Tive Aquele Mesmo Sonho de Novo

Tive Aquele Mesmo Sonho de Novo – Cap. 08

No dia seguinte, Kiriyuu não foi à escola, como tinha dito.

De alguma forma, consegui me arrastar até lá, a escuridão ainda persistindo em meu coração. Não poderia faltar à escola depois de ser tão inflexível que Kiriyuu deveria vir. E ainda assim, ele não apareceu.

Rezei para que a escuridão dentro do meu corpo fosse embora, mas não estava indo a lugar nenhum. Claro, eu queria voltar para casa. Queria me apressar e ver meus amigos. Esse era o meu desejo. Eu queria ver a Senhorita Messalina, a Vovó e a Senhorita Bobtail.

Pensando bem, para onde a Minami foi?

Ao pensar em minha amiga desaparecida durante os estudos sociais, me vi à beira das lágrimas novamente. Decidi ir à biblioteca durante o intervalo. Lá, o cheiro dos livros e dos tesouros escondidos dentro deles certamente me darão algum conforto.

Este plano foi, pelo menos, ligeiramente bem-sucedido. A escuridão ainda permanecia dentro de mim, mas pelo menos sua fúria foi contida e consegui conter minhas lágrimas.

Eu poderia pelo menos manter a coisa perversa sob controle até depois da escola. Assim, poderia tomar sorvete com a Senhorita Messalina como sempre e ir para a casa da Vovó comer doces. Seria melhor se eu simplesmente esquecesse Kiriyuu; se eu pudesse esquecer todas as coisas desagradáveis.

Essa era a minha maneira de pensar. E, no entanto, não conseguia pensar assim por muito tempo. Eu tinha que encontrar uma maneira melhor de limpar esta mortalha sombria do meu coração.

Foi quando estava saindo da biblioteca que o vi, andando um pouco à minha frente pelo corredor. Aproximei-me dele por trás e gritei:

— Saudações, Ogiwara.

Seus ombros tremeram, como se minha saudação o tivesse surpreendido. Enquanto esperava que ele se virasse, pensei no que iria dizer. Estive lendo Nossa Guerra de Sete Dias ultimamente. O que você andou lendo, Ogiwara?

Se ainda houvesse uma pessoa em nossa turma que não me odiasse, mesmo que fosse a única, isso aliviaria o fardo em meu coração. Eu orava apenas por isso. E, no entanto, a vida é como uma febre quando você está doente: geralmente é pior do que você imagina.

Eu tinha chamado o nome do Ogiwara. E, ainda assim, ele não deu sinais de se virar para me encontrar. Pior, ele começou a andar mais rápido em direção à sala de aula.

Pensando que talvez ele não tivesse me ouvido, ou que estivesse surpreso com outra coisa, chamei-o mais uma vez:

— Ei, Ogiwara.

Ele não respondeu, nem parou. Achei estranho. Chamei mais uma vez:

— Ogiwara?

Ele não se virou. Chamei seu nome de novo e de novo, cada vez minha voz ficando mais alta. Quando chegamos à sala de aula, minha voz estava tão alta quanto ontem com Kiriyuu.

Ogiwara!

Sem uma resposta, Ogiwara sentou-se e abriu seu livro. Eu só tinha uma vaga ideia do que estava acontecendo, mas não queria acreditar. No entanto, eu sabia pela maneira como os meninos da minha turma sorriam, com olhares sujos em seus rostos, que meu desejo não se tornaria realidade.

Ignorar alguém. A forma mais tola e idiota de intimidação.

Até então, não tinha pensado em me preocupar tanto com isso. Agora, no entanto, meu coração foi tomado por uma escuridão que ficou ainda mais voraz. Meu coração foi consumido pelo conhecimento de que até eu poderia ser intimidada, e até Ogiwara poderia participar disso.

Eu só soube muito depois que foi Ogiwara quem espalhou os rumores sobre o pai do Kiriyuu. Nada disso teria importado para mim naquele momento, no entanto. Agora, minha mente estava em desordem. Fiquei arrasada, pois Ogiwara me traiu. Que o mundo inteiro tinha. DUVIDA

Não me lembro de nada do tempo que se passou entre aquele momento e quando cheguei à casa da Senhorita Messalina naquela tarde.

Quando enfim voltei à realidade, estava tocando a campainha da Senhorita Messalina. Não conseguia me lembrar de como tinha chegado lá. A Senhorita Bobtail não estava presente. Antes que eu percebesse, meu dedo já estava na campainha.

— Estou indo. — disse a voz sonolenta e calorosa da Senhorita Messalina de dentro.

A porta se abriu e o rosto sonolento dela surgiu.

Quando viu meu rosto, ela me convidou sem dizer uma palavra.

Tirei meus sapatos, entrando na sala e me arrastando para o canto. Me encolhi lá, meu rosto o mais baixo possível. Ela já tinha me visto claramente, mas usar um rosto lamentável não parecia nada inteligente, então minha postura formou um pequeno triângulo humano.

Mesmo quando ela voltou para a sala, a Senhorita Messalina não perguntou nada. Eu ouvi o som dela abrindo a geladeira e colocando algo em cima da mesa perto de mim.

— Encontrei isso enquanto estava fora hoje e achei que era incomum, então comprei alguns. Coma.

Eu balancei minha cabeça, nem mesmo erguendo os olhos para ver o que era. Fez um som sibilante quando minha testa esfregou contra o tecido da minha saia.

Eu a ouvi se levantar novamente, e o cheiro de café soprou — duas das minhas coisas favoritas. No entanto, eu não estava com humor para isso hoje.

Talvez ela esteja aborrecida, até com raiva, pensei. Aqui estava uma criança terrivelmente rude que de repente invadiu sua casa chorando e nem mesmo disse nada.

Ela terminou de fazer o café e voltou para onde estava sentada. Tudo que eu podia ouvir era o som do ar condicionado. Mesmo isso durou pouco tempo. Logo depois, ouvi outro som.

— A felicidade não vai viiiiiir na minha direção… é por issoooo que partiiiiiii para encontrá-la hojeeeeee!

Eu ouvi a bela voz cantada da Senhorita Messalina alcançando alturas e profundezas que eu ainda não conseguia alcançar sozinha. Como um quadro pintado em tons de vermelho e azul inconstantes.

Ela provavelmente está tentando me animar, pensei, mas eu não conseguia cantar.

Seu canto parou de repente.

— O que é felicidade? — perguntou ela repentinamente.

Eu tinha certeza de que ela podia ver minhas orelhas atentas àquilo. Enterrei meu rosto mais profundamente em meus joelhos, mas ela continuou falando.

— Tenho pensado nisso desde que você perguntou pela primeira vez.

— …

— Acabei de descobrir a resposta hoje.

Eu levantei minha cabeça, mas quando estava prestes a encontrar seus olhos, virei de volta para o chão. Havia o cheiro maravilhoso de seu café — apesar do gosto amargo — e o cheiro chamativo de seu perfume e maquiagem. Fiquei intrigada ao ouvir a resposta da Senhorita Messalina.

Como a sala estava tão silenciosa, ela provavelmente poderia sentir que meu interesse havia sido despertado. Ela engoliu um gole de café.

— Mas, tipo assim, esta é apenas a minha resposta, então provavelmente é diferente da sua. Porém, pode lhe dar alguma dica, então pensei em compartilhar com você. — Ela não esperou que eu a considerasse. — Felicidade é poder pensar seriamente em alguém.

— …

— Fui às compras hoje. Comprei comida para o café de amanhã, bebidas e um novo pote de xampu. Era uma tarefa normal, diária, algo que faço todos os dias, nada de especial. Ao comprar pão e leite, pensei se tinha esquecido de comprar alguma coisa. Ocorreu-me que você poderia vir hoje e que eu deveria comprar algo doce. Tentei me lembrar do que comemos juntas antes, o que poderíamos comer juntas hoje e como esperava que isso te deixasse feliz. Antes que eu percebesse, não estava pensando em nada além de você.

Fiquei quieta, e ela continuou:

— Quando percebi, fiquei surpresa. Eu nunca pensei tão seriamente sobre alguém, não há muito tempo. Nunca houve ninguém que eu quisesse fazer feliz, com quem eu quisesse estar. Eu tinha desistido de tudo isso. Fazia tanto tempo que eu tinha esquecido o quão cheio seu coração poderia ficar quando você passa a pensar apenas em outra pessoa.

— …

— Você sabe de uma coisa, mocinha? Tornei-me uma adulta que simplesmente desiste das coisas de que não gosta ou das coisas que são dolorosas. Eu era capaz de fingir antes, mas não estava feliz. Já tinha esquecido a forma da felicidade. Mas, hoje, finalmente me lembrei.

— …

— Eu me lembrei que forma a felicidade tem, tudo graças a você. Obrigada.

Eu poderia dizer que ela tinha se levantado. As tábuas do assoalho rangeram aqui e ali. Enquanto se movia, soou como o grito de um rato. O som agudo se aproximava cada vez mais e depois parava. A Senhorita Messalina sentou-se ao meu lado, perto o suficiente para eu sentir seu calor suave.

— Vou parar de tagarelar agora. Obrigada por ouvir. — ela disse. — Eu sei que ouvir adultos pode ser entediante. No entanto, é típico de você ser capaz de sentar e ouvir tão silenciosamente. Tudo bem, aqui está sua recompensa por prestar atenção à minha história chata.

Ela envolveu seus lindos dedos em minhas mãos.

— Como agradecimento, se houver alguma coisa sobre a qual você queira falar, eu sempre te ouvirei quando você quiser.

Posso até chorar de novo, pensei, mas não chorei.

Suas palavras me deixaram feliz. Elas transbordavam de bondade, mas não eram mimadas. Eu realmente espero me tornar uma adulta como ela algum dia, pensei. Além disso, ela disse que encontrou a felicidade graças a mim. Não há alegria maior do que essa.

Teria sido bom se eu pudesse pular de alegria agora, mas não conseguia. Eu não conseguia acreditar em sua ideia de felicidade.

Falei com a minha voz embargada pela primeira vez naquela tarde:

— Eu pensei sobre isso.

— Hm?

— Eu pensei muito mesmo! Mas foi inútil! — Não era certo gritar com a Senhorita Messalina tão alto. Respirei fundo. — Sinto muito.

Mas, além da minha voz alta, eu não poderia me desculpar por minha reação.

— Eu pensei muito, e pensei muito mesmo sobre isso. Pensei nisso dia e noite. Eu pensei, assim como você disse! Pensei em meu colega de turma mais do que jamais pensei em qualquer coisa, mas tudo o que isso resultou foi em ser ignorada! Ele disse que me odiava! Isso não é felicidade.

— Entendo…

— Não quero mais pensar nas outras pessoas.

— Não diga isso.

Suas palavras eram de repreensão, como as de uma professora. Os adultos sempre diziam que a amizade era a coisa mais importante neste mundo. Ela provavelmente estava com raiva de mim por dizer algo tão errado. Fiquei decepcionada comigo mesma. Não era isso que amigos faziam. No entanto, a próxima coisa que ela fez me garantiu que eu não estava sendo repreendida.

Ela apertou minhas mãos. E então, com uma voz baixa que parecia conter um mundo de tristeza, disse:

— Você vai acabar como eu.

Não sei porquê havia tanta tristeza enterrada em sua voz.

— Então não deve pensar assim.

— Por que não?

Minha pergunta veio do fundo do meu coração. A Senhorita Messalina é uma pessoa maravilhosa, pensei. Desejava que todos os adultos fossem como ela. Não, eu gostaria que todas as pessoas pudessem ser tão maravilhosas quanto ela. Se assim fosse, teríamos um mundo onde todos eram espertos, com um cheiro maravilhoso. Um mundo tão lindo que nem poderia ser desenhado em imagens.

— Eu quero ser uma adulta como você. Se eu fosse tão inteligente, legal e maravilhosa quanto você, não precisaria de amigos na escola.

Eu apertei suas mãos de volta. Quando o fiz, ela soltou um suspiro lento e silencioso que não entendi. Ficou tão quieto que pude ouvir o ar condicionado novamente.

— Eu tenho um sonho com frequência. Tive aquele mesmo sonho de novo esta manhã.

— Que tipo… de sonho?

— Eu sonho com uma garota. Essa garota é inteligente, lê muitos livros e sabe muitas coisas, o que a faz pensar que é uma pessoa muito especial. Diferente de todos ao seu redor.

Isso era uma história? Antes que eu pudesse perguntar, ela continuou:

— É importante pensar que você é especial. No entanto, essa garota está enganada em seu pensamento. Ela acha que todos ao seu redor são idiotas. Embora isso não seja verdade, porque a inteligência dessa garota é o que a torna especial, ela acha que ser inteligente é o único caminho para se tornar especial. Ela pensa que, enquanto tiver isso, pode se tornar alguém importante.

Ela tossiu um pouco.

— Esta menina é uma criança importante, mas alguém que menospreza os outros nunca será apreciado por ninguém. Ela se torna cada vez mais odiada pelas pessoas ao seu redor. A pior parte é que essa garota acha que está tudo bem, pois odeia todas as crianças idiotas ao seu redor. Bem… agora que penso nisso, ela não os odeia de verdade. É que não consegue pensar em nenhum deles.

Ela agarrou minhas mãos.

— Provavelmente há pessoas que tentam entender essa garota, mas ela fica cada vez mais velha, sem dar atenção a ninguém. Está trancada em seu próprio mundinho, dedicando seu tempo para se tornar mais inteligente. Acredita que enquanto fizer isso, um dia será feliz. Mas está errada.

Eu segurei suas mãos de volta.

— Quando ela é adulta, essa garota é muito inteligente. Mas é tudo o que tem. Um dia, percebe que não há mais nada ao seu redor. Deveria ter se tornado uma pessoa importante, mas percebe que não há ninguém por perto para elogiá-la.

Isso soa como…

De repente, fiquei muito preocupada com essa garota.

— O que acontece com ela?

— Posso contar o resto da história a partir daqui, mas não tenho certeza se você entenderia. Mesmo que entenda, não posso te dizer o que significa. E não quero. Você ainda deseja ouvir?

Eu balancei a cabeça, meu rosto ainda enterrado em meus joelhos.

— Ok, bem, essa garota começa a pensar que sua vida não tem sentido. Então começa a pensar que nada importa e passa a abusar de seu corpo e a maltratar seu próprio coração. Ela vai a lugares perigosos, se mete em coisas perigosas e causa perigo a si mesma. Ainda assim, não está infeliz com isso. Acha bom se destruir. Embora sua vida seja algo que construiu para si mesma, ela odeia. Ela deixa sua vida em ruínas, ruínas e em mais ruínas, mas ainda precisa de dinheiro, então negligencia seu próprio bem-estar para ganhá-lo. Antes que perceba, vê-se morando naquele lugar. Claro, mesmo lá, existem pessoas orgulhosas e maravilhosas. As circunstâncias e o trabalho em si não são culpados. Essa garota é a má na história. E, com certeza, mais e mais ruínas recai todos os dias sobre essa garota sem orgulho. Mas os humanos podem se acostumar com qualquer coisa. Assim que se acostuma, ela percebe mais uma coisa: também não adianta se destruir. E então pensa que pode muito bem dar um fim a esta vida.

Eu estava em silêncio.

Exatamente como ela disse, não entendi o significado de sua história. Eu poderia imaginar, mas apenas vagamente, e não tinha ideia do que queria dizer com “coisas perigosas” ou “maltratar seu coração”. Havia apenas uma coisa da qual eu tinha certeza.

— Essa garota é você, não é? — A Senhorita Messalina ficou em silêncio. — O que significa “pôr fim a uma vida”? — perguntei, preocupada com o futuro dessa garota.

— Quem sabe? — disse a Senhorita Messalina. — No final das contas, ela não acaba com sua vida, então não sei o que isso significaria. No dia em que pensa em terminar com ela, uma visitante aparece de repente em sua casa. É uma menininha, carregando uma amiguinha com ela.

Eu finalmente levantei minha cabeça e olhei para ela. Mostrei bem o meu rosto, sujo de ranho e lágrimas. Não sei porque fiz isso. Acho que só queria olhar para o rosto dela. Ela estava sorrindo para mim gentilmente, como sempre fazia.

— A partir daí, os dias dela passaram a ser muito divertidos. Ela não tinha nenhum amigo antes disso, mas agora percebe como as coisas poderiam ter sido muito melhores se tivesse aprendido a amar alguém mais cedo. Porém você nunca pode voltar atrás.

Você não pode voltar no tempo. Lembrei-me da Minami dizendo isso.

— Estou animada para ver que tipo de pessoa você se transformará, mas estou preocupada com você. Sabe por quê?

Balancei a cabeça.

— Porque você é exatamente como aquela garotinha. Não pode se permitir trilhar o mesmo caminho. Tem que encontrar a felicidade. É por isso que não pode falar sobre se desconectar de todos.

Enquanto pensava no que ela estava dizendo, apertei sua mão novamente.

Eu estava tão confusa. Eu me senti como se estivesse presa no meio de um labirinto.

Por ser inteligente, entendi o que ela queria dizer. Mas entender o que ela quis dizer e ser capaz de seguir em frente eram duas coisas totalmente diferentes. Já tinha decidido que não queria mais me envolver com as pessoas que me machucaram, afinal. Além disso, mesmo se eu pudesse mudar meu pensamento, ainda não achava que ninguém além da Senhorita Messalina e da Vovó iria querer estar perto de mim. Até Ogiwara e Kiriyuu me odiavam. Não havia esperança.

De repente, eu queria ouvir mais sobre essa garota, que era tão parecida comigo.

— Aquela garota gostava de livros, certo?

— Mm, sim, assim como você. Ela adorava livros e estava sempre lendo. Certa vez, ela pensou que poderia se tornar alguém que escrevia histórias, mas quando percebeu que não havia ninguém por perto para lê-las, esqueceu esse sonho.

— E a mãe e o pai dela?

— Tenho certeza de que eles ainda vivem felizes juntos em algum lugar. Ela não os via há muito tempo. Certa vez, pensou em voltar para casa e percorreu todo o caminho até lá, mas não conseguiu tocar a campainha. Ela estava com muito medo.

— Não tinha amigos para conversar sobre livros, nem para tomar sorvete, ou amigos de cauda curta?

— Não, nenhum. E, então, não havia ninguém para lhe dizer quando estava errada.

— Ela tinha alguma frase favorita, como eu?

Ela respondeu minha enxurrada de perguntas insolentes diretamente, uma após a outra. Isso me deixou feliz e, por isso, comecei a fazer mais perguntas.

— Frase?

Ela olhou pela janela, como se buscasse um dia em sua memória. Meus olhos estavam fixos em seu rosto. Ela colocou os dedos no queixo e pensou.

— Frase, sim, havia algo que ela sempre dizia. Tanto que me pergunto porque me esqueci disso. Seu bordão era… espere… hm?

Seus olhos se voltaram da janela para mim, suas pálpebras tremulando. Então, parou de piscar e seus olhos se arregalaram tanto que pensei que poderiam sair voando.

— Qual é o problema?

— Minha… frase de efeito quando eu era pequena. Era “A vida é como…”

Talvez por estar tão chocada, ela se esqueceu de se referir a si mesma como “essa garota”, o que parecia ser toda a ideia do jogo. Também fiquei chocada.

— Igual eu!

— Quando eu era criança — ela disse, com os lábios trêmulos. — Eu amava as tirinhas “Peanuts”. Lia a tradução japonesa o tempo todo, e havia algo que o personagem principal, Charlie Brown, disse. “A vida é como um sorvete de casquinha…”

— Você tem que aprender a equilibrá-la…

— Isso mesmo! Você também leu?

Balancei minha cabeça com fervor.

— Eu também amo essa frase! É uma piada muito inteligente.

— Isso deve ser predestinação…

Predestinação, ela tinha dito. Não “destino” nem “sorte”, o que eu achei maravilhoso da parte dela. Eu conhecia o kanji para predestinação: en1縁 = En = Destino/Predestinação. O fato de que se assemelhava muito ao kanji para midori2緑 = Midori = Verde, verde, me lembrava o mistério da vida. As coisas vivas que morreram e se tornaram a terra, e a grama verde que brotou delas, na qual outras coisas vivas pastariam. Nesse caso, o fato de que ela e eu nos conhecemos realmente foi predestinado.

Eu juntei minhas mãos em agradecimento por tal palavra.

Embora eu não tenha dito nada, ela parecia compartilhar meus sentimentos. Ela sorriu, envolvendo suas mãos nas minhas.

— Viu só? Você não pode abandonar suas conexões com todos. Quando abre seu coração, se abre para encontros maravilhosos assim como esse.

Talvez seja verdade, pensei.

— Pode ser tarde demais — continuou —, mas se essas coisas podem acontecer, então talvez eu possa tentar novamente, apenas mais uma vez.

Aparentemente, ela desistiu completamente de falar sobre “aquela garota”.

— Você tem tantos encontros maravilhosos esperando por você, mocinha. — ela disse. — Muitos mais do que eu. Contanto que não desista das outras pessoas, tenho certeza de que terá uma vida feliz.

— É mesmo…?

— Sim, é.

Se ela disse que era verdade, então deve ser. Eu amava a Senhorita Messalina e acreditava nela. A Professora Hitomi me ensinou que às vezes os adultos falam a verdade. Se chegar o dia em que posso escapar dessa escuridão dentro de mim, pensei, e começar a gostar de alguém, talvez até mesmo de meus colegas de turma, então pode haver uma vida feliz lá fora.

Ainda assim…

— Mas… não há mais ninguém com quem eu possa me dar bem.

— Isso não é verdade. E aquele seu colega de turma que gosta de livros?

Pensei no rosto de Ogiwara, mas quando o fiz, a escuridão pareceu voltar para o meu coração.

— Ele me ignorou.

— Entendo. Eu estava me perguntando se foi ele quem disse que te odiava.

— Ele não disse. Era do outro menino de quem eu estava falando antes, aquele que não quer vir para a escola. Eu fui para a casa dele. Queria lhe dizer que eu era sua aliada, mas ele era muito mais covarde do que eu pensava. Quando lhe disse isso, ele falou que me odiava mais do que aqueles idiotas da escola.

— Bem… isso foi sua culpa.

Ao ouvir essas palavras, esqueci completamente o que estava prestes a dizer. Como? Como eu estava errada? Eu estava tentando ajudá-lo, pensei, mas não consegui verbalizar as palavras. Não sei se a Senhorita Messalina entendeu, mas ela acariciou meu cabelo.

— E foi minha culpa também. Eu estava errada sobre a dica que te dei. Você é inteligente, mas é exatamente como eu. Não é tão inteligente quando se trata de se conectar com as pessoas.

Ela deu uma risadinha estranha, mas eu não poderia ficar infeliz em ouvir que sou igual a ela.

Nesse caso, talvez a Senhorita Messalina possa ensinar uma ou duas coisas a uma bocó como eu, pensei.

— Diga, mocinha — ela perguntou. — Há alguma comida que você odeia na merenda da escola?

Eu não tinha ideia do porquê ela me faria tal pergunta em um momento como este, mas eu nunca iria ignorar suas perguntas.

— Eu odeio natto. Tem um cheiro estranho.

— Sim, eu também odiava.

— Mas você não pode deixar comida no seu prato.

— Isso mesmo. É bom para sua saúde, então é melhor comer natto. Diante disso, como se sentiria se, no momento em que estivesse criando coragem para comer aquele natto, sua professora viesse e gritasse com você: “Coma esse natto agora mesmo!”?

— Minha professora nunca faria isso, mas eu não gostaria. Eu provavelmente ficaria brava, e então não gostaria mesmo de comer o natto. — Ela deu um grande aceno de cabeça.

— Bem, você fez exatamente a mesma coisa com aquele menino que não queria ir para a escola, não é?

Eu nunca tinha experimentado isso, nem tinha ouvido ninguém falar, mas me senti como se tivesse acabado de ser atingida por um raio. Na verdade, eu tinha certeza disso. Foi um golpe mais forte do que quando bati minha cabeça contra a parede e formigou mais do que meus membros do dia em que fiquei sentada no estilo seiza por muito tempo no meu Dia de Shichi-Go-San. A escuridão começou a sair do meu coração com um som crepitante.

— Oh, entendo. — Percebi que tinha saído da linha. — Ele provavelmente estava tentando lutar.

— Sim, provavelmente… Talvez ele seja mesmo covarde, mas, nesse caso, você não deve ficar com raiva dele. Esse menino tinha algo para lhe dizer. Ele não estava te ignorando.

A Senhorita Messalina realmente era muito mais esperta do que eu. Novamente, eu nem tinha considerado esse fato. Eu já tinha a ideia de que Kiriyuu era um medroso, um grande covarde, incapaz de lutar. E, no entanto, talvez ele estivesse tentando lutar, à sua própria maneira.

— Além disso, existem outras formas de lutar. Talvez o jeito dele fosse apenas suportar e continuar desenhando, para que pudesse mostrar a todas as outras pessoas um dia.

Claro. Por mais que as pessoas zombassem dele, por mais que escondesse, nem uma vez pareceu pensar em desistir de desenhar.

— O jeito dele de lutar pode ser diferente do seu, mas no fundo vocês dois são iguais. Eu também sou. Tem coisas que te incomodam, que te deixam triste. Você odeia essas coisas e espera ter aliados ao seu lado. Tenho certeza de que ele se arrepende de dizer que te odiava. Você é mais inteligente do que as outras crianças, mas elas também pensam muito sobre as coisas.

Foi a mesma dica que ela me deu antes. Todo mundo é diferente, mas somos todos iguais.

— Então, o que devemos fazer?

— Pense no que gostaria que alguém fizesse quando você está se sentindo mal. Se pensar sobre isso e sobre este menino, só um pouco, então tenho certeza de que encontrará algo perfeito. Quando está se sentindo triste, quer que alguém grite com você?

— Não. Eu quero que se sente ao meu lado e converse comigo. Depois quero comer doces com ele e brincar.

— Se é isso que pensa, então é o que deve fazer.

Tentei acenar com a cabeça, mas havia uma coisa que ainda pesava em minha mente.

— Mas e se ele realmente me odiar? — A Senhorita Messalina acariciou meu cabelo.

— Eu não acho que ele te odeia, mas se por acaso for verdade, eu estarei aqui para confortá-la. E então vamos pensar novamente sobre o que fazer.

— …

— Você vai ficar bem, mocinha. Você é corajosa, não é? — ela disse, dando um tapinha nas minhas costas. Aquele golpe foi muito parecido com alguém chutando o motor de uma motocicleta para fazê-la dar a partida. Eu podia sentir o poder de sua palma fazendo o motor do meu corpo funcionar.

— Isso é verdade. Vou tentar então. Eu também disse isso.

— Disse o quê?

— Eu disse a Kiriyuu, se você não começar a se mexer, nada vai se mexer por você. Por isso eu vou fazer. Diga, Senhorita Messalina, eu…

Não foi uma mão tapando minha boca, nem o gosto de beber algo amargo, que de repente me roubou a palavra.

— Senhorita Messalina?

Foi porque eu vi seu rosto, que tinha mudado totalmente de seu sorriso habitual. Naquele momento, embora ainda estivéssemos lá dentro, jurei que podia sentir um vento frio soprando.

Sua expressão era de choque, muito mais nítida agora do que antes. Era como se ela tivesse esquecido completamente que havia alguém com quem compartilhava uma frase de efeito. Como se tivesse visto um alienígena, um feiticeiro e uma criatura do centro da terra ao mesmo tempo. Como se tivesse sido atingida por um raio. Esse era o tipo de cara que ela estava fazendo. Eu já tinha visto essa cara em algum lugar antes.

— Qual é o problema? — perguntei.

Ela me encarou como se eu tivesse acabado de me transformar em um monstro.

— Você disse… Kiriyuu…?

A palavra parecia ter saído de dentro dela.

— Sim, ele mesmo. Kiriyuu, aquele que desenha.

Enquanto ela pensava, eu me perguntei se minhas palavras de alguma forma tinham se transformado em um grande buquê de flores. Seu rosto parecia exatamente o de uma mulher na TV, quando alguém a pedia em casamento.

— O que foi? — perguntei de novo, mas ela não respondeu à minha pergunta.

— Você é a… Nanoka?

— Sim. — disse com um aceno de cabeça. Claro que sou.

De repente, seus olhos se encheram de lágrimas, e seu rosto parecia incapaz de suportar o choque. Os adultos nunca choram apenas para surpreender as crianças. Mesmo assim, fiquei surpresa. Eu não tinha a menor ideia do porquê ela estava chorando.

— Entendo…

Nem consegui entender o significado de suas palavras, como se ela tivesse acabado de chegar a um acordo com alguma coisa. E então eu não pude entender o que ela fez a seguir. Não apertou minhas mãos nem acariciou meu cabelo. Em vez disso, colocou os braços em volta de mim com força, uma única lágrima caindo de seus olhos.

Fiquei feliz por ser abraçada por alguém que amava, mas fiquei surpresa. Eu já tinha sentido o mesmo tipo de choque antes, recentemente, naquele telhado.

A Senhorita Messalina começou a chorar como uma criança.

— Tem algo de errado? Ei, Senhorita Messalina, o que há de errado?

Embora eu tenha perguntado, ela não respondeu. Simplesmente sussurrou em meu ouvido, de novo e de novo: “Então é isso que está acontecendo”, “Como, como?”, “Não consigo acreditar” e outras coisas assim. E, então, ela disse:

— Sinto muito, sinto muito, sinto muito.

Por que diabos estava se desculpando?

A gentil, brilhante e maravilhosa Senhorita Messalina, que me ensinou tantas coisas, que me deu dicas e sobremesas, e sempre me trouxe alegria… Eu não conseguia pensar em uma única coisa pela qual ela precisasse se desculpar.

E ainda assim, ela continuou chorando, continuou se desculpando. Aos poucos, ela me deu os motivos desse pedido de desculpas. E ainda assim eu ainda não entendia.

— Sinto muito, sinto muito por dizer que não estava feliz. — ela disse, mas eu estava sem palavras. — Eu sinto muito por acabar desse jeito. Sinto muito por deixar as pessoas me chamarem daqueles nomes.

E, por fim, ela disse:

— Sinto muito… Nanoka.

Ela me apertou com força enquanto dizia meu nome. Mesmo quando dei um grunhido pelo leve desconforto de seu abraço, ela não me soltou. Só então percebi algo curioso e me lembrei de algo ainda mais incomum.

Lembrei-me disso porque eu era muito perspicaz. Ela acabou de dizer meu nome duas vezes. Minami também disse meu nome no último dia. Mesmo assim, percebi que, por algum motivo, tinha me esquecido de dizer meu nome a qualquer uma delas.

Então, como elas sabiam, e por que eu nunca contei antes? Esses dois mistérios percorreram meu cérebro.

Talvez eu pudesse perguntar à Senhorita Messalina sobre esse mistério. Afinal, ela era inteligente. Enquanto ela chorava, falei todos esses mistérios em seu ouvido. Ela se afastou de mim e se endireitou. Seu rosto estava sujo de ranho e lágrimas. Todos parecem iguais quando choram, hein?

— Não há nada de misterioso nisso. Eu finalmente entendi. Eu sei porque você veio aqui naquele dia. Eu sei porque te conheci.

Não, isso era absolutamente misterioso. Ela sorriu em meio às lágrimas quando inclinei minha cabeça, e ergueu o dedo indicador de sua mão direita.

— Ouça, mocinha. A vida é como um pudim.

— Por que há pessoas que também gostam das partes amargas?

— Não.

Seu cabelo ondulou de um lado para o outro.

— Há algumas partes amargas na vida, mas há muita felicidade doce enfiada nesse mesmo potinho. As pessoas vivem por causa dessa doçura. Obrigada, mocinha. Acabei de me lembrar de algo, tudo graças a você.

— O que foi?

— Que eu sempre amei mais doces do que café amargo e cerveja. Não vou esquecer isso de novo.

Ela me apertou mais uma vez. Achei curioso que ela continuasse fazendo isso, mas eu parecia ter perdido todo o interesse em desvendar esses mistérios. Para mim, a sensação de estar em seus braços era uma das partes mais doces da vida.

Finalmente ela parou de chorar, mas não deu nenhuma explicação quando perguntei o que estava acontecendo. Apenas disse:

— Tenho certeza de que um dia você será capaz de entender.

Em vez disso, o que me ofereceu foi de fato peculiar: a sobremesa que ela comprou para nós.

— Combina perfeitamente com você.

Não havia porção escura no pudim que ela me ofereceu. O conteúdo do pote era de uma cor dourada doce e cremosa. Minha boca se encheu com o gosto de felicidade enquanto comia.

Enquanto comíamos nossos pudins juntas, jogamos nosso usual Othello. As vitórias e as derrotas foram as mesmas de sempre. Algum dia eu mostraria a ela que sou mais forte.

Antes de voltar para casa, ela me deu coragem para o dia de amanhã. Ela apertou minha mão e, em seguida, todo o meu corpo, e me disse:

— Você vai ficar bem, eu tenho certeza.

Com isso, eu poderia acreditar que realmente ficaria.

— Ah. — A Senhorita Messalina disse enquanto eu calçava meus sapatos e saía pela porta, como se tivesse acabado de se lembrar de algo.

— O que foi? — perguntei.

— Ah, não, é só que… Eu estava me perguntando se a Vovó está feliz agora.

Lembrei-me da conversa que tive com a Vovó anteriormente.

— Sim, ela disse que estava feliz. — respondi

Um sorriso de verdadeira felicidade se espalhou pelo rosto da Senhorita  Messalina.

— Estou feliz — ela disse. Então, acenou com a mão como sempre. — Vejo você mais tarde, mocinha.

— Sim, até a próxima!

Quando fechei a porta, percebi uma pequena sombra negra aos meus pés.

— Eu não esqueci de você. Às vezes, até as crianças têm coisas para resolver.

— Miau.

— Eu sei. Vou te dar leite na minha casa. Mas não conte para minha mãe.

Ela provavelmente veio porque estava preocupada comigo. Ela pode ser uma garota perversa, mas uma vez eu vi um filme americano que dizia que todas as garotas más são secretamente boas no fundo. Eu não entendia mesmo o que significava ser bom e mau ao mesmo tempo, mas tenho certeza de que isso descreve garotas como a Senhorita Bobtail.

Saímos do prédio cor de creme e caminhei até o barranco onde nos conhecemos, havia muito tempo.

A vida é repleta de felicidade.

Repeti essas palavras para mim mesma várias vezes.

 


 

Tradução: SoldSoul

Revisão: Guilherme

 

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