Rei Demônio ao Trabalho

Rei Demônio ao Trabalho – Vol. 02 – Cap. 01.3 – Uma Vizinha Atenciosa Ajuda nas Finanças do Rei Demônio

— Huh. Pois é, é um trago de energia mesmo. Será que funciona pra valer?

Tinha um gosto muito familiar, a doçura pesada que permanecia na língua por muito tempo, quase passando o gosto de remédios enjoativos.

Emi confiava em Emeralda, para falar a verdade, mas entre a embalagem, o cheiro e o gosto, não havia diferença das bebidas energéticas enfiadas em expositores de plástico perto do caixa de lojas de conveniência 24h comuns.

Era como se empresas estivessem tentando inventar novas leis de física para enfiar só mais alguns miligramas de taurina em cada garrafa.

Emi não se apressou para esvaziar a garrafa em sua boca. O líquido queimava à medida em que descia pela sua garganta, deixando uma essência prolongada e metálica de vitamina y, a qual a fazia torcer o nariz. Aquilo a energizou, sim, mas o uso regular não seria bom para a saúde a longo prazo.

Energia sagrada ou não, não parecia que a bebida oferecia nenhum efeito dramático imediato. Ela estava prestes a jogar a garrafa no lixo da cozinha, quando percebeu uma bagunça com o canto dos olhos.

— Opa…

A fita larga que ela tinha arrancado da caixa e jogado de qualquer jeito estava agora presa na capa da revista de canais de televisão que tinha mantido perto da sua poltrona.

— Aahhhhhh! — Ela gritava espantada enquanto corria até a revista — Eles colocaram o Vice-Shogun Mito na capa também…

Com cuidado, tentou retirar a fita da foto do seu ator preferido da novela de samurai. O adesivo grudou sem piedade na capa, rasgando o rosto sorridente.

Emi olhou para a revista em sua mão direita, então para a bola de fita na esquerda, suspirando logo em seguida. A respiração parecia ter retirado toda a emoção do seu corpo junto.

— Não, não, não posso deixar que isso me desanime…!

Tinha acabado de prometer a Emeralda que iria perseguir os seus inimigos e ficar de olho no Castelo Demoníaco. A perspectiva mental de um soldado sempre teve um efeito desproporcional sobre o seu desempenho. Aventurar-se em terras de ninguém em seu estado melancólico de agora poderia lhe custar tudo aquilo com que se importava.

Animando-se, jogou a fita e a revista dentro do lixo.

— Não tenho forças para cozinhar, então acho que curry está de bom tamanho.

Apesar da sua determinação rebelde enquanto se levantava, os seus passo eram lentos e desajeitados à medida em que ia em direção à cozinha e pegava o seu mix de curry Nova Hampshire e o pacote de arroz instantâneo Tia Nan.

Jogando o bloco de curry no prato, o colocou no micro-ondas e ajustou para dois minutos.

Com um gemido baixo e exausto, observava apática enquanto o prato girava e girava, sem parar, no lado de dentro.

Algo sobre a próxima visita ao apartamento precário do Castelo Demoníaco no dia seguinte a deixava um tanto desanimada.

— Eu… sou a Heroína, não sou? Comer um curry vencido no jantar não me faz deixar de ser a Heroína, faz?

Beep, respondeu o micro-ondas. Ela também respondeu, mas com um olhar frio.

 Em seguida, foi a vez do arroz instantâneo. Abrindo apenas um pouco do pacote, Emi o enfiou lá dentro e colocou mais dois minutos.

— Aquela jornada por Ente Isla teria sido muito mais fácil com um micro-ondas e arroz instantâneo. Talvez eu possa levar alguns utensílios de cozinha comigo, pelo menos. Aposto que poderíamos atrelar uma alquimia de luz ou algo do tipo para energizá-lo… Oh, mas espere, um encanto de Trovão Divino geraria energia de corrente contínua ou corrente alternada?

A diferença entre ideal e realidade tinha começado a incomodar havia muito tempo, desde que derrotou o Rei Demônio — algo que ela mesma não tinha percebido ainda.

A sua expressão ficou mais leve com o cheiro do curry no prato, uma refeição trazida a ela em quatro minutos com os triunfos poderosos da civilização que adotara.

— Ohh, estou quase sem xampu. É melhor comprar mais logo…

Depois do jantar, ela pensava sobre os planos para o banho enquanto olhava para o seu calendário de parede.

— Ainda não tem nada de bom na TV? Ah, espere aí, Vice-Shogun Mito estreia hoje à noite!

 O recente aumento dos momentos em que passava falando consigo mesma era outra mudança que lhe passou despercebido.

Emi suspirava enquanto olhava para o cartão-passe que a máquina de bilhetes imprimia para ela, apitando o seu tom chato o tempo todo.

— Pelo menos Sasazuka e Hatagaya estão dentro do raio do meu passe de viagem. Pelo menos tem essa vantagem.

Emi, cujo trajeto de trabalho ia da estação de Eifukucho até a de Shinkuju, tinha um passe de viagem que a sua empresa pagava para ela. Isso permitia que fosse a lugares como Sasazuka e Hatagaya ao longo do caminho, mas, ao ver dessa forma, fazia parecer que a sua luta de vida ou morte contra o Rei Demônio estava sendo patrocinada pelo departamento de Recursos Humanos do seu trabalho da Dokodemo.

Ela tinha aproveitado a vantagem de parar em Sasazuka para atualizar o seu passe. Colocando o recibo na carteira, cansada, saiu da sombra gerada pelo teto da estação.

— Todo o santo dia, por que precisa ser quente desse jeito…?

Ao sair pela entrada da estação, logo abaixo da elevada linha de trem, Emi ficou cega por causa dos raios de sol, já aparecendo nas primeiras horas da manhã.

Qualquer fervor que permanecia para a missão de vigilância do Castelo Demoníaco que prometera a Emeralda estava em grave perigo de ser torrado por algo ainda mais quente.

Todos os dias estavam sendo assim.

Para derrotar Malacoda, o comandante supremo da força de expedição da Ilha do Sul do Rei Demônio, Emi teve que enfrentar um clima tropical desértico da ilha de uma extremidade até a outra a pé. Ali, no entanto, 120 ienes era tudo o que precisava para comprar uma bebida gelada, e uma cafeteria próxima iria fornecer o conforto instantâneo do ar condicionado. Mas, ainda assim, verão era verão, um dos verdadeiros dogmas universais.

Ela pegou um guarda-chuva florido da sua bolsa de ombro, adequado para dias de chuva e para manter a luz do sol longe do seu pescoço. Limpando a testa com um lenço, continuou na perigosa estrada até o Castelo Demoníaco.

Este era o quarto dia da sua visita para manter anotações diárias sobre o Rei Demônio, algo que resolveu ao receber a carga de 5-Energia Sagrada β. Continuar com esse trabalho difícil e nada recompensador debaixo do forte calor do verão requeria uma quantidade de resistência notável.

No primeiro dia, posicionou-se na livraria em frente ao local de trabalho de Maou, perto da estação de Hatagaya, lendo todas as revistas na prateleira ali perto enquanto mantinha a vigília constante no alvo. No segundo, foi até o Castelo Demoníaco, mas fora os sons da vida normal, a única coisa estranha que viu foi um Ashiya de aparência cansada comprando cebolinhas, caldo de sopa dashi, sachês de chá de cevada instantâneo e um novo filtro para o dreno da pia da cozinha. No terceiro, as obrigações do trabalho a mantiveram longe.

— Eu sou… uma total stalker agora, não sou?

Emi ralhou para si mesma à medida em que matava a sua sede com uma garrafinha plástica de água mineral.

Ficar de guarda na vida pessoal e no local de trabalho de alguém durante o dia a dia sem nenhum proposito real seria a verdadeira definição de stalker, sim.

Fora aquele dia em que estava ocupada demais para manter os seus deveres de stalker, este estava sendo o maior esforço que fizera para manter anotações sobre Sasazuka desse o primeiro dia em que encontrou o Rei Demônio, há dois meses.

E hoje, no quarto dia, estava perdendo o fim de semana por nada.

Sempre estava ocupada nas sextas-feiras, mas ao invés de ficar perdida em meio a um longo dia lidando com telefonemas, optou por uma espionagem matinal, mesmo que a taxa com que o sol estava a tirando toda a vontade de viver fosse uma completa reviravolta nos seus planos.

— Nngh! Preciso pensar direito aqui! Se o Rei Demônio e o seu grupo estão apenas trabalhando, comendo e dormindo o dia inteiro, ótimo! Viva a paz!

Emi tentou o melhor que pôde para se animar à medida que descia a rua ao lado de um canal de irrigação que atravessava de norte a sul através da área residencial de Sasazuka.

— E aqui estou eu…, de olho nesses caras, que só estão tentando cuidar da própria vida. Eu sou uma completa stalker.

Não demorou muito para que o seu cérebro passasse a trabalhar contra ela novamente.

Quando o prédio que abrigava o Castelo Demoníaco ficou à vista, Emi parou para conferir a garrafa de 5-Energia Sagrada β que estava em sua bolsa.

Não sentia a necessidade de beber agora, e também tinha suas dúvidas sobre sua real necessidade.

— Vamos só dar uma olhada nas coisas e ir trabalhar… É provável que o Rei Demônio esteja dormindo a essas horas da manhã.

Demonstrando uma clara falta de ânimo diante do seu dever antes mesmo de chegar, desarmou o guarda-chuva e o colocou na bolsa para evitar chamar muita atenção. De maneira furtiva atrás do bloco de concreto que marcava a propriedade do Vila Rosa Sasazuka dos seus vizinhos, ela olhou para o Quarto 201, o mais perto do seu lado.

O Castelo Demoníaco não possuía ar condicionado, por isso as janelas eram constantemente deixadas abertas, permitindo que ela ouvisse as conversas dos cidadãos do castelo. Não era como se eles estivessem gritando entre si todos os dias, por isso que Emi não tinha total certeza do que estavam falando.

Só uma vez foi capaz de ouvir Ashiya, a versão humana do Grande General Demônio Alciel, brigando com Urushihara, a forma humana de Lúcifer, sobre desperdiçar o dinheiro em uma coisa ou outra. Isso mostrava bem que não fazia sentido manter uma observação dessas sobre eles.

— Devem ter lavado a roupa hoje. Bom trabalho ao pendurar tudo. Será que só jogam e torcem para que fique pendurada?

As roupas e panos penduradas no varal da janela estavam se debatendo ao vento, ficando amarrotadas. O tempo passou devagar à medida em que ela comtemplava aquilo, até que finalmente esvaziou sua garrafa d’água.

— Bem…, nada, eu acho. Ainda tenho um pouco de tempo, mas talvez deva ir direto para o trabalho.

Justo quando terminou de murmurar para si mesma…

— Minha nossa, não consegue lidar com a roupa usando um pingo mais de gentileza? Não tinha ideia de que você sabia tão pouco sobre cuidar da casa, Hanzou.

— …!?

Rápida, Emi escorou-se contra a parede externa do apartamento para permanecer escondida, elogiando os próprios reflexos velozes quando o fez.

Tinha ficado congelada com a voz repentina, o seu corpo, por instinto, a levou a um lugar seguro quando percebeu a situação.

— Se você a pendurar tão amassada assim, ela vai perder toda a forma! E você irá ver os amarrotados mais assustadores quando secar. Já devia saber disso pelo menos.

Com um espelho de mão, Emi o estendeu até passar pelo canto da parede para examinar o corredor do segundo andar.

Era uma garota.

Alguém que nunca tinha visto antes estava desamassando as roupas lavadas do Castelo Demoníaco, peça por peça.

— Certo. Agora faça de novo. Esses cobertores de verão também. Abra-os bem, então use os prendedores para mantê-los no ugar. E se caírem, coloque-os de volta para lavar!

— Sim, sim. Foi mal.

A voz acanhada que a respondeu era sem dúvidas de Urushihara.

Aquilo não era uma miragem, muito menos um caso de identidade não reconhecida. O espelho não lhe mostrou nada com clareza, mas definitivamente havia uma garota ali, usando um lenço de cabeça triangular, dentro do Castelo Demoníaco.

— Eu duvido que tenha alguém vivendo no primeiro andar.

Aos poucos, Emi foi seguindo ao lado da parede, checando se ninguém estava olhando antes de se esconder debaixo de uma árvore sob a janela do Quarto 201. Ela agora estava totalmente escondida do segundo andar.

— Credo. É como se o Ashiya tivesse se clonado.

— Você não pode culpar nada mais além da sua própria preguiça, Hanzou. Se pretende ficar preso dentro de casa como um rato hibernando o dia inteiro, pelo menos podia ajudar nas tarefas diárias.

— Eu juro que… quero… dizer isso também…

Emi conseguia ouvir alguém que soava como Ashiya enquanto a garota e Urushihara conversavam entre sim, mas, talvez por ele estar do lado oposto da janela, estava difícil de ouvir.

Ela focou-se, tentando decifrar a voz abafada, mas logo os outros dois ficaram quietos demais para serem ouvidos. E, o pior:

— Ugh… não agora! Pô, fiquem em silêncio, malditos!

As várias milhares de cigarras que chamavam a árvore de Emi de casa estavam cantando o som lamentoso do verão ao mesmo tempo e a todo o volume.

Jii jii rhee rhee jkk jkk jkk cht cht cht rheeeeeooouuuuuhhh… A cacofonia de cantos daquela única árvore parecia formar uma única parede de som, simbolizando os impulsos ardentes e abrangentes que guiavam aquelas bestas gritantes enquanto colocavam suas vidas em jogo no último verão que estariam vivenciando.

Algo leve bateu contra a cabeça de Emi. Ela ergueu a mão e descobriu que era uma casca seca de cigarra.

— Eles devem estar tentando tirar com a minha cara. E também tem mais de uma espécie aqui.

Emi jogou fora a casca enquanto reclamava para ninguém em particular. Mas até mesmo a Heroína de Ente Isla, dotada em todas as línguas do mundo, tinha problemas em deixar claro o que queria dizer à raça das cigarras.

Arrependendo-se da sua tentativa fútil em fazer com que elas calassem a boca, Emi passou a pensar no seu próximo movimento.

Essa foi a primeira grande mudança em quatro dias. Não podia ir embora sem chegar a fundo. A garota de antes podia ser uma nova visitante do reino dos demônios, alguém que ela não conhecia.

A julgar pela discussão sobre a lavação de roupas antes, ela podia ver que essa intrusa não era uma ameaça imediata à área. Mesmo assim, Emi não deixaria a oportunidade lhe escapar.

— Pode ser que seja arriscado, mas que se dane…

Fortalecendo a sua vontade, saiu na ponta dos pés debaixo da janela e foi em direção à escadaria da frente.

Então, devagar, a fim de evitar qualquer som, subiu as escadas. Estava usando os seus saltos do trabalho, por isso mantinha uma mão firme no corrimão, assegurando-se de não cair de forma vergonhosa de novo.

Quando chegou ao fim, respirando de leve o caminho todo, viu-se coberta de suor.

A janela da cozinha que dava para o corredor do lado de fora estava aberto, como já imaginava, fornecendo um pouco da ventilação que o apartamento tinha a oferecer.

— Sendo sincera, Hanzou, o que faremos com você? Tenho certeza de que isso não está além da sua compreensão.

Era a garota de antes. Emi agachou-se logo abaixo das barras de ferro que cobriam a janela enquanto ouvia.

— Então. Primeiro, corte essas chalotas e grelhe um pouco de gengibre, depois, use um pouco de água fria para diluir o caldo de sopa. Agora só precisa colocar o macarrão udon para ferver. Pode até mesmo servir frio, se preferir, ao colocá-lo em água fria logo depois de terminar de ferver. E adicione um ovo cru, então ficará simplesmente perfeito.

— Oh, cara, você quer que eu ferva o macarrão nesse calorão?

— É isso o que o Ashiya faz por você todo dia e em todas as refeições. Seria apropriado lhe oferecer um pouco de gratidão.

Parecia que a afronta da garota contra Urushihara ainda continuava. Pelo menos o assunto tinha mudado da roupa lavada.

— Não se estresse com ele, Senhorita Kamazuki. Eu grito, grito e grito com ele todos os dias, mas ainda assim nunca me escuta. — Enfim Ashiya podia ser ouvido em alto e bom som.

 “Senhorita Kamazuki” devia ser o nome da garota. A voz apática dele fez com que Emi desse mais do que uma simples pausa.

— Vou tomar conta das preparações de hoje, então é melhor me observar com cuidado, para que o Shirou não reclame do seu desempenho amanhã. Aqui, grelhe o gengibre para mim. Você sabe como usar uma grelha, acredito.

— Tudo bem… Hmm? Ei, Ashiya, nós não usamos todo o gengibre, né?

Emi ouviu a geladeira se abrindo, seguida pela voz de Urushihara enquanto ele espiava dentro. Então, a voz fraca e oscilante de Ashiya continuou:

— Ah… Nós usamos o resto na noite passada. Sinto muito, Senhorita Kamazuki. Vamos ter que nos virar apenas com as chalotas hoje… Urushihara, feche a droga da porta da geladeira atrás de você!

A força apareceu em sua voz no final.

— Hmm, sem gengibre? Vai faltar bastante nutrientes assim. Acho que deve ter um pouco de gengibre entre os vegetais que eu trouxe. Talvez possa emprestar um pouco.

Emi pôde perceber que a tal da Kamazuki estava cozinhando dentro do Castelo Demoníaco. Isso levantou a dúvida de como ela e os demônios daquela fortaleza se conheceram.

Mas não foi lhe dado tempo para pensar com cuidado.

— Deixe-me dar uma olhada no meu quarto. Tenho certeza que tenho um suprimento saudável sobrando.

A voz da mulher começou a mudar da cozinha para a porta da frente. Será que estava saindo? A cabeça de Emi girou em pânico. Não havia onde se esconder em segurança.

— Hanzou, enquanto eu estiver fora, quero que desmanche o macarrão com o uso dos pauzinhos lentamente. Certifique-se de que nenhum deles fique preso entre si.

— Tá, tá, tá.

— Um já é o suficiente! Volto logo.

A porta da frente tremeu. Ela estava saindo! Não havia tempo de supor para qual “quarto” ela estava indo. Emi precisava fugir.

O seu pânico fez com que se perdesse nos próprios pés.

— Ah…

Quando viu, já estava em pleno ar, os seus pés escorregaram no último degrau da escada. O brilhante céu azul da manhã cintilou diante dela, e as cigarras produziram a música de fundo ideal para a sua jornada para baixo.

Com o canto dos olhos, viu o telefone, a carteira, a passagem de trem, o guarda-chuva dobrado, o romance lido pela metade, o estojo de maquiagem, o espelho de mão, o lenço, o caderno de anotações, a garrafa de 5-Energia Sagrada β, a caixa de palitos de dentes, uma caixa de lenços, o seu estojo de canetas, o protetor labial — que, por algum motivo, estava todo aberto — e todo o resto que estava dentro da sua bolsa de ombro voar para todos os lados.

— Yaaaagghhhh!!

Depois de um momento para perceber tudo aquilo, Emi começou a cair de maneira elegante. Não sabia exatamente quanta força colocou no pé que escorregou, mas, dependendo da forma que caísse, havia a chance de alguns ferimentos graves. Preparou-se para o impacto, incapaz de encontrar uma forma de amortecer o golpe em pleno ar, quando:

— Oof…?!

Com um baque seco e suave, a queda foi parada sem aviso.

Emi fechou os olhos por instinto, mas a dor não era nem um pouco como imaginara que seria. Tudo o que ouviu foi o som de vários objetos pequenos caindo ao seu redor e:

— Aiiiiiiiii…

Uma voz familiar gemia ao seu lado.

Timidamente, ela se atreveu a abrir os olhos.

— Não pode subir e descer as escadas com calma pelo menos uma vez na sua vida?

A aparência desajeitada no rosto do Rei Demônio — bem, Sadao Maou, na realidade — estava diante do dela.

— Sério, acabei resgatando a garota errada. Não é como se você fosse me recompensar ou algo do tipo.

— R-Rei Demônio!! — gritou Emi, então rapidamente balançou a cabeça, ainda incapaz de compreender a situação.

Todas as coisas que antes estavam em sua bolsa agora estavam espalhadas ao seu lado, sendo que a caixa de lenços estava perfeitamente sobre a cabeça de Maou. Emi, no entanto, estava em uma posição ainda mais precária.

— M-Me solte! O-O que… pensa que está fazendo…?!

Ela sentiu o seu sangue ferver da cabeça aos pés. O seu corpo estava nos braços de Maou naquele momento.

Maou devia tê-la agarrado durante a queda, mas a forma com que a segurava, como se fosse um bebê, adicionava um insulto para a Heroína, algo que mal conseguia aguentar.

O calor do verão e a sensação de vergonha por ter envolvido Maou nessa sórdida cena estavam prestes a fazê-la irromper em chamas.

— Me… me largue agora mesmo! O-O que planeja fazer comigo?!

Emi começou a balançar os braços e pernas, o seu rosto brilhava de vermelho.

— Bem, foi você que caiu das minhas escadas! Pare… pare de se debater assim! Nós vamos… ergnh!

Antes que pudesse terminar a sua linha de raciocínio, um dos dedos de Emi acertou em cheio na têmpora de Maou.

Com um gemido, os seus braços perderam a força, largando Emi.

— Agh!

Foi um tombo como mandava o manual — de bunda — bem em cima das pedras que cobriam o chão abaixo das escadas. Ela estremecia enquanto esfregava o cóccix.

— Oooou…

— Não me venha com “oooou”! Pô! Nenhum ato bom passa sem ser punido por você, hein?!

Maou olhou para Emi no chão, e os olhos lacrimejavam enquanto ele mantinha uma mão na têmpora.

— Ato bom é o caralho! Você, você, você não fez nada de estranho comigo enquanto os meus olhos estavam fechados, fez?!

Ela mantinha os braços perto de si em uma postura defensiva, enquanto Maou continuava de pé à sua frente, e os seus olhos ainda estavam confusos.

— Nada aconteceu! Nada além das suas porcarias caindo na minha cabeça! Você mirou em mim ou o quê?!

 

— Bem, é isso o que você ganha por todos os feitos malignos que cometeu!

— Sou um cidadão que segue as leis! Muito mais do que você agora, eu acho!

— Que direito tem para falar isso?! Peça perdão para todos os cidadãos que seguem as leis desta nação de uma vez!

— Ouça, não queira me estressar agora, tá bom? Ou prefere que eu te jogue escadas abaixo mais uma vez? Talvez assim você mostre um pouco mais de gratidão!

— Eu iria preferir pular de bungee jump sem corda do que te agradecer! E o que é que você está fazendo aqui embaixo? Eu pensei que dormisse até depois do meio dia todos os dias!

Ao olhar mais uma vez para Maou, Emi percebeu que ele estava usando as suas luvas de algodão do trabalho. Uma vassoura velha estava no chão ao lado das bolas de sujeira e coisas da sua bolsa de ombro.

Como ousa o Rei Demônio sequer pensar em fazer algo como varrer ao redor do seu apartamento!

— Eu posso estar onde quiser, entendeu? O que há de mal em acordar cedo?! Estou tentando manter uma agenda saudável para que não fique doente neste verão!

— Você? Saudável? Você é praticamente o garoto propaganda do MgRonald!

— O que vocês dois estão fazendo…?

Urushihara, ao perceber a discussão sem sentido que se desenrolava lá embaixo, escolheu o momento certo para se aventurar do lado de fora.

— Eu preciso me desculpar. Isso jamais teria acontecido se eu não tivesse aberto a porta tão depressa.

A garota de kimono curvou-se profundamente para Emi. Ela devia ter pensando que esse acabou sendo um daqueles acidentes de “lugar errado na hora errada”.

— Não, não, não foi nada! — Emi balançava a cabeça com pressa em resposta. — Fui eu que tropecei quando não estava prestando atenção.

Maou observava com uma carranca no rosto enquanto bebia o caldo de sopa do seu udon frio.

Uma visão inteiramente inesperada desenrolava-se diante dos olhos de Emi no Castelo Demoníaco.

Primeiro, Ashiya estava deitado com um cobertor por cima, parecendo esquelético.

E então aquela caixa gigantesca na cozinha. Perto dela, uma garota, que usava kimono, avental e lenço na cabeça, estava trabalhando no balcão.

Além do udon sobre o qual tinha ouvido, Emi percebeu, para a sua surpresa, uma seleção saudável de pratos na cozinha. Blocos frios de tofu salpicados com gengibre myoga e folhas de sésamo, acompanhados por uma salada de espinafre japonês banhado em um molho à base de dashi.

— Eu juntei a maioria das coisas que caíram do lado de fora, Yusa.

— Oh, obrigada. Poderia colocar ali para mim, por favor?

Emi não estava animada com Urushihara pegando as suas coisas pessoais, mas algo a fez parar de se irritar diante de Suzuno. Ela se virou para pegá-los.

— Ugh. Eu odeio a forma com que você fala. Parecendo toda poderosa.

Na mente de Urushihara, ela não teve sucesso ao tentar esconder o desdém que sentia pelos cidadãos daquele pequeno castelo quadrado. Mas deu de ombros, sem interesse de dar uma desculpa.

— E qual é a dessa coisa? Está parecendo um forno lá fora, mas você ainda está tomando doses de energético?

Emi não podia esperar menos de Urushihara. Ele tinha a garrafinha de 5-Energia Sagrada β na mão, balançando-a na frente dela como se fosse um valentão do ensino fundamental enquanto ela tentava pegar a sua bolsa de volta.

A sua reação interna foi mais como uma leve sensação de pânico do que de raiva. Pequenos frascos de energia sagrada não eram o tipo de coisa que queria que o Castelo Demoníaco descobrisse.

— Ei! Me devolva isso! — Rapidamente passou a mão e tomou a garrafa das mãos de Urushihara, colocando-a no fundo da bolsa. Uma gota de suor escorria pelas suas costas enquanto o observava.

— Se você beber aquela coisa, vai acabar desabando igual ao Ashiya.

— Desabando? O quê, não me diga que ficou doente por causa do calor…

Emi mostrou um olhar de surpresa de verdade para Ashiya, que estava deitado no chão. Ele estalou a língua como uma criança insolente antes de se virar para o lado, ficando longe dela.

— E daí se foi? Eu não me sinto muito bem às vezes, entende?

Eles podiam ter perdido a energia demoníaca, mas, para Emi e Ente Isla, a descoberta de que o calor extremo era prejudicial para a saúde dos demônios era algo avassalador.

— Não se sente muito bem? Tipo, o que foi que te aconteceu exatamente?

— Não sei, eu meio que fiquei sem apetite. É como se o meu estômago tivesse começado a me incomodar e tal. — Urushihara estava feliz em explicar.

— Eu não acharia isso tão agradável.

Emi deu de ombros, não achando o assunto bom o suficiente para continuar perguntando.

— Não estou fazendo isso para você gostar de algo, sua… — Ashiya, com a sua voz esgotada direcionada a Emi, parecia ser o menos alegre com aquilo.

Dado como Ashiya sempre foi o demônio que constantemente tratava Emi como uma invasora hostil, essa era uma visão que ela desejava poder gravar e usar para chantageá-lo no futuro.

— Parece que a minha tentativa de ajuda foi a causa.

Emi virou-se na direção da garota.

O kimono dela mostrava o melhor do seu rosto bonito e bem definido. Era um pacote perfeito, Emi poderia facilmente ter a confundido com uma atriz de novela de samurai. Isso mostrava quão digna era a aura dela, como se não pertencesse a este mundo.

Emi percebeu que os seus olhos, subconscientemente, foram atraídos pela área do peito dela.

Quase do mesmo tamanho que o meu, talvez…?

Ela suspirou. Havia uma estranha sensação de alívio.

Suzuno podia ser a perfeita beldade japonesa, mas pelo menos um aspecto dela era só um pouco diferente do de Emi.

A garota, por sua vez, tinha um olhar congelado de angústia, ou remorso, em seu rosto, sem perceber a comparação sem sentido que Emi fazia.

— Sinto-me terrivelmente arrependida por isso. Talvez eu devesse ter escolhido algo mais nutritivo para compensar essas boas pessoas.

— Não, não, Senhorita Kamazuki, não é culpa sua. Eu estou aproveitando cada pedaço daquele macarrão de udon.

De dentro do casulo de cobertor, Ashiya apaziguava Suzuno com uma voz muito diferente da que usava para se dirigir a Emi.

— Sim. O problema é o cardápio, na real. Quero dizer, tipo, é fácil cozinhar e o gosto é bom, mas comer udon frio dia sim dia não nesse calor deixaria qualquer um de joelhos depois de um tempo.

A observação de Urushihara, que ainda não tinha levantado um dedo sequer para contribuir com o suprimento alimentício do Castelo, atraiu olhares frios dos demais.

Naquele momento, Suzuno estendeu o corpo e virou-se para Emi, como se tivesse se lembrado de algo.

— Mas vejo que me esqueci do assunto mais importante! O meu nome é Suzuno Kamazuki. Acabei de arrumar os meus pertences na porta ao lado, o Quarto 202, semana passada. Venho de uma família bem conhecida de um local muito remoto, a qual não foi exposta às armadilhas modernas do mundo, por isso permanece bem desacostumada com a vida diária daqui. Espero que você possa ajudar uma simples garota do interior a se virar nesta cidade grande.

— Uh… simmm… Eu me chamo Emi Yusa. Prazer em conhecê-la.

O cumprimento inesperadamente rígido e educado da mulher, vagarosamente ajoelhando-se diante dela, fez com que Emi se sentisse obrigada a curvar as costas também.

— Mas…, não querendo ofender…, estou surpresa por você ter escolhido um lugar desses.

Emi apontou para as esteiras de tatame empoeiradas que estavam alinhadas no piso do Castelo Demoníaco, e a sua voz mostrava traços de dúvida.

Antes de encontrar o apartamento em que vivia atualmente, o agente imobiliário de Emi entrou em grandes detalhes sobre as coisas que uma mulher solteira precisava saber para viver sozinha.

O seu apartamento ficava no quinto andar, mas mesmo agora fazia coisas como comprar algumas cuecas masculinas e coisas do tipo apenas para pendurar junto com as suas roupas. O interfone com campainha no térreo foi um extra em que ela mesma pensou.

O Vila Rosa Sasazuka, enquanto isso, era barato e perto da estação de trem, mas, a partir dos olhos de um observador imparcial, não era nem um pouco adequado para uma jovem garota viver sozinha.

Aquilo foi construído na idade da pedra. Não havia local de banho, ar condicionado nem varanda. As portas não possuíam nada além de uma simples fechadura cilíndrica. A maioria dos quartos estava praticamente vazio, e os outros residentes eram um bando de monstros sádicos de outro mundo.

  A julgar pela exatidão cuidadosa com que ela se vestia — quimonos podem dar trabalho para manter em boas condições — e a aparente doação de comida que estava dando aos seus vizinhos pobres, a taxa baixa do aluguel não poderia ter sido uma atração para ela.

E pela familiaridade que ganhou com o grupo de homens crescidos que viviam perto dela em apenas uma semana, absolutamente não tinha senso algum da precaução moderna que qualquer residente urbano tomaria.

— Contanto que eu tenha um teto para bloquear a chuva, quatro paredes para pararem o vento e um piso firme sob os meus pés, não preciso de mais nada. — Suzuno parecia ter lido a mente de Emi enquanto ela se preocupava em silêncio. — Não tenho interesse no luxo mundano. Apenas penso que estar perto da cidade fará com que encontrar um emprego adequado seja uma tarefa mais fácil.

Depois, ela ficou em silêncio, e os seus olhos fixaram-se em Emi.

— Desejo encontrar uma vocação aqui que irá deixar a minha terra natal orgulhosa.

— Uma ambição maravilhosa! Você podia aprender alguma coisa com ela, Urushihara.

Ashiya elogiava Suzuno a partir do seu leito.

Urushihara ignorava à medida em que voltava à mesa do computador.

— Mesmo assim, tenho certeza que foi o destino que nos uniu na mesma cidade, em um país tão vasto. Espero que possamos providenciar um suporte aconchegante e benevolência entre nós para os nossos companheiros seres humanos.

Suzuno virou-se na direção de Emi e curvou-se profundamente mais uma vez.

— Hm, sim. Você também.

Perdida, Emi inclinou-se para frente para imitar a sua parceira de conversa.

— Ufa! Obrigado pelo macarrão. Estava delicioso! — Maou, passando perto delas enquanto raspava o resto do café da manhã do seu prato, soltou um bocejo alto à medida em que levava os utensílios até a pia. — Cara, tenho tanta coisa para fazer, lembrar e tal. Estou rachando a cabeça.

— O que você quer dizer com isso? Está apenas manejando a grelha como sempre, não? — As sobrancelhas de Emi se enrugaram quando perguntou.

Maou a respondeu com um sorriso estranho:

— Oho! Bem, é aí que se engana. Enquanto você estava fora, desperdiçando a sua vida, fiz alguns avanços grandes como membro da sociedade humana.

Humana? Emi resistiu à vontade de morder a óbvia isca.

— Sim, exatamente, Emi! Preste bem atenção! A partir de amanhã, sábado, serei o gerente associado da tarde no MgRonald da estação de Hatagaya!

 Maou inclinou a cabeça para trás e colocou a mão no quadril, o sol da manhã passava pela janela atrás dele. Emi conseguia sentir a sua força sendo drenada.

— Sim, uau, parabéns.

Ela recompensou o show com sarcasmo e a salva de palmas menos animada do mundo.

— Hah! Você sequer acredita em mim, não é? Bem, é verdade! O meu primeiro trabalho gerencial genuíno! E um aumento de salário por hora para combinar também!

— O que eu não acredito é que você está tentando se aparecer de verdade por causa disso. Mas, ei, isso é ótimo, eu acho? Por que não passa a focar apenas na sua carreira, já que gosta tanto?

Emi balançou a mão para Maou enquanto ele tentava fervorosamente conseguir alguns elogios.

— Pfft. Então, qual é, você não tem nenhuma aspiração? Bem, okay. Algum dia, eu estarei no topo, e você irá cerrar os dentes de raiva enquanto continuará presa aqui, caindo das minhas escadas todas as vezes!

Maou mostrou a língua para ela, colocando um último ponto de exclamação em seu manifesto. Emi se opôs em silêncio, ao jogar uma caixa de lenços que estava ali perto nele. Maou se esquivou com facilidade, fazendo com que a caixa caísse em Ashiya, ao seu lado.

Ela esperou por reclamações verbais dele, mas Ashiya, irritado, colocou aquilo de lado e se enfiou debaixo das suas cobertas.

Não parecia nem um pouco bem, mas Emi mostrou pouca simpatia. Ela desviou os olhos, não desejando mais ter o Maou com aparência triunfante em sua vista.

— …

— O-O quê…?

Ao invés disso, os seus olhos focaram em Suzuno, que ainda se ajoelhava de maneira educada e a encarava, severa.

— Emi…

Ela parou, olhou para Maou, que ainda ria alegremente enquanto lavava os pratos, sentindo-se confortável em sua convicção de que enfim tinha ganhado de Emi nessa, então levou os lábios até o ouvido de Emi.

— Você e Maou, talvez, tenham uma relação próxima?

— Heiinnnn?!

O grito de choque foi verdadeiro, o suficiente para fazer com que até mesmo Ashiya, que estava descansando, e Urushihara, que estava com os fones de ouvido, se virassem.

— O-O que foi que você disse?!

— Bem, eu apenas notei que a conversa de vocês é bem, como posso dizer, conflituosa? Ou talvez franca seja uma palavra mais adequada. Não há dúvidas de que não existe senso de limitação entre vocês dois.

— Sim… Acho que é fácil ter essa impressão, mas… — Quando Emi começou, percebeu Urushihara a encarando e rindo consigo mesmo. — Pode ficar fora disso!

Um único olhar foi tudo o que precisou para silenciá-lo.

Eles certamente não se seguravam quando brigavam, e Emi nunca teve a intenção para tal. Ter isso sendo interpretado como os dois sendo companheiros próximos nunca foi algo que lhe ocorreu.

— Talvez não tenha limites, mas mais do que isso, não há confiança, fé, amizade e nenhum tipo de emoção humana positiva entre nós também. Nada! Na realidade, se ele morresse em um acidente no caminho do trabalho para casa hoje, eu honestamente não me importaria nem um pouco. Então vamos deixar isso bem claro, pode ser?

Ela certificou-se de que tinha sido ouvida por todo o quarto, por isso já conseguia sentir a careta de Ashiya e o sorriso tranquilo de Maou apontados para ela.

— Eu-Eu entendo…

Suzuno, enquanto isso, tinha perdido aquela expressão de estátua incrustável que parecia ser a sua preferida. De alguma forma, parecia haver uma sensação de alívio passando pelos seus olhos.

O que poderia deixá-la mais calma com o fato de Emi e Maou não estarem juntos?

Ao pensar sobre isso, as sobrancelhas de Emi arquearam-se para baixo. Isso já tinha acontecido antes. Existia outra mulher — a única que ainda se lembrava da batalha de Maou e Emi alguns meses atrás.

— Eu não quero me meter… — Agora foi a vez de Emi sussurrar no ouvido de Suzuno — Mas você está de olho naquele estúpido do Rei Demônio também?

A reação que Suzuno mostrou no momento não era nada normal.

O seu rosto, quase sempre cheio de vontade e confiança, ficou branco como papel. Sem dizer mais nada, ela agarrou o braço de Emi e a puxou para fora do quarto.

— Hein? Ah! Espere aí…!

Batendo a porta atrás dela e lançando um rápido olhar para o lado de dentro, ela virou-se para Emi e disse com uma voz apressada e um tanto arrastada.

— O que… o que faremos se ele te ouvir?

Emi ficou confusa no começo, se perguntando que parte da sua observação fez com que Suzuno ficasse pálida assim tão de repente. Mas fazia sentido. Se ela tivesse acertado em cheio, então, talvez, não seria a coisa mais delicada para se dizer, mesmo que fosse sussurrando.

Observando a sua vontade forte, presença digna e estranho rosto reforçado, assumiu que Suzuno não era o tipo de garota que guardava suas emoções nas mangas do seu kimono. Mas mulheres eram mulheres, concluiu ela.

— Sinto muito! Não achei que você realmente…

Emi tentou desculpar-se, a sua voz também estava apressada. Um brilho de suor frio apareceu no rosto de mármore de Suzuno.

— Eu… devo dizer, estou bastante impressionada. — Ela colocou uma mão no coração, respirando fundo para acalmar os próprios nervos. — Como você sabia?

— Como? Bem… sei lá, só achei que…

Esta era a melhor explicação que Emi tinha a oferecer. A resposta meia boca pareceu ter convencido Suzuno o suficiente.

— Entendo… Muito bom…

Ela não sabia dizer o que tinha de “muito bom” nisso, mas, mesmo assim, Suzuno parecia honestamente impressionada com as habilidades de vidente de Emi.

Observand0-a, Emi não pôde deixar de se arrepender por ter machucado um pouco os sentimentos dela. Ainda assim, precisaria dizer mais cedo ou mais tarde.

Ela era, afinal, alguém que apareceu do nada para se tornar uma presença importante no Castelo Demoníaco. Deixar de perguntar faria Emi suspeitar que ela pudesse ser uma assassina de outro mundo ou, ainda pior, uma demônio aprendiz a serviço sangrento de Maou.

Mas pense de maneira lógica disse Emi para si mesma. Um assassino não se mudaria para se sentar lá e ficar sem fazer nada durante uma semana inteira. E Suzuno estava longe de parecer apropriada para pertencer ao reino dos demônios.

— Ouça, Suzuno. Sinto muito se estou sendo intrometida, mas há algo que quero lhe dizer.

— O quê…?

Se fosse apenas uma mulher comum, Emi iria preferir mantê-la fora da luta entre anjo e demônio o máximo possível.

— Acho que é melhor você manter distância deste lugar, caso contrário, isso só lhe deixará infeliz.

— Infeliz…? Em que sentido? — Suzuno olhou para Emi, o seu rosto estava confuso.

Falar muito mal de Maou na cara dela teria o efeito oposto. Emi sabia disso por causa da experiência passada.

— Ele… não é o tipo de cara que uma pessoa comum pode lidar. Só estou dizendo que é melhor para você não ficar muito próxima dele.

— …! M-Mas, mas, eu posso não parecer, mas já passei por grandes desafios e tribulações em minha vida!

Suzuno parecia estar pegando terrivelmente pesado consigo mesma enquanto respondia.

Emi não tinha tanto interesse em ouvir toda a história de vida da garota, mas Suzuno não lhe deu tempo para falar.

— Mas… tudo bem. Se é isso o que você diz, manterei uma distância respeitosa dele. Tenho certeza de que há algo entre você e ele que eu ainda não sei.

Ela tinha um estranho sexto sentido sobre o qual Emi estava pensando no dado momento. Emi não tinha ideia do porquê elas estavam tão sintonizadas, mas no curto período de tempo em que se conheceram, a quantidade de confiança que esta garota tinha colocado aos seus pés era algo incrível para ela.

— Porém, não importa o que você me diga, não estou em posição para me retirar neste momento. Sei que é uma terrível audácia vindo de mim, mas espero que você me providencie qualquer assistência que julgue apropriada.

A beleza tinha voltado ao seu rosto à medida em que se prostrava de pé de maneira respeitosa.

Emi também se sentia culpada. Ali estava uma pobre garota, inconscientemente pega nas intrigas de Ente Isla, e a incapacidade de Emi para vencer o Rei Demônio de uma vez por todas tinha deixado a porta arreganhada para ela.

— Certamente. Se estiver ao meu alcance. — Sorriu e assentiu.

Na condição de que, é claro, não envolvesse ser uma casamenteira para o Maou.

— Muito bem… Obrigada. Estou com a consciência um pouco mais leve agora.

A parede de pedra, que normalmente era a sua expressão facial, pareceu ter relaxado um pouco.

Nem mesmo Emi suspeitava que Maou e seus comparsas tinham forçado algo sobre Suzuno. Mas a experiencia de ser uma mulher sozinha na “casa” deles devia tê-la deixado com o coração na boca.

Conversar com Emi, a primeira companheira feminina que teve em Tóquio, deve ter sido a válvula de liberação que precisava.

— Oh! Espere um pouco.

Emi gentilmente empurrou Suzuno para o lado e entrou de volta no quarto.

— Vocês não fizeram nada de estranho enquanto eu estava fora, fizeram? — Ela olhou para Urushihara enquanto conferia o interior da sua bolsa.

— Não tô com tanta pressa para morrer.

 


 

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Bravo

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