Tive Aquele Mesmo Sonho de Novo

Tive Aquele Mesmo Sonho de Novo – Cap. 10

Quando cheguei à casa da Vovó, pingando de suor, havia um bilhete pregado na porta de madeira mais uma vez. Tinha a mesma mensagem de antes. Entrei pela porta, limpei as patas da minha amiguinha, tirei os sapatos e entrei na casa silenciosamente. Meus passos soaram diferentes do que antes, porque eu estava usando sandálias hoje. Então, em vez do som escorregadio das minhas meias, havia o som de pés descalços no assoalho. Eu realmente esperava que a Senhorita Messalina pudesse elogiar aquelas sandálias.

Esperava poder mostrar minhas sandálias para a Vovó também, e que ela soubesse para onde a Senhorita Messalina tinha ido, para que pudéssemos ir imediatamente encontrá-la. Então, comeríamos sorvete e conversaríamos sobre o Kiriyuu.

A casa estava tão silenciosa que pensei ouvir a voz fraca das árvores que foram retiradas para a casa ser construída. Andei pelo corredor, me perguntando se a Vovó poderia estar no segundo andar novamente, mas eu a encontrei em seu quarto.

Talvez o som que ressoou quando abri a porta de vidro a tenha acordado. Ela estava deitada de lado em sua cama naquele quarto ameno com ar-condicionado, sorrindo gentilmente para mim.

— Entre. — ela disse.

— Ah, sinto muito. Você estava cochilando?

— Está tudo bem, eu estava acabando de acordar.

— Que bom. Estava tendo um sonho bom? — perguntei.

Ela sorriu para mim.

— Sim, tive aquele mesmo sonho de novo. — ela disse, sentando-se na cama com um movimento mais lânguido do que o normal e abrindo as cortinas. Ao contrário da sala de estar, o sol brilhava fracamente aqui.

A pintura pendurada na parede parecia brilhar com sua própria luz.

— Tem suco de laranja na geladeira. — ela disse, enquanto eu tentava fechar a porta corrediça.

Fui para a cozinha e voltei com duas caixinhas de suco. Ela pegou uma com um “obrigado” e colocou-a na cama. O sabor doce e azedo do suco de laranja lavou o gosto amargo que ainda permanecia na minha boca.

— Deu tudo certo? — perguntou de maneira simples. Eu concordei com a cabeça.

Normalmente, essa era a parte em que eu começava a falar, minhas palavras saindo como um rufar de tambores, mas não fiz nada disso.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou de novo. Ficou óbvio para ela.

— Sim. Foi bem com aquele garoto da minha turma. — falei em uma voz que soou como se estivesse se afogando. — Mas… a Senhorita Messalina se foi.

Contei a ela tudo o que havia acontecido naquele dia. Na verdade, comecei com o dia anterior. Disse a ela sobre minha depressão em relação a Kiriyuu, o conselho da Senhorita Messalina, o fato de ela ter começado a chorar de repente e a maravilhosa coincidência de nós compartilharmos uma frase de efeito.

Então contei a ela sobre hoje. Sobre como a Senhorita Messalina tinha desaparecido, o homem estranho agora morando em sua casa, o sorvete que ele me deu que eu não gostei e como tudo isso era muito mais misterioso do que quando a Minami tinha desaparecido.

Ela ouviu minha história e me disse que não sabia para onde a Senhorita Messalina tinha ido. Para meu pesar, mais um mistério passou pela minha mente. Decidi perguntar a ela sobre isso.

— A Senhorita Messalina desapareceu assim como a Minami. O fato de elas terem ido embora me faz sentir muito sozinha, mas não me sinto da mesma forma quando o Kiriyuu disse que me odiava.

— Entendo. — ela disse com um aceno de cabeça. Essa era a Vovó que eu conhecia. Ela sabia de tudo. — Parece que você não está se desesperando, então.

Não conseguia escrever o kanji para zetsubou, “desespero”.

— Talvez seja porque você já sabe em seu coração que vai encontrar a Senhorita Messalina e a Minami de novo algum dia. — ela disse, colocando em palavras o pequeno e curioso alívio que senti.

— Exatamente. — respondi. — Não tenho nenhuma prova, como um detetive em uma história de mistério teria.

— Isso é verdade. — Ela estreitou os olhos e acenou com a cabeça. — Mesmo assim, tenho certeza de que você está certa. Não se preocupe. Você definitivamente as verá novamente algum dia.

— Sim, tenho certeza disso também. — falei com um aceno firme.

— Afinal, você tem o poder de ver o futuro. — ela disse.

— Eu ainda queria conversar e jogar Othello com ela um pouco mais, no entanto.

— Mas agora você tem um amigo em sua turma. Por que não pratica com ele?

— Isso é verdade. Não sei se ele também tem o poder de ver o futuro, no entanto.

Ela riu disso, como se de alguma forma estivesse se lembrando do rosto dele. Não, isso era impossível. Ela nunca conheceu o Kiriyuu. Provavelmente só estava pensando em seu próprio amigo que gostava de desenhar.

— A Senhorita Messalina me perguntou se você estava feliz.

— É mesmo?

— Eu disse que você falou que estava, mas é por causa que voltou a pensar em seu amigo artista?

Ela riu novamente.

— Sim, talvez. Além disso, penso em você e na minha família.

— Então diria que felicidade é pensar seriamente em alguém?

— Nossa, o dia da sua apresentação está chegando?

Isso é o que eles chamam de acertar na mosca. No entanto, havia outro motivo pelo qual fiz essa pergunta.

— Na verdade, eu realmente quero saber a resposta. Embora esta tarefa seja complicada.

Era assim que eu me sentia. A tarefa sempre esteve em minha mente.

— Existem diferentes tipos de felicidade. — falei. — Muita coisa aconteceu ultimamente. Perguntei a diferentes pessoas sobre o que é felicidade e as respostas que encontraram. Para Minami, era ser reconhecida. Para a Senhorita Messalina, era pensar em outra pessoa, e, para Kiriyuu, era estar com amigos. Acho que cada resposta é verdadeira para eles, mas ainda não encontrei uma maneira de descrever a felicidade dentro de mim. É muito difícil escolher apenas uma coisa. A vida é como uma caixa de bento.

— E como é?

— Não consigo colocar tudo que gosto. E ainda não sei o tamanho dessa caixa de bento, nem como se chama. Vovó, se a Professora Hitomi lhe desse a tarefa de dizer o que é felicidade, qual seria a sua resposta?

Era uma pergunta super difícil, mas parecia que ela tinha a resposta. Ela olhou para o céu pela janela, como se lembrasse de algo de muito tempo atrás.

— Felicidade é…

— Sim?

— Ser capaz de dizer que você está feliz agora.

De todas as respostas que recebi, a dela foi a mais fácil de entender e a que mais facilmente penetrou em meu coração. Ainda assim…

— Eu acho que não poderei entender isso sem viver muito tempo.

— Isso é verdade. A felicidade que sinto é minha, como alguém que viveu muito mais do que você. É diferente da sua felicidade. Você tem que encontrar a sua, Nacchan.

No final das contas, não importa o quanto eu aprendesse, eu mesma teria que pensar sobre isso. Enquanto bebíamos nosso suco juntas, olhando para a imagem na parede, de repente me lembrei do que tinha na minha bolsa.

— Ah, é mesmo. Eu tenho um desenho do Kiriyuu.

Tirei a folha de papel da minha mochila. Conhecendo Kiriyuu tão bem quanto eu, era impressionante que ele tivesse me dado um desenho, mas como me deu, eu não poderia perder a chance de mostrá-lo.

Era o desenho de uma flor. Olhando para este desenho a lápis colorido, as rugas do rosto da Vovó se aprofundaram.

— É tão… lindo.

— Né? Não acredito que ele estava escondendo seu talento. Isso é o que eles chamam de desperdício, certo? Aposto que se continuar praticando, será tão incrível desenhando quanto o seu amigo.

— Heh heh, então meu amigo é incrível? Se você diz, então talvez seja verdade.

— Absolutamente. — falei obstinadamente.

Então me sentei na ponta da cama da Vovó e falei sobre Nossa Guerra dos Sete Dias, pois eu não tinha conseguido falar sobre isso com Ogiwara. Quando perguntei sobre o quão estúpidos os adultos eram no livro, ela riu e disse que há muito mais adultos estúpidos do que inteligentes, e que só porque um adulto é inteligente não significa que seja uma boa pessoa.

Eu adorava conversar sobre histórias. Eu gostaria de poder discutir a história da Minami da mesma maneira, mas assim que pensei nisso, o relógio bateu. Era hora de ir para casa.

Quando me levantei, a Vovó deitou-se, voltando para sua soneca. Fui até a porta com a Senhorita Bobtail logo atrás, em silêncio para não incomodar a Vovó. Com toda a honestidade, eu deveria ter saído, mas parei.

— Ei, Vovó? — Eu me senti inquieta. — Você não vai desaparecer também, vai?

Ela não respondeu. Em vez disso, eu podia ouvir sons contentes de sua respiração. Com cuidado para não incomodá-la, calei-me e saí da casa de madeira com a minha amiguinha ao meu lado.

Visitei o apartamento cor creme muitas vezes depois daquele dia, mas a Senhorita Messalina nunca estava lá.

Depois que a Senhorita Messalina desapareceu, eu só tinha duas opções de destino depois da escola. Uma era a casa da Vovó no topo da colina. A outra era…

— Não sou muito bom em Othello, no entanto.

— Bem, então vou deixar você ir primeiro.

Comecei a pegar a Senhorita Bobtail depois da escola e ir para a casa do Kiriyuu. A primeira vez que apareci com meu conjunto de Othello debaixo do braço, ele ficou surpreso, mas sua mãe alegremente me trouxe suco de laranja. Depois de algumas visitas, o choque enfim passou, e Kiriyuu e eu jogamos Othello e desenhamos felizes juntos. Era bom para cada um de nós ter algo em que éramos melhores.

Quando eu estava na casa do Kiriyuu, minha amiguinha sempre esperava do lado de fora. Afinal, ela era bastante tímida, assim como o Kiriyuu. Uma vez, eu o convidei para ir à casa da Vovó, mas ele simplesmente congelou, parecendo aflito.

— Bem, então, tudo de bom para você e sua mãe até nos encontrarmos novamente. — falei ao me despedir, como fazia todos os dias, acenando para os dois rostos sorridentes antes de seguir para o caminho íngreme de costume com minha amiga de pelo preto.

— A felicidade não vai viiiiiir na minha direçãããoo…

— Miau miau!

— Logo serão as férias de verão. O que você vai fazer?

— Miau.

— Bem, você é bem despreocupada mesmo. Eu quero ir para a piscina. Tenho um novo amigo agora. Devo tentar encontrar uma piscina que permita a entrada de animais e também de humanos.

— Miau…

Ela me lançou um olhar estranho. Provavelmente não gostava tanto de água.

— Vai ficar tudo bem. Também não posso nadar vinte e cinco metros inteiros. E se você realmente não quiser ir, vou encontrar outro lugar para nós três. A vida é como as férias de verão.

— Miau.

— Você pode fazer o que quiser! Então tem que encontrar algo incrível… Pode ser um pouco fácil demais, hein?

Enquanto conversávamos, logo chegamos à casa da Vovó. Como sempre, olhei para o papel preso na porta e, como sempre, entrei. Ainda estava tudo silencioso dentro da casa de madeira e, embora não pudéssemos ouvir nenhum som, não havia necessidade de sair à procura da Vovó.

Nos últimos dias, ela estava sempre dormindo. Às vezes percebia quando eu entrava, outras vezes dormia o tempo todo. Nunca tentei acordá-la. Eu sentava no chão lendo um livro, ou olhava o desenho na parede, ou brincava com minha amiguinha. Às vezes, ela acordava antes que eu tivesse que ir para casa; às vezes não. Quando não acordava, sempre arrancava uma página do meu caderno e escrevia um bilhete para dizer que tínhamos vindo.

— Você parece ficar com muito sono no verão. Sempre fico com sono na primavera.

— Quando se envelhece, o tempo parece passar mais rápido. Talvez eu já esteja na próxima primavera. — ela disse uma vez.

Achei que era um sentimento verdadeiramente curioso e maravilhoso. Se o tempo passasse mais rápido para você, então poderia ter muito mais momentos divertidos em um ano, afinal. Mesmo assim, comecei a me preocupar com o quanto ela parecia estar cochilando.

Desde que a Senhorita Messalina desapareceu, a Vovó sempre parecia estar dormindo, e muitas vezes nem percebia que eu estava ali. Eu me preocupava que, se ela cochilasse tanto durante o dia, talvez não conseguisse dormir à noite. Mas isso não era tudo que me preocupava.

Logo as férias de verão chegariam, assim como a nossa apresentação final. O que era felicidade? Os dias voaram e não pude formular uma resposta. Nesse ritmo, eu realmente iria ficar sem tempo.

Vovó estava dormindo novamente hoje. Sentada ao lado dela, olhei para o teto, meus braços cruzados. Mas nenhuma resposta caiu do céu. Provavelmente porque o teto estava atrapalhando.

O tempo passa e parece nunca mais voltar. Não importa o quanto precise, não importa o quanto implore, ele nunca mais volta. Tanto Minami quanto a Senhorita Messalina me disseram isso, e eu sabia que elas não tentariam me enganar, mas foi só quando eu experimentei por mim mesma que percebi como era verdade.

Antes que eu percebesse, faltava um dia para a apresentação, e eu ainda não tinha resposta para minha pergunta.

Eu tinha conversado muito com Kiriyuu e a Professora Hitomi sobre felicidade, mas ainda não tive sorte em montar o quebra-cabeça da resposta. Kiriyuu sempre pareceu um pouco envergonhado quando falávamos sobre isso, mas pelo menos ele decidiu fazer sua apresentação sobre seu desenho, afinal.

— E quanto a você? — ele perguntou, mas eu ainda não tinha preparado uma resposta.

— Quando você está desenhando o rosto das pessoas — ele disse. —, você começa com um círculo, depois divide ao meio na horizontal e os olhos vêm em seguida, bem no meio.

— Quando você está jogando Othello — falei. —, você quer tentar capturar os cantos o mais rápido possível. Então não pode ficar encurralado, entendeu?

Então a Senhorita Bobtail e eu fomos para a casa da Vovó, como sempre.

Talvez eu nem precise me preocupar em ir para lá hoje, pensei, mas decidi ir, no final.

Por que eu consideraria não ir para a casa da Vovó? Sempre fui lá, mas na semana passada não consegui falar com ela nem uma vez. Ela estava dormindo sempre que eu chegava, não acordando nenhuma vez durante o tempo que eu ficava lá. Só ficava deitada na cama, respirando suavemente. Ela dormia com tanta frequência que podia até estar se esquecer de comer. Ela parecia estar ficando mais magra.

Se vai dormir pacificamente de novo hoje, pensei, então talvez seja melhor ficar com o Kiriyuu e discutir a felicidade. Mas escolhi ir mesmo assim. Não houve nenhuma razão particular. Eu já tinha recebido minha última dica da Vovó, que viveu muito, muito mais tempo do que eu. Minha amiga de pelo preto parecia apoiar a decisão de ir para outro lugar, embora provavelmente não gostasse do Kiriyuu.

Então me dirigi para a grande casa de madeira, esperando ficar presa lá pensando em como seria bom se a Vovó estivesse acordada, mas quando minha amiguinha e eu entramos na casa e fomos para o quarto da Vovó, fiquei surpresa ao vê-la acordada e sentada. Soltei um pequeno “Uau!” ao vê-la. Ela olhou na minha direção, as rugas se aprofundando com um sorriso.

— Sinto muito, Nacchan. Recebi todas as suas cartas.

— Não, está tudo bem. Você não está com sono hoje?

— Estou bem hoje. Já dormi bastante. E também… — Ela parou, então disse algo que eu não entendi: — Eu sei que este é o último dia.

Sempre que você não entende algo, é melhor perguntar.

— Último dia para quê?

— Você me disse que sua apresentação de turma é amanhã, não é? Portanto, hoje é o último dia em que você terá tempo para se preparar.

— Oh, sim, isso é verdade. É por isso que vim aqui hoje, para falar com você. — Ela voltou a sorrir. Ela realmente parecia ter ficado um pouco mais magra.

— É claro. Podemos conversar sobre o que você quiser.

— Até dicas de dieta?

Sua risada era a mesma de sempre: calma, gentil e calorosa. Tinha um poder diferente da de Minami, da Senhorita Messalina e, claro, da minha. Eu tinha certeza de que algum dia seria capaz de rir daquele jeito, uma vez que tivesse uma vida longa e feliz. Senti que aprender o segredo daquela risada era a resposta final que buscava.

— Eu tenho uma coisa para perguntar, Vovó.

— Hm? O que foi?

— Eu quero saber como era sua vida.

Sentei-me na ponta da cama. Embora fosse mais macia do que minha própria cama, por algum motivo também era mais saltitante. Isso me fez querer pular nela, mas eu tinha feito a ela uma pergunta séria, então me contive.

Tenho certeza de que a Senhorita Bobtail também estava interessada em ouvir a história da Vovó. Ela saltou com seu corpo pequeno e flexível e se aninhou no colo da Vovó, olhando para cima com seus olhos dourados. Que mulher verdadeiramente diabólica ela era. Seus olhos pareciam induzir a Vovó a pensar em tempos passados. Quando a Vovó começou a falar, no entanto, a resposta que deu foi um pouco diferente da que eu queria ouvir.

— Desde quando eu era criança até me tornar adulta, e então me tornar a velha Vovó, vivi minha vida fazendo minhas coisas favoritas e passando tempo com minhas pessoas favoritas.

— Isso não é normal…?

Parecia um pouco anticlimático.

— Sim, é uma vida normal. Pude viver uma vida feliz e completamente normal. — Sua voz soou como se estivesse explodindo. Cheia de alegria. — Sabe, isso poderia ter acontecido comigo também.

— O que poderia ter?

— Não ter amigos.

Tudo que pude fazer foi inclinar minha cabeça em confusão, mas a Vovó acenou com a cabeça como se estivesse me elogiando.

— Eu poderia não ter chegado a ser aliada de ninguém. Podia não ter sido amada e podia ter magoado as pessoas. Mas eu consegui. Eu era uma aliada das pessoas que importavam para mim. Amo meus amigos e família. Posso ter machucado alguém de vez em quando, mas tentei ser uma boa pessoa. E assim minha vida foi feliz. E, no entanto, poderia ter sido diferente. — Ela olhou direto nos meus olhos. — Eu poderia ter falhado em pedir desculpas, perdido pessoas e ter sido deixada sozinha para me machucar. — Pensei na Minami.

Ela agarrou minha mão, que foi colocada na cama.

— Eu poderia ter me autodestruído, odiado a mim mesma e, pior ainda, tentado acabar com minha própria vida.

Lembrei-me da mão da Senhorita Messalina.

— Mas não o fiz. Pude trilhar o caminho da felicidade. Se eu contasse as coisas terríveis que aconteceram ao longo dessa estrada, a lista nunca teria fim, mas houveram incontáveis momentos mais divertidos e felizes.

— A vida é… uma estrada? — perguntei, curiosa sobre a maneira como ela falava sobre trilhar o caminho da felicidade e lembrando das palavras que Minami e Senhorita Messalina usaram.

Você não pode voltar no tempo. Portanto, a vida era como uma estrada que corria apenas em uma direção, talvez. No entanto, a Vovó balançou a cabeça.

— Não, a vida não é uma estrada. Afinal, não há sinais de trânsito na vida.

Eu ri de sua piadinha e ofereci uma das minhas:

— Então, a vida é como uma autoestrada?

— Talvez.

Foi a primeira vez que ouvi uma resposta tão direta dela. Eu ri.

— Minha vida foi realmente feliz. Nacchan, você está feliz agora?

Eu nem precisei pensar.

— Sim, estou muito feliz agora.

Pensei em minha mãe, em meu pai e em mim. Pude comer coisas que gosto no jantar. Eu tinha um amigo com quem podia jogar Othello. Quando ia à escola, tinha uma professora que era minha aliada. Tinha uma Vovó que era gentil e maravilhosa. Eu tinha uma amiguinha que cantava comigo. Eu sabia que veria a Minami e a Senhorita Messalina novamente algum dia. Havia coisas ruins também, mas, no que me dizia respeito, havia muito mais coisas  felizes.

— Você é inteligente, Nacchan, então tenho certeza de que entende exatamente como obteve essa felicidade.

— …

— Fiz o mesmo. E tenho certeza de que aquelas que você chama de Senhorita Messalina e Minami poderão fazer isso de agora em diante, tudo graças a você.

— …

— Todo mundo escolheu… — ela disse.

Eu senti como se pudesse ver a luz no fim do túnel.

— … ser feliz.

Quando eu enfim saí daquele túnel escuro e desesperadamente longo, uma luz brilhante explodiu diante de mim e, com ela, uma cena linda e extensa. Havia vento e uma vegetação incontável. Havia felicidade e predestinação ilimitados. Dei um único passo naquele mundo à frente e senti meu coração transbordar de doçura. As palavras da Vovó fizeram meu coração voar de alegria. Era uma fantasia, mas não era uma mentira. Foi o que eu percebi, no fundo.

— Obrigada, Vovó. — falei, do fundo do meu coração. — Estou feliz por ter vindo te ver hoje.

— Você encontrou sua resposta?

— Sim.

Isso era um mistério. Sempre houve tantos mistérios, e agora eu estava no limiar de outro. Eu estava no quarto da Vovó, sentada em sua cama, a Senhorita Bobtail e a Vovó ao meu lado. Nada no mundo tinha mudado, no entanto, parecia brilhar com uma luz diferente.

A Vovó acariciou meu cabelo com seus dedos finos, como se soubesse de tudo. Sabia que meu mundo tinha acabado de mudar.

— Minha vida transbordou de felicidade, assim como a sua. Na verdade, não conseguia pensar em nada feliz que não tivesse acontecido comigo. E ainda, mesmo no final, Deus sorriu para mim. Eu não poderia ter vivido uma vida mais feliz.

— O que Deus deu a você?

— O presente de conhecê-la.

Uma felicidade imensa brotou dentro de mim. Eu tinha conseguido ser parte da felicidade da Vovó. Eu a fiz feliz. E eu sabia que nada do que ela disse era mentira.

— Não preciso de mais nada. — ela falou. — A peça final na minha partida de Othello é a felicidade chamada Nacchan.

— Então a vida não é uma estrada, mas sim um jogo de Othello?

Ela balançou a cabeça novamente.

— Não, não é isso. — disse, sonolenta, como se a luz agradável e gentil a tivesse enfeitiçada.

Peguei minha amiga em seu colo e a Vovó deitou-se de lado. Seus olhos estavam um pouco abertos.

— Obrigada, Nacchan. — ela disse. — Você poderia abrir a janela?

Estendi a mão para o outro lado da cama e abri uma das vidraças. Uma brisa docemente perfumada soprou.

— Há mais alguma coisa que gostaria que eu fizesse? —perguntei.

— Não, isso vai servir… obrigada.

— Vou para casa então, e você pode tirar sua soneca. Obrigada por tudo, Vovó.

— Certo. Espero que sua apresentação corra bem.

Ela fechou os olhos pacificamente e me virei para sair do quarto, minha amiguinha peluda em meus braços. Mas assim que abri a porta de vidro, a ouvi chamar meu nome novamente.

— Uma última coisa. — disse. — Eu tenho algo para dizer.

— O que é?

— Escute. A vida é como…

Não havia dúvida que copiar minha frase de efeito era para ser engraçado. Ainda assim, ouvir suas palavras encheu meu coração de mais alegria do que a piada mais inteligente.

Saí do quarto dela, caminhei pelo corredor silencioso, calcei meus sapatos e saí. Lá, eu vi a clareira gramada pela qual sempre passamos. E, no entanto, parecia brilhar com uma luz que eu nunca tinha visto antes. Foi tudo graças à Vovó. Eu sabia que não voltaria amanhã.

— Bem, é melhor ir para casa e anotar tudo para a apresentação.

Desci os degraus de madeira do lado de fora e pisei na grama. Então, como sempre, comecei minha música.

— A felicidade não vai viiiiiir na minha direçãããão!

— Miau.

A vozinha que veio atrás de mim não era de uma canção. Eu me virei por causa de seu tom peculiar. Ela tinha algo importante a dizer.

— O que está acontecendo?

Quando olhei para trás, vi que a Senhorita Bobtail ainda estava sentada diante da grande porta da enorme casa de madeira da Vovó, olhando para mim com seus olhos dourados.

— Miau…

Ela ficaria na casa da Vovó, disse ela. Esta foi a primeira vez que nos separamos em um lugar que não seja na frente da minha casa.

— Entendi. Vejo você amanhã. Tente não incomodar a Vovó.

— Miau.

Sua voz soou estranha. Parecia obrigada e adeus. Eu tinha certeza de que isso só era possível em sua voz, que não poderia vir de lábios humanos. Isso me preocupou, mas, novamente, uma garota perversa como ela sempre parecia estar sugerindo algo, então eu acenei e desci a colina.

Foi o vento que me fez virar.

Uma forte rajada de vento soprou contra meu corpo. Como se estivesse sendo puxada pelas próprias mãos do vento, me virei para encarar a casa da Vovó. Ou melhor, onde ficava a casa da Vovó.

Eu sabia que, quando as pessoas são surpreendidas, nunca fazem barulho.

Diante de mim estava um campo vazio. Havia grama, flores e árvores. E mais nada.

Não havia nenhum vestígio da casa de madeira que estava lá, nem da amiga com quem eu tinha acabado de falar.

Esse vento forte não soprou novamente.

A atmosfera na sala de aula era tão tensa quanto as cordas do violão do meu pai. Estava claro que todos na sala – exceto a Professora Hitomi – estavam nervosos. Kiriyuu e eu estávamos nervosos, apesar de haver menos pessoas para nos observar neste momento. Muito menos do que no dia de observação.

Nosso nervosismo era natural. Eu tinha passado todos os dias meditando sobre as coisas para este momento, de maneiras inteligentes e de maneiras menos inteligentes.

Como sempre, demos nossos cumprimentos. Como sempre, conversamos brevemente sobre coisas não relacionadas. Então, ao contrário de sempre, chegou a hora de nossas apresentações finais.

Eles começaram com o menino na primeira fila do lado esquerdo da sala. Eu poderia facilmente ter ignorado as apresentações de todos os outros, concentrando-me em ler a minha de novo, me perguntando se tinha um jeito melhor para apresentar. Mas, em vez disso, escolhi ouvir atentamente o que meus colegas tinham a dizer. Afinal, eu ficaria triste se eles não me ouvissem, com todo o pensamento que coloquei nisso.

Somos todos diferentes, mas somos todos iguais.

Talvez haja apenas uma pessoa com uma resposta próxima à minha, pensei animadamente, mas não parecia haver tal coisa. As apresentações continuaram e finalmente chegaram a Kiriyuu.

Eu estava nervosa, mas quando olhei para ele, vi que Kiriyuu estava ainda mais nervoso. Por alguma razão, ver o suor escorrendo em sua testa aliviou um pouco minha própria tensão. Talvez ele tenha sugado de mim.

Eu me senti muito mais calma e sabia que era hora de encorajar Kiriyuu. Afinal, ele gentilmente tirou toda a minha tensão. E, no entanto, quando o chamei, ele não pareceu ouvir. Em vez disso, segurei sua mão abaixo da mesa, fora de vista. Ele pareceu surpreso, mas quando viu meu rosto, mordeu o lábio trêmulo e sorriu. Lentamente, seu tremor também desapareceu.

Quando chegou sua vez, ele se levantou com orgulho — não, isso pode ser exagero; sua voz ainda estava muito baixa — e falou de sua felicidade.

Parecia que as pessoas ainda zombavam dele às vezes, mesmo depois daquela apresentação – sobre seus desenhos e, por algum motivo, sobre mim. Que coisa mais idiota, zombar de duas pessoas por serem aliadas.

Se continuasse acontecendo com o Kiriyuu, e se ele quisesse, eu ficaria feliz em lutar por ele novamente. Mas não lutei muito depois disso. Aos poucos, Kiriyuu parecia ficar melhor em responder ou fugir.

Sua apresentação foi maravilhosa em todos os aspectos: fosse sobre seu desenho, sua família, a Professora Hitomi ou uma certa vizinha de assento na turma.

E então tudo acabou, e eu era a próxima. Eu levantei quando meu nome foi chamado. De repente, ele estava de volta: o nervosismo que pensei ter desaparecido, subindo ruidosamente pelas minhas costas como vermes. Repetidamente, não consegui pegar meu caderno da mesa, com as mãos tremendo. As anotações foram escritas de minha própria mão, mas de repente não consegui mais lê-las. O que eu deveria fazer?

Uma única gota de suor desceu pela minha testa e alguém agarrou minha mão, pendurada ao meu lado.

Era Kiriyuu. Eu senti aqueles vermes recuarem de repente. Eu olhei diretamente para a Professora Hitomi, levantando meu caderno com as duas mãos. Então olhei para a turma e dei a resposta na qual vinha pensando há tanto tempo.

— Minha felicidade é…

Durante toda a apresentação, eu me lembrei. Lembrei-me da Minami, da Senhorita Messalina, Vovó e Senhorita Bobtail, e dos dias que passei com todas elas.

Talvez eu tenha percebido que nunca mais os veria.

Tenho certeza de que estava chorando.

Depois da escola naquele dia, fui para a sala dos professores. Kiriyuu, que agora era meu companheiro habitual na caminhada para casa, esperava por mim. Havia algo que eu precisava perguntar à Professora Hitomi.

Quando entrei na sala, a Professora Hitomi estava conversando alegremente com o Professor Shintarou. No momento em que me notou, ela sorriu.

Aproximei-me dela, dizendo que havia uma longa conversa que eu precisava ter. Ouvindo isso, ela me levou para uma sala de aula pequena e vazia.

Sua gentileza foi um bálsamo e eu fui capaz de dizer o que precisava.

— Eu costumava ter algumas amigas.

Ela inclinou a cabeça e comecei a falar. Contei a ela sobre a Senhorita Messalina, Minami, Vovó e a garotinha de olhos dourados. Disse a ela sobre os tipos de conversa que tivemos, o tipo de coisas que aconteceram, como elas me ajudaram, tudo. Agora, pensei, pela primeira vez, ela pode realmente entender o que estou tentando perguntar.

— Eu não entendo porque minhas amigas desapareceram. Isso é um mistério.

Talvez esse fosse um problema que nem ela entendia. Esses acontecimentos eram tão misteriosos. Eles deveriam ter sido impossíveis sem o envolvimento de uma varinha de algum feiticeiro. Então, fiquei chocada ao vê-la levantar o dedo como sempre. Isso que é um adulto, pensei. Um professor, ainda por cima.

Ainda assim, no final, a Professora Hitomi não conseguia ser nada mais do que minha doce e amada Professora.

— Talvez elas tenham vindo aqui apenas para conhecê-la?

 Ela sempre estava errada.

— Isso não é verdade. Sempre fui vê-las.

Ela não parecia preocupada com esta resposta. Em vez disso, deu uma risada leve.

Vamos pensar sobre mistérios.

Com aquela lição secreta compartilhada apenas entre nós duas, saímos da sala de aula vaga. A Professora Hitomi voltou para a sala dos professores, enquanto eu fui encontrar Kiriyuu. Eu o encontrei na biblioteca esperando por mim. Ele estava lendo o livro que eu tinha recomendado anteriormente, As Aventuras de Tom Sawyer.

Kiriyuu.

Tentei chamá-lo. Silenciosamente, para não assustá-lo. Mas minha boca e laringe já tinham sumido.

Eu não conseguia mais falar e enfim percebi que meu olho esquerdo e meu direito estavam vendo duas cenas diferentes.

Foi quando eu percebi.

Este é o fim.

 


 

Tradução: SoldSoul

Revisão: Guilherme

 

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