O ar noturno estava cruelmente frio, fazendo Muoru esfregar as mãos nos braços.
Uma brisa úmida soprava e acima de sua cabeça as folhas uivavam. Poucas nuvens cobriam o céu e, ainda mais alto do que isso, havia a lua perfeitamente circular, cercada por uma neblina.
A grande e espessa quantidade de folhas bloqueava o luar, impedindo-o que chegasse às raízes da árvore. Estar sob aquela sombra oscilante o fazia se sentir como se saísse do mundo humano e entrasse no domínio da escuridão.
Ele tirou seus sapatos esfarrapados, enfiou os dedos em um desnivelamento do tronco da árvore e, contando apenas com sua força física, começou a escalar. Seus membros não estavam acostumados com estes movimentos, e ele agarrou-se à árvore como um sapo, subindo até o topo de forma lenta. Teria achado mais fácil se suas mãos pudessem agarrar o lado de trás do tronco, mas a árvore com “o monstro gigante” enterrado era enorme. Era tão grande que, se abrisse os dois braços e tentasse agarrá-la, seus cotovelos não ficariam nem um pouco dobrados.
Muoru percebeu que não era bom em subir em árvores, porém, dentre as coisas que precisava fazer, esta, com certeza, poderia ser considerada a mais fácil.
“Achei…”
Então, conseguiu alcançar um dos galhos que saía da árvore. Mesmo sendo apenas um, era mais grosso que o tronco de uma árvore comum. Era tão enorme que quando Muoru, com sua grande estatura, apoiou todo seu peso nele, não teve medo de cair. Depois, enfiou a cabeça nas densas e escuras folhas.
Cercado pelas folhas, as quais pareciam absorver o luar, mal conseguia ver alguma coisa. Na verdade, sentia que tentar encontrar algo no meio delas ia ser mais difícil do que achar uma agulha em um palheiro.
Não importava o quanto forçasse a visão, continuava sendo inútil.
Deixado sem opção, começou a procurar apenas com suas mãos e instintos. Não podia ter pressa. De ponta a ponta, a quantidade total de galhos da árvore gigante poderia encher completamente a mansão nos limites do cemitério. Além disso, ele precisava procurar a partir de sua posição sem se movimentar muito.
Determinado, Muoru abriu caminhou cegamente pelas folhas espessas e galhos. Era como se tivesse mergulhado em um oceano escuro e estivesse vagando de forma randômica na água. Os galhos pontudos e afiados arranhavam suas bochechas e lóbulos das orelhas. E as malditas folhas dificultavam muito a respiração, sem contar o fato de que não conseguia ver nada.
De repente, as solas de seus pés suados escorregaram.
— Tsk.
Ele agarrou um galho mais novo rapidamente e seu corpo balançou, colocando quase toda a força usada para sustentar seu peso apenas na mão esquerda. Um calafrio lhe percorreu o corpo. O chão estava a mais de dois metros abaixo e, caso quebrasse o pé ou algo do tipo em um momento crucial como este, ele acabaria sendo o maior idiota do mundo.
Com cuidado, colocou seus dois pés no galho de novo e recuperou o equilíbrio.
Então, Muoru estendeu a mão direita para dentro da escuridão acima… e puxou uma fruta.
Não conseguia vê-la, mas mesmo no escuro, sabia que era a fruta que estava procurando. No momento em que a agarrou, ela contorceu-se em sua palma, era como se tivesse pego um peixe vivo.
De forma lenta, trocou de posição e ficou dependurado no galho com um braço. Então saltou. Quando pousou no chão, uma onda de dor lhe percorreu as pernas, a qual entorpeceram-nas um pouco.
No entanto, não conseguiu ter sensação alguma de êxito apenas com a primeira tarefa.
“Mas a próxima…”
Muoru timidamente levou as mãos ao luar. Nelas, viu a coisa que mudaria sua vida.
A parte dos monstros.
A fruta negra.
A colheita dos ladrões de túmulos.
Era um meio termo entre uma maçã e um pêssego em termos de forma geral e tamanho. Mas, com uma inspeção mais aproximada, também parecia um coração com grandes artérias, algo assim. Quanto a cor, parecia ter sido pintada de preto com tinta de lula. E mesmo sendo uma parte dos monstros, nenhuma garra ou algo do tipo saltou repentinamente e o atacou enquanto ela estava em sua mão.
“Essa coisinha realmente garante a imortalidade aos humanos, mas, como consequência, torna-os incapazes de ficar sob o sol?”
Entretanto, Muoru havia tocado algo muito similar à fruta em suas mãos. Era muito semelhante ao saco de carne do monstro que empurrou antes; não era quente; não era fria; não era macia; não era rígida, parecia ser idêntica a um órgão de um cadáver.
Já que não conseguia ver nada, o fato de que tinha agarrado a fruta no meio da escuridão o deixou instintivamente desconfortável. E ao expô-la à luz, esta sensação se intensificou. O desagrado que sentia em seu interior era semelhante a ter que vomitar algo das profundezas do corpo.
A vontade que tinha era de jogá-la em uma direção aleatória. Todavia, ao invés disso, uivou para a lua e abriu bem a boca, como se fosse um animal carnívoro.
Depois, mordeu a fruta.
Imaginou que teria um gosto amargo, semelhante ao de café, mas na realidade, não tinha sabor algum. Não possuía suco e nem aroma como uma fruta normal, e ele mal conseguia sentir sua textura. No momento em que ela entrou na boca, fosse em sua língua ou descendo pela garganta, tudo o que sentiu foi algo como uma lama pegajosa expandindo-se. Era como se sua boca estivesse cheia de cola sem gosto.
Então, um solavanco de terror lhe deu arrepios.
Os conteúdos em sua boca se contorciam como uma minhoca.
Uma forte onda de tontura atacou Muoru e seus instintos imediatamente o alertaram. Em um esforço para fazer com que o dono idiota do corpo deles cuspisse a substância estranha, o sistema imunológico de Muoru forçou sua garganta a convulsionar.
Com desespero, ele cobriu a boca com a mão para parar a regurgitação. Foi demorado, mas enquanto resistia ao desconforto, aos poucos… bem aos poucos, os restos em sua boca começaram a desaparecer. Porém, não estavam totalmente descendo pela garganta, mas sim esgueirando-se pelas paredes de sua boca e entrando em suas células sanguíneas.
Logo, a primeira mudança ocorreu, entretanto, não foi em seu estômago. Foi em seus pés.
Eles pareciam diferentes.
E, antes que percebesse, suas pernas tornaram-se terrivelmente pesadas.
Caso ficasse de pé como sempre, suas pernas não eram impedidas de forma alguma. Todavia, quando tentava caminhar, seus tornozelos pareciam estar agrilhoados por uma corrente de ferro, ou como se alguém tivesse agarrado suas pernas e estivesse puxando-o para baixo.
Ao pensar nisso, lembrou-se que Mélia sempre esteve da mesma forma. Ele não conseguia se lembrar de tê-la visto correndo.
“Será que essa é a sensação de ter A Escuridão dentro do corpo?”
Ele olhou para os próprios pés.
A sombra que se estendia deles parecia ficar cada vez maior… e espessa. E, a partir do que devia ser sua sombra no chão — ou melhor — usando a sombra como um condutor, ele parecia sentir uma presença gigante vindo de um local muito profundo.
“É isso.”
Era exatamente igual ao medo que sentiu na primeira vez que veio ao cemitério às cegas. O medo de estar andando sobre cadáveres e caminhando sobre algo muito maior abaixo deles.
E agora, uma parte de seu corpo havia se transformado em um fragmento disso. Caminhar ou levantar as pernas não podia cortar a conexão que sentia. E, para piorar a situação, teve uma alucinação na qual seu ser e coração eram puxados para baixo, em direção àquela escuridão… Assim como quando os membros de Mélia foram arrancados e voltaram de forma automática ao seu corpo e se reconectaram a ela, Muoru sentiu como se seu corpo quisesse voltar ao corpo do monstro sob seus pés.
Ele estava hesitando. Muito além do que queria, se arrependia do fato de não poder voltar atrás no que fizera.
Porém, para Muoru, não era grande coisa para se estar confuso.
Não importava quantos sinais, indicações e assim por diante, se ficassem em seu caminho, consideraria como lidar com eles depois. E, caso não fossem um obstáculo, não seria hora para ter medo.
Ele desistiu e olhou para seu corpo.
Não parecia existir outras mudanças até agora, porém… precisava conferir.
Do bolso, pegou um pedaço de vidro. Conseguiu-o no lixo, de um pedacinho cilíndrico ou algum tipo de garrafa para líquido. Foi quebrado na extremidade oposta da boca da garrafa e era afiado e pontudo.
Sem hesitar, raspou-o nas costas da mão esquerda.
A dor era mais ou menos o que havia imaginado.
Como se tivesse cortado uma veia, um aflitivo sangue espesso e escuro jorrou e escorreu pelos dedos. Parecia ter surgido um segundo coração naquele local e uma dor enfadonha pulsava com cada uma de suas batidas cardíacas.
Muoru observou o ferimento com um olhar complexo no rosto. Ele estava começando a ter a sensação de que havia feito algo extremamente estúpido consigo mesmo.
Então, dentro de muitas batidas cardíacas, o ferimento fechou-se e desapareceu.
O corte nas costas de sua mão selou-se, voltando ao normal de dentro para fora, como um par de lábios se fechando. Não foi rápido ou chocante, sua pele simplesmente se fechou de maneira automática. E, além do sangue pegajoso e da dor ardente, não havia traço algum do ferimento.
É claro, ele sentiu-se desconfortável, porém, apesar dos resquícios de dor, seu desconforto era mais direcionado ao ferimento que ali devia estar.
Seus lábios se dobraram, formando um sorriso torto.
Mas, claro, era um absurdo pensar que um arranhão nas costas da mão era uma prova suficiente de sua imortalidade.
E ele com certeza não poderia falhar no que planejava fazer em seguida.
Por isso, outro teste mais profundo era necessário.
Ainda indeciso, estendeu um dedo, mas então, titubeou.
Era simplesmente natural ter uma resistência muito maior para o que estava prestes a fazer do que quando colocou a parte do monstro em sua boca. Ainda que tenha dito que era apenas uma confirmação, a ação era o mesmo que suicídio. Seus dedos tremeram. Toda sua mão tremeu. Ele não conseguia parar de tremer.
Ao sentir sua resolução enfraquecer, Muoru mordeu os lábios e se lembrou da sensação do pescoço de Mélia em seus braços.
Então, enfiou os dedos no lado interno de sua coleira de couro e, com toda sua força, arrancou-a.
A artéria presa ao “fio da bruxa” rompeu-se e um jorro de sangue saiu de seu pescoço cortado.
Inesperadamente, não havia dor.
Entretanto, não importava quantas vezes tentasse olhar para seu pescoço, o infinito e puro líquido vermelho saía de um lugar que ele não conseguia ver. Era, sem dúvidas, a visão de algo que faria as pessoas desmaiarem.
A metade direita de seu corpo ficou pintada de vermelho antes que percebesse, e sem pensar, Muoru pressionou sua mão direita no ferimento. De repente, sua visão começou a escurecer…, ele estava perdendo muito sangue.
Naturalmente, ao invés de usar tinta, seu corpo estava usando o sangue oxigenado, o qual devia estar fluindo em seu cérebro, para manchar todo o seu lado direito.
“Isso é mal”, pensou ele na área mais profunda de sua consciência.
Era diferente de todos os ferimentos que sofrera até agora. Sentia que estava prestes a desmaiar. Não conseguia enfrentar isso e nem resistir. Na verdade, os vários lugares dos quais devia estar tirando energia estavam desaparecendo. Isso fez com que se sentisse desolado.
Independente se era verdade ou não, sentia que estava afogando-se desesperadamente. E, no fim, até sua consciência começou a dissipar-se. Ele perdeu o equilíbrio e caiu sobre um joelho.
“Não adianta”, pensou enquanto estava aturdido.
Aos poucos, seus ombros relaxaram e, com uma guinada, desabou para um lado com a língua para o lado de fora dos lábios.
Então… notou…, sua visão havia clareado sem que percebesse.
Sua anemia desapareceu.
A fonte de sangue parou.
Seu ferimento se fechou.
Ele levantou-se de pé, sentindo-se apenas forte como sempre. Simplesmente franziu o cenho ao ver as roupas encharcadas de sangue presas à pele.
Mas depois de levantar-se com um corpo coberto de sangue, lentamente, um sorriso genuíno escapou de seus lábios.
Tradução: Taiyo
Revisão: Bravo, Guilherme e Taipan
QC: Milady
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