— Então… cadê o Urushihara? — perguntou Chiho pela segunda vez enquanto pensava nos eventos do dia anterior.
A resposta veio de um ângulo inesperado.
— Ugh, cara, está tão quente. Ainda não terminou de preparar a comida, Ashiya?
A porta do armário foi aberta, revelando Urushihara, coberto de suor.
— Ah, ei, veio de novo, Chiho Sasaki?
Chiho ficou sem palavras diante da cena repentina.
Urushihara levou o computador, uma lanterna e um ventiladorzinho elétrico para dentro do armário. Saltando da prateleira do meio, arrastou-se até a geladeira, pegou uma garrafa de chá de cevada e voltou para o armário.
— Bem, uh, sinta-se em casa, eu acho.
Com isso, ele, mais inútil que aspirador de pó em pista de gelo, fechou a porta.
— Ashiya…
— Não vi nada.
A resposta foi rápida, quase na velocidade da luz.
— Contanto que fique longe da minha vista, está tudo bem. Meu soberano e eu nos revezamos na tentativa de acalmar Alas Ramus na noite passada, mas o choro dela não parava. Hora após hora, era “Onde está a Mamãe, onde está a Mamãe”. Desde então, Lucifer passou a maior parte do tempo dentro do armário.
— Bem, nossa única esperança é que Urushihara se desidrate e vire uma ameixa seca.
Chiho simpatizava com Ashiya, do fundo do coração.
No começo, Suzuno foi contra Maou ficar com Alas Ramus, mas a própria garota, ao acordar, disse que queria ficar com seu Papai, então ela deixou isso de lado com surpreendente calma.
Mas ela não se esqueceu de deixar algo claro para Maou.
— Devemos respeitar os desejos da criança. Porém! Se fizer algo que tenha um efeito ruim na educação dela, vou tomá-la na mesma hora.
Suzuno tinha força para fazer suas ameaças valerem, já que, no momento, seu poder sagrado era mais forte que o dos três demônios juntos. Era isso, e ela também vivia logo ao lado.
Mas o verdadeiro problema era o fator “Mamãe”. Emi, diferentemente de Suzuno, não vivia por perto.
Quando Emi viu o contentamento de Alas Ramus por poder ficar com Maou, prosseguiu com seu plano original de ir às compras com Suzuno, dizendo que o pior dos problemas já havia sido resolvido. Alas Ramus, entretanto, logo mostrou sinais de inquietação.
— Mamãe, não vá embora de novo!
Emi não soube como responder ao pedido choroso.
— …?
Isso também deixou Maou surpreso, mas ele rapidamente assumiu um tom firme.
— Ei, ouça, Alas Ramus… A Mamãe só vai sair um pouquinho, tudo bem?
— Sair?
— Sim, aham. Ela vai voltar, entendeu?
— Sério?
O olhar suplicante da menina fez com que Emi hesitasse. Maou, vendo de trás, tentou comunicar-se telepaticamente seja mentira ou não, só DIGA! a ela.
— S-Sério. Vou voltar logo, logo, tudo bem?
— Tudoooo. Vou esperar.
Fora Urushihara, ver Alas Ramus assentir humildemente diante das palavras de Emi foi como uma estaca no coração de todos ali presentes.
Depois dos eventos frenéticos do dia, era quase noite quando Emi e Suzuno enfim partiram. Chiho teve que ir embora logo depois. O que ela sabia sobre a situação ia só até aí.
— Quer dizer que Yusa não voltou?
— Ela voltou, junto com a Crestia…, mas isso só complicou as coisas.
— A intenção da criança era dormir junto com a Emilia.
A porta do Castelo Demoníaco foi aberta e Suzuno apareceu, carregando outra sacola de supermercado.
— Oh, Suzuno!
— Trouxe as caixas de bento e as bebidas nutricionais que pediu, Alciel.
Ela rapidamente entregou a sacola a Ashiya, que se inclinou devagar para pegá-la.
— Não espere agradecimentos. Quanto custou?
— Um bento de porco com gengibre da Orion. Quinhentos ienes. Pode ficar com as bebidas nutricionais, já que faziam parte do meu estoque.
— …
Ashiya, em silêncio, pegou uma moeda de quinhentos ienes do bolso, entregou-a e, então, levantou-se e removeu a tampa da sua caixa de bento.
— Espero que não se importe em eu almoçar, Senhorita Sasaki.
— Hã? Oh! Não se preocupe! Vá em frente.
— Hmm? Comida?
Urushihara, ao sentir o cheiro de gengibre, abriu a porta do armário, só o suficiente para que conseguisse colocar o rosto para fora.
— Silêncio, vagabundo.
A expressão no rosto de Ashiya e o tom da sua voz eram realmente dignos do aterrorizante nome de Alciel, o Grande General Demônio, o qual conquistou toda a Ilha do Leste de Ente Isla em um ano. Isso foi o bastante para deixar Urushihara surpreso e fazê-lo voltar para dentro do guarda-roupa.
— Tenho que admitir, Ashiya, estou surpresa em ver que você liberou o dinheiro para pegar algo da Orion Bento.
Chiho quase chorava de emoção. A ideia de que tipo de inferno ele passou para estar tão cansado a ponto de não se importar em se manter econômico com o orçamento alimentício a fez estremecer.
— O choro de criança ontem à noite foi difícil de aguentar. Mesmo com uma parede nos separando, acordei diversas vezes.
Olhando com mais atenção, Chiho percebeu que Suzuno havia passado uma camada completa e anormal de maquiagem.
Aquilo era raro. Raro até demais, na verdade, já que ela normalmente andava em público sem maquiagem alguma. A noite passada deve ter tido um impacto e tanto para ela. Os cantos dos seus olhos estavam abaixados devido à exaustão.
— E a fúria dela estava ainda mais desenfreada nesta manhã. Ela fez todo o esforço possível para não deixar o Rei Demônio ir trabalhar. Emilia foi embora e não voltou mais, então deve ter pensado que o Rei Demônio faria algo parecido.
— Ah, não… Mas também não é como se Yusa pudesse ficar o tempo todo aqui, né?
Era fácil para Chiho pensar que Emi iria tão baixo a ponto de dormir no piso do Castelo Demoníaco. Mas isso dificilmente aconteceria, mesmo que não fosse a Heroína ou coisa do tipo.
Emi ficou, sim, uma vez, há muito tempo, mas o que os olhos de Chiho não viam, o coração não sentia.
Sempre existiria a opção de dormir no quarto de Suzuno. Porém, isso apresentava suas próprias dificuldades.
Suzuno não tinha um chuveiro nem nada do tipo, claro, e ela mantinha apenas o mínimo possível de produtos de higiene pessoal em seu quarto. Pelo fato de ser verão, um banho e uma muda de roupas seriam obrigatórios.
Mas com Emi ainda fazendo paradas regulares em seu apartamento no bairro Eifukucho em Tóquio, o banho público em Sasazuka já estaria fechado na hora em que ela voltasse. E sem chances que no dia seguinte iria para o trabalho sem um banho.
— Emilia está preocupada com a nossa situação, é claro, mas parece que nem mesmo ela pode se defender contra os caprichos da realidade.
Suzuno pegou um celular de debaixo da manga e mostrou a tela para Chiho, a qual mostrava uma mensagem de texto de “Emilia” que dizia:
“Sinto muito, pode cuidar dela? Vou aparecer aí amanhã.”
Chiho estava mais interessada no celular do que na mensagem em si, então deu uma olhada para Suzuno.
— Você comprou um celular, Suzuno?
— Hm? Ah, sim, ontem. Emilia me ensinou diversas coisas.
— Oh, uou! Ei, vamos trocar contatos então! Você escolheu a DokoDemo como operadora, hein?
O celular de Suzuno era do estilo flip, que uma vez fora onipresente, atualmente bastante obsoleto.
— C-Contatos? Hmm? Como faz isso? Acho que há algum tipo de arma infravermelha que pode transmitir o número…
Ela deu umas batidinhas atentas no celular por um tempo, como se controlasse um robô gigante por controle remoto enquanto encarava um monstro destruidor de cidades. No fim, entretanto, entregou-o com pesar para Chiho.
— Peço perdão, Chiho. Não estou tão familiarizada com essas coisas. Por favor, execute o processo necessário por mim.
— Tudo bem, mas tem certeza de que não se importa se eu fizer?
— Está tudo bem. Acabei de efetuar a compra, e o contato de Emilia é o único adicionado na lista.
Chiho, mesmo não sendo uma especialista em eletrônicos, achava que tinha experiência o bastante com celulares para descobrir as funções básicas ao fuçar um pouco.
Porém, assim que abriu o celular da Suzuno, deu de cara com uma cena estranha.
Emi também usava um dos modelos flip da DokoDemo, mas, se comparado com esse, o texto nas teclas do celular era um tanto maior.
Isso, e havia três grandes teclas notáveis, as quais tinham “1”, “2” e “3” no topo do teclado, algo que Chiho nunca viu em seu celular, nem nos da sua família, nem nos de seus amigos.
A tecla de chamar, entretanto, era o botão no canto inferior esquerdo, com o texto “Ajuda”.
— Suzuno, esse é o… “Jitterphone 5” da DokoDemo?
Suzuno assentiu, o rosto mostrando a surpresa.
— Minha nossa, Chiho! Você conseguiu descobrir que modelo é depois de dar só uma olhada?!
— Bem… esse aqui sim.
— Eu não tinha interesse em particular nesse ou naquele modelo. Contanto que pudesse fazer ligações, qualquer um já estaria bom. Além disso, tenho pouca confiança na minha habilidade para lidar com tecnologia, por isso pedi um tipo que fosse o mais fácil de usar, e foi esse que me mostraram.
Havia um traço equivocado de orgulho na explicação de Suzuno, então Chiho decidiu deixar tudo isso de lado.
Os comerciais da TV mostravam idosos aposentados sorrindo enquanto diziam como ficou fácil entrar em contato com seus netos na cidade grande. Mas não era como se a lei japonesa definisse uma idade mínima para usuários do Jitterphone.
Ao descobrir o transmissor infravermelho no celular de Suzuno, Chiho o alinhou com o seu sensor. Em meio segundo, trocaram informações de contato.
— E prontinho! Também enviei o meu número para você, Suzuno.
— Tem o meu agradecimento. Meu conhecimento sobre telefones antes de vir para cá era limitado a modelos grandes, pretos e de teclado rotacional. O manual de instruções possuía muitos termos desconhecidos, tanto que tudo que eu queria fazer era desistir!
Suzuno timidamente pegou o celular de volta enquanto falava.
— Papai…!
Todo mundo dentro do Castelo Demoníaco estremeceu e virou na direção do grito.
Alas Ramus, que foi colocada para dormir há pouco, estava agora se mexendo, seus olhos sonolentos vasculhavam os arredores.
— Grkkk…
Ashiya, pego de guarda baixa, soltou um gemido abafado à medida que um pedaço de porco com gengibre descia pela sua garganta.
— Cadê Papai?
Sem conseguir encontrar Maou nem Emi entre os adultos que a cercavam, o seu rosto ficou visivelmente mais vermelho enquanto o grupo a observava irromper em grandes lágrimas roliças.
— Paaaaaappaaaaaiiiiii!!!
A explosão surgiu logo em seguida. Forçando o porco a descer com um gole de chá de cevada, Ashiya apressou-se para acalmar a tensão da garota, mas a única coisa que conseguia fazer era acariciar a cabeça dela enquanto a tempestade de lágrimas corria solta.
— Com licença, deixe-me ver.
Chiho, a única pessoa calma dentro do apartamento, afastou Ashiya.
— Ashiya, a fralda…
A fralda de Alas Ramus estava começando a ficar maior.
— Ah, sim, comprei essa ontem.
Falou Suzuno.
— Depois que Emilia foi embora, Alas Ramus passou por um pequeno acidente. Falhei em considerar lavar suas roupas à mão, e a farmácia já estava fechada, por isso tive que ir até a loja de conveniência ao lado da estação…
Perto do banheiro do Castelo Demoníaco, uma pilha de fraldas estava espalhada ao redor de uma sacola plástica rasgada às pressas.
— Ashiya…, aí não, né.
— O… O que foi?
— Tipo, é claro que ela estaria chorando. Você não trocou as fraldas dela nenhuma vez na noite passada, né?
A voz da Chiho foi dura e fria enquanto pegava uma fralda limpa e a abria no chão. Naquele momento, Alas Ramus estava deitada em cima dela.
— Deve ter uma garrafa na minha bolsa, uma que parece um conta-gotas. Pode encher para mim? Pode ser água da torneira.
— S-Sim, mas… hmm, os canos estão quentes agora, então vai estar um pouco aquecida…
— Melhor ainda. Rápido!
Enquanto Chiho agilmente dava ordens, Ashiya e Suzuno observaram quando ela pegou as duas pernas de Alas Ramus com uma mão, ergueu-as no ar e tirou a fita da fralda com a mão livre.
— Beleza, vamos te deixar limpinha, o que acha disso?
Depois de pegar a garrafa de Ashiya, Chiho apontou-a para baixo e pressionou devagarinho. Ashiya e Suzuno ficaram surpresos por um momento, mas a fralda absorveu o excesso de água.
Ao colocar a garrafa de lado, usou um lenço umedecido para limpar o que sobrou, o qual jogou dentro da fralda suja, então ergueu as pernas de Alas Ramus um pouco mais alto para colocá-la na posição correta.
Demonstrando destreza com uma mão apenas, algo que nenhum dos que a observavam sabiam que ela tinha, Chiho gentilmente colocou o bumbum de Alas Ramus sobre a fralda nova, então fechou-a depressa.
Antes que percebessem, Alas Ramus — chorando com a força de um tornado de uma milha de diâmetro até o outro instante — parou.
Ashiya encarava a garota e sua cuidadora, seus olhos parecendo bolas de golfe.
— Ela estava chorando pela Emilia, então pensei que só estava solitária…
— Bem, ela está, sim, solitária, mas bebês não possuem muitas diferenças em como expressam suas preocupações, sabem? Se algo de ruim acontece com eles, tudo o que fazem é chorar, já que é a única coisa que sabem fazer.
Chiho embrulhou a fralda suja com o restante do lixo e jogou no saco de lixo inflamável. Depois de usar outro lenço umedecido para limpar as mãos, pegou Alas Ramus e esfregou bochechas com a criança de rosto avermelhado.
— Calminha, viu? Estar limpa é bem melhor, né?
— Oooo.
Era difícil saber se Alas Ramus estava concordando ou apenas gemendo para si mesma, mas foi a única coisa que fez diante da pergunta.
Agora tudo parecia fazer sentido. A causa do choro sem fim dela na noite anterior não era emocional, mas sim física. No seu bumbum, para ser mais fisicamente preciso.
— Está tudo bem, tá? Papai vai voltar para casa logo, logo, e… Hmm, Mamãe também, tá bom? Então seja uma boa menina até eles voltarem!
Chiho sentia um tipo estranho de barreira psicológica que a impedia de chamar Emi de “Mamãe”. Mas não fazia sentido cismar com isso. Manter Alas Ramus aquecida e apoiada era prioridade.
— Tá boooom!
Os olhos dela ainda estavam cheios de lágrimas, mas mostrou um sorrisinho enquanto encarava Chiho e assentia.
— Awwww… Que menininha mais fofa.
Chiho não conseguiu segurar o sorriso quando a garota limpou as lágrimas com as mãozinhas.
— Hmm…?
Naquele momento, percebeu que uma marca roxa, em formato de lua crescente, apareceu na testa reta de Alas Ramus. Todo o seu corpo emitiu um brilho fraco, da mesma cor que o seu vestido amarelo.
Era quase imperceptível, e desapareceu em um piscar de olhos.
Chiho suspirou. O evento sequer pareceu trazer mudanças drásticas, mas foi um lembrete preciso de que essa criança era um ser de outro mundo.
Ainda assim, tudo o que podia fazer era se aproximar de Alas Ramus com o tipo de amor que ela precisava, por isso a abraçou com força.
— Ahp! — disse Alas Ramus, surpresa.
Assistindo àquilo, Ashiya levou as mãos ao chão, derrotado em espírito.
— De fato, não sou páreo para você, Senhorita Sasaki… Quanta vergonha sinto! Sim, vergonha por deixar o meu antigo nome como mestre estrategista das forças demoníacas subir à cabeça…! E tal manobra ágil que demonstrou a mim na maneira como utilizou a fralda… De fato, as escamas caíram dos meus olhos…
O universo podia ser um lugar vasto e inescrutável, mas ainda parecia justo dizer que Ashiya era um demônio que nunca precisou trocar a fralda de um bebê durante sua conquista do mundo. Mesmo assim, lamentava pela desonra ao falhar na tarefa.
Chiho, sem saber o que dizer para consolá-lo, virou-se para o relógio de parede a fim de tentar distraí-lo.
— Quando que a Yusa vai voltar?
— Assim que o seu trabalho estiver completo, acredito eu. Não antes das seis da noite.
— Você sabe sobre os turnos da Emi, Suzuno?
— Não, mas estaria mentindo se dissesse que nunca a embosquei.
Chiho não tinha contexto para lhe ajudar a pensar nessa súbita confissão, mas uma rápida olhada para a sacola a fez lembrar de algo.
— Desculpa, Suzuno, mas tem um caderno de capa rosa na minha sacola. Coloquei um pedaço de papel logo abaixo da capa, poderia pegar para mim?
— Claro. Um momento… Esse aqui?
Suzuno desdobrou o papel para Chiho, pois suas mãos estavam ocupadas segurando Alas Ramus, então o entregou.
— Deixa eu ver… Hoje o turno de supervisão do Maou vai passar do pico do almoço. Kisaki marcou de aparecer logo depois, e… Oh, ele vai sair mais cedo. Quatro da tarde, pelo que diz aqui.
Era uma agenda de turnos escrita à mão, preparada por Kisaki para sua equipe como uma versão portátil da planilha oficial. Agora eram duas e meia da tarde, de acordo com o celular de Chiho.
— Oh… já sei! Então, o que acham de eu levar Alas Ramus até o MgRonald?
— Como é?
— O quê?
Nem Ashiya nem Suzuno foram capazes de responder com sim ou não.
— Bem, acho que ela vai ficar bastante entediada se ficar aqui o dia todo. Talvez, se a levarmos para um passeio, pode ficar de bom humor e se lembrar de algo do passado para nós. Além disso, também vai poder ver o seu “Papai” mais cedo.
— Papai.
Alas Ramus, nos braços de Chiho, rapidamente brilhou com aquela palavra, erguendo os braços com pura alegria. Ela realmente amava o Papai de um jeito sem igual.
Mas Ashiya ergueu a cabeça depois do seu estupor deprimido para contestar.
— Não entendo por que meu soberano decidiu acolher Alas Ramus, mas enquanto não soubermos a origem dessa menina, sinto que seja perigoso levá-la para fora…
— Não. Concordo com Chiho. Podemos ter passado por momentos tumultuosos com ela, mas se queremos fazer algum progresso, precisamos tomar a iniciativa. Os costumes sociais deste país provavelmente não seriam amigáveis diante da ideia de você carregar uma criança desconhecida. E se Alas Ramus adoecer? Levaria para o médico público, sem qualquer documento que prove a relação de vocês?
Ashiya ficou em silêncio diante do argumento justificável.
Suzuno olhou para Alas Ramus, que estava confortável nos braços da Chiho, a birra de antes parecendo um pesadelo deixado no passado.
— Não há nada a temer. Tenho confiança o bastante de que posso lidar com um anjo ou demônio que aparecer do nada. Quando as coisas começarem, podemos decidir o que fazer assim que as circunstâncias mudarem. Isso seria bom para ela, e para você também, não é?
— Sim…, mas…
— E entenda, Alciel, que não importa qual seja a nossa situação, não importa o quanto lutamos no passado, agora estamos todos de acordo em um ponto em específico: precisamos manter Alas Ramus protegida, custe o que custar.
— Cara, eu nunca disse isso.
Todo mundo ignorou a voz que saía do armário.
— De qualquer maneira, acho que levar Alas Ramus para passear é uma boa ideia. É a melhor coisa a se fazer para a sua saúde e felicidade.
O olhar de Suzuno virou-se na direção do armário.
— Também sinto que a sua presença está tendo efeito ruim na criação dela.
— Concordo. — Chiho assentiu mais do que depressa.
— Ei, podem parar de descontar em mim!
Ele estava ciente da desaprovação deles, mas ainda assim não foi o suficiente para tirá-lo de lá — um claro sinal da sua falta de vontade para melhorar suas atitudes.
— Muito bem, mas, como servo fiel do meu soberano, não posso simplesmente entregar a criança que ele concordou em cuidar assim, do nada! Vou junto. Sendo assim, ela pode sair.
Ashiya devorou o restante do seu bento com uma velocidade impressionante enquanto falava, murmurando palavras à medida que virava uma das bebidas energéticas de Suzuno.
Era algo difícil de se acreditar, considerando seus bons modos à mesa. Porém, no instante em que a bebida acabou…
— Nh!
Com um gemido, Ashiya caiu de costas.
— Ashiya?!
Chiho correu até o seu lado. Ele encarou o nada por um tempo, claramente sentindo dor, antes de fechar os olhos devagar, como se desse o último suspiro.
— Ooo, Al-céu mimiu!
Alas Ramus, despreocupada, era o total contrário de Chiho, nervosa. Suzuno não poderia ter colocado algo na bebida para dar um golpe final nos demônios, poderia?
— Grrrnnnkkk…
Porém, no momento seguinte, Ashiya soltou um enorme ronco, sua a boca arreganhada.
— Bem… acho que esse foi o golpe que precisava, suponho. — Suzuno balançou a cabeça, incrédula. — Acordei diversas vezes na noite passada, sendo que estava em outro quarto. Ouvir o choro de Alas Ramus a centímetros de distância deve ter levado Alciel ao limite.
Olhando com cautela para a porta do armário, Suzuno pegou a garrafa que Ashiya derrubou quando caiu.
— Emilia me deu isso aqui ontem. Não foi a abordagem mais gentil, posso garantir, mas duvido que Alciel teria descansado sem isso. Logo adoeceria, e já percebi que sempre que ele está doente demais para continuar, os demônios ao seu redor têm a tendência de deixar as coisas ainda piores.
Suzuno apontava para a bebida energética em sua mão. A garrafa tinha escrito “5-Energia Sagrada β”, uma marca que Chiho não conhecia, e a lista de ingredientes estava em uma língua que nunca viu antes.
— O que está escrito aí?
— É o idioma Ente Islanense. Pense nisso como um tipo de… calmante para demônios.
A julgar pelo olhar cuidadoso de Suzuno na porta do armário, Chiho supôs que não era algo que queria que os seus vizinhos demoníacos soubessem.
— Ei, isso me faz lembrar…
Chiho olhou para Alas Ramus, então para Ashiya, o ronco parecendo uma turbina de avião.
— Alas Ramus… você sabia o nome do Ashiya, não é? Disse “Al-céu”.
— Ooo?
Alas Ramus, ainda em seus braços, levou um dedo à boca quando encarou Chiho de volta, que pensava um pouco enquanto observava aqueles grandes olhos expressivos.
— Alas Ramus?
— Shim?
Ela ergueu um braço ágil. Apenas isso foi o suficiente para fazer Chiho sorrir.
— Meu nome é Chiho.
— Chee-o?
— Chi-ho. Mas o Papai gosta de me chamar de “Chi”.
— Chi-cha! — O rosto dela se iluminou, como se tivesse lembrado de algo. — Amiga do Papai!
— Calma, calma, Alas Ramus… — Suzuno interrompeu. — Chiho está mais para uma irmã mais velha para você. “Chi” seria informal demais.
— Oooo? Oo?
— Tente chamá-la de “Chiho, minha irmã”.
Alas Ramus, parecendo ter levado a crítica para o coração, ficou com o corpo tenso e olhou para o rosto de Chiho.
— Chio… mmm… — Tentou refletir sobre a ordem de Suzuno. — Mana Chi!
E essa foi a sua interpretação final.
— Oh, que coisa mais fofaaaaaaa!!
Profundamente comovida por esta demonstração de afeição, Chiho esfregou suas bochechas com as de Alas Ramus uma vez mais.
— Mana Chi, Mana Chi…
A criança repetia sem parar, apontando um dedo para Chiho a fim de ter certeza de que estava certa. Então olhou para Suzuno, que estava ao seu lado, e a encarou também. Continuou encarando… e encarando…
— Oo…
— O… O que foi?
Suzuno engoliu em seco, nervosa, de frente a esse estranho confronto.
— E você sabe quem é essa moça? É a Suzuno. Ela também é tipo uma irmã mais velha.
Chiho, supondo o que Alas Ramus estava pensando, surgiu ao resgate. Processando o dado dentro do seu sistema computacional interno, a menina rapidamente deu uma resposta:
— Mana Suzu!
Então apontou um dedo para ela, não dando espaço para que dissessem o contrário. Ondas de carmesim cruzaram o rosto de Suzuno.
— Mana Suzu… Mm. Oh. Hmm. Não. Tudo bem, mas… Hm…
— Mana Chi, Mana Suzu!
Alas Ramus gritava os nomes, um após o outro, como se tentasse fundir os dois em seu cérebro. A última vez que fez aquilo foi com Maou e Emi.
— Awwwwww, não me aguento com você!!
— Calma… calma, não precisa repetir tantas vezes assim…! E pare de me encarar com esses olhos! Isso é injusto! Ela é amável demais!
As mulheres coraram de alegria enquanto riam entre si.
— Vocês estão parecendo tão estúpidas.
Elas foram interrompidas por uma voz súbita que saía de dentro do armário. As duas o encararam de maneira sombria.
Jogando o corpo imóvel de Ashiya para um lado, Suzuno ficou na frente da porta do armário e deu várias batidas fortes com a palma da mão.
— Ahg!!
Ela conseguiu ouvir o surpreso Urushihara reclamar do lado de dentro.
— Presumo que tenha nos escutado. Chiho e eu vamos levar Alas Ramus para passear. Diga ao Alciel, quando ele acordar. Voltaremos assim que Emilia ou o Rei Demônio saírem do trabalho.
— Tudo bem, beleza. Cara, você me deu um susto de verdade aqui. Se algo der errado, nem me viram, sacou?
— Este é o maior desejo que nós temos, mas você poderia ao menos servir como nosso bloquinho de anotações ambulante.
— Desde quando vocês fazem parte da mesma laia? Tipo, tem eu, e não tem mais ninguém. Vocês duas são humanas!
— Eu que te faço essa pergunta. Até mesmo os maiores inimigos podem juntar forças por uma causa em comum. Mas te defender não é uma causa comum!
— Luciffar, inútil?
Alas Ramus observava a conversa na porta do armário, referindo-se a Lucifer pelo seu nome verdadeiro.
E parece que foi ouvida do outro lado da porta. Suzuno pôde sentir a agitação lá dentro, então deixou uma última mensagem antes de partir.
— Crianças aprendem as coisas rápido, não é? E também são tão honestas.
Tradução: Taiyō
Revisão: Milady
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