que tinha caído em sua cabeça usando um lenço, igual um garotinho.
Parecia que estávamos caminhando em um sonho.
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— Vamos virar aqui — anunciou Kojima. — Aqui, venham aqui!
Kojima correu para a entrada de um beco perto de uma barbearia antiquada e há muito abandonada. O seguimos, mas meu marido mantinha uma expressão desconfiada no rosto. Havia algo estranho no modo como seu amigo estava agindo. Esta deveria ser sua primeira visita a esta cidade, mas parecia quase como se ele estivesse indo para um local específico do qual se lembrava.
O beco seguia entre casas e prédios com muitos apartamentos, até um terreno baldio coberto pela neve.
— O que diabos ele está fazendo? — perguntou meu esposo, parecendo um pouco exasperado.
Kojima estava indo em direção a uma casa do outro lado do terreno. Era uma espécie de casa muito típica desta região, de dois andares e com telhado de duas águas. As telhas verdes estavam desbotadas e as paredes brancas tinham uma grande mancha parecida com a sombra de um gigante. Cortinas grossas estavam fechadas sobre as muitas janelas e não havia sinais de que o local era habitado. Aquilo parecia até com um lençol de cama ou uma toalha de mesa e, assim que esse pensamento passou pela minha cabeça, um arrepio repentino correu pela minha espinha.
— Eu já vi essa casa antes.
Não sei o que me fez pensar isso. Meu marido parecia não ter notado minha consternação e se aproximou de Kojima, que havia ficado paralisado, gritando:
— Qual o problema?
Kojima se virou com uma expressão sombria nos olhos. Era a mesma que eu tinha visto em seu rosto na noite anterior. Ele nem se incomodou em tirar a neve que estava se acumulando em cima de sua cabeça. O homem estudou nossos rostos e não disse nada, então voltou a se virar na direção daquela casa misteriosa.
— Reiko, você não se lembra desta casa? — perguntou ele. — É aquela mesma casa.
Um choque passou pelo meu corpo.
Uma lembrança retornou à minha mente, era a de uma galeria de arte em que estive mais ou menos no final do ano anterior.
A galeria em que trabalhei estava montando uma exposição para exibir as gravuras de um artista, Kishida Michio. Estávamos exibindo Trem da Noite, uma série que ele havia produzido escondido em seu estúdio em Quioto, mas o próprio homem já estava morto há três anos. Suas obras eram administradas pela Galeria Yanagi, também de Quioto. Nosso empresário tinha uma relação próxima com aquela galeria desde a época do proprietário anterior, o que também explicava por que esta exposição estava sendo realizada em Tóquio. Fiquei encarregada de fazer os arranjos com a Galeria Yanagi. Entre aquela série de obras chamada Trem da Noite estava um mezzotint intitulado Tsugaru. A casa bem na minha frente parecia exatamente igual àquela da gravura.
Lembrei que na noite anterior à abertura da exposição, Kojima havia passado para visitar a galeria, e tínhamos visto a obra juntos.
— Por que você veio aqui, Kojima?
— Só por acaso.
Ele continuou olhando para a casa sem mover um único músculo.
Eu e meu marido fomos em direção à garagem de concreto que mais parecia uma caixa, procurando fugir da neve que caía. Olhamos ao redor enquanto nos livrávamos da neve, mas não havia quase nada. Encostada às paredes úmidas estava uma bicicleta de criança enferrujada e um tambor de óleo cheio de cinzas no fundo.
— Dá vontade de acender uma fogueira, não é? — Minha voz ecoou ao longo das paredes sombrias. — Acha que isso está abandonado?
— Parece que sim. Mas agora isso não importa — respondeu meu marido com sua voz resoluta. — O que há de errado com o Kojima? Do que ele estava falando?
Meu esposo franziu a testa quando falei sobre o mezzotint.
— Isso é uma coincidência e tanto.
— É por isso que estou sentindo algo estranho desde que vi esta casa.
— Então aquele artista deve ter vindo aqui antes. Mas não sei por que alguém sentiria vontade de desenhar uma casa como esta.
Um som de batida veio da direção da porta da frente. Olhamos para fora da garagem só para ver que Kojima tinha sumido. Ele devia estar tentando falar com os moradores locais.
— O que diabos ele está fazendo? — murmurou meu marido.
Minha mente mais uma vez vagou para aquela bela gravura.
Em um cenário de escuridão aveludada que evocava uma noite sem fim, estava uma casa com telhado de duas águas, desenhada em tons de branco. Uma mulher sem rosto se inclinava para fora de uma das janelas do segundo andar, acenando com a mão. Era quase como se ela estivesse chamando o apreciador para mergulhar dentro da gravura.
Meu marido de repente falou com certo senso de urgência:
— Isso não te parece esquisito?
Com suas palavras, percebi que as batidas de Kojima estavam estranhamente altas. As batidas na porta reverberavam até onde estávamos, na garagem. O que ele estava fazendo? Esse som era o som de alguém que saiu dos trilhos, era como se estivesse sendo levado pelo medo e tentando arrombar a porta.
— Qual é o problema com ele?
Assim que saímos correndo da garagem, o som das batidas parou de uma só vez. Ao redor da casa com telhado de duas águas, o silêncio voltou a reinar. As cortinas pesadas das janelas não tinham se movido nem um centímetro, e todo o prédio lembrava alguém olhando para a neve caindo enquanto mantinha os olhos fechados. A porta da frente continuava fechada e Kojima tinha sumido.
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Circulamos a casa toda enquanto chamávamos pelo nome de Kojima. Atrás da residência havia um campo vazio coberto pela neve que podia muito bem já ter sido uma horta ou um quintal, e também havia um monte de casas intercaladas entre matagais por trás da cerca. A vista da frente e dos fundos da casa parecia igual, era quase como se não houvesse diferença entre os dois locais. As cortinas das janelas estavam bem fechadas e não havia qualquer sinal humano do lado de dentro. Completamos nossa volta pela casa e voltamos para a parte da frente.
Tirando a neve do meu cabelo, meu marido comentou:
— O Kojima estava batendo na porta até sairmos da garagem. Não deveria ter tido tempo suficiente para se esconder.
— Então será que ele entrou?
— Talvez a porta não esteja trancada. Ele pode ter notado isso e entrado, e está vendo a gente rodear a casa enquanto o procura.
— Isso não é invasão de propriedade?
— Não parece algo que ele faria. — Meu marido se aproximou da porta e testou a maçaneta. Estava trancada. Ligamos para o telefone de Kojima, mas ele estava desligado.
— Alôôô, tem alguém aí? — gritou meu esposo, batendo na porta.
— Acho que está vazia mesmo. Sei lá.
Trocamos olhares, completamente confusos.
As coisas ainda não pareciam urgentes o suficiente para chamar a polícia. Kojima devia ter suas razões. Mas também não podíamos ficar esperando por ele enquanto continuávamos sob a neve que caía.
— Vamos voltar para a estação — sugeriu meu marido, e eu logo concordei. Dentro da estação poderíamos nos aquecer com a fornalha e desfrutar de bebidas quentes enquanto esperávamos.
— Mais cedo ou mais tarde, devemos ser capazes de entrar em contato com o Kojima. — Meu esposo começou a abrir caminho pela neve que caía.
Enquanto eu o seguia, minhas pernas de repente travaram.
Não era capaz de explicar, mas tinha a sensação de que havia me esquecido de algo muito importante. O que era? Havia algo me atraindo. Me virei, fui até a porta da frente da casa e bati algumas vezes, ouvindo atentamente. Depois de um momento, houve um clique de dentro da casa.
Estendi a mão e agarrei a maçaneta. Havia algo sussurrando lá dentro da minha cabeça, me dizendo que a porta não estava mais trancada. Mas não consegui reunir coragem para a abrir. Parecia que havia algo prendendo a respiração lá dentro, esperando que eu abrisse a porta para que pudesse me pegar. Fiquei parada com a mão na maçaneta, parecendo até mesmo paralisada.
De repente, alguém agarrou meu ombro, me puxando para longe da porta.
— Anda, vamos sair daqui! — disse meu marido, e antes que eu soubesse o que estava acontecendo, fui levada embora, deixando a casa para trás. Pelo que ele me disse depois, fiquei parada lá, atordoada, segurando a maçaneta da porta, sem responder aos seus chamados. Achei que aquilo tinha durado só um momento, mas, pelo visto, durou muito tempo.
Enquanto caminhávamos pela neve, me virei para olhar para a casa com telhado de duas águas enquanto nos distanciávamos. Através do véu de neve, a casa parecia ter fechado os olhos e voltado ao sono.
Ainda faltava mais de uma hora para o próximo trem chegar, e a Estação Tsuguru-Nakasato estava deserta. Enquanto eu aquecia minhas mãos, aproximando-as da fornalha, meu marido foi até a máquina de vendas automáticas e nos comprou café enlatado. Senti o calor lentamente começando a correr meu corpo inteiro. E meu esposo estava andando de um lado para o outro na sala de espera, cismado.
— Devíamos pegar o primeiro trem para dar o fora daqui.
— Isso tudo ficou tão estranho…
— De qualquer forma, o que há com aquela casa? E qual foi a ideia do Kojima ao nos levar até lá?
Pensei em nosso amigo, parado no trem durante a noite anterior. Desde aquele momento era como se ele tivesse mudado. Eu ainda podia ver o olhar perdido em seu rosto em minha mente, a maneira como ele parecia uma criança abandonada.
— Havia algo realmente muito esquisito naquela casa — refletiu meu esposo. — Quando me virei e olhei de longe, aquela era a única casa que não estava cheia de neve no teto. Qualquer um pensaria que deveria ter pelo menos um pouco, já que ainda está nevando. Aquela residência talvez tenha algum tipo de aquecimento no telhado. Mas, ainda assim, parece que não tinha ninguém morando lá…
Ele continuou falando sozinho e em voz alta por algum tempo, até que parou ao expressar seu pensamento final.
— Onde o Kojima se enfiou…?
Naquele momento, me lembrei do incidente que aconteceu durante meus dias de faculdade. Lembrei do Festival do Fogo de Kurama, ao qual fui com meus amigos da escola de inglês, e em Hasegawa, que tinha desaparecido naquela noite.
Ela era uma das minhas amigas mais próximas.
Nós íamos para todos os lugares juntas, e não apenas para a escola de inglês. Eu não estava incomodada por ela estar um ano à minha frente nos estudos. Hasegawa estava estudando literatura japonesa, mas amava arte tanto quanto eu, então frequentemente visitávamos o museu de arte da cidade durante os finais de semana e, às vezes, até nos aventurávamos em Osaka ou Kobe. Naquela época, ela era a única pessoa com quem eu sentia liberdade para ser eu mesma. Era como se nos conhecêssemos desde que éramos crianças, ou ao menos era esse tipo de proximidade que parecíamos ter.
Claro que fiquei chocada quando ela desapareceu. Mas não vou negar que, ao mesmo tempo, sempre pensei comigo mesma que algo assim poderia acabar acontecendo.
Quanto mais fundo íamos, mais coisas misteriosas sobre Hasegawa descobríamos. Era como se no âmago dela existisse uma escuridão tão sombria quanto a noite, e tudo – seu ar de inquietação, a bondade que mostrava para todos, a nitidez com que parecia poder ver através das pessoas – saía daquela lugar de escuridão. E seu gosto por caminhadas noturnas também podia ter algo a ver com isso. Ela me convidou várias vezes para acompanhá-la em suas “aventuras noturnas”, e sempre que estávamos nessas caminhadas Hasegawa parecia bem viva.
Enquanto repassava minhas lembranças, percebi que havia evitado pensar nela durante esse tempo todo.
Enquanto esperávamos na Estação Tsugaru-Nakasato até que Kojima nos contatasse, pensei no desaparecimento de Hasegawa em Kurama e comecei a me perguntar se o buraco que a engoliu naquela noite ainda estava lá.
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Voltamos na Ferrovia Tsugaru para a Estação Goshogawara e fomos até uma cafeteria de dois andares em um cruzamento próximo para almoçar antes de seguirmos para a cidade de Aomori. Plantas e antiguidades enfeitavam o interior e uma música suave estava tocando; o tilintar de pratos na pia e o farfalhar de vozes ao meu redor acalmaram meus nervos.
Meu marido parecia aborrecido, mas isso era compreensível. Kojima finalmente nos ligou enquanto estávamos em Tsugaru-Nakasato, só para informar que estava dentro daquela casa com telhado de duas águas.
Quando meu marido perguntou o motivo, ele só disse: “Conto mais tarde” e logo desligou o telefone. Se Kojima estivesse dizendo a verdade, isso significava que durante todo o tempo que gastamos procurando, ele passou em silêncio dentro daquela residência. Foi algo bem inesperado da parte dele. Meu esposo suspeitou que seu amigo podia ter acabado se envolvendo em algum tipo de problema, e isso não parecia exatamente irracional.
Mas tudo que Kojima fez foi rir da nossa preocupação.
— Nos vemos depois. Mande um olá para a Reiko por mim — disse ele pouco antes de desligar.
O tempo todo durante o caminho de retorno para Goshogawara, meu marido ficou com uma expressão de descrença no rosto. Tomei um café após comer, pensando: Espero que ele não tenha sofrido um acidente.
— Ontem à noite ele estava um pouco desligado, não acha?
Contei sobre aquele episódio que tinha acontecido enquanto retornava do banheiro. Meu marido pensou por um tempo, então murmurou para si mesmo:
— Uma casa em chamas, hein?
Congelei. Em minha mente, vi uma casa pegando fogo no meio de um terreno coberto de neve, tão vividamente como se a tivesse visto na vida real.
Vendo meu rosto enrijecer, meu esposo pegou minha mão.
— Tudo bem? — perguntou ele. — Aquela casa parece que também fez algo com você.
— Quando eu estava prestes à abrir a porta, de repente fiquei com tanto medo.
Aquelas batidas voltaram a soar aos meus ouvidos. Será que realmente era Kojima batendo na porta? Tive a sensação de que àquela altura ele já estava trancado na casa misteriosa, e que o som era feito enquanto tentava sair – mas é claro que isso era fruto da minha imaginação, não passava de especulação infundada.
— Parece que por enquanto seremos apenas nós dois. Assim que Kojima se recuperar, ele pode voltar — disse meu marido, tentando me animar.
Voltamos para a frente da Estação Goshogawara e combinamos um passeio até as ruínas de Sannai-Maruyama com uma empresa de táxi. Quando descobrimos que um ônibus ia das ruínas até a Estação Aoyama, fizemos reservas em um hotel bem ao lado da estação.
O táxi demorou 40 minutos para chegar às ruínas. Passando pelas ruas de Goshogawara e emergindo em uma via expressa elevada, vi campos ondulantes e pomares de maçã cobertos de neve através das janelas embaçadas, e à direita, bem longe, pude reparar a silhueta do Monte Iwaki.
Enquanto ouvia o andar da conversa entre meu marido e o taxista, comecei a cochilar. Meu sono intermitente foi agitado. Fragmentos de tudo que aconteceu desde a noite anterior flutuaram em minha cabeça e desapareceram com a mesma rapidez. Eu sabia que devia haver uma conexão entre aquilo tudo, mas simplesmente não conseguia entender o que era.
Acordei em choque quando meu marido sacudiu meu ombro.
— Chegamos — disse ele.
O táxi parou em frente a um grande prédio coberto de neve. Quando saí, o ar penetrante estava maravilhoso. Dentro da área de recepção deserta, colocamos botas de cano longo e partimos para as ruínas.
Um senhor mais velho com uma capa de chuva amarela nos guiou pelo parque. Do outro lado dos campos de neve, vimos as casinhas no chão erguendo-se como iglus. Poucas pessoas visitavam o local durante o inverno, e éramos as únicas andando sob a neve que caía.
— Talvez devêssemos ter vindo no verão — comentou meu marido, franzindo a testa.
— De forma alguma — disse o guia, aspirando o ranho do nariz. — Eu também gosto do inverno. Há uma boa vista do Monte Hakkōda ali, coberto de branco. Isso é bem bonito.
Vimos rachaduras na terra que estavam cheias de barro quebrado e ruínas onde se podia ouvir a água subterrânea bombeando abaixo, e por fim chegamos à base de uma estranha torre construída com grossos troncos de castanheiro.
Neste ponto, meu marido abordou um tópico inesperado.
— Quando foi que acabamos pegando o trem da noite mesmo?
— Não sei.
— Foi quase no final do ano passado, não foi? Kojima tinha aparecido para fazer uma visita. Não foi você quem abordou o tópico dos trens da noite?
— Fui eu?
— Não acha que deve existir uma razão para isso?
Meu marido devia ter juntado as peças dos eventos enquanto caminhávamos pelas ruínas.
— Não lembro de nada. — Quando falei isso, ele voltou a cair em seus pensamentos silenciosos.
No caminho de retorno, após o fim da excursão, lancei meu olhar em direção a um bosque de cedros[4] nevados e notei figuras humanas por lá. Havia duas delas, um jovem e uma garotinha, e a princípio pensei que deviam ser pai e filha.
— Tem gente andando por lá — falei, apontando.
— Onde? — perguntou meu marido, parecendo confuso.
— Estão bem ali! — Apontei para os cedros, mas meu esposo continuou apenas apertando os olhos.
— Não tem ninguém lá.
Entretanto, eu podia ver aquelas pessoas, tão claramente quanto o dia. Estavam paradas olhando na nossa direção. Fiquei surpresa. Dessa distância era um pouco difícil de distinguir, mas o homem parecia Kojima.
— Não é o Kojima? Quem é aquela garotinha?
— Não estou vendo nada.
— Do que está falando? Não está vendo eles lá? — Acenei e gritei: — Kojima!
O homem acenou de volta para mim, assim como a garotinha ao seu lado. Eu podia ver o casaco vermelho que ela estava vestindo claramente.
Ouvi meu marido perguntar ao nosso guia:
— Você vê alguma coisa?
— Bem, não estou vendo nada.
Avancei na neve, gritando o nome de Kojima. Mas ele continuou no mesmo lugar, mantendo a mão erguida, sem responder ou dar qualquer sinal de que se juntaria a nós. E quem era aquela garota ao seu lado? Eventualmente, os dois recuaram e desapareceram nas profundezas daquele bosque de cedros escuro.
— O que foi isso? Ele não me ouviu chamando? — murmurei para mim mesma, até que vi uma imagem vívida brilhando em minha mente, de um dique em um reservatório que estava sendo tingido pelo sol poente. No topo daquilo estava eu, uma garotinha do primário, com uma longa sombra atrás de mim. Ao meu lado estava outra garota.
Era a Kana.
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Quando eu era criança, morei no exterior por causa do trabalho do meu pai, até a primavera do meu terceiro ano na escola primária, e foi então que me mudei para o subúrbio de Tóquio. Passei o resto da minha infância morando no mesmo lugar, até que fui para a faculdade em Quioto.
Minha casa ficava no final de um novo empreendimento residencial em uma colina, com vista para um grande reservatório. Era um antigo reservatório que existia desde antes de desenvolverem a área; no verão, inúmeras tartarugas nadavam por ali, e no inverno as aves migratórias acampavam no local. Os juncos grossos que cresciam na beira da água eram um pouco assustadores, e ouvi rumores sobre o fantasma de uma criança afogada que apareceria ali ao pôr do sol.
Um caminho percorria todo o topo da represa, e era ele que eu seguia ao retornar da escola para casa.
Os professores nos proibiram de seguir esse caminho na ida ou volta para a escola, mas o percurso que permitiam era muito longo e tortuoso. Nunca fui uma santinha e sempre ia para casa sozinha, de qualquer forma. Eu tinha acabado de voltar do exterior, então talvez ainda não estivesse acostumada com as escolas no Japão. Foi nesse caminho que me encontrei com minha colega Kana pela primeira vez.
Acho que o que nos aproximou foi o quanto cada uma de nós era isolada. Kana se recusava a conversar com qualquer pessoa de quem não gostava, incluindo até mesmo a professora. Com minhas frustrações por estar em uma escola desconhecida, admirei a indiferença dela.
Além disso, nós duas tínhamos um amor em comum por desenhar. Mesmo assim, Kana não parecia ter nenhum interesse em ingressar no clube de arte ou ser elogiada nas aulas de arte. A única pessoa para quem ela mostraria seus desenhos era eu. Aceitei isso como um motivo para se orgulhar.
A casa dela ficava logo abaixo do reservatório. Era uma casa alegre que ficava sozinha em um terreno cercado por árvores, exatamente o tipo de lugar em que eu esperava que Kana morasse.
E eu costumava ir à sua casa para que desenhássemos juntas. O quarto dela ficava no segundo andar. Era como o ateliê de um artista com piso de madeira, e era bom e fresco até no verão. Ela tirava o uniforme e se jogava no chão para desenhar, então passei a fazer o mesmo. Eu queria melhorar os meus desenhos. O ambiente parecia maravilhosamente fresco, era como se estivéssemos embaixo d’água, e da janela vinha o vento soprando sobre o reservatório, levando consigo os gritos das cigarras.
Deitada ali, descansando a mão que usava para desenhar, Kana parecia uma linda sereia.
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Pegamos o ônibus das ruínas de Sannai-Maruyama de volta à Estação Aomori. Balançando no ônibus, pensei nas figuras que vira do outro lado daquele campo nevado. A garota de mãos dadas com Kojima parecia exatamente com Kana. Mas isso era impossível. Fazia quase vinte anos desde o tempo em que brincávamos juntas. E nem meu marido nem o homem que nos guiava puderam vê-los.
O que foi aquilo?, pensei comigo mesma. Era uma história tão cheia de furos que hesitei em comentar a respeito com meu marido.
Depois de fazer algumas compras em uma loja de lembrancinhas perto da Estação Aomori, fizemos o check-in no hotel. Kojima ainda não havia chegado. Por volta das cinco, as ruas de Aomori já estavam escurecendo.
Meu marido olhou pela janela ansiosamente e murmurou:
— Como isso aconteceu?
Deitada na cama, senti uma solidão indescritível. Era a mesma solidão que me dominou no início da viagem, quando estava esperando pelo trem na Estação Ueno. Se Kojima estivesse aqui, eu não estaria me sentindo assim, pensei. Estaríamos saindo para jantar, conversando sobre nossos planos para o dia seguinte…
Meu esposo se afastou da janela e deitou na outra cama. Nós dois olhamos para o teto, nenhum de nós falou. Eu estava começando a adormecer quando meu marido murmurou:
— Aquela casa em Tsugaru-Nakasato.
— Hmm?
Mas ele não continuou. Me virei na cama para vê-lo olhando para o teto enquanto franzia a testa.
— Qual é o problema?
— Nada… Devo ter visto errado.
— Não guarde isso só para você, me conte!
— Tudo bem, vou contar. Você viu alguém olhando pelas janelas?
Estremeci e me sentei.
— Por que você diria algo tão assustador?
— Não viu?
— Não vi nada!
— Foi quando estávamos nos afastando daquela casa em Tsugaru-Nakasato…
Meu marido estava indo embora quando percebeu que eu não estava com ele. Quando se virou, me viu parada na porta da frente, segurando a maçaneta e sem me mover. Enquanto voltava, pensou ter visto uma das cortinas das janelas do segundo andar se mexendo. Era quase como se a casa adormecida tivesse aberto um olho. E quando ele olhou para cima e semicerrou os olhos para a janela, viu uma figura entre as cortinas.
— Era o Kojima…? Não, claro que não. — Se fosse ele, o meu esposo não teria ficado tão preocupado. Simplesmente teria aberto a porta e entrado comigo para procurar pelo Kojima.
— Não era ele. Acho que era uma garota.
— Uma garota?
— Acho que sim…
— Por que não me contou?
— A cortina foi fechada muito rápido, então não consegui ver direito. E você estava agindo de um jeito estranho. Foi tão assustador, tudo que eu conseguia pensar era em sair de perto daquela casa o mais rápido possível.
Mas ele parecia ainda estar escondendo algo. Parecia que tinha dado uma boa olhada na pessoa à janela, e simplesmente não queria falar sobre isso. O jeito hesitante como estava falando, como se houvesse algo preso em sua garganta, não era normal dele.
Nesse momento, seu celular tocou.
Meu esposo rapidamente se levantou da cama e o pegou.
— Onde você está? — perguntou ele. Um momento depois, ouvi sua voz se elevando quando perguntou: — O que você está fazendo?
Me levantei e o ouvi discutindo com Kojima, e percebi que ele continuava na casa em Tsugaru-Nakasato. Meu esposo finalmente desligou o telefone enquanto mantinha uma expressão perturbada.
— Ele não vai chegar aqui até de noite.
— Ele ainda está lá?
— Foi o que me disse.
Isso significava que a figura que vi nas ruínas não era ele. Isso foi um pequeno alívio. Mas eu ainda não tinha ideia de por que Kojima ainda estava naquela casa, ou o que estava fazendo lá.
— E o jantar?
— Ele disse para nós irmos comer.
— De qualquer forma, qual é o problema dele?
— Ele não me explicou nada. Nunca imaginei que o Kojima poderia ser tão imprudente. Alcanço vocês esta noite, meu saco.
— Não fique tão bravo.
— Só estou bravo porque estou com fome. Vamos jantar.
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O restaurante japonês para o qual Kojima fizera reserva ficava em uma ruazinha que se ramificava ao sul da avenida principal que iria para o leste da Estação Aomori. A neve pisoteada estava totalmente congelada e meu marido estava lá para me apoiar sempre que eu ficava prestes a escorregar. Caminhamos cautelosamente pela rua de trás, e foi com uma sensação de alívio que finalmente chegamos ao restaurante.
A comida estava deliciosa, mas com Kojima pesando em nossas mentes, a conversa acabou letárgica. Precisávamos fazer os planos para o dia seguinte, mas simplesmente não conseguíamos entrar no clima. Meu esposo parecia estar carregando um fardo sozinho. Mas o mesmo poderia ser dito sobre mim; mesmo depois de saber que a figura que vi nas ruínas não poderia ser Kojima, em minha mente vi a garotinha desaparecendo entre os cedros várias vezes. Antes que eu percebesse, encontrei meus pensamentos gravitando em torno de Kana, minha amiga de infância da escola.
Ela era uma criança misteriosa.
Algo que me deixava perplexa, agora que estava pensando nisso, é que eu não tinha nenhuma lembrança de ter conhecido sua família. Era como se a garota vivesse sozinha em sua casa. Sempre que eu perguntava sobre seus pais, ela silenciosamente saía do quarto e ia se esconder em algum lugar. Isso sempre me deixou muito desanimada. E quando eu ficava prestes a chorar, Kana voltava inesperadamente, dava um beijo na minha bochecha e recomeçava a desenhar. Fiquei com medo de incomodá-la, então aprendi a não fazer perguntas desnecessárias.
A outra coisa misteriosa é que as outras crianças da classe a chamavam de mentirosa. Pelo que eu sabia, embora Kana fosse uma garota caprichosa, ela nunca havia mentido. Quando perguntei sobre suas mentiras para as outras crianças, só gritaram: “Mentirosa, mentirosa do nariz grande!” Eu secretamente me preocupei com ela.
Meu marido interrompeu meus pensamentos.
— No que você está pensando agora?
— Em algo de muito tempo atrás.
— Quanto tempo?
— Da escola primária. Eu costumava ter uma amiga misteriosa.
— Está falando da Kana?
Sua resposta me pegou de surpresa.
— Como sabe disso?
— Provavelmente ouvi da sua mãe.
— Por que ela te contaria sobre isso? Ela odiava a Kana.
— Não foi o que eu ouvi.
Eu não conseguia expressar isso em palavras, mas minha mãe sempre se opôs ao meu relacionamento com a minha amiga. Agora que estava pensando no assunto, me forçar a ter aulas de artes provavelmente foi sua forma de nos afastar.
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Minha mãe tinha encontrado uma escola de artes focada no ensino para crianças bem pertinho da estação, e me disse que eu começaria a ter aulas lá. Resisti, mas ela já tinha cuidado de tudo e até feito minha matrícula. Foi a primeira e única vez que ela fez algo assim sem me consultar.
No final, comecei a frequentar a escola de má vontade.
Kana não gostou nada daquilo.
— Você só está tentando ser melhor do que eu! Só quer se gabar! — dizia ela, e as coisas foram gradualmente ficando estranhas entre nós. Com cada vez mais frequência, Kana começou a se esconder quando eu aparecia para brincar. Isso fez eu me sentir tão solitária. Por outro lado, algumas das outras garotas da escola frequentavam a mesma aula de arte, e fazer amizade com elas me ajudou a começar a gostar um pouco mais de ir às aulas.
Quando me acomodei com essas coisas, Kana começou a faltar cada vez mais e, eventualmente, parou de ir para a escola. Fiquei preocupada, mas não fui visitar sua casa, com medo de que ela me dissesse algo odioso. Comecei a trilhar o caminho mais longo com minhas outras colegas de classe, e não mais aquele que dava a volta pelo reservatório.
A última vez que visitei Kana foi em um dia de inverno.
O reservatório estava coberto de neve. A cada passo que eu dava meus pés acabavam enterrados, e estava tomando cuidado para não escorregar e cair. Cercado por árvores murchas, o local não era perturbado nem mesmo por um único passo, e no final estava aquela casa. Um formigamento subiu pelas minhas costas e meus pés de repente se recusaram a dar outro passo.
Não havia mais nada de alegre na casa.
Aquelas arestas verdes pareciam incrivelmente repugnantes sob a neve que caía do céu cinzento. A gigantesca mancha nas paredes brancas era horrível, e cortinas grossas estavam fechadas sobre as janelas estranhamente numerosas.
Parecia que a casa de Kana estava de olhos fechados, dormindo.
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Fiquei pasma quando a memória daquele dia de inverno veio à tona. Como pude me esquecer daquilo?
Quando recuperei meus sentidos, me deparei com meu marido me encarando, preocupado.
— Qual é o problema?
— Nada. Só estava me lembrando de uma coisa.
— Estou me sentindo meio inchado. Por que não saímos para dar um passeio?
— Boa ideia.
Saímos para as ruas frias da noite.
As ruas secundárias estavam paradas e silenciosas sob a neve esvoaçante, e as luzes dos bares e de izakayas[5] brilhavam no solo congelado. À medida que avançávamos, olhamos para cima e vimos sincelos[6] do tamanho de uma criança pendurados no beiral de uma casa abandonada.
— Se uma dessas coisas cair, pode matar uma pessoa — disse meu marido em um tom animado, fazendo sua voz ecoar pelo todo o beco escuro.
Andando pelas ruas congeladas, ainda havia um mistério que eu não conseguia tirar da cabeça. A casa em Tsugaru-Nakasato onde Kojima havia desaparecido parecia exatamente com a casa de Kana.
Passamos por lojas fechadas e velhos prédios de uso misto[7] no nosso caminho pela rua. A neve amontoada ao lado da estrada absorvia a luz alaranjada dos postes de rua. Um ônibus passou, enchendo a rua com o barulho de correntes esmagando a neve da rua congelada. A neve escovando minha bochecha me lembrou daquele dia de inverno e minha última visita à casa de Kana.
O que aconteceu depois daquilo? A questão passou rapidamente pelo meu cérebro.
Por que não consigo me lembrar? Eu entrei na casa naquele dia? Por que, depois daquilo, nunca mais vi a Kana?
— Então, o que minha mãe te contou?
— Sobre o quê?
— Kana.
— Eh, não muito. Só que ela era meio estranha.
— Você tem certeza de que foi só isso?
— A neve está caindo com mais força — comentou ele, olhando para o céu escuro. — O trem saiu do longo túnel para a região da neve…
Quando ouvi essas palavras, vi a cena do trem da noite claramente diante dos meus olhos. Uma paisagem nevada, direto das páginas de um livro de contos de fadas. E uma bola de fogo passando em um instante, lançando faíscas brilhantes no meio da escuridão. Pude imaginar a casa em chamas que Kojima havia mencionado como se eu mesma a tivesse visto.
Isso porque era a mesma coisa que eu tinha visto na escola primária.
Naquele dia de inverno, a barragem do reservatório se estendia longa e pálida diante de mim. Corri meio sem jeito e me virei para ver as árvores iluminadas. A casa de Kana estava pegando fogo, lançando incontáveis faíscas no céu escuro feito breu. As chamas saltavam por trás das janelas de vidro como se estivessem vivas. Fiquei lá na barragem, ofegando, assistindo enquanto a casa queimava.
Fui eu que ateei fogo nela. À medida que me lembrava disso, inconscientemente parei de andar.
Estávamos passando por um grande prédio que parecia uma espécie de mercado. Havia uma placa que dizia “Centro Aomori Gyosai”, e a luz estava vazando por baixo das venezianas semicerradas. Quando olhei para o lugar, vi uma garota correndo pelo corredor.
— Kana?
Ao ouvir meu sussurro, meu marido se virou surpreso.
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Me enfiei por baixo da veneziana do mercado[8].
As lojas se alinhavam de ambos os lados da passagem, assim como as barracas de um festival. O horário de funcionamento já havia acabado há muito tempo e nenhum dos lojistas estava presente, então quem dera os cleintes. As velhas lâmpadas fluorescentes lançavam sua luz fria no chão de concreto úmido e nos balcões cobertos de lona. Voltei a chamar pelo seu nome.
— Kana?
Havia vários lugares para se esconder na escuridão atrás dos balcões. Pisquei meus olhos e busquei pela direita e esquerda enquanto continuava caminhando sem pressa. De faixas a representações de atum desenhadas à mão, todos os tipos de anúncios estavam pendurados no teto. Mas sob as luzes apagadas do mercado, todas essa propaganda parecia bem sinistra e misteriosa.
Meu marido me alcançou e sua voz ecoou pelo local.
— Qual o problema?
— Havia uma garotinha aqui.
— Existem garotinhas em todos os lugares.
— Era a Kana.
Meu marido suspirou e olhou ao redor do mercado.
— Primeiro o Kojima começou a falar aquelas coisas malucas, agora você. Dá um tempo. Me fala, exatamente como a sua amiga do primário poderia ter aparecido exatamente igual?
— Fui eu quem ateou fogo na casa da Kana.
Quando eu disse isso, meu marido fechou a boca. No entanto, ele não pareceu terrivelmente surpreso ao me ouvir dizer isso. Um momento depois, perguntou:
— Você realmente acredita nisso?
Ele ficou lá, olhando para mim. O olhar em seus olhos era calmo, e parecia que ele estava olhando diretamente para minha alma. E então falou, quase em uma súplica:
— Não havia nenhuma casa em chamas.
— Como pode dizer isso?
— Kana foi só uma invenção da sua imaginação. Ela é só outra parte de você. — Não entendi o que meu marido estava dizendo. — Sua mãe me disse que você estava tendo problemas para se encaixar na escola. Kana era esquisita, orgulhosa, boa em arte: Em outras palavras, era você. A criança que todo mundo da classe chamava de mentirosa? Essa era você.
Em estado de choque, murmurei:
— Sem chances.
— O motivo por trás do desaparecimento da Kana foi porque você não precisava mais dela. Tudo isso aconteceu em seu próprio mundo de fantasia. Só pensa nisso. Como poderia uma estudante do primário atear fogo na casa de uma amiga sem que ninguém percebesse?
No frio que emanava do concreto molhado, senti como se meu corpo estivesse congelando até o âmago. Meu marido parecia estar fazendo o possível para acalmar meus temores. Mas eu ainda não estava satisfeita.
— Não, você não sabe de nada!
Lembrei-me do quarto de Kana. A brisa de verão que soprava pela janela balançava a cortina enquanto nós duas desenhávamos, deitadas de barriga no chão de madeira fria. Essa era uma linda e preciosa cena de nosso doce mundo. Eu entendia a lógica por trás do que o meu marido estava dizendo, mas não podia deixar que isso apagasse a existência de Kana, deitada naquele quarto como se fosse uma linda sereia. Para mim, isso seria como matá-la duas vezes.
— Como você explica aquela casa em Tsugaru-Nakasato? — Eu o desafiei. — Aquela era a casa da Kana!
— Isso é impossível. Essa deve ser a sua própria projeção.
— Por que o Kojima desapareceu?
Meu marido fez uma careta, como se a pergunta o tivesse pego de surpresa.
— Não sei o que uma coisa tem a ver com a outra.
— E as silhuetas que eu vi lá nas ruínas? Eram Kojima e Kana de mãos dadas. Se aquela era a casa da Kana, então eles devem estar lá, juntos!
O rosto de meu marido estava ficando cada vez mais pálido e tenso.
— O-o que você está tentando dizer? Você não quer dizer…
— Alguém estava olhando pela janela depois que o Kojima desapareceu. Você viu quem era, não viu?
— Já falei, não consegui ver direito.
— Não minta para mim.
— Não estou mentindo!
— Você está mentindo. Quem era?
— Mas… mas isso é impossível. É impossível! — Meu marido falou entre dentes: — Era você olhando pela janela!”
Atrás de mim, de repente, ouvi o som de caixas caindo.
Quando me virei, vi Kana parada lá no final da passagem. Ela não tinha mudado nem um pouco em relação à aparência que tinha na escola. Seu casaco vermelho encharcado brilhava sob as luzes fluorescentes. Ela sorriu e acenou com a mão para mim, antes de abrir uma porta e sair correndo pelos fundos do mercado.
— Kana, espera! — gritei e saí correndo atrás dela.
Atrás do mercado havia um terreno baldio cheio de neve. Parecia o local onde antes havia um edifício demolido, era como um buraco branco na cidade. No centro do terreno havia uma casa com telhado de duas águas, cada janela resplandecia com a luz. Aquela luz me sacudiu como se eu fosse um prato caindo no chão.
Era a casa de Kana.
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No último dezembro, terminamos os preparativos para a exposição do Trem da Noite de Kishida Michio na minha galeria. As obras de arte foram enviadas da Galeria Yanagi em Quioto, e a entrega e disposição foram encerradas. Do lado de fora das janelas, a rua de trás de Ginza estava escura, mas o interior da galeria estava inundado por uma claridade quase sobrenatural. Os mezzotints pendurados nas paredes brancas como leite transbordavam com a misteriosa aura da noite.
Kojima chegou andando.
— Boa noite, Reiko.
— Ah, Kojima!
— Eu saí do trabalho mais cedo, então fui fazer compras em Yūrakuchō. Pensei em aparecer enquanto estava por perto. Esta noite o seu marido vai se atrasar, parece que há algum problema em uma das filiais… — Ele ficou tagarelando, olhando para as gravuras até que cruzou os braços e expirou. — Essas são umas imagens bem misteriosas, não são? Eu gosto disso.
— São de Kishida Michio. Ele faleceu há três anos.
Se alguém olhasse para aquelas gravuras por muito tempo, essa pessoa seria tomada por uma sensação estranha. Era como se além daqueles buracos retangulares perfurados nas paredes leitosas estivesse um mundo de noite sem fim. Havia quarenta e oito obras na série Trem da Noite, e de acordo com Yanagi da Galeria Yanagi, esta exposição em Tóquio seria a primeira em que todas elas seriam exibidas juntas. Onomichi. Ise. Nobeyama. Nara. Aizu. Okuhida. Matsumoto. Nagasaki.
— Você conhecia Kishida, Reiko?
— Já ouvi muito sobre ele, mas nunca o conheci. Ele parecia muito excêntrico.
— E ele passou toda a carreira criando esta série?
Quando Kojima me perguntou isso, me lembrei do comentário que ouvira de Yanagi, da Galeria Yanagi, alguns dias antes.
Na verdade, Kishida Michio havia criado em segredo uma contraparte da série Trem da Noite, intitulada Alvorecer. Se Trem da Noite era uma representação da noite eterna, Alvorecer retratava uma única manhã, de acordo com o próprio Kishida Michio. Mas ele nunca mostrou a Alvorecer para ninguém, e faleceu.
Parecendo fascinado, Kojima perguntou:
— Onde isso está agora?
— Não sei. Depois que Kishida morreu, a galeria organizou seus pertences, mas não encontrou nada relacionado a Alvorecer.
— Então ele estava mentindo?
— Até hoje ninguém sabe.
— Parece que ele era realmente excêntrico, esse cara, Kishida Michio.
Enquanto Kojima e eu examinávamos cada uma das gravuras, percebi meus pés se prendendo ao chão quando cheguei a um quadro em particular. Seu título era Trem da Noite —— Tsugaru.
Retratava uma casa com telhado de duas águas em um fundo totalmente branco. Uma mulher sem rosto se inclinava para fora de uma das janelas do segundo andar, acenando com a mão. De todas as quarenta e oito obras em exibição, aquela parecia a mais acolhedora e, ao mesmo tempo, a mais inquietante. Enquanto eu olhava para aquilo, comecei a sentir que estava sufocando, mas não conseguia desviar os olhos.
Kojima olhou para mim, preocupado.
— Algum problema?
— Por algum motivo, esta imagem realmente me atraiu. Não sei por quê.
— Meio que parece uma villa[9] em uma montanha, não é? Você acha que isso realmente existe em algum lugar de Tsugaru?
— Quer saber outro segredo sobre Kishida?
— Qual?
— Todas essas gravuras são cenas de uma viagem, mas, na verdade, Kishida nunca foi a nenhum desses lugares.
— Sério?
— Ele nunca viajou.
— Isso parece inacreditável. Ele até deu os nomes dos lugares e tudo mais — disse Kojima, incrédulo.
— Portanto, não existe uma casa como esta em Tsugaru.
— Não sei. Coincidências existem.
Estendi a mão e tracei meu dedo ao longo do contorno da casa. A mulher sem rosto se inclinando para fora da janela.
— Kishida sempre ia para a cama antes do nascer do sol e acordava depois que o sol se punha. Ele só encontraria seus amigos à noite. Ele viveu em um mundo de noites contínuas e colocou o que viu em seu trabalho… é por isso que é chamado de Trem da Noite.
— Um mundo de noites, hein? — murmurou Kojima, parecendo quase impressionado. Ele parecia querer acrescentar algo mais, mas no final se conteve e continuou apenas parado ao meu lado olhando para a gravura.
— Por que isso parece tão familiar? — murmurei, olhando diretamente para a imagem. — Talvez esta casa tenha sido construída em meu próprio mundo noturno.
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Eu corri sobre a neve, indo para aquela casa.
De longe, podia ouvir a voz do meu marido ressoando no ar, mas não olhei para trás.
Vi uma janela no segundo andar se abrir por dentro e uma figura feminina se inclinar para fora. A luz que saía da janela era tão cegante que a vi apenas como uma sombra negra. Mas mesmo assim eu sabia que era Kana. Ela abriu os braços para mim, dando-me as boas-vindas à casa.
Foi então que finalmente percebi.
Ela estava me chamando desde o momento em que vi aquele mezzotint na galeria em Ginza. O trem da noite que saiu na calada da noite da Estação Ueno partira para esta casa. Agora, a casa de Kana havia voltado à vida, brilhando intensamente na escuridão da noite. Todas as cortinas foram abertas, todas as janelas resplandecentes de luz.
Notas:
1 – O País das Neves é um livro real. Trata-se de uma obra para quem deseja desfrutar das sutilezas dos detalhes, é um livro extremamente sensível, está entre os que já li e realmente apreciei. Recomendo a leitura e, caso deseje comprar, clique aqui.⇧
2 – Estéreis: estéreis é o plural de estéril. O mesmo que: inúteis, faltas, assépticos, áridos, escassezes, improdutivos, ineficazes, infecundos ou inférteis.⇧
3 – Osamu é considerado um dos maiores autores japoneses do século XX. Seus textos se caracterizavam principalmente pelo pessimismo estabelecido em toda a sua narrativa.⇧
4 – Cedro: É uma árvore com uma madeira altamente valorizada pela demora na sua deterioração. No Líbano eles à vêem como sagrada.⇧
5 – São os bares tradicionais, que servem bebidas e também comidas que ficam prontas rapidamente, como tofu, frango frito e afins.⇧
6 – Sincelos são aquelas “dentes” de gelo que são formados pela neve que começou a derreter e voltou a congelar. São estalactites, só que de gelo.⇧
7 – Uso comercial e residencial.⇧
8 – Este mercado é no sentido de “feira”, são instalações em que muitos comerciantes se juntam para comercializar coisas normalmente de cultivo ou fabricação própria.⇧
9 – Um tipo de residência bem requintada e elegante.⇧
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