Murou pensou no passado por alguns instantes…
Ele estava no meio de uma câmara no campo de detenção de Rakasand. Foi o dia em que recebeu o veredito de culpado, por volta da época em que esperava para que as pessoas atrás dele rejeitassem sua sentença.
Como havia dito antes, a grande maioria das pessoas culpadas era forçada a trabalhar. Mas, claro, sempre havia exceções, por exemplo, no caso de um prisioneiro ter armado o assassinato de um nobre e não ter um corpo adequado para trabalhos forçados.
Aquele homem não tinha um braço direito, ombro direito e uma orelha direita. Era conhecido como Bombardeiro Ferroviário e estava preso na cela de frente à de Muoru. Porém, Muoru não sabia seu nome. Assim como passou a ser chamado de Prisioneiro 5722, aquele homem teve seu nome retirado e agora era o Preso do Corredor da Morte 367.
Alojado no mesmo hospital que suas vítimas, por algum milagre, ele sobreviveu, mas perdeu grande parte do lado direito de seu tronco. E como resultado, foi fácil concluir quem era o culpado.
Murou lembrou-se do homem lhe dizendo com um rosto sorridente, dominado pela sua dor, que se fosse morrer ali mesmo e naquele estado, seria uma benção.
Ainda que o garoto não soubesse dizer se o homem já tinha feito quarenta anos ou não, os dois não tinham o mesmo corpo robusto. E mesmo que tenha sofrido aqueles ferimentos graves, reclamava sem parar sobre a comida e pedia bebidas alcoólicas da mesma forma que os outros prisioneiros.
Devido à disposição dos corredores, o campo de detenção estava terrivelmente barulhento, mas a voz daquele prisioneiro ainda agitava o local. Seu estado de espírito e mente pareciam estar saudáveis… até o momento em que sua sentença foi anunciada.
Três dias depois… um dos carcereiros sorridentes de Muoru disse que, após ver o estado do Preso do Corredor da Morte, pensou que o homem parecia ter se tornado uma pessoa totalmente diferente.
O cabelo restante em seu lado esquerdo havia ficado branco, parecia que havia envelhecido mais de vinte anos de uma só vez. Se alguém tentasse conversar com ele, acabaria não recebendo qualquer tipo de resposta normal. E parecia que não sentia mais alegria ao comer.
As pessoas nas celas ao lado da dele tremiam de nojo ao verem-no beliscando os próprios ferimentos.
Assim que isso aconteceu, o Prisioneiro 5722 foi capaz de ver essa mudança acontecer diante de seus olhos.
Quando decidiu passar pelo bombardeiro suicida, já devia estar preparado para morrer. E por isso, devia ter assumido que morreria caso tudo ocorresse de acordo, mas por causa do carma ou de seu destino, escapou por pouco da morte. Mas agora, estava sendo atormentado pelo medo da morte eminente, aproximando-se com a rapidez dos ponteiros. Mesmo assim, na manhã do terceiro dia, algo estranho aconteceu. Quando Muoru acordou, o Preso do Corredor da Morte 367 levantou uma mão e o cumprimentou com um grande sorriso.
Ainda que a brancura de seu cabelo e as feridas que beliscou estivessem iguais, seu comportamento parecia o mesmo de antes da sentença de morte. E, em seus olhos, não havia sinal de loucura… pelo contrário, parecia que havia encontrado uma certa paz.
Então, começou a se perguntar se havia algum tipo de mudança psicológica dentro da mente do Preso do Corredor da Morte 367 durante esses três dias…, porém, não havia como saber, da mesma forma como não haveria no futuro.
Os corredores do campo de detenção transmitiam sons de forma primorosa. Provavelmente, isso foi feito de propósito para um momento como este.
Muoru ouviu claramente o som do tiro que acabou com a vida do Preso do Corredor da Morte 367, como se realmente estivesse tentando ouvir.
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A alvorada limpou a escuridão, as inúmeras lápides e árvores produziram sombras longas no chão. O orvalho da manhã brilhava, como se decorasse as ervas daninhas sem nome com a habilidade de um perito em joias.
Mesmo que Muoru estivesse ciente das estranhezas do cemitério, a cena da manhã não mudou nem um pouco. O mesmo podia ser dito sobre sua vida. A velhota o acordava no chute, então, ele enchia o estômago com uma comida merreca, depois disso, começava a trabalhar no cemitério, abrindo covas.
No entanto, desde ontem, seu trabalho continuou quase o mesmo.
A ponta da pá bateu em algo duro…
Quando removeu a terra, os gigantescos olhos de cor amarela apareceram, encarando o garoto que havia perturbado seu sono.
Esta alucinação veio do nada, e quem olhasse de longe veria apenas um garoto com braços musculosos que havia congelado repentinamente. Mas, para Muoru, cada vez que via aquela alucinação, suor frio começava a escorrer pelo seu corpo. Este medo não era algo engraçado.
Ainda assim, sua mente tentava entender o que era aquela coisa de ontem. Porém, da mesma forma que era no campo de detenção, como esperado, não haveria ninguém para lhe dar uma dica ou algo do tipo, talvez assim ele pararia de ver a mesma ilusão no chão… A este ritmo, logo a criatura começaria a aparecer em seus sonhos.
E após rir para si mesmo várias vezes de maneira autodepreciativa, abruptamente…
— Yo, coveiro prisioneiro. — Uma voz desconhecida o chamou.
Muoru virou rapidamente, como se fosse um peixe atingido por uma pedra.
A cerca de dez passos atrás dele, um garoto baixinho estava sentado em uma lápide. Ele não reconheceu o garoto, e o fato de essa pessoa tê-lo pegado de surpresa o deixou incomodado… Espera, garoto? Não, garota…? Havia incerteza em sua mente. O rosto e o corpo dele ainda eram o de uma criança, sem possuir qualquer característica sexual para diferenciar seu sexo.
Ele tinha um cabelo preto chanel que batia no queixo, além disso, usava um casaco amarelo e infantil. Pernas esbeltas saiam de seu calção xadrez e, apesar de não usar meias, por alguma razão, usava botas militares.
— Quem é você? — perguntou Muoru, sem tentar esconder sua suspeita.
— Nossa, que indelicadeza ao falar. Você provavelmente nos viu ontem, não é? — Ele inclinou a cabeça na direção de Muoru e levantou os lábios com força, mostrando um sorriso amigável. — O que estou dizendo? É claro que não me reconheceria assim. Aqui… olhe.
O indivíduo enfiou as mãos no bolso do casaco… e pegou uma máscara branca. Era loucura acreditar que não se lembraria daquilo.
Calafrios percorreram as costas de Muoru. A memória que veio à sua mente era como um pesadelo. Apesar de haver uma criança adorável diante de seus olhos, não conseguia ver nada além do rosto daquela criatura gigantesca.
Isso, lembre-se… Embora eu estivesse abrindo covas, como não ouvi os sons de um calçado pesado como esse?
Se o indivíduo viu o rosto de Muoru enrijecer, fingiu não ter visto e continuou:
— É bom que você tenha completado a primeira parte de seu trabalho, mas descanse um pouco. Se estiver tudo bem por você, o que acha de tomarmos algo?
Estranhamente, enquanto falava de uma maneira madura, guardou a máscara em seu bolso e pegou uma garrafa de licor. O líquido de cor âmbar estava pela metade na garrafa.
Sem dizer nada, Muoru voltou a cavar. Ele não achava que havia razões para se envolver com essa pessoa.
— O quê? Está me ignorando? Sim, está me ignorando. Não acredito que, ao ver seu sofrimento, cogitei a ideia de te contar sobre a coisa que viu ontem.
Enquanto considerava se deixava ou não esta oportunidade passar, o baixinho levantou o queixo, como se estivesse ofendido, e sentou-se de pernas cruzadas em cima de uma das lápides. A garrafa de licor estava em sua boca e, então, tirou as mãos, segurando a garrafa com apenas os lábios e dentes conforme bebia o líquido.
E, de vez em quando, seus olhos viravam em sua direção.
Decepcionado, Muoru suspirou. Este pirralho queria conversar e não havia nada que pudesse fazer. E mesmo agora, independentemente se queria ou não saber mais sobre aquelas criaturas, isso não significava que desejava ser questionado sobre elas. Porém…
— Se me contar qualquer coisa, algo de bom vai te acontecer, tipo, você será recompensado ou algo assim?
Esta pergunta servia para ver o quão sério ele estava sobre contar a verdade sobre a situação. E, embora houvesse muita coisa que não sabia sobre os monstros, essa pessoa era extremamente suspeita. Para Muoru, não importava quantos monstros existissem no mundo, ainda não era capaz de aguentar alguém que coloca a bunda sobre uma lápide.
Ele removeu a garrafa de licor da boca e, com um rosto levemente vermelho, disse com uma voz chocada:
— Bem…, você é uma toupeira profundamente cética, não é? Você come minhocas fritas ou algo do tipo?
Murou respondeu inexpressivamente:
— Sopa salgada já está de bom tamanho para mim.
Ao ouvir sua resposta, a pessoa sobre a lápide suspirou profundamente, mas logo recobrou a compostura com um sorriso.
— Aham, coisas boas vão acontecer — disse.
— Então existia algo.
— Certo, mas quanto ao porquê… — Ele saltou, ficando de pé na lápide com suas pernas e mãos bem abertas. — Bem, por enquanto, vamos só dizer que sou muito teimoso, assim como você; simplesmente amo plantar meias verdades na mente das pessoas.
Então, como se estivesse impressionado com o próprio discurso, a criança, silenciosamente, olhou para ele de cima da lápide. No entanto, a altura dessa pessoa não chegava perto da metade da de Muoru. Por isso, mesmo com a altura extra da lápide, mal conseguia o olhar de cima, agora, Muoru era apenas um pouquinho mais baixo.
Inconscientemente, um riso escapou da boca de Muoru, que tentou encobrir isso com um bocejo.
Bem, acho que isso é o suficiente para fazê-lo falar.
Agora, se ia acreditar ou não já era outra história.
— Tudo bem, vamos conversar sobre o que aconteceu ou não… ah, antes disso… — Muoru cravou a pá no chão, usando-a como uma muleta para tirar o peso de sua perna direita machucada. Então, perguntou: — Como se chama?
O indivíduo ajeitou a franja de seu corte de cabelo chanel, mostrando o rosto a Muoru.
— Me chamo Corvo — disse —, veja o meu cabelo, não parece ter a cor das asas de um corvo?
Muoru revirou os olhos e sorriu amargamente. Ele não sentiu a necessidade de retorquir. Não importava o quanto pensasse, “Corvo” não era seu nome verdadeiro.
Depois de sentar-se novamente na lápide, o autoproclamado “Corvo” perguntou de volta:
— E quanto a você?
Por um momento, o garoto não soube o que dizer. Honestamente, não tinha intenção de dizer seu nome verdadeiro. Então, repentinamente, o nome Corvo fez com que pensasse em algo.
— Pode me chamar de Toupeira — respondeu Muoru.
— Bom, então somos o Corvo e a Toupeira. — Corvo riu com alegria. — Ei, Toupeira-kun. Gostei de você. Por isso, vamos ser amigos. O que acha?
— Passo. — Muoru respondeu na mesma hora.
— Sério? Que pena. — Corvo gritou sem mostrar traços de decepção em sua voz. Então, sem aviso algum, falou misteriosamente: — 30.270.000. Você sabe que número é esse?
— Hmmmm…
Por ter pensado que só ouviria sobre a verdadeira natureza dos monstros, Muoru foi pego de surpresa, por este motivo, parou para pensar um pouco. Mas no fim, não sabia.
— Me pergunto se é a quantia em minha carteira — disse, tentando dizer algo engraçado. Porém, não existia carteira, quem dirá dinheiro.
Corvo anunciou alegremente a resposta correta:
— É a população atual deste país, de acordo com o censo populacional da Agência de Assuntos Gerais de Filbard. Não sabia disso?
Não tinha como saber. Melhor dizendo, fora o número de soldados aliados e inimigos, a população do país nunca passou pela sua mente. Dessa forma, não sabia dizer se era grande ou pequena. Além disso, ouvir essas palavras da boca de alguém que parecia uma criança fez com que se sentisse desconfortável.
— Então, a população de cem anos atrás era cerca de 2.600.000. Bem, devido ao tempo que faz, é difícil saber o número exato. Ei, não acha que é um pouco incrível? Em apenas cem anos a população aumentou em mais de dez vezes. Por que acha que esse crescimento fora do comum aconteceu?
Muoru ficou um pouco mais de tempo pensando na pergunta em comparação a antes. Embora não houvesse provas para apoiar o valor dado por Corvo, no momento, preferiu assumir que era verdade. Se a população realmente aumentou mais de dez vezes, provavelmente haveria um fator envolvido. No caso de formigas, haveria uma rainha, a qual poderia criar uma colônia, mas isso não era simples para humanos.
Ele estava tendo dificuldade para conceituar o número que parecia gigantesco na história de Corvo, por isso, tentou reduzir para uma escala na qual conseguisse imaginar. Primeiro, imaginou uma vila com cem pessoas. Que tipo de fator seria o suficiente para aumentar a população para mil em cem anos?
Muoru respondeu:
— A quantidade de comida distribuída aumentou?
Para humanos, não importava o que fizessem, a maior prioridade sempre era comida. Como um carro que não pode andar sem gasolina, se um humano não se alimentasse direito, não seria capaz de se mover. Por isso, se a quantidade de pessoas aumentava, mais comida seria necessária. Não, não era a quantidade de comida disponível, mas sim a habilidade de cultivar alimento que determinava o tamanho de uma população?
Corvo assentiu com a cabeça em resposta à sua pergunta anterior.
— Aham, nada mal. Dez pontos — riu. — Claro, uma pontuação perfeita é cem.
— Isso não é nada mal.
— Este é um dos motivos. Claro, devido ao melhoramento das sementes e adubo, a produção de alimento de qualidade melhorou. Mas ao mesmo tempo, se a população de fazendeiros aumentava, a quantidade de terra cultivada também expandia. Se este fosse o caso, a população geral não poderia aumentar dez vezes mais. Também há vários outros fatores envolvidos. Por isso só ganhou dez pontos.
— Vários? — Muoru pressionou. Não havia ligação alguma com a questão dos monstros, mas a forma habilidosa da narrativa do Corvo o intrigava. Além disso, sentia que fazia muito tempo desde que conversara com alguém de uma maneira tranquila como essa.
No entanto, as palavras seguintes do Corvo eram diferentes de tudo que já ouviu dos mais variados tipos de pessoas que encontrou em sua vida.
— Bem como você disse, devido ao avanço na indústria agrícola, as colheitas aumentaram. Depois, coisas como luzes a gás e eletricidade foram colocadas em prática e aconteceu um aumento nítido no tempo de vida humano. Motores a vapor foram inventados. Por isso, trens e barcos a vapor foram feitos e, com esses avanços, a rede de transportes foi fundada e o deslocamento tornou-se mais rápido. Graças a essas coisas, o número de pessoas talentosas, recursos e deslocamento de informações aumentaram grandemente, e a morte causada pela fome diminuiu…
Muoru estava completamente em silêncio, fazendo com que Corvo perguntasse:
— Está acompanhando?
Pego de surpresa, Muoru balançou a cabeça.
— Bem… se eu lhe desse todos os exemplos possíveis, essa conversa não teria mais fim. Porém, se precisasse juntar todas essas razões em um único fator, diria que foi o desenvolvimento da civilização.
— Civilização… — O garoto repetiu a palavra vaga com suspeitas.
— O desenvolvimento da civilização — continuou o Corvo —, em outras palavras, você poderia dizer que também foi o aumento na qualidade de vida…. Ouça, você provavelmente chama geladeiras de conveniências da civilização, né? À medida que se expandiam, através da ganância, humanos foram capazes de gerar um excedente de tempo e espaço para viver. E enquanto isso acontecia, também faziam sexo.
Neste momento, Corvo parou de falar, talvez com o intuito de ver se suas palavras causaram alguma reação no rosto de Muoru. Porém, ele parecia distante e não disse nada. Então, como se estivesse completamente satisfeito, Corvo mostrou um sorriso presunçoso.
— Bem, acho que não preciso dizer que a quantidade de crianças aumentou. E graças aos avanços na medicina, coisas como abortos e natimortos diminuíram nitidamente. Provavelmente estes eventos eram causados porque as pessoas não lavavam as mãos antes de cirurgias, sem contar que não recebiam anestesia ou transfusões de sangue. Por este motivo, o nascimento trazia um risco significante para a vida das mulheres. Claro, com o tempo, coisas como a existência de bactérias foram descobertas com o microscópio, e a pesquisa acerca da imunização avançou, fazendo com que o tempo de vida médio aumentasse em vinte anos.
Enquanto Muoru ouvia o Corvo, o ferimento sob o curativo em sua perna direita doía.
Ele havia esterilizado na noite passada. Mas se Mélia não trouxesse a caixa com suprimentos médicos, seu ferimento teria começado a infeccionar. E, no pior dos casos, morreria de tétano. Mesmo não sendo o melhor aluno na escola, este era um conhecimento comum, que até uma toupeira como ele saberia.
Porém, mais de cem anos atrás, não havia coisas como microscópios, até mesmo médicos não sabiam da existência de bactérias.
Naquela época, muito diferente de hoje, não importa que tipo de ferimento ou doença uma pessoa tivesse, ela poderia facilmente morrer. O fato de que isso não acontecia mais é exatamente o que eles chamam de avanço da civilização.
Entretanto, depois da explicação fluente de Corvo sobre as várias coisas que não sabia, enquanto também resumia o que aconteceu cem anos atrás, Muoru passou a sentir que o milagroso crescimento populacional de dez vezes era improvável.
Lendo os pensamentos do garoto pela cor em seu rosto, Corvo continuou explicando:
— Bem… a questão principal é: a história humana continuou sem parar por muitos milhares de anos, mas por que só depois da passagem dessa era que a civilização começou a avançar repentinamente? Deixa eu refazer a pergunta, por que a civilização foi incapaz de avançar antes da suposta “Idade das Trevas”?
— …
— É simples… Havia algum tipo de obstáculo impedindo a civilização de fazer isso. — Corvo não esperou pela resposta do Toupeira e continuou: — E o culpado está sob seus pés.
Inconscientemente, o garoto baixou o olhar e olhou para seus velhos sapatos sujos de lama e com insetos pretos passando sobre eles.
— Para sua informação, não estou falando destes tatuzinhos — disse o Corvo com uma voz sarcástica.
Com um olhar frio, Muoru chutou o chão e respondeu:
— É como se eles fossem formigas de outro mundo.
Para ser honesto…, ele ficou feliz com o fato de o Corvo ter feito uma piada no meio da conversa.
Não importava quantos enterros fossem feitos, sua mente não poderia aceitar completamente a realidade que parecia destruir todo o conhecimento comum que possuía até agora.
Então, o comportamento alegre de Corvo desapareceu.
— Demônios. Monstros imortais. Pesadelos noturnos. Anfitriões bizarros. A Escuridão. — Um dedo era dobrado para cada nome, e seu rosto mostrava sinais de que estava prestes a vomitar.
— Eles possuem vários nomes, mas todos são considerados a mesma coisa: o pior inimigo da raça humana. Essas coisas não têm aquilo que chamamos de vida. Assim como as palavras sugerem, são mortos-vivos. Mesmo que você corte, queime ou pique em pedacinhos minúsculos, ainda voltam à vida, como se fosse uma piada…
— Sua cara me diz que não acredita em mim. Talvez seja porque realmente é assustador pensar sobre isso. Mesmo se os membros desses monstros sejam arrancados e jogados para longe, ainda se arrastam pelo chão e voltam para o mesmo lugar. Um espetáculo desses causaria um trauma bem grande, mas tenho certeza de que você ainda verá, pelo menos uma vez.
Muoru inclinou a cabeça e respondeu:
— Bem, fiquei tão chocado que já não consigo mais sonhar… — Talvez não houvesse por que se preocupar, mas algo que Corvo disse incomodou sua curiosidade. Entrando em outro assunto, perguntou: — Então, quanto aos membros, você está me dizendo que o corpo inteiro daquele monstro não é apenas uma cabeça?
— Isso mesmo, existem uma infinidade de formas. Mas tudo o que têm em comum é o desejo de matar humanos. Ah, também odeiam o sol. Felizmente, essas criaturas são completamente incapazes de se moverem sob a luz dele. Quanto ao resto… bem… quanto maior, mais forte. E seguindo esta regra, o monstro de ontem era um bem fortinho.
— O qu… sério?
— Bem, coisas como nomes e aparências não são importantes. Mas o que você precisa se lembrar é que, para os humanos, eles são os piores inimigos… Em outras palavras, podem ser chamados de “inimigos naturais” da humanidade. Essas coisas matam pessoas, mas não os comem. Apenas matam. Entende a diferença?
Muoru balançou a cabeça, sentindo vergonha. Mesmo se não contasse com a falsa acusação contra ele, quando se tratava de matar, sua personalidade de soldado era inigualável.
Corvo estava pensando nas próximas palavras, então, começou a contar uma história desagradável:
— Por exemplo, ainda que seja difícil, se você conseguisse aprisionar um leão dentro de uma jaula com um grande suprimento de comida, digamos que seja uma toupeira, quando ficasse com fome, não importa o quão duro tentasse resistir, depois de três minutos a toupeira provavelmente seria morta. Enquanto isso, o leão teria feito sua refeição. Caso isso não acontecesse, morreria de fome. Mas e se o leão estivesse cheio? E dentro da mesma jaula tentassem colocar uma toupeira e uma carcaça de cavalo? Certamente, a toupeira não seria morta tão cedo.
— O que está tentando dizer?
— A única razão pela qual carnívoros enfrentam uma tarefa tão problemática quanto caçar, é porque precisam fazer isso para sobreviver. Seguindo essa lógica, se um gato de estimação recebe comida de seu dono, não é improvável que ele vá à casa ao lado para caçar ratos?
— Humanos… esses monstros provavelmente matam humanos. — disse repentinamente o garoto, inclinando um pouco a cabeça.
— Isso mesmo, mas não é como se tivessem um objetivo específico. — Em algum lugar dentro das palavras do Corvo, havia um pouco de simpatia. — Com certeza há uma grande quantidade de pessoas em nosso mundo que possui um coração cruel e, como resultado, muitos eventos trágicos acontecem. No entanto, provavelmente há algumas pessoas que matam apenas porque querem, né?
— Isso não é loucura? Essas pessoas não são humanas, são monstros.
— Exatamente. Por isso mesmo as coisas sob seus pés são monstros desumanos.
Muoru respondeu com silêncio.
— De qualquer forma, por causa desses desgraçados, os humanos foram incapazes de avançar consistentemente a própria civilização nos últimos mil anos. Mesmo se alguém inventasse algo por acaso, não teria como falar sobre isso ou seria morto antes de compartilhar sua descoberta. Primeiramente, apesar de fazerem tudo o que podiam para sobreviver, os cidadãos comuns eram, de certa forma, limitados quando se tratava do conhecimento sobre essas criaturas. Todos ficavam inquietos e não sabiam em que momento da noite esses demônios apareceriam para matar a todos.
— Porém, quando aqueles dias completamente sombrios passaram, de alguma forma, depois de muito esforço, as pessoas foram capazes de se reunirem e juntarem informações para o futuro.
Muoru tinha uma objeção sobre a última parte, mas permaneceu em silêncio. Parecia que a longa história do Corvo estava prestes a acabar.
— Mudanças na forte relação entre humanos e demônios começaram a acontecer, mas isso foi há trezentos anos. Então, os humanos descobriram por acaso uma forma de derrotar os imortais. E, por causa disso, nos últimos duzentos anos, o mundo começou a florescer de uma forma ou de outra. Na verdade, agora mesmo estamos nos aproximando de uma era de prosperidade nunca vista antes.
A sensação geral de Muoru sobre a história do Corvo era um pouco vaga, ou, talvez, devesse dizer que suas palavras precisavam de tempo para serem digeridas.
Provavelmente isso já era esperado. Para um prisioneiro, que não passava de um jovem garoto e filho de um pobre escultor, humanos, civilização, demônios, inimigos naturais e assim por diante estavam além de sua compreensão. Infelizmente, suas expressões faciais revelavam este fato. Mas antes que o Corvo pudesse perceber sua expressão, ele disse:
— Resumindo… — Muoru tocou a pouca barba. — Pessoas como vocês derrotaram com sucesso aquele monstro. É isso que está tentando dizer?
Corvo sorriu com satisfação.
— Você entendeu mesmo. Hmm, parece que tem um pouco de cérebro, não é apenas músculos.
— Pare de palhaçada. Ah, e a propósito, é verdade que pássaros esquecem de respirar depois de três passos?
— Ei! Isso foi maldade. Além disso, você está enganado.
Enquanto observava o Corvo se sentindo ofendido, não conseguiu ver nada além de características de um jovem. Mas provavelmente não havia razão para pensar que o povo jovem da cidade viria para um lugar desses e teria uma conversa igual a deles. Além do mais, havia aquela máscara. Qual o significado dela?
Entretanto, antes que pudesse perguntar sobre as cidades próximas, Corvo disse:
— Te vejo outra hora. — Foi como se tivesse terminado tudo o que queria conversar.
Como um pássaro levantando voo, o Corvo pulou da lápide e, como uma criança, acenou, então partiu. E desta forma, desapareceu, como se tivesse dissolvido no ar.
O garoto suspirou e apoiou seu queixo no cabo da pá que havia fincado no chão. Enquanto olhava para o pôr do sol pensava nas palavras do Corvo.
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Três dias depois do anúncio de que morreria por fuzilamento, Muoru imaginava se havia algum tipo de mudança psicológica na mente do Preso do Corredor da Morte 367. Porém, agora era tarde demais e não havia como saber se era verdade ou não.
Mas Muoru realmente havia descoberto uma coisa ao vê-lo de perto.
Não importa o quão difícil uma tarefa seja, humanos serão capazes de preparar o coração se tiverem tempo o suficiente. Pelo menos foi isso o que o homem conseguiu fazer.
Aos olhos das pessoas fixadas apenas em seu fim, talvez parecesse não ser nada além de complacência inútil.
De qualquer forma, algumas pessoas provavelmente pensariam que, se o indivíduo está prestes a morrer, essa preparação não faria uma diferença considerável.
Entretanto, o prisioneiro caminhou por vontade própria até a área de execução com seu peito estufado orgulhosamente e cabeça erguida, da mesma forma que andava normalmente? Ou foi arrastado aos poucos pelo corredor, se mijando enquanto gritava e chorava… essa gama de possibilidades provava que a preparação poderia realmente fazer uma diferença.
Mas não era preciso dizer que, para Muoru, a situação do Preso do Corredor da Morte 367 era muito mais preferível. Claro, aqueles monstros não eram algo que toupeiras como ele fossem capazes de lidar. Mas mais do que isso, sua inquietação vinha do fato de que não havia nada capaz de os matar.
E a cova não era uma jaula inescapável.
Isso mesmo… O que devo fazer?
Esta era a única coisa importante.
Mesmo que soubesse da existência daqueles monstros, como a visão de um cemitério que nunca mudava, apenas saber de coisas como o nome do monstro e sua história provavelmente não mudaria a realidade.
O que eu faço? O que devo fazer?
Tradução: Taiyo
Revisão: Bravo, Guilherme e Taipan
QC: Milady
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