Se alguém tão vazio quanto eu tivesse um amigo, esse amigo teria que ser alguém tão vazio quanto eu; isso é o que pensei por acaso durante minha juventude. Se algum dia conhecesse alguém sendo a personificação de “não ter” – sem amigos ou amantes, sem excelentes qualidades ou experiências para se orgulhar, nem mesmo uma única lembrança emocionante – supunha que seria a primeira vez que poderia chamar alguém de amigo.
Emori foi meu primeiro – e atualmente único – amigo, mas, ao contrário de minhas previsões, ele era alguém que “tinha”. Tinha muitos amigos, frequentemente trocava de parceira romântica, era fluente em três idiomas e estava trabalhando em uma empresa líder de ramo quando o conheci. Essencialmente falando, era o meu completo oposto em todos os sentidos.
Aproximei-me de Emori no verão dos meus dezesseis anos. Na época estávamos matriculados na mesma universidade e morávamos no mesmo complexo de apartamentos. Eu estava no duzentos e um enquanto ele estava no duzentos e três, duas portas além da minha, então sempre o via trazendo uma garota consigo, a qual era trocada quase mensalmente, e todas eram extraordinariamente belas, sem exceções. De vez em quando, também o via no campus, sempre cercado por vários amigos e rindo. Quando havia algum evento, geralmente estava no centro dos grupos. Sua simples presença de pé no palco desencadeava uma chuva de aplausos ferozes.
Ah, então existe gente assim, eu costumava pensar. Ele vivia em um mundo que minha imaginação jamais poderia criar.
Como seria ter a garantia de ser querido?
Quanto ao motivo pelo qual um cara tão popular quanto Emori sentiu vontade de fazer amizade com um pária social como eu, ainda não sei. Talvez fosse uma espécie de intercâmbio cultural. Talvez ele também tenha encontrado em mim um mundo que não conseguia imaginar e decidiu me observar de perto, tratando como um exercício de estudos sociais.
Caso contrário, é possível que teria me deixado de lado como alguém com quem poderia conversar e que não seria capaz de espalhar segredos ou fofocas. Ele tinha a afeição de muitas pessoas, mas isso significava que haveria ao menos alguns que o considerariam um inimigo. Talvez eu fosse o parceiro ideal para partilhar segredos que não queria que outros ouvissem.
De qualquer forma, viramos amigos. Essa era a extensão disso. E foi resultado de Emori se aproximar de mim. Ele se envolveu comigo, sentindo que não havia chance de ser afastado, e com esse tipo de atitude, também senti que seria errado afastá-lo. Aha, pensei: Desse jeito, as pessoas que crescem sendo amadas são ainda mais amadas.
Eu não tinha nenhum assunto para compartilhar com outras pessoas, então ele sempre era o único a falar quando estávamos juntos. Quanto a mim, apenas escutava, às vezes fazendo um comentário raso, se quisesse. Achei que ele logo ficaria desapontado com minha falta de conteúdo e naturalmente se afastaria, mas, ainda assim, mantivemos esse relacionamento até hoje, mesmo depois que ele se formou na faculdade e se afastou.
Estávamos nos vendo pela primeira vez em seis meses. Emori não ligou para perguntar meus planos ou algo assim; só apareceu na minha casa de repente. Quando abri a porta, ele disse “Yo”, e levantou uma sacola que estava carregando. Havia dois pacotes de cerveja dentro. De qualquer forma, as coisas continuavam iguais a antes. Em um instante, o espaço de seis meses em branco foi preenchido.
Peguei alguns lanches aleatórios para acompanhar as bebidas, vesti minha roupa de sempre e coloquei sandálias. Emori balançou a cabeça em silêncio e começou a andar, então o segui.
Ele não precisava dizer nada. Nosso destino era o parque infantil local.
Era um parque desolado. Estava cheio de ervas daninhas grotescas, então, de longe, parecia um terreno baldio. Todos os brinquedos e equipamentos estavam enferrujados, então parecia que apenas porde tocar nisso poderia pegar algum tipo de doença misteriosa. Era nosso costume ficar bêbados naquele lugar onde sonhos infantis morriam.
A lua estava agradável naquela noite. O parque escuro cercado por árvores tinha apenas um poste de luz na frente de dois balanços, e mesmo isso estava fora de funcionamento. Mas, graças ao luar, poderia vagamente notar a forma dos brinquedos.
Empurramos os arbustos para afastá-los. Como se treinado, Emori sentou-se em um panda e eu em um coala. Os bancos mais afastados estavam enterrados por ervas daninhas, então eram inúteis, assim sendo, estávamos usando os animais em molas como cadeiras. Eles eram terrivelmente instáveis e desconfortáveis, mas eram melhores do que sentar no chão.
Depois de abrir nossas cervejas, começamos a beber sem brindar nem nada. Provavelmente já fazia algum tempo desde que foram compradas, já que estavam começando a esquentar. Ainda assim, tinha um gosto bom para se aproveitar ao ar livre.
Há uma história por trás do motivo pelo qual começamos a beber no parque. No ano anterior à minha matrícula, alguém de nossa universidade morreu de alcoolismo agudo1O alcoolismo agudo é caracterizado pela necessidade física e psicológica de beber álcool diariamente.. Como o falecido era menor de idade, as lojas locais ficaram muito rigorosas quanto à verificação de identidade. Então, estabelecemos a prática de Emori comprar cerveja, comigo fornecendo lanches e ambos bebendo no parque.
Como morávamos no mesmo prédio, poderíamos simplesmente beber em um de nossos quartos, mas a crença de Emori era que “Quanto mais longe de casa, melhor o gosto da cerveja”. Isso nos levou a procurar um lugar próximo, onde pudéssemos beber sem nos preocupar com sermos vistos, e foi assim que descobrimos este parque.
— Como vão as coisas ultimamente? Aconteceu algo interessante? — perguntou Emori, claramente sem muitas expectativas.
— Nada. Tudo como sempre, estou vivendo como um velho solitário — respondi. — E aí, Emori? Aconteceu algo interessante?
Ele olhou para o céu noturno e pensou por cerca de quarenta segundos.
— Um amigo foi enganado.
— Enganado?
Ele confirmou.
— Um daqueles golpes envolvendo namoro, sabe. Usando o amor para forçar a vender pinturas, fazer comprar apartamentos, tanto faz. É um tipo de golpe totalmente comum e chato, mas o testemunho do meu amigo foi meio interessante.
A vítima era um homem chamado Okano, e a golpista uma mulher chamada Ikeda.
E foi assim… Um dia, Okano recebeu uma mensagem pelas redes sociais. A remetente era uma mulher chamada Ikeda, e a mensagem dizia: “Fui sua colega na escola. Será que lembra de mim?”
Ele buscou sobre isso em suas memórias, mas não lembrou de nenhuma garota chamada Ikeda. Achando que podia ser algum tipo de golpe, decidiu ignorar e, um dia depois, recebeu outra mensagem, dizendo: “Sinto muito por enviar uma mensagem estranha assim, do nada. Recentemente tenho me sentido tão sozinha que estou ficando louca. Fiquei feliz quando encontrei um velho conhecido morando na mesma cidade, então só escrevi e enviei. Não precisa responder.”
Isso deixou Okano repentinamente desconfortável. Talvez tivesse apenas esquecido, mas na verdade conheceu uma garota chamada Ikeda. Talvez tenha empurrado uma garota tentando se agarrar a um fio de esperança para ainda mais fundo no poço.
Toda essa preocupação o levou a enviar uma resposta à mulher que se identificava como Ikeda. A partir de então, começaram um relacionamento. Ela era uma garota muito legal, então, Okano se apaixonou antes mesmo que percebesse.
Dois meses depois, vendeu uma pintura cara com sucesso e, no dia seguinte, a garota chamada Ikeda sumiu.
— Devo fazer uma observação, esse cara, Okano, não tem cérebro — disse Emori. — Ele estuda em uma universidade muito boa e lê muitos livros. Sua mente funciona rápido, e é mais cauteloso do que a maioria das pessoas. Entretanto, se apaixonou e caiu no golpe mais velho do mundo. Imagina o motivo?
— Talvez foi legal demais?
Emori balançou a cabeça.
— Porque estava solitário.
— Ah. — Depois de pensar um pouco, murmurei e concordei com a cabeça.
Ele continuou:
— O que é realmente interessante é que, mesmo depois que Ikeda excluiu suas redes sociais, Okano continuou acreditando firmemente que ela realmente foi sua colega de classe no ensino fundamental. Na cabeça dele existem muitas memórias reais. Ele consegue lembrar-se de um passado com a jovem Ikeda na sala de aula. Independentemente de tal colega realmente existir.
— Você quer dizer… Que podem ter implantado Mimories sem que ele percebesse?
— Não. O custo seria muito alto, então não é algo adequado para um golpe.
— E então?
— Ele provavelmente reescreveu suas próprias memórias subconscientemente — disse Emori enquanto soltava uma risada. — As memórias podem ser tão facilmente distorcidas, só depende de como você se sente. Não precisa de nanobots para algo assim; as pessoas alteram suas memórias todos os dias. Amagai, você conhece o caso de Fells Acres? 2Caso de abuso sexual da Escola Fells Acres, em 1984, quando um professor abusou sexualmente de um aluno de quatro anos de idade, nos Estados Unidos.
Nunca ouvi falar sobre isso.
— Para simplificar, é um exemplo de como um testemunho criminal pode não ser confiável. Se você perguntar várias vezes algo como “Isso aconteceu?”, começa a sentir que realmente aconteceu. Então, quando Ikeda disse várias vezes para Okano que “Eram colegas de classe”, ele começou a acreditar. Talvez quisesse que isso fosse verdade, e essa ação acabou servindo como um empurrão que alterou suas memórias. Mesmo sendo caso de apenas verificar um anuário e ver que não existia nenhuma colega chamada Ikeda, Okano não fez isso. Em outras palavras, foi enganado porque queria ser enganado.
Emori tirou um cigarro do bolso e acendeu, depois respirou fundo, satisfeito. Era a mesma forma que fumava desde que nos conhecemos, e o cheiro doce disso começou a me fazer sentir que nossa reunião era real, por mais tarde que fosse para isso.
— Parece que esses golpes clássicos estão voltando com tudo hoje em dia. E jovens solitários são alvos fáceis. Você também pode virar um em breve, Amagai.
— Acho que vou ficar bem.
— O que te faz ter tanta certeza?
— Nunca tive nenhum amigo quando era criança. Não tenho sequer uma boa memória. Assim sendo, mesmo se for contatado por algum antigo colega de classe, não tenho motivos para responder.
Mas Emori balançou a cabeça vagarosamente.
— Você está errado, Amagai. Não se dedicam a seguir memórias. Eles se aproveitam da ausência delas.
No final, o que levamos para o parque não foi o bastante para nós dois. Então, depois, fomos até a estação e nos direcionamos ao pub. Lá, conversamos sobre qualquer bobeira e nos separamos às nove.
Enquanto caminhava pelo distrito comercial sozinho, outro daqueles episódios começou.
O gatilho, dessa vez, foi a música que marca o final do período escolar, Auld Lang Syne3Ouça aqui.. Ou melhor, a versão japonesa dela: Firefly’s Light.4Hotaru no Hikari (蛍の光), em japonês. Ouça aqui
— Bem, você se atrasou.
Depois de voltar para a sala de aula após as atividades do clube, Touka falou comigo enquanto mantinha um olhar sombrio.
— A reunião foi longa — disse. — O terceiro ano deste ano parece estar realmente interessado nas coisas.
— Hmph.
— Você poderia ir sem mim.
Ela olhou para mim insatisfeita.
— Errado, Chihiro. Você devia dizer “Desculpe-me por te fazer esperar”.
— Desculpe-me por te fazer esperar… E obrigado por esperar.
— Melhor. — Touka sorriu e pegou sua mochila. — Bem, vamos para casa.
Nós éramos os únicos que ainda estavam na sala de aula. Verificamos as trancas das janelas, apagamos as luzes e saímos para o corredor. O cheiro forte de desodorizante em spray usado na academia de ginástica alcançou meu nariz. Touka cobriu a boca e tossiu de leve. Ela tinha a garganta fraca, então até ligeiros estímulos, como a fumaça de um cigarro ou o ar condicionado muito frio, poderiam fazê-la tossir.
Enquanto trocava de sapato na entrada, a música Firefly’s Light tocou para marcar o final do dia escolar, e Touka cantou junto, usando sua própria letra.
The brightly shining firefly
Disappears into the dark
So fleeting and so meaningless,
Just like my yearning heart5O vaga-lume brilhante / Desaparece no escuro / Tão fugaz e tão sem sentido, / Assim como meu coração ansioso.
Eram palavras terrivelmente trágicas.
— Parando para pensar nisso, acho que nunca ouvi a letra original disso.
— Nem eu. Só sei que tem uma parte que fala sobre a luz de um vaga-lume.
— É por isso que questiono sua decisão de transformar isso em algo triste.
— Mas você aprendeu essa letra, né, Chihiro?
— Né. Mesmo se algum dia eu aprender a letra real, sempre que a música tocar, acho que primeiro vou lembrar da sua, Touka.
— E também vai lembrar do meu rosto?
— É, provavelmente.
Provavelmente vou lembrar da conversa também, pensei comigo mesmo. Como uma memória marcante.
— Acho que essas coisas são um tipo de maldição.
— Como assim…?
— Yasunari Kawabata6Foi um escritor japonês, ganhou o Nobel de literatura em 1968. disse isso: “Quando você se despedir de um homem, ensine a ele o nome de uma flor. As flores, sem falta, florescem todos os anos” — disse Touka, orgulhosa, levantando o dedo indicador. — Pelo resto de sua vida, quando ouvir Firefly’s Light, vai lembrar da minha letra, e de mim.
— Isso certamente é uma maldição — disse rindo.
— Bem, não que eu esteja te dando um adeus, Chihiro — disse ela de volta, rindo também.
Balancei minha cabeça para apaziguar minhas memórias.
Nos últimos dias, eu pensava cada vez mais em Touka Natsunagi.
A causa era clara. Foi aquele incidente no santuário.
O que no mundo foi aquilo?
Sua yukata, as flores, o cabelo, a postura, seu rosto, era tudo igual.
A única diferença era a idade. Minhas Mimories definiram a aparência de Touka Natsunagi apenas até os quinze anos, mas a que eu vi naquele dia parecia um pouco mais madura.
Era como se a amiga de infância daquelas Mimories tivesse crescido assim como eu, e depois apareceu diante dos meus olhos.
Pare para pensar sobre isso. Um princípio básico das Mimories é que é proibido modelar os personagens com base em pessoas reais. Isso é para evitar problemas que possam resultar na mistura entre realidade e Mimories. Então, logo de cara, pude rejeitar a teoria de que Touka Natsunagi era baseada na mulher que vi. E um absurdo como ela ser a própria Touka Natsunagi não deveria sequer ser considerado.
Ignorar tudo como sendo uma semelhança acidental não seria impossível, suponho. Muitas pessoas vieram de fora da prefeitura para visitar o festival naquele dia. Não era uma chance de zero por cento de haver uma mulher parecida com Touka Natsunagi misturada com o povo lá. Até a yukata e as flores, se pensasse bem, não eram coisas incomuns.
Mas então como eu explicaria sua reação? Quando fizemos contato visual, ela parecia tão abalada quanto eu, se não mais. Seu olhar dizia: “Isso não pode ser real, deve ser algum equívoco”. E ela estava tentando empurrar a multidão e ir em minha direção. Eu poderia descartar isso transformando em um caso de identidade equivocada? Por acaso conheci alguém que se parecia muito com ela, e ela conheceu alguém que se parecia muito comigo. Coincidências tão extremas assim existem?
Há uma explicação mais simples. A mulher por quem passei era uma ilusão de verão, nascida do excesso de álcool, da solidão e do ar quente do festival. Além da parte em que eu tinha que duvidar de minha própria sanidade, essa era a teoria perfeita.
Não, talvez eu não precise pensar tanto nisso para começar. Seja uma identidade equivocada ou uma alucinação, havia apenas uma medida a ser tomada.
Apagar as Mimories.
Se fizesse isso, não confundiria mais ninguém com ela e também não teria alucinações.
E minha mente deixaria de ser frequentemente atormentada ao recordar memórias que sequer existiam.
Cheguei ao meu quarto. Peguei um dos dois pacotes de Lethe que guardei no armário. Não para apagar as memórias de minha infância, mas sim as sobre Touka Natsunagi. Enchi um copo com água e coloquei na mesa ao lado do Lethe.
Estava pronto. Tudo que tinha a fazer era abrir o pacote, despejar o conteúdo na água e beber.
Estendi a mão.
Meus dedos tremiam.
Não era como se estivesse sentindo dor. Não era como se isso fosse intensamente amargo. Não perderia a consciência nem nada assim. Do que precisava ter medo? Estava apenas apagando as memórias criadas por engano, me trazendo de volta ao normal. Lethe é algo perfeitamente seguro e testado.
Mais importante, mesmo se algo desse errado, não era como se houvesse preocupação por perder alguma memória.
Peguei o pacote.
Suor frio escorreu de minhas axilas.
Talvez seja um erro tentar superar um medo fisiológico racionalmente. Deveria mudar esse pensamento. Eu só tenho que esvaziar a cabeça por cerca de dez segundos. Nesse tempo, tudo acabaria. Não preciso me aceitar em cem por cento. Pule irresponsavelmente e deixe as coisas para o futuro. Fique vazio. É nisso que você é bom, certo?
Mas quanto mais eu tentava esvaziar a cabeça, mais os pensamentos preenchiam as lacunas. Como tentar limpar uma lente com impressões digitais e deixá-la mais suja, a situação só piorou.
Por um longo tempo, continuei me indagando.
De repente, tive uma ideia. Este é o lugar errado.
A sala ainda está cheia com o medo cru que senti naquele dia. O chão, o papel de parede, o teto, a cama, as cortinas, tudo estava manchado com meu medo. Como uma construção antiga coberta de nicotina.
Existe um lugar adequado para tudo. Eu precisava preparar um ambiente adequado para tomar o Lethe. O que seria ideal para isso?
A resposta surgiu rapidamente.
No dia seguinte, depois doe meu trabalho de meio período, peguei o ônibus em frente ao meu apartamento. No meu bolso estava o Lethe para apagar minhas memórias sobre Touka Natsunagi. Enquanto o ar condicionado soprava um pouco frio demais, tirei o pacote e olhei para ele, sem motivo, de vários ângulos.
Em pouco tempo, o ônibus chegou ao destino, então coloquei o Lethe no bolso e desci. Logo além do ponto de ônibus ficava o santuário.
Passei pelo torii, entrando no terreno do santuário. Em contraste com a noite do festival, não vi ninguém. As cigarras do entardecer confundiam o céu nublado com o crepúsculo e zumbiam por todos os lados.
Comprei água mineral em uma máquina de venda automática e me sentei nos degraus de pedra. Depois de tocar no bolso em busca do Lethe, acendi um cigarro para me acalmar.
Assim que terminei e pisei no cigarro com o sapato, ouvi uma ambulância de longe. Quando percebi que aquilo seria ruim, já era tarde demais. Ativado pelo som da sirene, fui engolido por um redemoinho de memórias.
Não via Touka de pijama há muito tempo. Costumávamos visitar as casas um do outro e passar a noite regularmente, então a vi de pijama e com cabelos desarrumados vezes o suficiente para me cansar. Porém, a partir dos onze anos, evitamos o excesso de interferência, de modo que brechas começaram a aparecer no que sabíamos um sobre o outro.
Naquele dia, eu a vi de pijama pela primeira vez em um ano, ela parecia extremamente frágil. Tenho certeza de que o tecido branco e fino do pijama não colaborou, mas seu pescoço e braços magros poderiam ser facilmente quebrados se usasse um pouco de força.
Olhei para meus próprios membros para confirmar a disparidade. Até recentemente, tínhamos a mesma altura, mas em algum momento eu cresci uns dez centímetros a mais. Assim, sempre que demos as mãos ou nos inclinamos um para o outro, fomos informados pela diferença de altura, gostasse ou não. Suas pernas finas e costas magras me deixaram ciente de que nossos corpos estavam tomando rumos muito diferentes.
Essa percepção me deixou, no mínimo, desconfortável. Mesmo o conteúdo não mudando, se você alterar a forma de um recipiente, isso também muda seu significado. Estamos tendo o mesmo tipo de relação de sempre, mas sinto mais algumas coisas do que outras. Se mudarmos nosso comportamento para corresponder a essas sensações, resultará em um tipo próprio de constrangimento.
Vendo Touka de pijama naquele dia fiquei inquieto. Por um tempo, depois de entrar no quarto do hospital para visitá-la, não consegui olhar em seus olhos. Até que meus nervos relaxassem, fingi interesse pelo interior do cômodo e pelos presentes que ela recebera, buscando evitar seu olhar.
Claro, não encontrei nada especialmente interessante por lá. Era um quarto de hospital comum. Papel de parede branco, cortinas desbotadas, piso de linóleo7Linóleo é um material usado no revestimento de pisos. verde-claro, uma cama simples. O quarto podia acomodar quatro, mas não havia outro paciente além de Touka. Ela ficou com a cama dos fundos, à direita, que recebia o melhor da luz solar.
— O médico acha que pode ter alguma mudança na pressão atmosférica. — Ela olhou pela janela como se para verificar o clima. — Digo, aquele tufão estava chegando, né? Pelo visto, isso fez a pressão cair muito rápido, então tive esse ataque.
Lembrei do incidente do dia anterior.
Encontrei Touka em colapso após as quatro da tarde. Normalmente, nessa época, ela levava a lição de casa para o meu quarto, mas não apareceu naquele dia. Tive um mau pressentimento e fui verificar o outro cômodo, onde a encontrei agachada, incapaz de se mover. Apresentava sintomas de cianose8cor azulada ou acinzentada da pele, unhas, lábios ou ao redor dos olhos. Algumas das causas são exposição ao frio, roupas ou joias apertadas ou falta de ar., e qualquer um, só de relance, poderia dizer que se tratava de um ataque de asma. Havia um inalador caído no chão, mas parecia que o remédio dificilmente surtiria efeito. Ouvindo-a ofegar mais ou menos como já ouvira antes, corri imediatamente para a sala de estar e liguei para uma ambulância.
Disseram que foi um ataque grave que a deixou a um passo da insuficiência respiratória.
— Ainda dói para respirar? — perguntei.
— Sim, mas estou melhor agora. Só me internaram para me manter em observação, caso tenha outro ataque, para que eu não me sinta mal nem nada.
Ela estava agindo toda alegre, mas sua voz parecia tão fraca e ansiosa… Realmente era bom ela estar falando? Talvez estivesse se esforçando para fazer isso porque eu estava ali. Mas se tentasse perguntar sobre isso, ela apenas exigiria mais de seu corpo.
Para que pelo menos não precisasse erguer a voz, movi a cadeira para o mais perto possível da cama e me certifiquei de falar com voz baixa.
— Pensei que você podia mesmo morrer desta vez.
— Também pensei — disse Touka, rindo, como se sequer estivéssemos falando sobre ela. — Mas se você tivesse demorado um pouco, Chihiro, as coisas estariam muito piores. O médico até te elogiou. Disse que chamar a ambulância de imediato foi algo decisivo.
Respondi sem rodeios:
— É porque estou acostumado com as suas crises, Touka.
— Você me salvou. Obrigada.
— Não fale sobre isso.
Houve um curto silêncio.
Decidi, resolutamente, perguntar algo.
— Isso pode ser curado…?
Ela pressionou os lábios e sua cabeça pendeu para o lado.
— Não sei. Pelo visto, muitas pessoas crescem com isso, mas algumas continuam assim mesmo adultas.
— Huh.
— Mas tenho que dizer… — Ela intencionalmente mudou o assunto. — Chihiro, você com certeza sabe muito sobre sibilos9É a condição em que a pessoa involuntariamente solta assobios enquanto respira. e síndrome respiratória aguda10É uma doença respiratória contagiosa e às vezes fatal, seus sintomas são febre, tosse seca, dor de cabeça, dores musculares e dificuldade para respirar.. Parece até um médico.
— Li sobre isso recentemente.
— Não, você pesquisou por minha causa, não foi?
Ela inclinou a cabeça para olhar para mim melhor.
Seus longos cabelos balançavam de acordo com seus movimentos.
— É. Já que seria ruim se você morresse na minha frente.
— Ahahaha. Acho que isso é verdade.
Ela riu com um olhar preocupado.
Talvez eu tenha dito de modo meio frio, lamentei silenciosamente.
— Mas, de qualquer modo, já faz muito tempo desde que você me carregou como se fosse um bebê — disse Touka, brincando. — Você me levantou assim. Fiquei surpresa.
— Eu não conseguia pensar em outro jeito de fazer aquilo.
— Tudo bem, tudo bem. Se você sempre fizer isso, talvez as crises de asma não sejam tão ruins.
Cutuquei Touka de leve quando me provocou. Ela soltou um “ai!” e segurou a cabeça dramaticamente.
— Não faça isso novamente. Fiquei tão preocupado que quase parei de respirar também.
Houve uma pausa estranha. Touka olhou para mim de boca aberta, pega de surpresa. Essa expressão, embora devagar, se transformou em um sorriso delicado.
— Foi mal, foi mal. Vou reformular isso — disse ela se corrigindo. — Não gosto de crises de asma. Fiquei feliz com seu toque, Chihiro.
— Bem, então melhore logo.
— Certo. — Concordou. — Desculpe por te preocupar.
— Está tudo bem — respondi secamente. Agora estava ficando envergonhado com o que disse, podia até sentir meu rosto esquentando.
Uma sensação fria no meu pescoço me trouxe de volta aos sentidos. Quando o toquei com os dedos, estava um pouco molhado. Logo depois, percebi pequenas manchas pretas nos degraus de pedra. Um vento forte soprava pela área.
Começou a chover.
Parecia que eu tinha sido salvo. Não tinha como usar o Lethe durante esta tempestade.
Consegui uma desculpa para voltar para casa sem fazer nada.
Coloquei as mãos nos joelhos e levantei, depois desci os degraus.
Meu ritmo estava leve devido ao alívio.
Vou voltar ao apartamento por enquanto. Posso pensar em outras coisas depois.
Não era um bom dia para apagar memórias.
A chuva continuou forte enquanto eu esperava o ônibus. Fiquei longe da chuva, no toldo de uma loja perto do ponto de ônibus, e entrei no veículo cinco minutos depois. O interior estava cheio de ar com cheiro de mofo do ar condicionado, graças às janelas firmemente fechadas, e o chão estava molhado aqui e ali, devido à água da chuva pingando dos guarda-chuvas dos passageiros.
Sentei-me nos fundos, no lado direito, e soltei um suspiro de alívio. Então, casualmente, olhei para o ponto de ônibus do outro lado da rua. Parece que também havia um festival em algum lugar no dia atual. Uma garota usando uma yukata estava olhando sombriamente para as nuvens. Talvez estivesse pensando em coisas como: “Por quanto tempo essa chuva vai continuar?! Até comprei uma yukata nova… Que azar… Espero que não cancelem o festival.”
O ônibus começou a andar.
— Agora você já fez isso — disse alguém. — Ignorou algumas coisas e tanto, sabe.
Limpei a janela de vidro embaçada e olhei para aquela garota de yukata novamente.
Cabelo preto e longo.
Usava uma yukata com estampa de fogos de artifício.
Com uma pele pálida que atrai a atenção.
Crisântemos vermelhos em seus cabelos.
Meu dedo inconscientemente pressionou o botão de desembarque.
Os próximos cinco minutos pareceram uma eternidade.
Quando desci do ônibus, corri o mais rápido que pude até o ponto de ônibus anterior. Momentaneamente engoli as perguntas sem fim que surgiram em minha mente e corri sob a chuva pesada. As pessoas que passavam se viravam para me olhar imaginando o que estava acontecendo, mas eu não tinha tempo para me preocupar com elas.
Enquanto corria tão rápido que deixei meus pulmões a ponto de explodir, estava pensando calmamente: Qual foi a última vez que corri pela minha vida assim? No mínimo, desde que entrei para a faculdade, nunca fiz isso. Talvez tenha feito quando quase perdi alguma aula no ensino médio. Não, acho que não aconteceu isso, aconteceu? Mesmo em jogos de beisebol, mesmo em corridas de longa distância, mesmo nos testes de condicionamento físico, não dei tudo de mim já que não queria ficar muito cansado. O que significa que talvez eu precise pensar no ensino fundamental. Qualquer lembrança sobre correr como se minha vida dependesse disso…
Com certeza, a primeira coisa que apareceu foi uma memória falsa. Uma Mimorie do meu terceiro ano do ensino médio.
Eu estive deprimido por cerca de uma semana antes do evento. Não porque não era atlético. Pelo contrário, o fato de eu ser um tanto decente causou uma catástrofe. Acidentalmente, fui escolhido por um colega do clube de atletismo, como o Âncora11O Âncora é o mais rápido dos corredores. no revezamento de oitocentos metros. Nunca imaginei que teria um papel tão importante em uma das últimas coisas que faria no ensino médio. Eu queria fugir, mas não tive coragem para ir contra o voto da maioria. Dito isso, também não fui capaz de me curvar e me preparar, então chegou o dia e eu estava hesitante.
Normalmente, nunca iria gemer e lamentar na frente de Touka, mas se algum dia fosse fazer isso, era esse. Aconteceu enquanto estávamos em aula.
— Para ser sincero, quero voltar para casa agora; estou sendo esmagado pela pressão de provavelmente arruinar as memórias dos colegas de classe. — Foi isso que eu disse a ela.
Então Touka bateu no meu ombro e disse inocentemente:
— Quem se importa com os colegas de classe? Se quiser correr por alguém, então corra por mim.
Com a asma grave que ela teve por toda a vida, nunca correu o mais rápido que podia. Sempre ficava só assistindo às aulas de educação física e quase nunca participava de eventos que exigiriam um pouco mais, como caminhadas ou aulas de esqui. E nesse evento, participaria, mas não como atleta. Ela mesma se recusou a ser escolhida, não querendo causar problemas.
Quando a frase “então corra por mim” saiu de sua boca, parecia ter um significado bem especial. Não só isso, não parecia me pressionar.
É. Do que eu estava com medo? Touka era o mais importante para mim. E não ficaria desapontada comigo, independentemente do resultado da corrida. Na verdade, certamente me elogiaria, não importa o quê.
Foi um peso que abandonou meus ombros.
No revezamento daquele dia, passei por meus dois oponentes e fiquei em primeiro. Então, enquanto voltava até meus colegas, desmaiei e fui levado para a enfermaria. Lembro-me de estar deitado na cama enquanto Touka se sentava ao meu lado, dizendo que “Foi tão legal” várias vezes. Mas meus sentidos estavam cedendo devido à exaustão corporal e sendo liberados da intensa pressão, então rapidamente adormeci. (Pode ser aí que o tal “terceiro beijo” aconteceu).
Quando acordei, a cerimônia de encerramento já tinha acabado. Estava bem escuro lá fora, e Touka continuava ao lado da cama, olhando para mim.
— Hora de ir para casa? — perguntou sorrindo.
Voltei à realidade.
Sim, você realmente não tem vida própria, pensei, completamente desapontado comigo mesmo.
Nesse ritmo, minha vida piscando diante dos meus olhos poderia ser facilmente composta por nada além de memórias fictícias.
Eu vi uma yukata azul. Ao mesmo tempo, vi um ônibus chegando ao ponto. Extraí o resto de minhas energias para correr em direção dela. Basicamente nunca me exercitei desde que entrei na faculdade, e também fumava quase um maço por dia, então meus pulmões, coração e pernas estavam passando dos limites. Os extremos de minha visão estavam turvos devido à falta de oxigênio, e minha garganta parecia incapaz de suportar minha própria respiração.
Normalmente, deveriadeve que nunca fazerria isso. Mas, ao me ver correndo encharcado sem guarda-chuva, o motorista parecia ter resolvido esperar um pouco.
Felizmente, consegui entrar no ônibus, mas não falei com ela de imediato. Segurei o corrimão e me apoiei enquanto recuperava o fôlego. A água da chuva escorria dos meus cabelos e caía no chão. Meu coração estava pulsando como louco. Embora meu corpo estivesse encharcado, estava quente, como se meu sangue estivesse fervendo. Minhas pernas tremiam e mal conseguiam me manter de pé, então quase caía toda vez que o ônibus vibrava.
Finalmente, quando recuperei o fôlego, ergui os olhos.
Claro, ela continuava ali.
Ela se sentou um pouco aos fundos, olhando pela janela embaçada.
Meu coração acalmado mais uma vez foi jogado em desordem.
Fui direto até ela.
Talvez por causa das substâncias químicas do cérebro sendo secretadas enquanto eu corria, senti que seria capaz de falar sem medo.
Não tinha decidido sobre o que falar. Mas estava convencido de que tudo daria certo. Uma vez que soltasse uma palavra, o resto viria naturalmente.
Ao menos foi o que pensei.
Parando ao seu lado, agarrei o corrimão.
Respirei bem fundo.
— Um.
Essa palavra foi o bastante.
A magia de verão foi quebrada em um instante.
A mulher que olhava para a janela se virou.
— O que foi…?
Ela olhou para mim em dúvida.
E não parecia nada com ela.
Era, sem dúvidas, parecida em relação ao físico e cabelo e em todas as outras partes, mas não era nem remotamente parecida com Touka Natsunagi. Quase como se esperado, eu chegaria a conclusões precipitadas e as trancaria em algo.
Quanto mais olhava para ela, menos parecia com Touka. Não senti um pingo da delicadeza e graça que vi na mulher que estava no santuário.
Como confundi essa mulher com ela?
— Er, precisa de algo?
A Touka falsa me questionou novamente com um olhar cauteloso. Percebi que estava olhando para seu rosto, rudemente, por um bom tempo.
Acalme-se, pensei comigo mesmo. Esta mulher não fez nada de errado.
Apenas por estar vestida como a amiga de infância de minhas Mimories, isso não era um erro; fui só eu quem se confundiu.
Sim, sou o culpado. Sei disso. E, mesmo assim, senti uma raiva intensa. Nem conseguia acreditar no quanto fiquei furioso. Senti como se um muco preto estivesse se espalhando por meu peito. É possível que eu nunca tenha ficado tão bravo com alguém na minha vida.
Meu aperto no corrimão ficou ainda mais forte. Minha mente estava pensando em todos os insultos que eu conhecia. Como ousa me dar uma falsa esperança; não se vista de maneira tão enganosa; uma mulher como você não deveria se vestir assim; você não chega nem aos pés de Touka Natsunagi; e etcetera.
Claro, eu não falei nada. Educadamente pedi desculpas por ter chamado a pessoa errada, depois desci na próxima estação para fugir. E eu, sem pensar, andei sob a chuva.
Ao me refugiar da tempestade em um pub e me afogar em cerveja barata, pensei:
Admito. Estou apaixonado por ela. E anseio por conhecê-la, a ponto de ver seus traços em uma total desconhecida que estava vestida de maneira parecida.
Mas e daí? Um engenheiro de Mimories projetou Touka Natsunagi como uma pessoa tão compatível com o meu gosto que não tive escolha a não ser me apaixonar por ela. Isso é tudo. Não é diferente de uma roupa sob medida. Seria mais estranho ainda se eu não a amasse.
Admitir isso fez eu me sentir um pouco melhor.
Como me sentia assim, podia beber a cerveja mais tranquilo.
E claro, bebi demais.
No processo de ir ao banheiro vomitar tudo o que comi, continuando a vomitar sucos gástricos, retornando ao meu assento, bebendo mais, caindo sobre a mesa e voltando ao banheiro para vomitar de novo, chegou a hora de fechar e fui expulso do pub. Agachei do lado de fora por um tempo, mas sabia que minha náusea e dor de cabeça não passariam tão cedo, então esvaziei a cabeça e comecei a andar. O último trem tinha saído há pouco tempo e eu não tinha dinheiro para um táxi. A noite estava destinada a ser longa.
Ouvi Firefly’s Light tocando em uma loja por perto e inconscientemente cantarolei a letra personalizada de Touka.
The brightly shining firefly
Disappears into the dark
So fleeting and so meaningless,
Just like my yearning heart
Amanhã, pensei, vou tomar o Lethe.
Porque é muito vazio se apaixonar por uma garota que não existe.
Claro, estar apaixonado por uma garota que existe também é vazio, mas à sua própria maneira.
De certa forma, sou uma pessoa que também não existe. Quase todas as garotas que conheci provavelmente nunca me viram como um possível par romântico. Caramba, a maioria pode nem lembrar meu nome.
Era um problema mais fundamental do que gostar ou não gostar. Eu nem fazia parte do mesmo universo. Talvez existíssemos no mesmo espaço e tempo, mas nunca nos aproximamos. Eu não era nada mais que uma sombra passageira para todos e vice-versa.
É vazio quando uma pessoa existente ama uma inexistente, mas é igualmente vazio quando uma inexistente passa a amar uma existente. E uma pessoa inexistente amando uma inexistente, isso é apenas nada.
O amor é algo que só pode haver entre pessoas que existem.
O céu estava brilhando quando cheguei ao meu apartamento.
Prometi a mim mesmo que jamais voltaria a beber, mas, ao mesmo tempo, achei que não tinha aprendido e em dois dias voltaria a fazê-lo. O cara feliz bebendo e o de ressaca são como pessoas diferentes, então as lições que um aprende não se aplicam ao outro. Um eu aprende apenas sobre a alegria de beber, enquanto o outro aprende sua amargura.
Não havia sinal de pessoas na área residencial tão cedo durante a manhã. Um gato de rua vivendo atrás da lanchonete local cruzou meu caminho casualmente. Normalmente ele desapareceria assim que me visse, mas, talvez reconhecendo meu estado débil, não mostrou sinais de cautela. Em algum lugar, um corvo soltou um único grito e, como resposta, uma tartaruga mergulhou em algum lugar, soltando um único som.
Tropecei pelas escadas e cheguei até minha porta. Procurei por minhas chaves no bolso e encontrei a de meu quarto. Essa simples tarefa exigiu uma considerável concentração. Com esforço suficiente para me fazer pensar que estava arrombando um cofre, abri a porta.
No momento que coloquei a mão na maçaneta, a porta do quarto duzentos e dois foi aberta e seu residente deu uma espiada. Olhei para meu vizinho no meio da abertura da porta. Não tinha ideia de quem morava ao meu lado, então pensei em ver quem era.
Era uma garota. Ela parecia ter entre dezessete e vinte anos. Estava vestida como se tivesse acabado de sair para comprar um refrigerante. Seus membros, ligeiramente iluminados, eram como branco quase transparente, e seus longos cabelos pretos e macios eram soprados pelo vento do corredor, e, como naquele dia, o tempo parou.
Uma unha invisível nos fixou no lugar, eu na pose de abrir a porta e ela na de fechar a mesma com as costas da mão.
Não havia uma yukata azul nem crisântemos vermelhos em seus cabelos.
No entanto, eu sabia disso.
Como se tivéssemos perdido temporariamente o conceito do que são palavras, nos entreolhamos por um longo tempo.
A primeira coisa a retomar o movimento foi sua boca.
— Chihiro…?
Ela falou meu nome.
— Touka…?
E eu o dela.
Eu tinha uma amiga de infância que nunca conheci. Nunca vi seu rosto. Nunca a ouvi falar. Nunca a toquei. Apesar disso, conhecia as queridas características de seu rosto. Conhecia a meiguice de sua voz. O calor de suas mãos.
A magia do verão continuava em vigor.
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