Sua História

Sua História – Cap. 04 – Completamente em Branco, Claro

Como eu não tinha costume de ler, uma “biblioteca” para mim não tinha o mesmo significado que a “biblioteca de uma escola”, e a “biblioteca da escola” estava mais para “um refúgio”. Do ensino fundamental ao médio, as bibliotecas eram um tipo de refúgio, assim como uma espécie de centro de detenção.

 

Os alunos que não tinham espaço na sala de aula, incapazes de se adaptar aos demais, fugiam primeiro para a biblioteca. Os que não tinham espaço ali, direcionavam-se à enfermaria. Os que não se encaixavam sequer na enfermaria ficavam reclusos em casa. Como passar de um centro de detenção a uma prisão, e de uma prisão a um presídio. Havia pelo menos alguns alunos que de repente paravam de aparecer, mas a maioria dos que eram incompatíveis passava por esse tipo de processo para se afastar da vida escolar. E a maioria nunca voltou a pisar em uma sala de aula.

 

A maioria dos “desistentes da biblioteca” voltaria às aulas após algum tempo. A pequena porção que partiu virou “desistente da enfermaria”, e era raro alguém sair dali. Os que ficavam na biblioteca por meses eram praticamente inexistentes; eram as espécies agora ameaçadas de extinção de verdadeiros leitores, ou esquisitões como eu, que acharam ali um lugar adequado.

 

No ensino fundamental e no ensino médio, passei grande parte dos meus longos intervalos para almoço na biblioteca. Mas não me lembro de uma única lembrança de ter pegado qualquer livro lá. Ficava fazendo apenas uma de duas coisas: estudando ou dormindo.

 

Uma parte era a simples falta de interesse por livros, mas o mais importante era que sempre queria estar ciente do fato de que não era alguém que estava usando a biblioteca conforme esperado. Não queria me envolver com aqueles que meticulosamente examinavam livros com uma cara que dizia: “Estou aqui porque quero ler, ao contrário de vocês que estão fugindo da sala de aula.” (Embora, pensando nisso agora, o que todos faziam era basicamente a mesma coisa.)

 

Portanto, apesar de que essa era a única forma em que gostaria de estar em uma biblioteca, naquele dia, havia chegado à biblioteca da prefeitura com um motivo adequado. É claro que não fui procurar um livro. Poderia acabar fazendo isso, mas havia algo que queria verificar primeiro.

 

Mostrei meu cartão na recepção e preenchi um formulário para conseguir permissão para usar o banco de dados. Poderia acessar bancos de dados de negócios médicos a partir dos computadores da biblioteca. Foi por isso que não fui à biblioteca da cidade vizinha, mas sim à distante biblioteca da prefeitura. A pesquisa relacionada a Mimories passou por rápidos avanços nos últimos anos, então queria obter informações mais atualizadas das revistas técnicas.

 

A última vez que visitei o lugar foi para pesquisar sobre a segurança acerca do Lethe. Meu atual objetivo era pesquisar como o implante de Mimories poderia confundir as memórias.

 

Para ser mais específico, é isso que eu queria saber: As pessoas podem confundir a realidade com as Mimories? É possível que se sintam convencidos de que sua infância real é produto de Verde Verde?

 

Não era como se estivesse acreditando naquela garota, claro. Mas, considerando minha indecisão na noite anterior, não podia negar que havia uma parte de mim querendo acreditar na “teoria da amiga de infância”. Se realmente acreditasse que ela era uma golpista, então não estaria tão mal assim.

 

Queria evidências claras me dizendo tudo. Precisava da convicção de que Mimories não passavam de Mimories, não importa o quê, e não tinham qualquer relação com a realidade. Caso contrário, certamente seria enganado por ela mais cedo ou mais tarde.

 

Não, se alguém estivesse me enganando, era eu. Meu desejo de que suas palavras fossem verdade, meu desejo de que Touka Natsunagi existisse, eles estavam espontaneamente causando a confusão em minhas memórias.

 

Precisava arrancar minhas esperanças ingênuas pela raiz.

 

Digitei alguns termos gerais na caixa de pesquisa e imprimi todo o material que parecia ligeiramente digno de ser lido. Trabalhei sem pensar em nada por cerca de uma hora e, após examinar a maioria dos títulos, peguei meus documentos impressos e fui para uma sala de leitura. Passei metade do dia lendo essas coisas.

 

Encontrei alguns casos de situações bem diferentes. Não parecia incomum acreditar erroneamente que os eventos de Mimories eram reais. Era dito que, no final, as pessoas simplesmente acreditavam no que queriam. Quando não conseguiam suportar a realidade, distorciam seus sentidos. Isso seria mais fácil do que mudar a realidade.

 

Por outro lado, enquanto pesquisava muito, não encontrei um único caso de pessoas pensando que eventos reais eram Mimories. Fiquei aliviado. Consegui arrancar ao menos uma de minhas preocupações pela raiz. Era possível que tinha feito a pesquisa de forma errada, mas saber que talvez não houvesse casos desses sintomas era ótimo.

 

Respirei fundo e encostei-me na cadeira. Só então notei que já estava escuro do lado de fora. A biblioteca tinha perdido cerca de metade dos visitantes durante o decorrer do dia. Coloquei os documentos em minha mochila, massageei levemente os olhos e levantei.

 

Depois de dar dois passos além da porta automática da entrada, de repente senti o denso cheiro das noites de verão. Tive um breve período de tontura, provavelmente devido à minha falta de capacidade de acompanhar a enorme quantia de informações que o cheiro, por associação, trouxe à mente. Memórias do verão de dezenove anos inteiros foram expostas de começo ao fim, correndo em minha visão.

 

O cheiro de uma noite de verão é o ideal para uma memória. Esse era o pensamento que tinha toda vez que esta temporada chegava.

 

Era exatamente a hora do dia em que trabalhadores retornavam e estudantes saíam da escola, todos se misturavam em um trem. “Horário de Pico” pode não ter significado em áreas mais afastadas, mas estar em um espaço fechado com passageiros cujas roupas estavam ensopadas com um dia de suor arruinava meu humor.

 

Segurei firme em uma correia, olhando pela janela para as luzes da cidade que passavam rapidamente. A cada cinco minutos, uma onda de sonolência lânguida me abordava e recuava. Meus olhos excessivamente cansados estavam tão turvos como se tivesse passado a noite em branco. Durante a noite, provavelmente poderia enfrentar aquela golpista e nem me incomodar.

 

O trem sacudia severamente ao fazer curvas. Um homem de meia idade parado ao meu lado perdeu o equilíbrio e esbarrou em meu ombro. Ele me lançou um olhar acusador, mas depois disso, escondeu o que eu podia supor que era algum tipo de revista de fofocas.

 

Fingi ser empurrado pelo passageiro do lado oposto para dar uma espiada em sua leitura.

 

Sabia, desde o início, que seriam apenas artigos inúteis.

 

O título descrito imediatamente chamou minha atenção.

 

O Homem que Confundiu sua Esposa com uma Substituta.

 

Minha sonolência se esvaiu por um instante.

 

Impedi-me de falar com ele naquele momento, esperando até o homem desembarcar. Desceu uma estação antes da minha. O segui e, depois de passar pela bilheteria, chamei por ele.

 

— Com licença.

 

O homem se virou. Depois de alguns segundos, pareceu perceber que eu era o passageiro que esteve parado ao seu lado no trem.

 

— O que foi? — perguntou o homem timidamente, de forma completamente inversa à sua anterior atitude arrogante.

 

— Um, a respeito da revista que você estava lendo antes…

 

Eu ia perguntar o nome da revista, mas o homem disse: “Oh, chamou sua atenção?”, e tirou ela de debaixo do braço.

 

— Eu já ia jogar fora, pode ficar com ela.

 

Agradeci e a peguei. O homem segurou a maleta que tinha consigo com a outra mão e partiu graciosamente.

 

Voltei pela entrada da bilheteria, sentei em um banco gasto da plataforma do trem e abri a revista. Encontrei o artigo em pouco tempo. Não tinha sequer meia página, mas as informações eram mais valiosas para mim do que qualquer uma das dezenas de documentos que li na biblioteca.

 

Era sobre um jovem que perdeu a esposa.

 

Ela morreu diante de seus olhos. Era algo brutal para se ver. Um final miserável que lhe negava qualquer respeito como humano e faria com que aqueles que o testemunhassem tivessem dificuldades para lembrar como ela foi em vida. Logo após sua esposa perder a vida, o homem decidiu comprar Lethe. Já que sua esposa provavelmente também não gostaria de ser lembrada dessa maneira.

 

Não era como se pudessem extrair apenas as memórias tristes. Se fosse apenas sua morte, ele não conseguiria se lembrar dela, e não tinha como isso não criar inconsistências. Em pouco tempo, provavelmente tentaria recuperar as memórias que faltavam. Para esquecer o episódio, precisaria esquecer absolutamente tudo. Desde o dia em que a conheceu até o fatídico momento.

 

E foi o que ele fez. Usou Lethe para apagar todas as memórias relacionadas à esposa.

 

Mas mesmo que as memórias tivessem desaparecido, a sempre presente sensação de perda, como se tivesse perdido metade de seu corpo, não o abandonaria. Mesmo assim, não sentiu qualquer desejo de casar novamente (embora pensasse que seria seu primeiro casamento). Assim como a sensação de perda, o medo de perder sua parceira também estava profundamente gravado em sua memória.

 

A escolha que o homem tomou foi de usar a “Lua de Mel”; isto é, obter imitações de um casamento fictício. Um mês após receber aconselhamento na clínica, a Lua de Mel criada com base em seus desejos latentes ficou pronta. Ela coube perfeitamente na lacuna em seu coração. Ele nem conseguia sentir o toque do engenheiro de Mimories nela. Essas eram exatamente as lembranças que procurava. Amava as falsas memórias de sua esposa e encontrava paz de espírito nelas.

 

Mas não muito tempo depois, começou a ter pesadelos. Não conseguia se lembrar deles quando acordava, mas pelo menos lembrava que estava tendo o mesmo várias vezes. Parecia que continha toda a malícia do mundo, e chorava em seu travesseiro desde o momento do adormecer até despertar.

 

Dois anos depois, descobriu que as memórias que pensava ser Mimories eram seu passado real. O que tinha recebido naquele dia não foi Lua de Mel, mas Memento. Por engano, não recebeu nanobots que implantariam Mimories, mas aqueles que traziam de volta as memórias apagadas. Confundiram-no com outro cliente que tinha um nome semelhante. A pessoa que pensava ser sua esposa fictícia era sua verdadeira esposa falecida.

 

Infelizmente, o artigo não abordou o que o homem fez após lembrar tudo – sobre ter decidido usar Lethe novamente ou não.

 

Depois de ler o artigo umas três vezes, olhei para cima. O trem que chegou dez minutos depois estava excessivamente lotado, e todos os passageiros pareciam exaustos. Sentei-me em um canto, fechei os olhos e coloquei meus pensamentos em ordem.

 

Não tinha garantia de que o artigo era uma história real. Talvez fosse apenas algo fabricado por um escritor, sem qualquer embasamento.

 

Mas até que fazia sentido algo assim acontecer. A capacidade do Memento de recuperar memórias não era perfeita. Se ainda estivesse perdendo “a memória de apagar a memória” e só conseguisse lembrar da parte principal, seria natural presumir que tudo não passasse de Mimories.

 

Agora eu estava de volta à estaca zero. Não, talvez estivesse pior ainda. Fiquei encantado com essa nova teoria onírica que estava montando. As Mimories que pensava serem produtos de Verde Verde eram, na verdade, memórias reais reparadas por Memento; eu só as perdi temporariamente graças ao Lethe. Então aqueles dias maravilhosos não foram sonhos, pois minha amiga de infância, Touka Natsunagi, realmente existia – infelizmente, essa possibilidade estava fazendo meu coração até mesmo dançar.

 

Só por eu não ter o costume de ler, isso não significava que não tinha o costume de ouvir música. Nas noites sem dormir, poderia escutar alguma estação de rádio, mas isso era tudo. Nunca gastei qualquer dinheiro com músicas. Então, não tinha ideia de quais eram populares ou clássicas.

 

Mas imediatamente pude lembrar o título daquela música.

 

Ela estava esperando no meu quarto novamente. Enquanto estava na cozinha preparando uma refeição, cantarolava uma música.

 

Era uma antiga. Uma música que Touka Natsunagi costumava cantarolar. Seu pai colecionava discos, então ela tinha um bom conhecimento acerca de músicas.

 

A memória nostálgica estimulou minhas Mimories.

 

I smelled old books[1].

 

— Quando era pequena, não entendia a letra — disse Touka após tirar a agulha do disco. — Tem um som alegre, então esperava que a letra também fosse animada. Ler ela uma vez que pude entender melhor o inglês realmente me surpreendeu. Não podia acreditar que estava cantando uma música tão triste esse tempo todo.

 

Estávamos no escritório do pai de Touka. Ela costumava me convidar para ir ali quando tínhamos tempo livre ou nos cansávamos de estudar. Depois, colocava um disco na vitrola cuidadosamente, como se fosse um ritual, e me fazia ouvir com um olhar altivo em seu rosto.

 

Eu não tinha qualquer interesse em música, mas gostava do tempo gasto com Touka. Era uma sala muito apertada, com apenas uma cadeira, então escolhíamos sentar juntos no chão. Quando entramos na adolescência e começamos a criar certa distância entre nós, era o único momento em que criávamos uma exceção para permanecer juntos. Ela também pensava na música como algo secundário, e algumas vezes não percebia que ouvia o mesmo disco por vários dias seguidos.

 

Dessa forma suas palavras de “Vamos ouvir um disco” tinham mais significado para mim do que parecia. “Vamos ouvir um disco” era uma frase que condensava o carinho indecente de “Tudo bem ficarmos juntos um pouco mais?” e “Quero passar mais tempo com você”.

 

Inevitavelmente, acabei começando a gostar de tudo relacionado a esse tempo. Livros antigos, discos de vinil, globos de neve, ampulhetas, relógios antigos, pesos de papel, suportes para fotos, garrafas de vodka (lembro até de uma marca chamada Hysteria Siberiana[2]). Com o estudo como desculpa, essas coisas acabaram ligadas ao calor do toque de Touka.

 

A música que ela estava cantarolando, passei a também cantarolar. Quando estávamos juntos e o assunto da conversa morria, um de nós começava a fazer isso.

 

— O que a letra diz? — perguntei. Realmente não me importava com isso, mas queria esticar a conversa mesmo que só por mais um pouco de tempo.

 

Touka olhou para um ponto no espaço por alguns segundos, como se estivesse tentando lembrar, depois respondeu:

 

— Há uma garota que o homem acha chata, mas assim que outro homem a toma para si, ele começa a adorá-la, lamentando: “Por favor, volte para mim”, “Me dê outra chance”. É esse tipo de música.

 

— Resumindo, você não sabe o valor do que tem até perder.

 

— Isso mesmo. — Concordou ela. Depois de mais uma pausa, adicionou: — É por isso que você também deve tomar cuidado, Chihiro.

 

— Eu?

 

— Mesmo se me achar chata, não se atreva a me afastar.

 

— Definitivamente não te acho chata.

 

— Hmm…

 

Houve um vago momento de silêncio. Enquanto procurava outro assunto, sem qualquer aviso prévio, Touka se inclinou em minha direção.

 

Ainda apoiando seu peso em mim, riu como uma bêbada com alguns parafusos soltos.

 

— Isso… Pode ser um pouco chato — falei tentando encobrir meu constrangimento.

 

— Não reclame — repreendeu Touka. — Ou outro homem vai me levar.

 

Obedientemente aceitei isso.

 

O zumbido que escutava parou e, mais ou menos na mesma hora, voltei ao presente.

 

— Bem-vindo de volta — disse ela virando para mim. — Ei, Chihiro, estou muito orgulhosa do meu prato de hoje. Quero que experimente, dê ao menos uma mordida.

 

Com dificuldades para focar meus olhos, sua figura estava embaçada.

 

Na minha cabeça, ouvi o som de algo quebrando.

 

— Chihiro?

 

Minha mão estendida agarrou seu delicado ombro.

 

Um momento depois, a empurrei. Suas costas bateram no chão e ela ofegou levemente. Fiquei por cima dela e rapidamente cumpri meu objetivo.

 

A chave estava no bolso de sua bermuda. Depois de verificar se era a do meu quarto, e não do dela, eu a soltei.

 

Ela sentou e disse: “Você me assustou…” com uma voz baixa. Então, sem qualquer tentativa de arrumar as roupas, olhou para mim estupefata.

 

Apontei para a porta.

 

— Saia.

 

Ela ficou de pé, calçou os sapatos e ficou em frente à porta. Colocou a mão na maçaneta, mas depois virou para mim.

 

— Não importa o quê, não vai acreditar em mim…?

 

Muito pelo contrário, pensei. Se abaixar um pouco a guarda, acabarei acreditando e é exatamente por isso que tenho que ser tão frio.

 

Enquanto ficava lá sem responder, ela sorriu com tristeza. Virou as costas para mim novamente e se preparou para sair.

 

— Espere.

 

Quando voltou a se virar para mim, peguei o prato de comida. Era um ensopado de legumes coloridos, perfeito para o verão, preparados com muito cuidado, talvez até com um pouco de nervosismo.

 

— Ah… — Ela soltou um suspiro baixo.

 

Inclinei o prato e sua comida caseira foi jogada no lixo.

 

Peguei o prato vazio e disse:

 

— Leve isso.

 

Ela olhou para o lixo, sem sequer mover as sobrancelhas. Então, sem palavras, pegou o prato, saiu do cômodo e fechou a porta em silêncio.

 

Minha primeira vitória, pensei. Eu tinha recusado seus atrativos e provado que já havia dominado a ilusão de Touka Natsunagi.

 

Mas, apesar de finalmente ter me impressionado tanto, não fiquei satisfeito. De fato, quanto mais o tempo passava, mais meu humor piorava. Tirei o gim do freezer, servi um copo e tomei dois goles. Deitado no tapete, olhei para o teto e esperei que o álcool lavasse minha infelicidade para longe.

 

Enquanto desamarrava aqueles pensamentos complicados, de repente pensei em algo. Sentei-me na mesma hora e liguei o laptop sobre a mesa.

 

Por que tinha esquecido de algo tão básico?

 

Devia ter fugido completamente de minha mente devido ao meu estilo de vida não-mundano, mas existe algo chamado mídia social, que permite encontrar pessoas pelo nome e localização, mesmo se não tiver um número de telefone ou endereço de e-mail.

 

Usando isso, deveria ser fácil entrar em contato com um colega de classe do ensino médio. Não apenas poderia conversar sobre aquele período, como também poderia pedir para ver seu anuário. Fiquei nervoso ao pensar em falar com colegas de classe com quem quase nunca me comuniquei, mas se isso pudesse provar que Touka Natsunagi não existia, então poderia fazê-lo.

 

Fiz uma conta em uma grande rede social e procurei minha alma mater[3]. Depois de ajustar tudo, nomes que soavam familiares apareceram um após o outro.

 

Reflexivamente senti algo parecido com asfixia. Era como se o ar da sala de aula do meu ensino médio estivesse flutuando para o meu quarto pela tela. Mas era só uma ilusão momentânea, então a sensação tempestuosa cessou rapidamente. Não sou mais um estudante do ensino médio e nunca mais precisarei lidar com essas pessoas na minha vida com exceção com a qual entrarei em contato agora.

 

Encontrei oito colegas de classe. Seis eram garotas, dois eram garotos. Olhei seus posts, um a um. Espiei suas vidas. Sabia que não tinha boas razões para tal, mas não pude evitar.

 

Eram vidas variadas. Um estava estudando no exterior. Outro já tinha conseguido um emprego e estava trabalhando duro. Uma frequentava uma faculdade renomada e tinha uma bolsa de estudos. Outra trabalhava em uma organização sem fins lucrativos de apoio a órfãos. Alguém até mesmo tinha se casado com um antigo colega de classe.

 

Havia um monte de fotos. Uma de um grande grupo de amigos fazendo um churrasco. Outra de amantes sentados com os ombros tocando e usando yukatas. Uma de membros de um clube divertindo-se na praia. Outra de alguém segurando um bebê recém-nascido. E até mesmo uma da reunião de antigos colegas à qual não fui.

 

Mais uma vez, senti como se tivesse sido perfurado pelo vazio que era minha vida. Mas nenhum sentimento de inveja surgiu. Uma pessoa que rasteja pela terra não tem motivos para se importar com o que aquelas que voam acima das nuvens fazem. Quando as coisas são tão diferentes, você perde a vontade de fazer comparações.

 

Cliquei na conta da última pessoa. Entre as flores no topo de penhascos, havia uma na beira da estrada. As fotos carregadas eram meio surradas, nenhuma tinha qualquer pessoa. Suas atualizações de status também eram terrivelmente indiferentes; apenas o sentimento de “Fiz uma conta só por todos terem feito, mas não vou escrever nada” soou alto e claro. E olhar as postagens revelou que morava em uma cidade próxima.

 

Mais uma vez verifiquei o nome da conta. Nozomi Kirimoto. Ahhh, aquela Nozomi Kirimoto, percebi. Realmente não conseguia lembrar do seu nome ou rosto, mas lembrava um pouco mais claramente dela do que dos outros colegas. Por que estivemos na mesma classe por três anos seguidos, claro, mas esse não era o único motivo. Nozomi Kirimoto foi uma das poucas pessoas que conheci com quem poderia me sentar junto e ficar em paz.

 

Ela vivia na biblioteca. Não era uma intrusa que abandonou o lugar como eu, mas uma verdadeira leitora. Desde a primavera do primeiro ano ao inverno do terceiro, sempre visitava a biblioteca. Lia com avidez, em uma velocidade com a qual poderia conferir todos os livros lá existentes. E a pausa para o almoço não era o bastante, então também passava o tempo entre as aulas e após as mesmas checando algum livro.

 

Lembrei-me dela por seus óculos de grau enormes que pareciam até mesmo distorcer o tamanho de sua cabeça, e um penteado antiquado e cabelo cacheado. Sua habilidade escolar não era nada para se destacar, e seu rosto até que era decente. À primeira vista, poderia pensar que seria a presidente de classe excessivamente séria, mas na verdade era pouco sociável para se candidatar a tal posição. Estava sempre sozinha. Sempre mantendo o olhar para baixo, optando por andar apenas na sombra dos cantos.

 

Três ou quatro vezes em nossos três anos do ensino médio, juntamo-nos para um trabalho ou coisa do tipo. Uma vez na aula de música, outra na de artes, e também em um tipo de evento escolar, acho. Como companheiros que foram deixados de escanteio, fomos reunidos pelo processo de eliminação. Foi quando eu soube que, embora normalmente fosse uma garota tímida, ela podia falar tanto quanto uma pessoa comum depois de algum tempo.

 

Não, não havia nada de “normal” naquilo. Nozomi Kirimoto sabia falar japonês mais fluentemente do que qualquer outra criança de sua idade, além de qualquer comparação. Tão acostumada a nadar naquele mar de palavras impressas, sabia uma ou duas coisas sobre o uso eficaz da linguagem. Estava cheia dessa habilidade e, quando chegava a raras ocasiões de começar a conversar, testava sua fluência alegremente. E, após continuar por um tempo, se afundaria profundamente em uma auto-repulsa e entraria em uma camada ainda mais profunda de reticência.

 

Esse era o tipo de garota que Nozomi Kirimoto era. Incapaz de se acostumar com os modos deste mundo, tentou se acostumar com seu próprio caminho e ficou mais e mais distante; esse modo de vida desajeitado foi o único que conseguiu ter.

 

Será ela, decidi.

 

Optei por enviar uma mensagem inofensiva a princípio, sem tocar no verdadeiro tópico da conversa. Entrar em contato com uma colega de classe com quem quase nunca conversei para solicitar um anuário de repente acabaria com minhas chances, criando suspeitas de ser um comerciante pescando informações pessoais.

 

A mensagem que passei vinte minutos digitando foi incrivelmente estranha. Para colocar tudo em ânimos leves, era como um e-mail de spam escrito por um estrangeiro que mal conhece o idioma. Bem, era a primeira vez enviando uma mensagem pessoal a uma conhecida, portanto, não foi surpreendente. Na verdade, eu meio que podia ser considerado um estrangeiro. Onde quer que fosse, com quem quer que estivesse.

 

Fiquei insatisfeito com a mensagem, mas sabia que minha decisão vacilaria ainda mais com o passar do tempo, então enviei sem mudar nada, antes de voltar ao meu eu normal. Então fechei o laptop e deitei no chão.

 

Naquela noite acordei com um de meus pesadelos habituais. Arrastei-me para fora da cama, fui para a cozinha, peguei um pouco de água e tomei três copos, um atrás do outro. Sempre fazia isso quando tinha um pesadelo. Poderia dizer que tomar um pouco de água gelada devolvia meu senso de realidade, dando ao pesadelo local nenhum para ficar e enviando-o para sabe-se lá que lugar. E em alguns minutos, poderia esquecer que tipo de sonho foi. Às vezes, quando o medo persistente não desaparecia, bebia um pouco de gim. Isso geralmente me fazia esquecer tudo. Líquidos claros têm esse tipo de poder. As águas do esquecimento do Lethe foram assim nomeadas por serem belas e claras, imaginava.

 

Mesmo após um dia inteiro, não recebi qualquer resposta de Nozomi Kirimoto. Ela suspeitava que eu fosse alguém fazendo propagandas ou um comerciante, ou sabia que fui seu colega de classe e simplesmente decidiu me ignorar? Se fosse a primeira opção, ainda existia alguma esperança, mas não tinha certeza de nada enquanto não houvesse qualquer resposta. Na verdade, talvez ela não verificasse as mídias sociais com muita regularidade.

 

Gostaria de saber se deveria tentar enviar outra mensagem. No momento, colocaria todas as palavras em direção de meu objetivo de expor a verdadeira identidade de Touka Natsunagi. Portanto, não poderia ser exigente quanto aos meus métodos. Além disso, Nozomi Kirimoto não tinha nenhuma importância real para mim. Mesmo se usá-la resultasse em seu desdém e desprezo, isso não me incomodaria em nada.

 

O problema era o que escrever na segunda mensagem. Que palavras poderia usar para fazê-la confiar em mim? Poderia fazê-la sentir algum interesse? Como um garoto escrevendo sua primeira carta de amor, reescrevi aquilo várias vezes. Até não conseguir mais entender o que escrevia, e de repente tive a pior das ideias.

 

E a segui. Não vou entrar em detalhes. Digamos que estava pensando na história da golpista que Emori contou.

 

O efeito foi incrível. Apenas uma hora passada, recebi uma mensagem de Nozomi Kirimoto. Meu coração não estava necessariamente ferido ou havia qualquer intenção de tirar vantagem de sua consciência, mas era uma sensação estranha ter que me passar por um golpista para expor as mentiras de uma golpista. Prometemos nos encontrar na tarde do dia seguinte na estação de trem e encerramos nossa comunicação nesse momento.

 

Olhei para o relógio: eram nove da noite. Levando em conta os últimos dias, era a hora em que a mulher que se nomeava como Touka Natsunagi costumava aparecer em meu quarto. Subconscientemente olhei para a parede ao lado, a de seu quarto, depois para a minha porta. Mas, de alguma forma, não conseguia imaginar aquela porta sendo aberta esta noite.

 

No final, ela não tentou nada naquele dia. Talvez tenha percebido que eu não responderia como desejava e estava reformulando sua estratégia. Talvez estivesse fingindo estar magoada com o que fiz com sua comida, e quisesse analisar minha reação. Ou talvez não fazer nada fosse parte do plano. Se fosse o caso, o plano teve um lamentável êxito. Ouvi ruídos no quarto vizinho a noite toda, imaginando quais seriam as razões para que não aparecesse. Quando o sono finalmente chegou, a fraca luz matinal estava atravessando minhas cortinas.

 

Foi nosso primeiro encontro em cinco anos.

 

Nozomi Kirimoto estava obedientemente parada no local designado, em frente a uma estátua de pedra, olhando tristemente para a chuva caindo, segurando um guarda-chuva azul por cima do ombro. Seus cabelos, uma vez amarrados, estavam soltos, seus óculos grossos tinham mudado para lentes de contato, e sua roupa era mais refinada, mas ela basicamente passava a mesma impressão de antes. Como sempre, seus olhos espiaram sob uma franja de cabelo, como se tivesse todo tipo de emoção negativa ali. Era como se o conceito central de Nozomi Kirimoto tivesse sido mantido, enquanto todo o resto tivesse sido substituído por peças novas.

 

Quando me notou, fez uma breve reverência. Então silenciosamente apontou para uma cafeteria do outro lado da rua e começou a andar sem esperar por minha resposta. Primeiro vamos sair da chuva, supus.

 

Alguns clientes apareceram para fugir da chuva, mas não era o bastante para não termos lugar para sentar. Pedimos uma mesa para dois, perto da janela, e após molhar os lábios com água gelada trazida pelo garçom, Nozomi Kirimoto abriu a boca sem pressa.

 

— Qual é o seu objetivo?

 

— Meu objetivo?

 

— Você tinha alguma intenção ao entrar em contato comigo, não tinha? — disse ela com um olhar baixo e sombrio em direção ao canto da mesa. — Evangelização? Marketing multinível[4]? Um programa de vendas por referência? Se for isso, peço desculpas, mas terei que ir embora agora mesmo. Acho que não preciso economizar e nem estou com falta de dinheiro.

 

Olhei para ela, surpreso.

 

Ela me encarou, então seus olhos vagaram.

 

— Desculpe se não entendi direito. Mas não consegui pensar em outro motivo para alguém entrar em contato com alguém como eu, então…

 

Sua voz ficou tão rouca com suas últimas palavras que mal consegui ouvir.

 

Peguei meu copo na mesa e, depois de hesitar um pouco, tomei um gole.

 

O que devia fazer? Queria dizer algo como: “Não é nada disso, simplesmente entrei em contato com você porque queria te encontrar”, mas suas palavras foram bastante claras. Eu não era um evangelizador ou profissional do marketing multinível, ou qualquer coisa do tipo, mas era verdade que tinha um propósito para encontrá-la. Minhas verdadeiras intenções eram nítidas.

 

Seria fácil fingir ignorância agora. Mas não achei que pudesse manter esse ato por muito tempo. Se fosse o tipo de pessoa que poderia fingir afeição por alguém de forma tão convincente, não estaria tão sozinho.

 

Chamei um garçom para pedir cafés. E sem confirmar ou negar as suspeitas de Nozomi Kirimoto, perguntei:

 

— Posso assumir que você realmente teve uma experiência desse tipo?

 

Era uma pergunta sem sentido, destinada a preencher uma lacuna.

 

Mas acabou sendo a melhor resposta.

 

Ela arregalou os olhos, seu corpo tremia, suas sobrancelhas cederam e ficou tão silenciosa quanto uma pedra. Até mesmo um transeunte poderia ver como estava desnorteada, e me senti culpado, como se tivesse feito algo errado.

 

O silêncio perdurou por um longo tempo após isso. Estava se perguntando o que dizer, ou esperando que eu dissesse algo, ou tão chateada que não queria mais papo? Não sabia identificar por sua expressão.

 

Quando estava prestes a pedir desculpas, dizendo: “Não quis dizer nada de especial com isso, sinto muito”, Nozomi Kirimoto murmurou algo.

 

Inclinei-me na mesa para escutar melhor.

 

— Logo após entrar no ensino médio, fiz uma amiga — disse com uma voz seca. — Eu era tímida e solitária, e essa amiga direto aparecia para conversar comigo. A primeira que fiz em toda a vida. Ela era bem-disposta, então, diferente de mim, era apreciada pela classe. Ela parecia se dar bem com todos, mas também me dava preferência, me sentia honrada.

 

Um sorriso caloroso surgiu em seus lábios, mas não durou mais que dois segundos.

 

— Mas apenas um mês após virarmos amigas, ela me levou a um lugar estranho. Era uma reunião de um novo grupo religioso que eu nunca tinha ouvido falar. Na semana seguinte, e na outra, me levou ao mesmo lugar. Como eu não tinha amigos, provavelmente pensou que seria facilmente influenciada. Depois que disse que não tinha interesse de me juntar e que parasse de me convidar, parou de falar comigo. Não apenas isso, espalhou boatos maliciosos pela escola e, por três anos, recebi olhares frios e fui agredida com palavras maldosas.

 

Nosso café chegou. O garçom pareceu reconhecer o silêncio tenso entre nós, curvou-se levemente com um sorriso amarelo e saiu.

 

— Isso foi horrível… — Foi tudo que pude dizer.

 

— Sim. Foi. — Concordou. — É por isso que odeio mentirosos.

 

Não tive coragem de contar mentiras após ouvir isso. Só teria que dizer a verdade; fortaleci-me.

 

Pensando de uma perspectiva diferente, Nozomi Kirimoto pensou que era bem provável que eu fosse um golpista, mas ainda resolveu me encontrar. Acho que não pôde ignorar meu pedido. O que significava que isso aceleraria as coisas desde que eu contasse minhas verdadeiras intenções com honestidade.

 

Tomei meu café e coloquei minha xícara no pires.

 

— Você tem meia razão, Senhorita Kirimoto.

 

Ela ergueu o rosto, mas rapidamente voltou a olhar para baixo.

 

— Meia?

 

— Tenho um motivo para ter entrado em contato com você. Essa é a realidade.

 

— Qual a outra meia parte…?

 

— A pessoa com quem entraria em contato poderia ser qualquer outra. Havia várias opções, mas sentia que odiaria me encontrar com qualquer um dos outros. Entretanto, pensei que ficaria bem em fazer contato com você. Nesse sentido, acho que você poderia dizer que tive a intenção de encontrá-la, Senhorita Kirimoto.

 

Ela ficou mais uma vez em silêncio. Mas isso não perdurou muito.

 

Ela falou com uma expressão em branco:

 

— Então, qual é o seu motivo?

 

Parece que ela iria direto ao ponto.

 

Silenciosamente agradeci por isso, então abordei o tópico principal.

 

— O nome “Touka Natsunagi” é familiar para você?

 

— Touka Natsunagi?

 

— Lembra de uma garota de nossa escola com esse nome?

 

Ela cruzou as mãos sobre a mesa e pensou no assunto.

 

— Você provavelmente deve saber, mas também quase não interagi com meus colegas na escola. Portanto, não tenho certeza. Contudo… — Ela olhou para mim através de sua franja, mas depois continuou. — Pelo menos até onde lembro, acho que não havia nenhuma aluna com esse nome.

 

Então, Nozomi Kirimoto começou a nomear todos os colegas de classe, um por um. Isso provou que a advertência de que não interagiu muito com os colegas era algo absurdo. Ela conseguiu citar o nome de cada um deles, de cada ano do ensino médio.

 

— Acredito que esses foram todos — disse após terminar a contagem em seus dedos. — Já faz alguns anos, então não tenho muita certeza.

 

— Não, acho que você está extremamente certa nisso. Sua memória é incrível.

 

— Embora não consiga lembrar os rostos. Estranhamente, são nomes que não consigo esquecer.

 

Cruzei os braços e pensei nisso. Muito provavelmente, a memória de Nozomi Kirimoto era o mais incrível. Era inconcebível que alguém com memórias tão distintas pensasse que o nome de um colega de classe que jamais existiu fosse familiar. Então, como eu imaginava, uma aluna chamada Touka Natsunagi não existia.

 

Mesmo assim, hesitei em resolver um problema baseado em memória com uma solução também baseada em memória. Toda essa corrente de dúvidas desencadeou o fato de que “a memória pode não ser confiável”. Parte de mim achou que resolver o problema com as memórias de alguém poderia ser meio ruim.

 

— Acho que suas memórias estão corretas, Senhorita Kirimoto — disse a ela, escolhendo minhas palavras com cuidado. — Mas gostaria de ao menos mais uma evidência clara para ficar satisfeito. Você ainda tem o anuário da graduação?

 

— Err, sim. Acho que está em algum lugar no meu apartamento.

 

— Você se importaria em mostrar isso para mim?

 

— Agora mesmo?

 

— Sim. Quanto mais cedo melhor, mas se for um incômodo…

 

— Então vamos lá. — Antes que eu pudesse terminar de falar, ela pegou a conta e se levantou. — Afinal, meu apartamento não fica muito longe daqui.

 

Caminhamos em silêncio pela cidade chuvosa. Não houve qualquer conversa, então ninguém imaginaria que éramos colegas de classe se vendo depois de cinco anos.

 

Em momentos assim, acho que normalmente se conversa sobre o que tem acontecido nos últimos tempos. Contam algumas fofocas sobre algum amigo em comum, mudam o tópico para alguma coisa do passado, falam sobre coisas engraçadas e momentos memoráveis de quando estudavam juntos e conversam sobre os velhos tempos.

 

Mas não tínhamos boas memórias. Não tínhamos amigos com quem mantivemos contato e tentar falar sobre coisas recentes de nossas vidas seria simplesmente triste. Sabíamos que nós dois tínhamos vivido quietos em nossos cantos da sala de aula, respirando aquele ar seco, tendo apenas um breve tempo de paz na biblioteca – passamos por dias cinzentos. Não sentíamos qualquer desejo de desenterrar um passado assim.

 

Da estação de trem, pegamos um ônibus por cerca de vinte minutos e caminhamos por apenas cinco até chegar ao prédio de Nozomi Kirimoto. Parecia consideravelmente mais arrumado do que o velho complexo de apartamentos onde eu morava; não estava manchado do lado de fora, e o estacionamento estava cheio de veículos com cores vivas que eu imaginava serem do gosto de jovens.

 

Senti vontade de esperar do lado de fora, mas ela me chamou para entrar.

 

— Você está com pressa, não? Não me importo se der uma olhada aqui.

 

Fiquei um pouco desconfortável quando entrei no quarto de uma garota com quem sequer era amigável, mas ela estava certa, eu queria olhar esse anuário o quanto antes. Apenas aceitaria sua gentileza. Apoiei meu guarda-chuva molhado na parede do corredor e entrei em seu cômodo.

 

A expressão “bagunça” não seria suficiente. “Um amontoado de livros” provavelmente se adequava melhor. Havia três grandes estantes de livros e todas estavam lotadas, com aqueles que não cabiam nas prateleiras alocados em uma mesa ou pelo chão. Olhando com mais atenção, a posição deles parecia seguir algum tipo de sistema, então, embora pareça estranho, a impressão que tive foi de “um tipo de organização desorganizada”.

 

— Lamento pela bagunça — disse timidamente, adivinhando o que eu pensava.

 

— Não, não precisa. Você só tem muitas coisas. Não acho que esteja bagunçado.

 

Embora não tivesse uma boa ideia de como o quarto de uma garota comum era, ficou claro que o de Nozomi Kirimoto era muito diferente do normal. Com certeza tinha personalidade, mas, por outro lado, se você simplesmente removesse as montanhas de livros que davam essa impressão, de repente descobriria que era um lugar de puro anonimato. A mesa, a cama, o sofá, tudo tinha modelos simbólicos que iam além do genérico. Como se tivesse escrito em um papel algo como “mesa”, “cama”, “sofá” e colado nos móveis.

 

Ela se agachou na frente de uma estante de livros. Parecia que grandes livros e álbuns estavam guardados na parte de baixo.

 

Enquanto procurava pelo anuário, Nozomi Kirimoto perguntou:

 

— Mas preciso perguntar, por que não tem seu anuário? Não comprou um?

 

— Joguei fora. Queria ter menos coisas para carregar quando saí de casa.

 

— Parece com o que você faria — disse ela rindo baixinho. — Pensei em jogar fora também, mas como pode ver, não gosto de jogar nada com a forma de um livro no lixo.

 

— Parece que é isso mesmo. Mas estou feliz por isso.

 

— Oh, não precisa falar isso.

 

Ela encontrou o anuário na segunda estante em que procurou. Puxou e limpou a poeira, depois entregou dizendo:

 

— Aqui está.

 

Primeiro, abri a página de fotos individuais da graduação. Depois de examinar minha própria turma, verifiquei as outras apenas para ter certeza.

 

— Não tem — comentou Nozomi Kirimoto, olhando do meu lado.

 

Verifiquei três vezes, mas ela estava certa; não encontrei nenhuma aluna chamada Touka Natsunagi.

 

Depois, verificamos uma foto atrás da outra: fotos de grupos, do conselho estudantil e clubes, fotos das salas de aula e eventos escolares. Nozomi Kirimoto foi capaz de adivinhar corretamente o nome de cada pessoa.

 

— Chihiro.

 

Fiquei surpresa ao ouvi-la dizer meu nome de repente, mas parecia que só queria dizer algo como: “É você nesta foto, Chihiro”. Estava apontando para uma imagem, eu estava escrevendo no quadro negro.

 

Nesta foto, parecia que eu poderia ser um aluno modelo que levava as aulas a sério. Mas eu sabia que não era esse o caso. Estava constantemente olhando para o relógio. Olhando para aquele relógio acima do quadro negro, apenas esperando que a aula acabasse. Queria sair da escola e ficar sozinho, o quanto antes. E quanto mais desejava isso, mais devagar o ponteiro dos segundos parecia se mover.

 

A próxima foto que atraiu minha atenção retratava a primeira garota que encontrei quando procurei por meus antigos colegas na internet. Era uma cena de um espetáculo no festival cultural; uma verdadeira foto ideal para um anuário. Ela era graciosa, bonita e nada desagradável, tratava todos igualmente bem, para que todos gostassem dela.

 

De repente, lembrei da foto da reunião de classe que estava no perfil da mesma garota.

 

— A propósito, Senhorita Kirimoto, você foi à reunião da sala? — perguntei casualmente.

 

— Não. — Ela balançou a cabeça de leve. — Suponho que você também não, não é?

 

— Exato. Não havia ninguém que eu realmente quisesse ver, e duvido que alguém estivesse esperando me encontrar.

 

— Me sinto do mesmo jeito. Independente de quem encontrasse, isso me deixaria triste. Além de que…

 

Nesse ponto, ela congelou. Porque de repente notou uma página dupla totalmente em branco.

 

Eu não sabia o que isso significava. No começo pensei que era um erro de impressão. Mas logo depois, lembrei que era o lugar onde deveriam estar escritas as mensagens de amigos.

 

Indiferentemente, virei a página, mas ela ficou falando: “Completamente em branco, claro” e sorriu com desprezo.

 

Comecei a dizer que “A minha estava igual”, mas desisti. Acho que ela já sabia.

 

Em pouco tempo, verifiquei todas as páginas. O anuário tinha provado que nenhuma garota chamada Touka Natsunagi existia entre meus colegas de classe.

 

Pouco antes de eu sair do cômodo, Nozomi Kirimoto modestamente murmurou “Um…” e me perguntou algo.

 

— Quem é essa Touka Natsunagi, afinal? Por que está procurando por ela, Chihiro?

 

— Desculpa. Não quero falar sobre isso — respondi sem me virar.

 

Eu não tinha certeza do motivo, mas não queria ficar neste cômodo por mais um segundo que fosse. Queria voltar rapidamente para o meu apartamento e beber gim em paz.

 

— Está tudo bem?

 

Ela desistiu facilmente.

 

Suspirei, me virei e disse:

 

— É uma pessoa fictícia.

 

Com essa frase, Nozomi Kirimoto pareceu entender tudo.

 

— Uma Substituta?

 

Concordei.

 

— Graças a um pequeno erro, memórias e Mimories se misturaram no meu cérebro. Estou sendo atormentado por ilusões de uma garota que gostava de mim, mas ela só existe na minha cabeça. Estúpido, não?

 

Ela sorriu gentilmente.

 

— Entendo. Já tive uma experiência semelhante.

 

Então ela começou a falar alguma coisa. Provavelmente iria contar sobre sua “experiência semelhante”. Mas logo antes que as palavras pudessem sair de sua boca, engoliu de volta. Em vez disso, encerrou a conversa com alguns dizeres inesperados e inofensivos.

 

— Espero que possa despertar em breve.

 

Sorri um pouco, depois disse:

 

— Obrigado por hoje.

 

— Não, fiquei feliz em rever um velho conhecido também. Bem, então…

 

Pouco antes de a porta ser fechada, eu a vi acenando por um momento.

 

Essa foi a última vez que vi Nozomi Kirimoto.

 

Ainda estava chovendo. Várias poças se formaram no asfalto, e as gotas de chuva que caíam formavam desenhos geométricos. Alguém uma vez disse que a chuva lava as memórias da calçada da vida. Eu queria esquecer rapidamente a série de memórias que desenterrei nesse dia, então parei embaixo do meu guarda-chuva, fechei e me deixei ficar encharcado por um tempo.


Notas:

1 – Este é o nome da música, entretanto, não sei se foi erro do tradutor gringo, mas não encontrei nenhuma com o mesmo nome.

2 – As únicas coisas que foram encontradas em uma pesquisa a respeito de Hysteria Siberiana não dizem respeito a qualquer tipo de bebida.

3 – Indica a instituição em que uma pessoa se graduou.

4 – Marketing multinível, também conhecido como venda direta ou marketing de rede, é um modelo comercial de distribuição de bens ou serviços em que os ganhos podem advir da venda efetiva dos produtos ou do recrutamento de novos vendedores.

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